PRÓLOGO

O dia estava cinzento e amargamente frio, e os cães não apanhavam o cheiro.

A grande cadela preta tinha farejado uma vez os rastos do urso, recuara e fugira para o meio da matilha com o rabo entre as pernas. Os cães aninhavam-se uns contra os outros, com um ar infeliz, na margem do rio, enquanto o vento lhes batia. Chett também o sentia, a morder através das camadas de lã negra e couro fervido. O frio era demasiado para homens ou animais, mas ali estavam eles. A boca retorceu-se-lhe, e quase conseguiu sentir o rubor e a irritação a invadir as borbulhas que lhe cobriam as faces e o pescoço. Devia estar em segurança na Muralha, a tratar dos malditos corvos e a acender fogos para o velho Meistre Aemon. Fora o bastardo Jon Snow que lhe roubara isso, o bastardo e o seu amigo gordo Sam Tarly. Era por culpa deles que estava ali, a congelar os malditos tomates com uma matilha de cães de caça, nas profundezas da floresta assombrada.

— Sete infernos. — Deu um forte puxão nas trelas para ganhar a atenção dos cães. — Segui o rasto, seus bastardos. Aquilo é uma pegada de urso. Quereis um pouco de carne ou não? Busca! — Mas os cães limitaram-se a aconchegar-se mais, ganindo. Chett fez estalar o seu chicote curto por cima das cabeças dos animais, e a cadela preta rosnou-lhe. — Carne de cão sabe tão bem como a de urso — preveniu-a, com o hálito a congelar a cada palavra.

Lark, o homem das Irmãs, estava em pé, com os braços cruzados sobre o peito e as mãos enfiadas nos sovacos. Usava luvas negras de lã, mas andava sempre a queixar-se de ter os dedos gelados.

— ‘Tá frio de mais p’a caçar — disse. — Que se lixe este urso, não vale o suficiente p’a congelarmos.

— Não podemos voltar p’ra trás de mãos vazias, Lark — ribombou o Paul Pequeno através da barba castanha que lhe cobria a maior parte da cara. — O Senhor Comandante não ia gostar disso. — Havia gelo por baixo do nariz esborrachado do enorme homem, onde o ranho congelara. Uma mão gigantesca metida numa espessa luva de peles agarrava com força o cabo de uma lança.

— Que se lixe tam’ém o Velho Urso — disse o homem das Irmãs, um homem magro com feições bem definidas e olhos nervosos. — O Mormont vai ‘tar morto antes de nascer o dia, esqueceste-te? Quem se importa com aquilo que ele gosta?

O Paul Pequeno piscou os seus pequenos olhos pretos. Talvez se tivesse esquecido, pensou Chett; era suficientemente estúpido para esquecer quase qualquer coisa.

— Porque é que temos de matar o Velho Urso? Porque não nos vamos só embora e deixamos o tipo em paz?

— E achas que ele nos ia deixar em paz a nós? — disse Lark. — Ele ia dar-nos caça. Queres ser caçado, seu grande cabeça de carneiro?

— Não — disse o Paul Pequeno. — Não quero isso. Não quero.

— Então matas o homem? — disse Lark.

— Sim. — O enorme homem bateu na margem congelada do rio com o cabo da lança. — Mato. Ele não devia caçar a gente.

O homem das Irmãs tirou as mãos dos sovacos e virou-se para Chett.

— Eu acho que devíamos matar todos os oficiais.

Chett estava farto de ouvir aquilo.

— Já falámos sobre isso. O Velho Urso morre, e o Blane, da Torre Sombria, também. O Grubbs e o Aethan também, má sorte a deles por lhes ter calhado esse turno. O Dywen e o Bannen por serem bons batedores, e o Sor Porquinho por causa dos corvos. É tudo. Matamos os tipos em silêncio, enquanto dormem. Um grito, e somos comida para vermes, todos nós. — Tinha as borbulhas vermelhas de raiva. — Faz o que te compete e trata de que os teus primos façam o que lhes compete a eles. E, Paul, tenta lembrar-te, é o terceiro turno, não o segundo.

— Terceiro turno — disse o grande homem, através de pêlos e ranho congelado. — Eu e o Pé-Leve. Eu lembro-me, Chett.

A Lua estaria nova naquela noite, e tinham manipulado os turnos para terem oito dos seus de sentinela, com mais dois a guardar os cavalos. As coisas não iam ficar muito mais maduras do que aquilo. Além disso, os selvagens estariam ali a qualquer momento. Chett tencionava encontrar-se bem longe do Punho antes que isso acontecesse. Tencionava sobreviver.

Trezentos irmãos ajuramentados da Patrulha da Noite tinham avançado para norte, duzentos de Castelo Negro e mais cem da Torre Sombria. Era a maior patrulha de que havia memória, quase um terço das forças da Patrulha. Queriam encontrar Ben Stark, Sor Waymar Royce, e os outros patrulheiros que tinham desaparecido, e descobrir o motivo porque os selvagens andavam a abandonar as suas aldeias. Bem, não estavam mais perto do Stark e do Royce do que após deixarem a Muralha para trás, mas tinham ficado a saber o local para onde todos os selvagens haviam ido — para as alturas geladas dos miseráveis Colmilhos de Gelo. Podiam alapardar-se aí até ao fim dos tempos, que isso não espremia nem um bocadinho os furúnculos de Chett.

Mas não. Vinham a descer. Pelo Guadeleite.

