2. As oposições à ditadura: resistência e integração
MARCELO RIDENTI
Força e legitimação
As oposições à ditadura instaurada no Brasil em 1964 só podem ser compreendidas em conexão com o devir do próprio regime, em seus vários momentos, que combinaram diferenciadamente o uso da força e as tentativas de legitimação.
Sabe-se, para usar formulações de Max Weber,1 que a dominação alcança alguma estabilidade apenas se não se restringir ao uso da força. Qualquer regime só pode durar ao longo do tempo se construir alguma base de legitimidade. Nos termos de Antonio Gramsci,2 a política envolve aspectos de força e de convencimento. A relação entre dominantes e dominados, mesmo em regimes autoritários, deve ser compreendida não só com base no confronto, mas também na negociação, ou ao menos em concessões aos adversários, sem as quais não se constrói uma base de legitimidade. Negociar e conceder implicam reconhecimento do outro, levando em conta a oposição, que assim precisa ser entendida em seu encadeamento com a situação. Em suma, as oposições e a ditadura na sociedade brasileira devem ser compreendidas de modo relacional, envolvendo zonas intermediárias entre colaborar e resistir.3
Sem hesitar em usar a força, os golpistas de 1964 preocuparam-se também com sua legitimidade. O golpe foi dado em nome da democracia, supostamente ameaçada. O regime instaurado jamais se assumiu como ditadura, no máximo como “democracia relativa”. Sempre se preocupou em manter uma fachada democrática. O Congresso funcionou durante quase todo o período, apesar das cassações de mandatos parlamentares em momentos de crise, da imposição do bipartidarismo, no final de 1965, e de ser fechado de tempos em tempos, além de outros constrangimentos. Havia julgamento legal de prisioneiros políticos, embora na Justiça Militar e sob leis duras, sem contar perseguições a oposicionistas, torturas e mortes à margem da lei do próprio regime. Os militares governaram sob a vigência de uma Constituição, mesmo com os limites daquela de 1967, reformada estruturalmente em 1969, em sentido ainda mais autoritário.
Num primeiro momento, em plena Guerra Fria, o golpe buscou legitimar-se junto a segmentos expressivos de uma parte da sociedade que se sentia ameaçada por um suposto avanço do comunismo, do sindicalismo e da corrupção. O suporte civil vinha do empresariado nacional e multinacional, oligarquias rurais, setores das classes médias, grande imprensa, instituições religiosas e profissionais liberais, e até de alguns trabalhadores. Sem contar o apoio expresso ou velado da maior parte dos integrantes de partidos legais, que por isso mesmo continuaram em atividade até outubro de 1965, uma vez afastados seus integrantes acusados de subversão da ordem: foram cassados mais de cinquenta deputados federais, cuja maioria vinha da ala esquerda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e de outras agremiações menores.
Apesar das divergências históricas entre eles, o Partido Social Democrático (PSD), a União Democrática Nacional (UDN) e uma parte significativa do PTB eram predominantemente conservadores. A UDN participou de modo ostensivo do golpe, assim como outras agremiações, caso do Partido Social Progressista (PSP), do governador de São Paulo, Adhemar de Barros, sem contar lideranças expressivas do PSD, algumas das quais, posteriormente, fariam história na oposição, como o deputado Ulysses Guimarães.
Derrubou-se um governo constitucional respaldado por outros setores sociais significativos, englobando trabalhadores organizados em sindicatos, partidos e movimentos no campo e na cidade, segmentos das classes médias intelectualizadas e parte das elites, sobretudo as vinculadas ao aparelho de Estado. Foram realizadas prisões, intervenções em sindicatos e movimentos populares, cassações, expulsão de funcionários civis e militares de seus cargos, abertura de inquéritos policial-militares e toda sorte de violência e humilhação contra os adeptos do governo deposto, e até alguns assassinatos.
Os trabalhadores organizados em sindicatos e partidos foram os mais atingidos pela repressão golpista. Em 1964 e 1965, diretorias de mais de trezentas entidades sindicais foram destituídas, confederações de empregados sofreram intervenção, revogaram-se conquistas trabalhistas, praticamente se extinguiu o direito de greve, além das prisões e dos processos contra trabalhadores acusados de subverter a ordem democrática. Comunistas e reformistas em geral foram especialmente visados, como os lavradores que lutavam pela reforma agrária, os integrantes de movimentos de marinheiros e de sargentos que contestavam a hierarquia militar, líderes do movimento estudantil e outros.
