6.   Revisitando o tempo dos militares

RENATO ORTIZ

Já no final dos anos 1970 interessei-me pelas transformações então recentes da sociedade brasileira. Talvez, ao me ausentar do país durante alguns anos, a experiência de desenraizamento tenha me propiciado um certo distanciamento em relação aos problemas nacionais. Estava convencido de que o Brasil passava por mudanças profundas, e isso incidia sobre a esfera cultural. Cultura brasileira e identidade nacional, publicado em 1985, e A moderna tradição brasileira, em 1988, foram textos que resultaram dessa inquietação intelectual. Meu interesse não era propriamente a ditadura militar, mas considerá-la num contexto no qual as relações sociais adquiriam outra configuração. Ao escolher a indústria cultural como eixo de minhas reflexões, tinha por intuito, mediante um objeto heurístico, captar novo sentido do que costumávamos chamar de “cultura brasileira”. Os editores desta coletânea deram-me a oportunidade de revisitar esses temas antigos; gostaria, porém, de considerá-los com um olhar diferente, evitando repetir-me em demasia. Ao se retomar esse período de arbítrio e autoritarismo é importante sublinhar dois aspectos. O primeiro diz respeito ao acúmulo de bibliografia sobre o tema, sobretudo a partir da década de 1990. Nos anos 1970 e parte dos 1980, havia pouco material disponível, e mesmo as interpretações políticas sobre o golpe militar eram rarefeitas, daí a importância dos estudos feitos por alguns brasilianistas – eles tinham acesso privilegiado às fontes militares. Atualmente o quadro é outro: memórias, escritos de jornalistas, cientistas políticos e historiadores cobrem uma vasta área de estudo.1 A democratização dos documentos sigilosos, a abertura dos arquivos e o desenvolvimento dos cursos de pós-graduação permitiram ainda a realização de estudos mais precisos sobre a máquina repressiva estatal e os seus desmandos. Retornar à temática dos militares implica o contato com pelo menos parte dessa vasta literatura recentemente produzida. Outro aspecto refere-se ao tempo. A distância em relação ao evento nos permite percebê-lo com outros olhos, desvendando aspectos que muitas vezes permaneciam à sombra.

A DITADURA MILITAR foi modernizadora. Isso a distingue dos regimes autoritários no Cone Sul. Há desenvolvimento acelerado da economia durante o “milagre econômico”, intensa industrialização e urbanização da sociedade brasileira, reorganização do Estado, a emergência de uma tecnocracia que dinamiza e regula as forças produtivas, enfim, um conjunto de medidas que aprofundam a consolidação do que se denominava capitalismo tardio. Octavio Ianni, em seu estudo sobre o Estado e o planejamento, confere à política governamental pós-1964 uma dimensão inovadora.2 Ela seria radicalmente distinta dos governos anteriores, visando, por meio do controle autoritário, maior eficácia e racionalização das metas a serem atingidas. A intervenção do Estado cria, dessa forma, novas possibilidades para o desenvolvimento das empresas nacionais e estrangeiras. O quadro é outro na Argentina, no Chile e no Uruguai, onde esse processo é contido, ou melhor, disciplinado pelo rigor da repressão policial ou pela visão estratégica da elite militar no poder. Alguns autores consideram que isso influenciou o processo de transição política da fase autoritária para a democracia. No Brasil, a longevidade da ditadura em relação aos países vizinhos em parte teria ocorrido pelo êxito dessa modernização. Durante os vinte anos de sua vigência, ela teria propiciado condições para amortecer os conflitos sociais e políticos entre os diversos grupos de interesse.3 Uma maneira de caracterizar esse processo de expansão e controle é considerá-lo uma modernização conservadora, conceito frequentemente utilizado pela literatura que se ocupa do tema. Ele deriva de um estudo de Barrington Moore Jr. sobre as origens sociais da ditadura e da democracia.4 Moore queria compreender o papel político que as elites agrárias teriam desempenhado na passagem da sociedade rural para a sociedade industrial. Isso leva-o a fazer um estudo comparativo no qual, de um lado, se alinham as sociedades capitalistas nas quais se desenvolveu o regime democrático parlamentar, como Inglaterra, França e Estados Unidos, de outro, países como Alemanha, Rússia, Japão, nos quais vicejou uma modernização conservadora. Nesses lugares teria havido uma “revolução pelo alto”, engendrando uma aliança entre os grupos dominantes agrários e os novos atores da mudança social. Os grandes proprietários mantêm, assim, o controle da força de trabalho rural e o uso da terra, sendo capazes de articular seus objetivos a uma elite urbana emergente. O autoritarismo da classe dirigente seria uma espécie de ajuste estrutural às condições reais de sua existência.