Chett ergueu os olhos e ali estava ele. As margens pedregosas do rio encontravam-se debruadas de gelo, e as suas águas claras e leitosas fluíam sem parar dos Colmilhos de Gelo. E agora Mance Rayder e os seus selvagens aproximavam-se fluindo pelo mesmo caminho. Thoren Smallwood regressara coberto de espuma três dias antes. Enquanto contava ao Velho Urso o que os seus batedores tinham visto, um dos seus homens, Kedge Whiteye, contara-o aos outros.

— Ainda estão bem alto nos Colmilhos de Gelo, mas vêm aí — dissera Kedge, aquecendo as mãos sobre a fogueira. — Harma Cabeça-de-Cão, aquela cadela bexigosa, tem a vanguarda. O Goady esgueirou-se até ao seu acampamento e viu-a bem junto ao fogo. Aquele palerma do Tumberjon queria abatê-la com uma seta, mas Smallwood teve mais juízo.

Chett escarrara.

— Quantos eram, conseguiste ver?

— Muitos e mais ainda. Vinte, trinta mil, não ficámos para contar. Harma tinha quinhentos na vanguarda, todos eles a cavalo.

Os homens que rodeavam a fogueira trocaram olhares desconfortáveis. Era coisa rara encontrar nem que fosse uma dúzia de selvagens a cavalo, e quinhentos

— O Smallwood mandou-me a mim e ao Bannen rodear a vanguarda para dar uma espreitadela ao corpo principal — prosseguira Kedge. — Não tinham fim. Movem-se devagar como um rio congelado, quatro ou cinco milhas por dia, mas também não dão ares de irem voltar às suas aldeias. Mais de metade são mulheres e crianças, e levam os animais com eles, cabras, ovelhas, até auroques a arrastar trenós. Estão carregados com fardos de peles e pilhas de carne, gaiolas de galinhas, vasilhas para manteiga e rocas, todas as porcarias que possuem. As mulas e garranos vinham tão carregados que pareciam quase a quebrar o dorso. As mulheres também.

— E seguem o Guadeleite? — perguntara Lark, o homem das Irmãs.

— Foi o que eu disse, não foi?

O Guadeleite levá-los-ia a passar pelo Punho dos Primeiros Homens, o antigo forte anelar onde a Patrulha da Noite montara acampamento. Qualquer homem com um dedo de bom senso via que era altura de empacotar a tralha e retirar para a Muralha. O Velho Urso fortalecera o Punho com espigões, fossos e estrepes, mas contra uma hoste tão grande, tudo isso era inútil. Se ficassem ali, seriam submergidos e esmagados.

E Thoren Smallwood queria atacar. O Doce Donnel Hill era escudeiro de Sor Mallador Locke, e duas noites antes Smallwood viera à tenda de Locke. Sor Mallador fora da mesma opinião do velho Sor Ottyn Wythers, insistindo numa retirada para a Muralha, mas Smallwood queria convencê-lo do contrário.

— Este Rei-para-lá-da-Muralha nunca nos esperará tão longe para norte — dissera ele, segundo o Doce Donnel. — E esta sua grande hoste é desajeitada, cheia de bocas inúteis que não saberão de que lado da espada se pega. Um golpe tirar-lhes-á toda a vontade de lutar e pô-los-á em fuga, aos uivos, de volta às suas cabanas pelos próximos cinquenta anos.

Trezentos contra trinta mil. Chett chamava a isso uma completa loucura, e o que era ainda mais louco era que Sor Mallador fora convencido, e os dois, juntos, estavam a ponto de fazer o Velho Urso mudar de ideias.

— Se esperarmos demasiado, esta oportunidade poderá ser perdida, e para sempre — andava Smallwood a dizer a quem quer que o quisesse ouvir. Contra aquilo, Sor Ottyn Wythers dissera:

— Somos o escudo que defende os reinos dos homens. Não se deita fora um escudo sem bons motivos — mas a isso Thoren Smallwood ripostara:

— Num duelo de espadas, a mais segura defesa de um homem é o rápido ataque que mata o inimigo, não aninhar-se com medo atrás de um escudo.

Mas nem Smallwood nem Wythers tinham o comando. Quem o tinha era o Lorde Mormont, e Mormont estava à espera dos seus outros batedores, à espera de Jarmen Buckwell e dos homens que tinham trepado a Escada do Gigante, e de Qhorin Meia-Mão e Jon Snow, que tinham ido bater o Passo dos Guinchos. Mas o regresso de Buckwell e do Meia-Mão estava atrasado. O mais certo é estarem mortos. Chett imaginou Jon Snow a jazer, azul e congelado, nalgum cume de montanha, com a lança de um selvagem enfiada naquele cu de bastardo. A ideia fê-lo sorrir. Espero que também tenham matado o seu maldito lobo.

— Aqui não há urso nenhum — decidiu abruptamente. — Não passa duma velha pegada. De volta ao Punho. — Os cães quase o deitaram ao chão, tão ansiosos por regressar como ele. Talvez pensassem que iam ser alimentados. Chett não conseguiu evitar uma gargalhada. Já não os alimentava havia três dias, para os deixar ferozes e famintos. Naquela noite, antes de desaparecer na escuridão, libertá-los-ia no meio das fileiras de cavalos, depois do Doce Donnel Hill e do Karl Pé-Torto cortarem as cordas que os prendiam. Hão-de ter cães e cavalos em pânico por todo o Punho, atravessando fogueiras em corrida, saltando por cima da muralha, e atirando tendas ao chão. Com toda a confusão, podiam passar-se horas até que alguém reparasse que catorze irmãos tinham desaparecido.