Reprimidos e atarantados pelo golpe, a que praticamente não opuseram resistência imediata, os apoiadores do regime deposto e seus críticos de esquerda tentaram articular uma oposição à ditadura ao longo de 1964 e 1965, combinando aspectos legais e clandestinos, de dentro do Brasil e também do exílio. No meio intelectualizado surgiram algumas das primeiras manifestações públicas de oposição: matérias no jornal carioca Correio da Manhã (que de início apoiara o golpe), a manifestação dos “oito do Glória”, que levou para a cadeia oito intelectuais e artistas que protestavam contra o regime, o show Opinião no Rio de Janeiro, a criação da Revista Civilização Brasileira, e assim por diante.
A oposição clandestina
O Partido Comunista Brasileiro (PCB) e outros de inspiração marxista, já proibidos antes de 1964 – com funcionamento tolerado na conjuntura anterior ao golpe –, foram duramente perseguidos desde então.4 Eles tiveram seu momento de maior influência política no início dos anos 1960, quando na sociedade como um todo ganhava destaque o tema da “revolução brasileira”, fosse nacional-democrática ou socialista. Conquistaram mais terreno aqueles que, a exemplo do PCB, associaram-se a trabalhistas e outras forças num projeto de reformas de base que acabou derrotado com o golpe.
Instalada a ditadura, o eixo da política de esquerda estabeleceu-se em torno dela, a ser “derrubada” ou “derrotada”: havia grupos e movimentos que pretendiam derrubá-la pela luta armada e os que procuravam outros meios para vencê-la politicamente. Todos propunham a necessidade de opor-se à ditadura, independentemente dos projetos políticos diferenciados que davam base a cada grupo político ou movimento, desde os projetos revolucionários nacionalistas, como o comandado por Leonel Brizola, passando pela proposta do PCB de revolução pacífica, nacional e democrática, até os que propunham uma revolução socialista.
O golpe gerou várias dissidências no PCB, críticas em relação à suposta moderação ou passividade da maioria de sua direção. Carlos Marighella liderou os que criaram a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização guerrilheira mais destacada, que se inspirava na revolução cubana. Outra cisão importante redundou na criação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Houve ainda muitas dissidências, sobretudo estudantis, organizadas em todo o país.
Grupos de esquerda atuantes antes de 1964, como o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a Ação Popular (AP), a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop) e a esquerda nacionalista continuaram em ação após o golpe, todos suscetíveis a cisões, que geraram grupos como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), os Comandos de Libertação Nacional (Colina), a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), a Ala Vermelha do PCdoB e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT).
A esquerda brasileira converteu-se, em pouco tempo, num mosaico de dezenas de pequenas organizações políticas. Elas divergiam quanto ao caráter da revolução brasileira (nacional-democrática ou socialista), sobre as formas que a luta revolucionária deveria assumir (pacífica ou armada; se armada, guerrilheira ou insurrecional; centrada no campo ou na cidade), sobre o tipo de organização política necessária para conduzir a revolução (partido leninista ou organização guerrilheira). Entretanto, havia em comum a proposta de fazer frente à ditadura. O PCB buscava alianças com a oposição legal e moderada, procurando “derrotar” politicamente o regime militar. Já a maioria dos demais grupos de esquerda, apesar das diferentes propostas, convergia na necessidade de “derrubar” a ditadura pelas armas.
Houve várias tentativas de organizar uma oposição armada. A começar pelas iniciativas nacionalistas, logo depois do golpe, comandadas por Leonel Brizola, no exílio no Uruguai, e frustradas em 1967, após a prisão de militantes que treinavam para uma eventual guerrilha na serra de Caparaó. Depois vieram as ações de guerrilha urbana da ALN, da VPR e de muitos outros pequenos grupos. Finalmente, houve a Guerrilha do Araguaia, promovida pelo PCdoB e derrotada militarmente no começo de 1974. Todas foram aniquiladas. O governo não hesitou em prender, torturar, matar e exilar seus adversários, especialmente aqueles ligados a organizações clandestinas, armadas ou não.
A oposição institucional
Num primeiro momento, antes do surgimento da esquerda armada, o regime sentiu-se mais ameaçado pela oposição moderada, que, em outubro de 1965, demonstrou força política nas eleições diretas para o governo de onze unidades da federação. A aliança entre PSD e PTB triunfou nos dois estados mais importantes em que houve eleição, Guanabara e Minas Gerais, até então governados, respectivamente, pelos udenistas Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, dois dos principais líderes civis do golpe de 1964. Apesar da moderação dos governadores eleitos, a vitória foi vista pelo governo federal e pelas Forças Armadas como ameaça à continuidade da nova ordem.