A rigor, a ideia de modernização conservadora se aplicaria no Brasil à emergência da modernidade como um todo, abarcando diversos períodos de nossa formação histórica, da Primeira República ao Estado Novo.5 Nesse sentido, ela apreende um processo social calcado explicitamente num modelo político conservador, no qual os valores democráticos são preteridos para um plano secundário. Entretanto, se a noção é amplamente aplicada ao pós-1964, isso se deve ao fato de este ser um momento de mudanças substanciais, consolidando o que alguns economistas consideram a “segunda revolução industrial” do Brasil (ela aprofunda as medidas do governo Juscelino Kubitschek em relação à reorganização do capitalismo nacional). O período militar combina repressão política e expansão econômica, ação policial e modernização da máquina do Estado e incentivo às atividades empresariais. Não obstante, na bibliografia produzida sobre a problemática da modernização conservadora, manifesta-se certa ambiguidade. Diversos autores a percebem como uma modernidade “incompleta”, “inacabada”, “tardia”, “parcial”. Isso fica claro quando se analisa o debate sobre a transição democrática. O termo é utilizado de duas maneiras distintas: como categoria meramente descritiva da passagem de uma forma de governo a outra ou como tendência que caracterizaria duas etapas distintas da modernidade. No primeiro caso, trata-se de compreender como o regime militar dá lugar a outra ordem política. Importa captar os fatores que impulsionaram o fim do autoritarismo e sua substituição por um regime parlamentar democrático. No segundo caso, essa passagem associa-se a determinada concepção temporal da modernidade. O Brasil democrático seria “mais avançado” que o do período anterior, no qual o “atraso” das relações políticas, em relação à sua infraestrutura material, teria sido superado. Pressupõe-se, assim, uma gradação progressiva da modernidade. Existiria um modelo europeu/norte-americano a ser seguido, anterior e superior a todos os outros modelos, e um caminhar necessário para sua realização histórica.

Dificilmente conseguiríamos sustentar tal perspectiva após as inúmeras críticas que a “teoria da modernidade” enfrentou nas últimas décadas: eurocentrismo, modernidades múltiplas, globalização, pós-colonialismo etc. A ideologia do progresso implícita nos ideais de modernização, que também marcou as discussões sobre subdesenvolvimento e dependência, encontra-se hoje bastante debilitada. O próprio Barrington Moore Jr. já esboçava em seu livro uma crítica a esse tipo de concepção. Ao comparar os fenômenos políticos na Europa/Estados Unidos com a Ásia (China, Japão e Índia), ele pondera: “Não faz muito tempo, excelentes teóricos pensavam que existia uma única via de acesso ao mundo da sociedade industrial moderna, a que levava ao capitalismo e à democracia.” E acrescenta: “A democracia ocidental é apenas uma solução política entre outras, e ela surge em circunstâncias históricas particulares.”6 Sua perspectiva afasta-se dos preceitos da modernização na qual o sistema político democrático seria consequência natural da própria modernidade. Lembro que a definição de modernização vigente na sociologia norte-americana abrangia dimensões variadas da sociedade – crescimento econômico autossustentado, um grau acentuado de mobilidade social, a difusão de normas seculares e racionais na cultura dos indivíduos. Entretanto, ao lado dessas exigências figurava outra: a representação democrática na definição das escolhas políticas. Como o moderno implicava uma ruptura com a tradição, encontrando-se imerso na linearidade do tempo, a plenitude da variável política somente poderia ser atingida quando a defasagem em relação ao modelo idealizado (Europa Ocidental e Estados Unidos) fosse ultrapassada. Moore escreve contra esse tipo de perspectiva teórica. A originalidade de seu estudo comparativo é mostrar que a evolução dos sistemas políticos nada tem de linear. Creio que o conceito de modernização conservadora foi empregado pelos autores brasileiros sem que estivéssemos atentos para essa dimensão. Fica claro na sua utilização o interesse pelo hiato entre democracia e modernização, o que certamente é importante, mas é ambígua sua manifestação quando não se desconfia da ideologia do progresso que, de alguma maneira, ele pretendia negar. Isso tem uma implicação. Talvez fosse melhor dizermos que o fim da ditadura militar foi menos uma transição e mais uma conquista. Ou seja, os valores que ela pressupõe nada têm de perenes, são frutos de conjunturas políticas específicas, e não o caminhar de um ideal civilizatório. Para ser preservada, a democracia necessita ser incessantemente renovada, não basta sermos modernos.

Controle e expansão, essas duas tendências não são necessariamente antagônicas, mas convivem numa tensão constante. O ideal de controle está formulado de maneira clara na ideologia da segurança nacional. A sociedade brasileira deveria funcionar como um sistema integrado, com as partes ajustadas ao ritmo do todo. O Estado militar teria o papel de regulador autoritário, capaz de eliminar e diluir os conflitos que porventura viessem ameaçar sua integridade. Os militares brasileiros possuíam uma visão sistêmica das relações sociais, como elas eram díspares, divergentes entre si, mantê-las organicamente articuladas exigia uma concepção totalizadora, um poder centralizado e um aparato repressivo eficiente. No plano político isso implicou o desmantelamento da ordem anterior: fim dos partidos existentes, criação de um bipartidarismo artificial, repressão aos sindicatos e movimentos sociais, edição dos Atos Institucionais, configurando o arcabouço jurídico para a legitimidade do golpe. No entanto, como dizem os cibernéticos, todo sistema depende do fluxo das informações que o atravessa. Para os militares, manipular esse fluxo de informação era crucial na coordenação das ações de seu núcleo central. A criação do Serviço Nacional de Informações (SNI) tem esta função: conhecer o que se passa nos mais diversos âmbitos da sociedade, subsidiando as autoridades no processo decisório. Não se tratava de um serviço para controlar unicamente o “inimigo”, a ambição era maior, os próprios ministérios do governo deveriam participar dessa malha funcional e sistêmica.7 A vida social, na sua amplitude e diversidade, era matéria de atenção e de intervenção dos militares. O SNI tinha uma vocação totalizadora e totalitária. Porém, como não se tratava de um órgão executante (não fazia prisões nem interrogatórios, não instaurava processos), devia ser complementado por um complexo policial.