Lark quisera trazer o dobro desse número, mas o que se podia esperar de um estúpido tipo das Irmãs, com a boca a feder a peixe? Bastava murmurar uma palavra no ouvido errado, e antes de se dar por isso, ficava-se com uma cabeça a menos. Não, catorze era um bom número, homens bastantes para fazer o que tinha de ser feito, mas não tantos que não fossem capazes de manter segredo. Chett recrutara pessoalmente a maioria. O Paul Pequeno era um dos seus; o homem mais forte da Muralha, mesmo que tivesse o raciocínio mais lento do que um caracol morto. Uma vez partira as costas de um selvagem com um abraço. Também tinham o Adaga, assim chamado devido à sua arma preferida, e o pequeno homem grisalho a que os irmãos chamavam Pé-Leve, que violara uma centena de mulheres na juventude e que agora gostava de se gabar de nenhuma o ter visto ou ouvido até que lhes enfiara o pau.

O plano era de Chett. Era ele o inteligente; fora intendente do velho Meistre Aemon durante quatro bons anos até que aquele bastardo do Jon Snow o tramara para que o trabalho fosse entregue ao porco gordo do seu amigo. Quando matasse Sam Tarly naquela noite, planeava murmurar-lhe ao ouvido: “Cumprimentos ao Lorde Snow”, antes de abrir a goela ao Sor Porquinho e deixar que o sangue saísse a borbulhar de todas aquelas camadas de sebo. Chett conhecia os corvos, portanto não teria aí nenhum problema, não mais do que teria com Tarly. Um toque da sua faca e aquele cobarde mijaria as calças e desataria a choramingar pela vida. Que suplique, não há-de ganhar nada com isso. Depois de lhe abrir a goela, abriria as gaiolas e espantaria as aves, para que nenhuma mensagem chegasse à Muralha. O Pé-Leve e o Paul Pequeno matariam o Velho Urso, o Adaga trataria de Blane e Lark e os primos silenciariam Bannen e o velho Dywen, para evitar que se pusessem depois a farejar o seu rasto. Havia quinze dias que escondiam comida, e o Doce Donnel e o Karl Pé-Torto teriam os cavalos preparados. Com Mormont morto, o comando passaria para Sor Ottyn Wythers, um velho acabado que já fraquejava. Antes de nascer o dia, já ele há-de estar a fugir para a Muralha, e também não há-de desperdiçar nem um homem à nossa procura.

Os cães puxavam por ele enquanto abriam caminho por entre as árvores. Chett via o Punho, que abria caminho através da verdura para as alturas. O dia estava tão escuro que o Velho Urso mandara acender os archotes, um grande círculo deles a arder ao longo da muralha anelar que coroava o topo do íngreme monte pedregoso. Os três vadearam um ribeiro. A água estava gelada, e manchas de gelo espalhavam-se pela sua superfície.

— Vou direito à costa — confidenciou Lark, o homem das Irmãs. — Eu e os meus primos. Construímos um barco, e voltamos nele p’a casa, p’ás Irmãs.

E em casa saberão que sois desertores e cortam-vos as cabeças de idiotas, pensou Chett. Não havia saída da Patrulha da Noite depois de proferir os votos. Em qualquer ponto dos Sete Reinos, apanham-te e matam-te.

Agora, o Otto Mão-Cortada, esse andava a falar em velejar até Tyrosh, onde dizia que os homens não perdiam as mãos por um pouco de honesta ladroagem, nem eram postos a congelar por terem sido encontrados na cama com a mulher de um cavaleiro qualquer. Chett ponderara ir com Otto, mas não falava a língua húmida de meninas que lá se falava. E que poderia fazer em Tyrosh? Não aprendera ofício de que valesse a pena falar ao crescer no Atoleiro da Bruxa. O pai passara a vida a fossar nos campos dos outros, a apanhar sanguessugas. Punha-se em pelota à excepção de uma grossa fralda de couro, e entrava na água lamacenta. Quando de lá saía, estava coberto, dos mamilos aos tornozelos. Por vezes, obrigava Chett a arrancar as sanguessugas. Um dia, uma prendera-se à palma da sua mão, e ele esmagara-a de encontro a uma parede, repugnado. O pai espancara-o até o deixar em sangue por causa disso. Os meistres compravam as sanguessugas a doze por um dinheiro.

Lark podia ir para casa, se quisesse, e o maldito tyroshi também, mas Chett não. Se nunca voltasse a ver o Atoleiro da Bruxa, vê-lo-ia cedo de mais. Gostara do aspecto da Fortaleza de Craster. Craster vivia aí como um senhor, portanto porque não haveria Chett de fazer o mesmo? Seria uma paródia. Chett, o filho do apanhador de sanguessugas, um lorde com uma fortaleza. O seu estandarte podia ser uma dúzia de sanguessugas em fundo cor-de-rosa. Mas porquê parar em lorde? Talvez devesse ser um rei. Mance Rayder começou em corvo. Eu podia ser rei tal como ele, e arranjar umas quantas mulheres. Craster tinha dezanove, sem sequer contar com as novas, as filhas com que ainda não se deitara. Metade daquelas mulheres eram tão velhas e feias como Craster, mas isso não importava. Às velhas, Chett podia pôr a trabalhar, a cozinhar e a limpar para ele, a arrancar cenouras da terra e a dar de comer a porcos, enquanto as novas lhe aqueciam a cama e lhe davam filhos. Craster não havia de colocar objecções, pelo menos depois de o Paul Pequeno lhe dar um abraço.