Diante desse quadro, o presidente Castello Branco decretou o Ato Institucional n.2 (AI-2), em 27 de outubro de 1965.a Ele dava ao presidente liberdade para governar por decreto, fechar o Congresso, suspender direitos políticos e cassar mandatos. Determinava ainda eleições indiretas para a Presidência da República. O regime passou a ganhar contornos ditatoriais mais nítidos, frustrando a expectativa de políticos civis que apoiaram o golpe mas esperavam que os militares logo voltassem aos quartéis. Carlos Lacerda, que postulava sua candidatura às eleições diretas presidenciais previstas para 1966, desentendeu-se com os antigos aliados e acabou cassado. Na oposição, tentou articular uma Frente Ampla com os ex-presidentes, também já cassados, João Goulart e Juscelino Kubitschek. A iniciativa foi proibida pelos militares e não seguiu adiante.
O AI-2 também extinguiu os partidos políticos existentes. Em seguida, o Ato Complementar n.4 instituiu o bipartidarismo como solução para garantir ao governo maioria estável no Congresso Nacional. Assim surgiam a Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), órgão da oposição majoritariamente moderada e construtiva. O bipartidarismo consolidou-se e continuou vigente por catorze anos.5
Alguns setores da sociedade civil, sobretudo das classes médias que de início haviam dado apoio ao golpe, foram se desencantando com o progressivo fechamento político, associado à recessão econômica entre 1964 e 1968. Essa situação, somada às denúncias de desrespeito aos direitos humanos de oposicionistas presos, levou a maior parte da Igreja católica a retirar seu apoio ao regime, passando a constituir, nos anos seguintes, um dos principais focos de oposição, que entretanto sempre se abriu ao diálogo com os donos do poder, como apontou, por exemplo, Ken Serbin.6
Apesar da repressão a suas lideranças e entidades após o golpe, paulatinamente o movimento estudantil recuperou forças, reorganizou-se e passou a expressar o crescente descontentamento social, que não encontrava vazão nos marcos institucionais do regime. Os estudantes foram se tornando os agentes sociais mais visíveis da oposição, como indicam as obras de João Roberto Martins e Victoria Langland,7 entre outras. Em 1968, eles organizaram grandes manifestações de rua em todo o país, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. No mesmo ano, em articulação com os estudantes, despontou um setor radical no movimento operário que deflagrou greves expressivas em Contagem (MG) e Osasco (SP) contra a política econômica que impunha contenção salarial.
O governo do marechal Arthur da Costa e Silva, sucessor de Castello Branco em 1967, oscilou entre o diálogo e a repressão aos movimentos de 1968, que se inseriam numa conjuntura internacional de revolta, por exemplo, contra a guerra do Vietnã, promovida pelos Estados Unidos. No Brasil, o descontentamento com a ditadura evidenciava-se em peças teatrais, canções, filmes, romances, poemas, quadros e outras obras de arte, nos protestos de rua, nas páginas dos jornais.8
No interior do MDB organizou-se um setor mais aguerrido, que procurou representar as ruas no Congresso, em apoio ao movimento estudantil. Foi um discurso do deputado Márcio Moreira Alves – considerado uma ofensa pelos quartéis – que deu pretexto para a edição do Ato Institucional n.5 (AI-5), após a recusa dos parlamentares de conceder licença para o governo processar o deputado, que gozava de imunidade parlamentar garantida pela Constituição de 1967.
O AI-5 significou a quebra da legalidade imposta pelo próprio regime; dava poderes quase ilimitados ao presidente da República, por exemplo, para legislar por decreto, suspender direitos políticos dos cidadãos, cassar mandatos eletivos, suspender o habeas corpus em crimes contra a segurança nacional, julgar crimes políticos em tribunais militares, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos.
A arquitetura política do regime, entre força e convencimento, pendeu fortemente em favor da primeira após a edição do AI-5. O Congresso ficou fechado por quase um ano, muitos parlamentares foram cassados, oposicionistas foram detidos, consolidou-se uma censura rígida a meios de comunicação, artes e espetáculos. O aparelho da polícia política foi incrementado e reorganizado.