As únicas mulheres que Chett conhecera eram as rameiras por que pagara em Vila Toupeira. Quando fora mais novo, as raparigas da aldeia deitavam uma olhadela à sua cara, com os furúnculos e os quistos, e afastavam os olhos, repugnadas. A pior fora aquela vaca da Bessa. Abria as pernas a todos os rapazes do Atoleiro da Bruxa, e Chett pensara porque não as abriria também para ele? Até passara uma manhã a apanhar flores silvestres quando ouvira dizer que ela as apreciava, mas Bessa limitara-se a rir-se na sua cara e a dizer que mais depressa se enfiaria numa cama com as sanguessugas do pai do que com ele. Parara de rir quando ele enfiara a faca nela. Isso fora agradável, ver a expressão na cara dela, por isso tirara a faca e enfiara-a de novo. Quando o apanharam perto de Seterrios, o velho Lorde Walder Frey nem sequer se incomodara em vir pessoalmente julgá-lo. Mandara um dos seus bastardos, aquele Walder Rivers, e quando dera por si, Chett estava a caminho da Muralha com aquele fedorento demónio preto do Yoren. Em paga pelo seu único momento de satisfação, tinham-lhe roubado a vida inteira.

Mas agora tencionava roubá-la de volta, e também às mulheres de Craster. Aquele retorcido velho selvagem é que sabe. Se queres casar com uma mulher, basta tomá-la, e nada de lhe dar flores para que talvez não repare nas tuas malditas borbulhas. Chett não tencionava voltar a cometer esse erro.

Iria resultar, prometeu a si próprio pela centésima vez. Desde que a gente consiga afastar-se sem problemas. Sor Ottyn avançaria na direcção da Torre Sombria, o caminho mais curto até à Muralha. Ele não se vai incomodar com a gente, o Wythers não é homem para isso, tudo o que quer é voltar inteiro. Agora, Thoren Smallwood, esse quereria avançar com o ataque, mas a cautela de Sor Ottyn era demasiado profunda e tinha uma patente mais elevada. Seja como for, que se lixe. Depois de a gente ir embora, Smallwood pode atacar quem quiser. Que nos importa? Se nenhum deles voltar para a Muralha, ninguém virá à nossa procura, hão-de pensar que estamos mortos com os outros. Aquela era uma nova ideia, e por um momento tentou-o. Mas para dar a Smallwood o comando, teriam de matar também Sor Ottyn e Sor Mallador Locke, e ambos se rodeavam bem de dia e de noite… não, o risco era grande de mais.

— Chett — disse o Paul Pequeno enquanto iam avançando penosamente por um trilho pedregoso aberto por animais entre árvores-sentinela e pinheiros marciais — e o pássaro?

— De que merda de pássaro estás tu a falar? — A última coisa de que precisava agora era de um cabeça-de-abóbora a falar de um pássaro.

— O corvo do Velho Urso — disse o Paul Pequeno. — Se o matarmos, quem vai dar comida ao pássaro?

— Quem se importa com isso? Mata o pássaro também, se quiseres.

— Não quero fazer mal a pássaro nenhum — disse o enorme homem. — Mas aquilo é um pássaro que fala. E se ele conta a alguém o que fizemos?

Lark, o homem das Irmãs, soltou uma gargalhada.

— O Paul Pequeno, de cabeça dura como a muralha de um castelo — troçou.

— Cala-te mas é com isso — disse o Paul Pequeno num tom que denotava perigo.

— Paul — disse Chett antes que o grandalhão ficasse demasiado zangado —, quando encontrarem o velho numa poça de sangue com a garganta aberta, não vão precisar dum pássaro para lhes dizer que alguém o matou.

O Paul Pequeno saboreou aquilo por um momento.

— Isso é verdade — concedeu. — Nesse caso posso ficar com o pássaro? Gosto daquele pássaro.

— É teu — disse Chett, só para o calar.

— Sempre podemos comê-lo, se ficarmos com fome — sugeriu Lark.

O Paul Pequeno voltou a enevoar-se.

— É melhor que não tentes comer o meu pássaro, Lark. É melhor que não tentes.

Chett estava a ouvir vozes que vogavam por entre as árvores.

— Fechai a porcaria das bocas, os dois. Estamos quase no Punho.

Emergiram perto da vasta vertente do monte e rodearam-no para sul até ao local onde o declive era mais suave. Perto do limite da floresta, uma dúzia de homens praticava tiro com arco. Tinham esculpido silhuetas nos troncos das árvores, e disparavam setas contra elas.

— Olha — disse Lark. — Um porco com um arco.

Com efeito, o arqueiro mais próximo deles era o próprio Sor Porquinho, o rapaz gordo que roubara o lugar de Chett junto do Meistre Aemon. Bastou ver Samwell Tarly para se encher de raiva. Ser intendente do Meistre Aemon fora a melhor vida que algum dia conhecera. O velho cego não era exigente, e de qualquer maneira Clydas tratara da maior parte dos seus desejos. Os deveres de Chett eram fáceis: limpar a colónia, acender uns fogos, ir buscar umas refeições… e Aemon não lhe batera uma única vez. Acha que pode chegar e pôr-me fora, lá porque é bem-nascido e sabe ler. Pode ser que lhe peça para ler a minha faca antes de lhe abrir a goela com ela.

— Continuai — disse aos outros. — Eu quero ver isto. — Os cães estavam a puxar, ansiosos por ir com os outros, até à comida que julgavam que os esperaria lá em cima. Chett pontapeou a cadela com a ponta da bota, e isso acalmou-os um pouco.

Observou, das árvores, o gordo a lutar com um arco tão alto como ele, com a sua cara de lua vermelha contraída de concentração. No chão, à sua frente, estavam espetadas três setas. Tarly encaixou uma e retesou o arco, manteve-o retesado um longo momento enquanto tentava apontar, e largou. A seta desapareceu na verdura. Chett soltou uma ruidosa gargalhada, um resfôlego de doce repugnância.

— Nunca encontrarás aquela, e quem vai arcar com as culpas sou eu — anunciou Edd Tollett, o severo escudeiro grisalho a que todos chamavam Edd Doloroso. — Nunca há nada que desapareça que não olhem para mim, desde aquela altura em que perdi o cavalo. Como se tivesse podido evitá-lo. Ele era branco e estava a nevar, que esperavam?

— Aquela foi apanhada pelo vento — disse Grenn, outro amigo do Lorde Snow. — Tenta manter o arco firme, Sam.

— É pesado — queixou-se o gordo, mas preparou a segunda seta na mesma. Aquela saiu alta, metendo-se por entre os ramos três metros acima do alvo.

— Acho que deitaste abaixo uma folha daquela árvore — disse o Edd Doloroso. — O Outono está a cair suficientemente depressa, não é preciso ajudá-lo. — Suspirou. — E todos sabemos o que se segue ao Outono. Deuses, que frio que tenho. Dispara a última seta, Samwell, acho que a minha língua está a congelar no céu-da-boca.

O Sor Porquinho baixou o arco, e Chett julgou que ele ia desatar a berrar.

— É difícil de mais.

— Encaixa, puxa e larga — disse Grenn. — Vá lá.

Obedientemente, o gordo arrancou a última seta do chão, encaixou-a no arco, puxou e largou. Fê-lo rapidamente, sem entortar cuidadosamente os olhos ao longo da haste como fizera das primeiras duas vezes. A seta atingiu a silhueta desenhada a carvão na parte inferior do peito e aí ficou a tremer.

Atingi-o. — O Sor Porquinho parecia chocado. — Grenn, viste? Edd, olha, atingi-o!

— Enfiaste-a entre as costelas dele, parece-me — disse Grenn.

— Matei-o? — quis saber o gordo.

Tollett encolheu os ombros.

— Podias ter perfurado um pulmão, se ela tivesse pulmões. A maior parte das árvores não têm, em regra. — Tirou o arco da mão de Sam. — Mas já vi piores tiros. Sim, e já disparei alguns.

O Sor Porquinho resplandecia. Se se olhasse para ele, poder-se-ia pensar que tinha realmente feito alguma coisa. Mas quando viu Chett e os cães, o seu sorriso ruiu e morreu aos guinchos.

— Acertaste numa árvore — disse Chett. — A gente logo vê como é que disparas quando forem os moços de Mance Rayder. Eles não hão-de ficar parados com os braços esticados e as folhas a restolhar, ah não. Hão-de vir direitinhos a ti, gritando-te na cara, e eu aposto que vais mijar essas bragas. Um deles há-de enfiar um machado mesmo no meio desses olhinhos de porco. A última coisa que vais ouvir há-de ser o tunc que o machado fizer quando te morder o crânio.

O gordo estava a tremer. O Edd Doloroso pôs-lhe uma mão no ombro.

— Irmão — disse ele solenemente —, lá porque se passou assim contigo, não quer dizer que Samwell passe pelo mesmo.

— De que estás tu a falar, Tollett?

— Do machado que te rachou o crânio. É verdade que metade dos teus miolos escorreram para o chão e os cães os comeram?

O grande palhaço do Grenn riu-se, e até Samwell Tarly conseguiu fazer um frágil sorrisinho. Chett pontapeou o cão mais próximo, puxou-lhes as trelas e pôs-se a subir o monte. Sorri tudo o que quiseres, Sor Porquinho. Logo à noite logo vemos quem se ri. Só gostaria de ter tempo de também matar Tollett. Um palerma sombrio com cara de cavalo é o que ele é.

A subida era íngreme, mesmo daquele lado do Punho, que tinha a inclinação menos pronunciada. A meio da subida os cães puseram-se a ladrar e a puxar por ele, julgando que iriam ser alimentados em breve. Em vez disso, deu-lhes a saborear um pouco de bota, e uma chicotada ao animal grande e feio que tentou mordê-lo. Depois de amarrar os cães, foi fazer o relatório.

— As pegadas estavam lá como o Gigante tinha dito, mas os cães não apanharam o cheiro — disse a Mormont à frente da sua grande tenda preta. — Junto ao rio daquela maneira, podiam ser pegadas velhas.

— É pena. — O Senhor Comandante Mormont tinha uma cabeça calva e uma grande e hirsuta barba grisalha, e soava tão cansado como parecia estar. — Podíamos ter ficado todos melhor com um pouco de carne fresca. — O corvo no seu ombro inclinou a cabeça e ecoou: “Carne. Carne. Carne.

Podíamos cozinhar os malditos cães, pensou Chett, mas manteve a boca fechada até que o Velho Urso o mandasse embora. E esta é a última vez que hei-de precisar de inclinar a cabeça a este tipo, pensou para si próprio com satisfação. Parecia-lhe que estava a ficar ainda mais frio, coisa que teria jurado não ser possível. Os cães aninhavam-se uns contra os outros com um ar infeliz sobre a lama dura e congelada, e Chett quase se sentiu tentado a gatinhar para o meio deles. Em vez disso, envolveu a parte de baixo da cara num cachecol preto de lã, deixando entre as voltas uma fenda para a boca. Descobriu que ficava mais quente se se mantivesse em movimento, e deu uma lenta volta ao perímetro com um maço de folhamarga, partilhando um par de mascadelas com os irmãos negros que estavam de guarda e ouvindo o que eles tinham a dizer. Nenhum dos homens do turno do dia fazia parte dos seus planos; mesmo assim, achou que era bom ter alguma ideia do que eles pensavam.