Legitimação da ordem e oposição
A força não bastava, contudo, para garantir a estabilidade da dominação. Seria preciso encontrar algum mecanismo de aceitação pacífica da ordem estabelecida. A partir de 1969, ficou clara a busca de legitimidade na retomada a todo vapor do desenvolvimento econômico, que vinha em alta desde 1967, concomitante à repressão contra os opositores e às medidas de reorganização da sociedade. Difundia-se a ideia de que só com os governos militares fora possível retomar o progresso nacional com manutenção da ordem pública. A legitimação do regime passou a ancorar-se em seu êxito modernizador, que envolvia ainda medidas de assistência social.
Fosse fruto de um plano arquitetado, pelo menos desde o começo dos anos 1960, por uma aliança de militares com o empresariado nacional e multinacional, como propôs Dreifuss;9 fosse resultado quase aleatório de um jogo pragmático dos donos do poder, como parece considerar Gaspari10 – o fato é que desde 1964 foi se constituindo um projeto de modernização da sociedade brasileira a partir de medidas econômicas e políticas do Estado autoritário, associadas à iniciativa privada, o que se convencionou chamar de modernização conservadora, tomando emprestado o termo de Barrington Moore Jr.11 Assim, os governos militares promoveram o desenvolvimento, embora à custa do cerceamento das liberdades democráticas e com grande concentração de riquezas, não pelo viés do capitalismo de massas, sonhado por Celso Furtado e outros nacional-desenvolvimentistas antes do golpe. Ao contrário do que inicialmente pensaram seus adversários, a ditadura impôs um projeto de modernização da sociedade que ficou evidenciado a partir de 1970 com o chamado “milagre brasileiro” na economia.
O regime, entretanto, não apostou todas as suas fichas de legitimação apenas no desenvolvimento. No fim de 1969, tratou de reabrir o Congresso, devidamente expurgado, para “eleger” o general Emílio Garrastazu Médici como novo presidente da República. A oposição, organizada no MDB, absteve-se de votar. Em descrédito, o partido sofreu sua maior derrota política em 1970, quando parte dos descontentes com a ordem estabelecida votou nulo ou em branco nas eleições parlamentares. Apesar do recorde de votos brancos e nulos, a Arena venceu folgadamente as eleições, baseando sua campanha no sucesso do “milagre”.
A repressão e o desenvolvimento desarticularam as oposições por algum tempo, até porque boa parte delas compartilhava as iniciativas modernizadoras do governo. Mas o “milagre” não duraria muito, e em 1973 e 1974 já surgiam sinais de crise econômica, levando o regime a buscar novas âncoras para manter a estabilidade. A repressão, o êxito econômico, medidas modernizadoras e de assistência social não bastavam para assegurar a ordem. Ademais, montou-se uma máquina repressiva dentro das Forças Armadas, que passou a agir com relativa autonomia, pondo em risco a hierarquia da instituição.
A tese de uma “transição lenta, gradual e segura” para a democracia começou a ganhar força entre os militares e seus aliados civis, mas eles consideravam também que os críticos mais radicais da ordem estabelecida deviam ficar sob controle ou até ser eliminados. Em 1974, o general Ernesto Geisel assumiu a Presidência da República. Ele promoveu uma “política de distensão”, também denominada “abertura política”, iniciando a transição democrática, que ainda duraria, com avanços e recuos, até a eleição indireta de um civil para a Presidência, em 1984.
Após a derrota eleitoral de 1970, setores do MDB convenceram-se da necessidade de construir uma atuação oposicionista mais consistente, indispensável à sobrevivência do partido, presidido desde 1971 por Ulysses Guimarães, antigo político do PSD. A oportunidade veio com a distensão iniciada no governo Geisel. Candidatos do MDB usaram o horário eleitoral gratuito na televisão para fazer críticas ao governo durante a campanha eleitoral parlamentar de 1974. Buscavam representar certo descontentamento com a ditadura, que ficara indicado pelo número elevado de votos nulos e brancos em 1970, e que vinha aumentando com os problemas do “milagre econômico”. Os resultados eleitorais mostraram que o descontentamento era maior do que se supunha: com apoio concentrado nos grandes centros urbanos, o MDB teve mais votos que a Arena para o Senado, embora perdesse por pequena margem no sufrágio para a Câmara Federal. Apesar de manter a maioria no Congresso, o governo ficou assustado, mesmo considerando que os eleitos pelo MDB em geral eram moderados e até aderiam às diretrizes governamentais.