Na maior parte, o que eles pensavam era que estava “frio como o raio”.

O vento começou a soprar com mais força à medida que as sombras se foram alongando. Fazia um som alto e fino enquanto tremia através das pedras da muralha anelar.

— Detesto aquele som — disse o pequeno Gigante. — Parece um bebé nos arbustos, a chorar por leite.

Quando terminou a volta e regressou para junto dos cães, encontrou Lark à sua espera.

— Os oficiais ‘tão outra vez na tenda do Velho Urso, numa grande discussão sobre qualquer coisa.

— É o que eles fazem — disse Chett. — São bem-nascidos, todos menos Blane, e embebedam-se com palavras em vez de vinho.

Lark aproximou-se de esguelha.

— O miolos-de-queijo não pára de falar do pássaro — preveniu, olhando em volta para se certificar de que não havia ninguém por perto. — Agora anda a perguntar se escondemos grãos para o maldito bicho.

— É um corvo — disse Chett. — Come cadáveres.

Lark fez um sorriso.

— O dele, se calhar?

Ou o teu. Parecia a Chett que precisavam mais do grandalhão do que de Lark.

— Deixa lá o Paul Pequeno. Faz a tua parte, ele há-de fazer a dele.

O ocaso já se espalhava pela floresta quando se conseguiu livrar do homem das Irmãs e se sentou a afiar a espada. Era um raio dum trabalho difícil com as luvas calçadas, mas não ia descalçá-las. Com o frio que estava, qualquer pateta que tocasse o aço com uma mão nua ia perder um bocado de pele.

Os cães ganiram quando o Sol se escondeu. Deu-lhes água e pragas.

— Mais meia noite, e podeis encontrar sozinhos os vossos festins. — Por essa altura, já lhe cheirava ao jantar.

Dywen estava a arengar junto à fogueira quando Chett recebeu o seu bocado de pão duro e uma tigela de sopa de feijão e bacon das mãos de Hake, o cozinheiro.

— A floresta está demasiado silenciosa — estava o velho lenhador a dizer. — Nada de rãs perto do rio, nada de corujas no escuro. Nunca ouvi extensão de árvores mais morta do que esta.

— Esses teus dentes parecem bastante mortos — disse Hake.

Dywen fez estalar os seus dentes de madeira.

— E também nada de lobos. Dantes havia, mas já não há. Para onde vos parece que eles foram?

— Para algum sítio quente — disse Chett.

Da dúzia de irmãos sentados junto à fogueira, quatro eram seus. Dirigiu a todos eles um olhar duro de viés enquanto comia, para ver se algum mostrava sinais de quebrar. O Adaga parecia bastante calmo, sentado em silêncio e afiando a lâmina da sua arma, como fazia todas as noites. E o Doce Donnel Hill era todo gracejos fáceis. Tinha dentes brancos, gordos lábios vermelhos e madeixas amarelas que usava em artística desordem em volta dos ombros, e dizia ser bastardo de um Lannister qualquer. E se calhar era. Chett não tinha uso nenhum a dar a rapazinhos bonitos ou a bastardos, mas o Doce Donnel parecia ser capaz de se aguentar.

Tinha menos certezas quanto ao forrageiro a que os irmãos chamavam Serrote, mais pelo modo como ressonava do que por qualquer coisa que tivesse a ver com árvores. Naquele momento parecia tão inquieto que podia bem não voltar a ressonar. E Maslyn era pior. Chett via suor a escorrer-lhe pela cara, apesar do vento gelado. As pérolas de humidade cintilavam à luz da fogueira, como outras tantas jóias molhadas. Maslyn, além disso, não comia, estava apenas a fitar a sopa como se o seu cheiro estivesse a ponto de o fazer vomitar. Vou ter de vigiar aquele, pensou Chett.

— Reunir! — O grito surgiu de súbito, vindo de uma dúzia de gargantas, e rapidamente se espalhou até todos os recantos do acampamento no cimo do monte. — Homens da Patrulha da Noite! Reunir junto da fogueira central!

Franzindo o sobrolho, Chett terminou a sopa e seguiu os outros.

O Velho Urso estava em pé junto da fogueira, com Smallwood, Locke, Wythers e Blane alinhados em fila atrás dele. Mormont usava um manto de espessas peles negras, e o corvo estava empoleirado no seu ombro, alisando as suas penas negras. Isto não pode ser bom. Chett enfiou-se entre o Bernarr Castanho e alguns homens da Torre Sombria. Depois de todos se reunirem, à excepção dos vigias na floresta e dos guardas na muralha anelar, Mormont pigarreou e escarrou. O cuspo congelou antes de chegar ao chão.

— Irmãos — disse ele —, homens da Patrulha da Noite.

Homens!”, guinchou o corvo, “Homens! Homens!

— Os selvagens estão em marcha, seguindo o curso do Guadeleite para fora das montanhas. Thoren crê que a sua vanguarda estará aqui dentro de dez dias. Os seus corsários mais experientes estarão com Harma Cabeça-de-Cão nessa vanguarda. Os outros formarão provavelmente uma guarda de retaguarda, ou então viajarão bem perto do próprio Mance Rayder. Nos outros pontos, os guerreiros deles estarão muito espalhados ao longo da linha de marcha. Têm bois, mulas, cavalos, mas bastante poucos. A maior parte deles estará a pé, mal armados e sem treino. É mais provável que as armas que transportam sejam de pedra e osso do que de aço. Estão sobrecarregados com mulheres, crianças, rebanhos de ovelhas e cabras, e todos os seus bens materiais. Em suma, embora sejam numerosos, são vulneráveis… e não sabem que estamos aqui. Ou pelo menos temos que rezar para que não saibam.

Eles sabem, pensou Chett. Seu maldito saco velho de pus, eles sabem, é tão certo como o nascer do Sol. Qhorin Meia-Mão não voltou, pois não? Nem Jarman Buckwell. Se algum deles foi apanhado, sabes bem como um raio que os selvagens já lhes arrancaram uma cantilena ou duas por esta altura.

Smallwood deu um passo em frente.

— Mance Rayder planeia quebrar a Muralha e levar uma guerra sangrenta aos Sete Reinos. Bem, esse é um jogo que pode ser jogado por dois. De manhã, levamos a guerra até ele.

— Partimos à alvorada com todas as nossas forças — disse o Velho Urso, enquanto um murmúrio percorria a assembleia. — Avançaremos para norte, curvando depois para oeste. A vanguarda de Harma já terá passado há muito pelo Punho quando virarmos. O sopé dos Colmilhos de Gelo está repleto de vales estreitos e sinuosos, perfeitos para emboscadas. A linha de marcha deles estender-se-á ao longo de muitas milhas. Cairemos sobre eles em vários locais ao mesmo tempo, e obrigá-los-emos a jurar que somos três mil homens, e não trezentos.

— Atacaremos em força, e estaremos longe antes que os seus cavaleiros consigam formar para nos enfrentar — disse Thoren Smallwood. — Se vierem no nosso encalço, dar-lhes-emos que fazer durante algum tempo, e depois faremos meia volta para voltar a atacar a coluna, mais abaixo. Queimar-lhes-emos as carroças, dispersar-lhes-emos os rebanhos, e mataremos tantos selvagens quantos pudermos. O próprio Mance Rayder também, se o encontrarmos. Se quebrarem e regressarem às suas cabanas, ganhámos. Se não, atormentá-los-emos ao longo de todo o caminho até à Muralha, certificando-nos de que deixem um trilho de cadáveres a marcar o seu progresso.

Eles são milhares — gritou alguém de detrás de Chett.

— Vamos morrer. — Era a voz de Maslyn, verde de medo.

Morrer”, gritou o corvo de Mormont, batendo as asas negras. “Morrer, morrer, morrer.”

— Muitos de nós, sim — disse o Velho Urso. — Talvez mesmo todos. Mas tal como outro Senhor Comandante disse há mil anos, é por isso que nos vestem de preto. Lembrai-vos das vossas palavras, irmãos. Pois nós somos as espadas na escuridão, os vigilantes nas muralhas…

— O fogo que arde contra o frio. — Sor Mallador Locke puxou pela espada.

— A luz que traz consigo a alvorada — responderam outros, e mais espadas foram puxadas das bainhas.

E então todos eles estavam a pegar nas armas, e eram quase trezentas espadas erguidas para o céu e outras tantas vozes a gritar: “A trombeta que acorda os que dormem! O escudo que defende os reinos dos homens!” Chett não teve outra hipótese que não fosse juntar a sua voz às dos outros. Havia uma neblina no ar vinda da respiração dos homens, e a luz da fogueira rebrilhava no aço. Sentiu-se contente por ver que Lark, o Pé-Leve e o Doce Donnel Hill também se juntavam, como se fossem uns palermas tão grandes como os restantes. Isso era bom. Não era sensato chamar as atenções, quando a hora estava tão próxima.

Quando os gritos se silenciaram, voltou-se a ouvir o som do vento a dedilhar a muralha anelar. As chamas rodopiaram e estremeceram, como se também elas tivessem frio, e no súbito silêncio, o corvo do Velho Urso crocitou sonoramente e disse, uma vez mais: “Morrer”.

Pássaro esperto, pensou Chett enquanto os oficiais ordenavam o dispersar, dizendo a todos para ingerirem uma boa refeição e terem um longo descanso naquela noite. Chett enfiou-se nas suas peles perto dos cães, com a cabeça cheia de coisas que podiam correr mal. E se aquele maldito idiota tivesse feito um dos seus mudar de ideias? Ou se o Paul Pequeno se esquecesse e tentasse matar Mormont durante o segundo turno e não no terceiro? Ou se Maslyn perdesse a coragem, ou se alguém se transformasse em informador, ou…

Deu por si a escutar a noite. O vento realmente soava como uma criança a chorar, e de tempos a tempos conseguia ouvir vozes de homens, o relincho de um cavalo, um bocado de lenha a crepitar na fogueira. Mas nada mais. Tanto silêncio.

Conseguia ver a cara de Bessa a flutuar à sua frente. Não era a faca que queria espetar em ti, desejou dizer-lhe. Apanhei flores para te dar, rosas silvestres, tanásias e copodouros, levei toda a manhã. Tinha o coração a bater como um tambor, com tanta força que temeu que o barulho acordasse o acampamento. Gelo solidificara na sua barba, em torno da boca. De onde veio isto da Bessa? Sempre que pensara nela antes, fora apenas para se lembrar da expressão do seu rosto enquanto morria. Que se passava consigo? Quase não conseguia respirar. Teria adormecido? Pôs-se de joelhos, e algo húmido e frio tocou-lhe o nariz. Chett olhou para cima.