Setores das Forças Armadas tramaram contra a distensão de Geisel, que teve força política para derrotá-los, como no caso da demissão do ministro do Exército, Sílvio Frota, em outubro de 1977. Por outro lado, o regime não poupou esforços para reprimir os partidos clandestinos de esquerda. Foi em seu governo que se exterminou a guerrilha do Araguaia, com toda a sorte de desrespeito aos direitos humanos, até o desaparecimento dos corpos dos guerrilheiros executados, que se tornariam, assim, desaparecidos políticos. Eliminada a oposição em armas, a repressão voltou-se para outros grupos. Em 1975, por exemplo, o PCB – que sempre apoiou o MDB – teve dirigentes presos ou mortos. Em dezembro de 1976, líderes do PCdoB foram executados pelo Exército enquanto se reuniam numa casa do bairro paulistano da Lapa. A direção dos dois partidos ficou praticamente desarticulada.
Aos trancos e barrancos, seguia a política de distensão que levou ao fim o AI-5, com base em emenda constitucional de outubro de 1978. A política era de vaivéns, com recuos notáveis, como o chamado “Pacote de Abril”, em 1977, que impôs medidas para assegurar o controle do governo sobre o processo político e econômico, após recesso temporário do Congresso Nacional, por este ter se recusado a aprovar o projeto governamental de reforma do Poder Judiciário. Adotaram-se medidas como a continuidade de eleições indiretas para os governos estaduais e federal, eleição indireta de um terço dos senadores – o que garantia colégios eleitorais com maioria da Arena –, restrições às campanhas eleitorais no rádio e na televisão, e algumas cassações de parlamentares. O Congresso foi logo reaberto, e o governo seguiu com o projeto de distensão, mas ficou evidente para a oposição que o regime pretendia ditar a forma, o conteúdo e o ritmo da abertura política.
Com as restrições impostas, nas eleições parlamentares de 1978, o MDB só conseguiu manter a votação que obtivera quatro anos antes. A oposição seguiu minoritária no Congresso, mas o sistema bipartidário deixara de ser funcional para o regime. Ao agregar num único partido todas as forças de contestação, agora muito mais fortes que antes, o governo nada tinha a ganhar. Àquela altura, o MDB era mais uma frente política, com várias facções internas, que um partido.
A oposição institucional também foi ativa em órgãos da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que, entretanto, defendiam posições variadas ao longo dos anos, entre colaboração e resistência, como demonstrou, por exemplo, Denise Rollemberg.12 A atuação da imprensa também era repleta de ambiguidades, entre opor-se e colaborar com a ditadura.13
A ambiguidade explica-se, em parte, porque a modernização exigia profissionais capacitados, muitos deles de oposição. A indústria cultural, por exemplo, amadureceu sob uma ditadura que de um lado incentivava a cultura e de outro a censurava seletivamente. Alguns professores incômodos eram afastados, mas a pesquisa e a tecnologia foram financiadas até no meio universitário mais avesso ao regime.
Na segunda metade dos anos 1970, surgiram movimentos sociais em busca de expressão na cena política, revelando a insatisfação e o desejo de participação de organizações de bairro, favela, donas de casa, negros, mães e mulheres contra a carestia, por creches, moradia, comissões de saúde, e assim por diante. Muitas vezes os movimentos se articulavam com as comunidades eclesiais de base da Igreja católica, com o “novo sindicalismo” e com remanescentes da esquerda clandestina, conforme apontaram pesquisadores como Eder Sader e Marco Perruso.14
Em 1977, o movimento estudantil ressurgiu em manifestações de rua, reivindicando liberdades democráticas. O movimento vinha se reorganizando lentamente nos anos anteriores, num processo que culminou em 1979, com a refundação da União Nacional dos Estudantes (UNE), extinta dez anos antes, em consequência de dura repressão.15 Apesar de terem a dianteira na retomada das manifestações públicas, os estudantes passaram a ser coadjuvantes na cena política de oposição após as greves operárias que ganharam corpo a partir de 1978.
Tornou-se emblemática a figura do líder dos trabalhadores de São Bernardo do Campo (SP), Luiz Inácio da Silva, o Lula. Quando eclodiram as grandes greves de 1978, 1979 e 1980, ele ocupava a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos. Lula era originário da estrutura sindical oficial e ligada ao Estado, que foi mantida pelo regime militar, uma vez expurgada das lideranças consideradas subversivas, depois de 1964. Inicialmente despolitizado, apesar de ter um irmão mais velho comunista, Lula fez carreira no sindicato a partir de 1969. A princípio, em meados dos anos 1970, o discurso e a prática dele e de seus companheiros caminhavam na direção de um sindicalismo sem ambições políticas, voltado para obter melhorias trabalhistas, mais interessado em acordos que em luta de classes. Por isso, Lula chegou a ser elogiado pelos donos do poder econômico e político, que viam nele um líder operário confiável, parecido com certos sindicalistas norte-americanos.