Nevava.

Sentiu as lágrimas a congelar na sua cara. Não é justo, quis gritar. A neve arruinaria tudo aquilo para que trabalhara, todos os seus cuidadosos planos. Era um grande nevão, com grandes flocos brancos que caíam a toda a volta. Como encontrariam os esconderijos de comida no meio da neve, ou o trilho que planeavam seguir para leste? E eles também não vão precisar nem de Dywen nem de Bannen para nos dar caça, se nos perseguirem em neve fresca. E a neve escondia a forma do terreno, especialmente durante a noite. Um cavalo podia tropeçar numa raiz, partir uma perna numa pedra. Estamos feitos, compreendeu. Feitos antes de começar. Estamos perdidos. Não haveria vida de lorde para o filho do caçador de sanguessugas, não haveria uma fortaleza a que chamasse sua, nem esposas, nem coroas. Só uma espada de selvagem espetada na barriga, e depois uma sepultura não assinalada. A neve roubou-me tudo… a maldita neve…

A neve já o arruinara uma vez antes. A neve e o seu porco de estimação.

Chett pôs-se em pé. Tinha as pernas hirtas, e os flocos de neve que caíam transformavam os archotes distantes em vagos clarões cor-de-laranja. Sentiu-se como se estivesse a ser atacado por uma nuvem de pálidos bichos frios. Assentavam nos seus ombros e cabeça, e depois escorriam-lhe para o nariz e os olhos. Praguejando, esfregou-os. Samwell Tarly, recordou. Ainda posso tratar do Sor Porquinho. Enrolou o cachecol em torno da cara, puxou o capuz por sobre a cabeça e pôs-se a atravessar o acampamento para o local onde o cobarde dormia.

A neve caía tão intensamente que se perdeu entre as tendas, mas por fim distinguiu o pequeno quebra-ventos aconchegado que o gordo construíra para si entre um rochedo e as gaiolas dos corvos. O Tarly encontrava-se enterrado sob um monte de cobertores negros de lã e peles hirsutas. A neve entrara no abrigo e começava a cobri-lo. Parecia uma espécie de montanha mole e redonda. Aço sussurrou em couro, ténue como a esperança, quando Chett desembainhou o punhal. Um dos corvos soltou um quorc. “Snow”, resmungou outro, espreitando através das barras com olhos negros. O primeiro acrescentou um “Snow” ao do parceiro. Chett passou por eles, colocando os pés no chão com cautela. Apertaria a boca do gordo com a mão esquerda para lhe abafar os gritos, e depois…

Uuuuuuuuuuhooooooooooo.

Parou a meio de um passo, engolindo a praga enquanto o som do corno estremecia pelo acampamento, ténue e longínquo, mas inconfundível. Agora não. Malditos sejam os deuses, agora NÃO! O Velho Urso escondera olheiros num anel de árvores em torno do Punho, a fim de ser avisado de qualquer coisa que se aproximasse. Jarman Buckwell voltou da Escada do Gigante, supôs Chett, ou Qhorin Meia-Mão do Passo dos Guinchos. Um único sopro no corno significava irmãos de regresso. Se fosse o Meia-Mão, Jon Snow podia estar com ele, vivo.

Sam Tarly sentou-se, de olhos inchados, e olhou confuso para a neve. Os corvos crocitavam ruidosamente, e Chett ouvia os seus cães a ladrar. Metade do maldito acampamento está acordado. Os seus dedos enluvados apertaram o cabo do punhal enquanto esperava que o som se desvanecesse. Mas assim que desapareceu, surgiu de novo, com mais força e durante mais tempo.

Uuuuuuuuuuuuuuhooooooooooooooooo.

— Deuses — ouviu Sam Tarly choramingar. O gordo pôs-se de joelhos, com os pés enredados no manto e mantas. Afastou-os com um pontapé e estendeu a mão para um lorigão que pendurara do rochedo ali perto. Enquanto enfiava pela cabeça aquela enorme tenda e se contorcia lá para dentro, deitou uma olhadela a Chett, que não se movera. — Foram dois? — perguntou. — Sonhei que tinha ouvido dois sopros…

— Não foi sonho — disse Chett. — Dois sopros para pôr a Patrulha em armas. Dois sopros para indicar que inimigos se aproximam. Há um machado lá fora com Porquinho escrito nele, gordo. Dois sopros quer dizer selvagens. — O medo naquela grande cara de lua deu-lhe vontade de rir. — Fodam-se todos até aos sete infernos. Maldita Harma. Maldito Mance Rayder. Maldito Smallwood, que disse que só iam chegar cá daqui a…

Uuuuuuuuuuuuuuuuuhooooooooooooooooooooooooooooooooooooo.

O som durou, durou e durou, até parecer que nunca terminaria. Os corvos batiam as asas e guinchavam, voando nas suas gaiolas e esbarrando nas barras, e por todo o acampamento os irmãos da Patrulha da Noite levantavam-se, vestiam as armaduras, prendiam cintos de espadas, estendiam as mãos para machados de batalha e arcos. Samwell Tarly desatou a tremer, com a cara da mesma cor da neve que caía, rodopiando, a toda a volta.

— Três — guinchou para Chett —, aquilo foram três, ouvi três. Nunca fazem soar três. Há centenas e milhares de anos que não fazem soar três. Três quer dizer…

— …Outros. — Chett soltou um som que era metade gargalhada e metade soluço, e de súbito a roupa de baixo estava molhada, sentia o mijo a escorrer-lhe pela perna, e via vapor a evaporar-se da frente das suas bragas.