Nos piores anos da repressão, entre 1968 e 1978, o total de sindicatos oficiais na área urbana aumentou 53,3%, foi de 2.616 para 4.009. Nas regiões rurais houve crescimento ainda mais expressivo, ligado à iniciativa da ditadura militar, que atrelava os sindicatos ao sistema previdenciário e a convênios assistenciais: de 625 sindicatos em 1968, o total chegou a 1.669 em 1975, conforme dados do IBGE organizados por Armando Boito.16 Esses números, bem como a trajetória inicial de Lula, são indicativos das relações também complexas dos trabalhadores do campo e da cidade com a ditadura, que reprimia os líderes dos sindicatos mais combativos, porém incentivava os que se integravam à nova ordem e a seu sistema assistencial, buscando assim legitimar-se.
A organização social, política e econômica estabelecida, contudo, impunha limites às concessões aos trabalhadores. A crise do milagre econômico, o arrocho salarial, a crescente concentração de riquezas, a insatisfação com as medidas repressivas, as mudanças na conjuntura política, entre outros fatores, levaram à politização de parte da classe trabalhadora. A partir de 1978, a dinâmica das greves ganhou todo o território nacional, como expressão do “novo sindicalismo”, que constituiu um dos principais movimentos de oposição à ditadura, embora organizado no interior de sua estrutura institucional.17 As greves levaram a ganhos materiais relativamente modestos e geraram repressão governamental, com intervenção em sindicatos e várias prisões, inclusive a de Lula, em 1980. Então, foi amadurecendo a proposta de um setor da classe trabalhadora, que passou a defender a construção de um novo partido de oposição, com base na experiência de luta nos sindicatos e nos movimentos populares que cresciam paralelamente, sobretudo na periferia das grandes cidades. A oportunidade institucional veio em 1980, com o fim do bipartidarismo, que propiciou o nascimento do Partido dos Trabalhadores (PT).18
A oposição nos momentos finais da ditadura
O general João Batista Figueiredo, sucessor de Geisel na Presidência, deu continuidade ao processo de distensão. Promoveu a anistia em agosto de 1979, dando uma resposta institucional para as mobilizações da oposição, que envolveram várias entidades, do pioneiro Movimento Feminino pela Anistia, criado em 1975, aos Comitês Brasileiros pela Anistia, a partir de 1978, tema que vem sendo estudado por pesquisadores como Janaína Teles.19
Figueiredo conduziu a reforma política que buscava preservar um partido de sustentação do governo enquanto dividia a oposição. No final de 1979 encaminhou ao Congresso um projeto de reforma partidária que foi aprovado contra a vontade do MDB, embora desse vazão a desejos de setores oposicionistas de assumir sua particularidade. O projeto impôs o fim das legendas Arena e MDB e definiu normas para a constituição de novos partidos, mas excluindo a possibilidade de legalização dos comunistas.
A Arena converteu-se no Partido Democrático Social (PDS), que manteve maioria na Câmara Federal. O antigo MDB passou a denominar-se Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Surgiram mais quatro partidos institucionais de oposição. O Partido Popular (PP), liderado por Tancredo Neves, fazia oposição bem moderada. O Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) rivalizavam pela herança do trabalhismo. Os dois últimos contaram de início com poucos deputados, assim como o PT, que ocupou uma faixa mais à esquerda. O PCB, o PCdoB e várias outras pequenas agremiações continuavam clandestinas, sem possibilidade de legalizar-se. Entretanto, a maioria atuava institucionalmente, sobretudo dentro do PMDB e do PT. A proposta de protestar com a anulação do voto nas eleições, que vinha minguando pleito após pleito, desde 1974, já não tinha praticamente adeptos.
Com a proibição de alianças partidárias nas eleições diretas para governador, em 1982, a maioria do PP integrou-se ao PMDB para melhorar as oportunidades eleitorais de seus candidatos. O PMDB elegeu governadores, com destaque para São Paulo e Minas Gerais. No Rio de Janeiro venceu o PDT de Leonel Brizola, cabendo ao PDS a maioria em estados menores, sobretudo do Nordeste. As oposições, porém, não obtiveram a maioria das cadeiras no Congresso Nacional nem no colégio eleitoral que elegeria indiretamente o novo presidente da República.
Apesar das manifestações de rua que reuniram milhões de pessoas em todas as principais cidades do país em favor da aprovação da emenda constitucional que previa a realização de eleições diretas para a Presidência da República, em 1984 – que ficaram conhecidas como Movimento pelas Diretas Já –, a oposição não conseguiu maioria para garantir sua aprovação no Congresso.
Favorito para ganhar as eleições indiretas, o PDS dividiu-se entre dois candidatos nas suas prévias internas à sucessão presidencial: o militar Mário Andreazza e o ex-governador civil de São Paulo, Paulo Maluf, que acabou triunfando. Sem aceitar a candidatura de Maluf, os dissidentes formaram a Frente Liberal, que mais tarde deu origem ao Partido da Frente Liberal (PFL). Eles negociaram com o PMDB e acabaram apoiando Tancredo Neves nas eleições indiretas. Obtiveram a vice-presidência na chapa, para a qual foi indicado José Sarney, antigo líder do PDS.
Com a nova correlação de forças no colégio eleitoral, os oposicionistas foram eleitos. A morte súbita de Tancredo resultou na posse de José Sarney. O primeiro governo após o ciclo dos generais, geralmente considerado o marco do fim da ditadura, foi chefiado pelo antigo líder do partido do governo Figueiredo, fato que mostra bem a intrincada simbiose política entre oposição e situação no período da transição democrática.
Um episódio envolvendo intelectuais e o MDB ilustra as ambiguidades da oposição que acabaria triunfando com a eleição de Tancredo Neves. Em 1973, Ulysses Guimarães procurou os cientistas sociais – muitos deles afastados à força da universidade – que haviam criado em São Paulo o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). O principal dirigente do MDB buscava ajuda para sua campanha como candidato às eleições indiretas para a Presidência da República. Ele sabia não ter chance no colégio eleitoral contra Geisel, candidato do regime, mas lançou-se para ocupar o espaço institucional, tentando reerguer seu partido, que andava em baixa.
Alguns membros do Cebrap – como Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort e Francisco de Oliveira – aceitaram participar como grupo de apoio, que era remunerado. Segundo Francisco de Oliveira, seis pesquisadores originários do Cebrap foram a Brasília para debater o programa elaborado, a pedido de Ulysses Guimarães, reunindo a alta cúpula do MDB, quase toda vinda do antigo PSD: Ulysses, Amaral Peixoto, Thales Ramalho, Tancredo Neves e Nelson Carneiro. E ainda André Franco Montoro, que tinha origem na democracia cristã e teria sido o único a comentar algo na ocasião. Os outros ouviram impassíveis, silenciosos e formais, sem se comover com os dados apresentados, como a distribuição de renda concentradora de riquezas. Oliveira concluiu que o problema deles era a ditadura, não o regime econômico.20
O episódio revela vários aspectos, como a heterogeneidade da oposição à ditadura, o predomínio dos setores mais moderados dentro do MDB e ainda a existência de uma oposição no meio intelectual, que tinha aspectos radicais mas também se profissionalizava dentro da ordem do regime.
A oposição aos atos de força da ditadura nem sempre significou contestar seus esforços de institucionalização, que acompanharam o processo de modernização conservadora da ordem estabelecida. Ademais, a política econômica de crescimento era apoiada pelas classes dirigentes e por vários setores da sociedade civil, que não raro fechavam os olhos para as arbitrariedades do regime, ou até as apoiavam expressamente.
Resistência e integração
Modernização, desenvolvimento capitalista, autoritarismo e lutas sociais pela constituição de uma esfera pública, ou até mesmo de um outro tipo de sociedade, entrelaçaram-se de tal maneira, sobretudo a partir dos anos 1970, que qualquer desses aspectos só pode ser compreendido levando-se em conta os demais. Isso talvez ajude a explicar a atualidade da discussão sobre os tempos da ditadura, cinquenta anos após o golpe e quase trinta anos depois da volta do governo a um presidente civil. Em 1987, o debate sobre o Estado Novo de 1937 não tinha nem de longe a mesma repercussão que hoje ainda tem o golpe de 1964. Afinal, as bases da sociedade em que vivemos foram construídas a partir dali.21
A organização da ordem produtiva, do Poder Judiciário, do sistema partidário, da Previdência e dos mecanismos de assistência social, da indústria cultural, do complexo de telecomunicações, das polícias, dos bancos e finanças, do sistema de ensino, inclusive nas universidades e na pós-graduação, tudo isso tem raízes naquele período decisivo da modernização conservadora da sociedade brasileira. Ela não pode ser atribuída só aos militares, mas também a seus aliados civis, que levaram em conta a ação das oposições, cujas demandas procuraram contemplar a seu modo, quer com medidas impostas, quer negociadas, o que significa que elas também participaram desse processo.
Eis um exemplo de como o uso da força não significava necessariamente ignorar a oposição, antes procurando resolver suas reivindicações de modo palatável para a consolidação de uma nova ordem, modernizada autoritariamente. Em pleno governo Médici, o ex-coronel Jarbas Passarinho ocupou o Ministério da Educação e Cultura, sob vigência de uma forte legislação repressiva (especialmente o Decreto n.477), que durante alguns anos conseguiu calar o movimento estudantil. Ao mesmo tempo, levou adiante a reforma universitária e do ensino médio, que procurava dar resposta – nos termos do governo – às reivindicações de estudantes nas ruas em 1968, como o fim da cátedra e a ampliação de vagas no ensino superior. Ele escreveu em suas memórias que o plano inicial era implantar o ensino superior público pago. Isso só não teria ocorrido pela resistência interna no governo, “receoso da agitação estudantil”, segundo Passarinho.22 Certamente também deve ter sido considerada a correlação de forças nas instâncias dirigentes das universidades, onde havia forte enraizamento das propostas de ensino público e gratuito, que só foram parcialmente contornadas com a crescente abertura para o ensino superior privado.
Assim, as lutas da oposição estudantil não foram em vão. Apesar da derrota do movimento, a ação dos estudantes ajudou a moldar as reformas do governo, que pautava suas ações levando em conta possíveis respostas dos opositores. O mesmo se deu em tantos outros casos. Para citar apenas mais um, envolvendo o mesmo ministro, ele implantou o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), em 1971, como resposta ao método politizado de alfabetização de adultos levado adiante por Paulo Freire antes de 1964.
Usando termos gramscianos, sob a ditadura, contraditoriamente, estabeleceram-se as bases para a consolidação da hegemonia burguesa no Brasil. Isto é, a sociedade organizou-se em moldes capitalistas contemporâneos, tendendo a fundamentar-se mais no convencimento que na força, que entretanto segue presente. A organização capitalista da sociedade nos moldes em que se estabeleceu no Brasil tornou-se algo naturalizado, como se fosse o caminho necessário da modernidade, aceito até pelos partidos identificados com os trabalhadores, que no entanto buscariam atuar no sentido de mitigar os efeitos socialmente perversos do sistema.
É possível que, quanto mais a ordem capitalista se consolidar no Brasil, mais as revisões historiográficas avançarão no sentido de matizar o uso da força durante o regime militar, ressaltando seu aspecto modernizador, considerado positivo em si mesmo. Veja-se o debate sobre a “ditabranda”, a partir de um polêmico editorial da Folha de S.Paulo, de 17 de fevereiro de 2009, que usava essa expressão.
O regime implantado em 1964 foi o coroamento de um longo processo de revolução burguesa no Brasil, sob bases autoritárias, como propôs Florestan Fernandes.23 Indo além: a complexidade da modernização, com o tempo, tornou anacrônicos os moldes ditatoriais. Lentamente, em oposição – mas também em interação com as políticas governamentais –, foi se consolidando, de maneira contraditória, uma esfera pública com regras para arbitrar as condutas e os embates entre os agentes sociais a fim de estabelecer direitos e deveres legalmente reconhecidos, inclusive de competição eleitoral. Isso ocorria em paralelo à tradicional troca de favores, prática herdada de uma sociabilidade de características pré-capitalistas, sem contar a violência institucionalizada em órgãos como as Polícias Militares. Em outros termos, avançaram as lutas pelos direitos sociais e pela democracia, num sentido civilizador, mas no interior do capitalismo, que segue sem ameaças em sua peculiar caracterização na sociedade brasileira, na qual – apesar de eventuais melhorias para os mais pobres – o “moderno” é indissociável do “atrasado”, e as desigualdades sociais eternizam-se como se fossem naturais.
a O primeiro Ato Institucional, de abril de 1964, continha medidas de perseguição aos considerados subversivos, entre outras que fortaleciam o poder central. Mas manteve a Constituição de 1946 e o calendário eleitoral. O Ato inicialmente não tinha número e estabelecia seu prazo de validade até janeiro de 1966.