Na esfera cultural cabe ressaltar dois tipos de mecanismos repressivos. Primeiro, os Inquéritos Policial-Militares (IPMs), instituídos para identificar e punir os “subversivos”. Eles tinham um amplo raio de ação, atingiam políticos, sindicalistas, indivíduos considerados corruptos; tiveram grande importância no mundo da cultura, na medida em que foram aplicados a professores universitários, intelectuais e editores. Foi o que aconteceu com Ênio Silveira, que publicava a Revista Civilização Brasileira, ou Caio Prado Jr., patrono da editora Brasiliense. O leitor pode ter uma dimensão desse tipo de perseguição sistemática, travestida em argumentos jurídicos, ao analisar um exemplo heurístico: o IPM do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), fechado após o golpe militar.8 Segundo, a existência da censura.9 Ela instaura-se oficialmente como atributo do Estado, sendo regulamentada por normas e decretos. O censor é uma figura pública investida de poder disciplinador para corrigir os excessos cometidos. Os militares tinham uma obsessão pelos meios de comunicação, pois neles transitavam as informações potencialmente perigosas. Não se pode esquecer que o combate aos partidos e sindicatos transferiu parte dos conflitos políticos para a esfera cultural (em particular o meio universitário), porque nela expressavam-se a insatisfação e a resistência ao poder ditatorial. O domínio da cultura torna-se um espaço estratégico de disputas, daí a necessidade de discipliná-lo. O ato repressor tem essa intenção: são censurados livros, artigos de jornais, filmes, peças de teatro, letras de música, matérias de revistas, programas de televisão, emissões radiofônicas. Ele atinge indiferenciadamente autores nacionais e estrangeiros: a peça Calabar, de Chico Buarque de Holanda, e Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, livros como Universidade necessária, de Darcy Ribeiro, e As gravuras eróticas de Picasso, filmes de Godard e Pra Frente Brasil, de Roberto Farias. A variedade dos temas interditados é imensa, abrangendo sobretudo as obras de conotação contestatória: A revolução brasileira, de Caio Prado Jr., História militar do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, jornais de oposição. No entanto, o ato censor tem uma amplitude maior, transborda as coisas da política, incluindo outras dimensões da vida social: Adelaide Carraro e Cassandra Rios, consideradas autoras de textos pornográficos, programas de auditório (Chacrinha, Dercy Gonçalves), novelas de televisão, músicas como “Tortura de amor”, de Waldick Soriano (“Hoje que a noite está calma/ e que minh’alma esperava por ti,/ apareceste afinal/ torturando este ser que te chora”), notícias de jornal sobre eventos cotidianos.10

À primeira vista, a escolha do que deve ser censurado parece errática, oscilando entre objetos, aspectos e assuntos desconexos. Vários testemunhos de jornalistas e autores da época, assim como alguns intérpretes, enfatizam justamente esse aspecto: a censura não possuía critérios objetivos para a realização dos cortes. Entretanto, do ponto de vista da ideologia da segurança nacional, pode-se dizer o contrário: o afã de se controlar qualquer tipo de manifestação cultural. A disparidade dos temas nada tem de fortuita, ela traduz a sistematicidade da intenção, nada deveria escapar à sua mira. A interdição era o desdobramento coerente de uma visão de mundo coercitiva. Mas a estratégia dos militares não se resume ao aspecto de contenção. O manual básico da Escola Superior de Guerra deixa isso claro: a cultura não deve ser reprimida, mas desenvolvida, desde que fosse submissa à segurança nacional.11 O controle do aparelho estatal é necessário, mas conjuntamente com o estímulo para se desenvolverem as produções culturais. Por isso a política governamental é dinâmica. Entre 1965 e 1979 são criados inúmeros órgãos que as incentivam: Embratel, Conselho Federal de Cultura, Embratur, Ministério de Telecomunicações, Embrafilme, Telebras, Funarte, Fundação Pró-Memória, Radiobrás etc. A Embratel completa o sistema de comunicação possibilitando a integração nacional por TV; a criação do Sistema Nacional de Turismo articula o turismo à cultura popular; os congressos sobre a indústria cinematográfica impulsionam a realização de filmes brasileiros; os encontros nacionais de cultura promovem as artes cênicas e plásticas. A presença do Estado faz-se ainda sentir por meio da normatização das atividades. Esse é o período no qual são baixados inúmeros decretos e portarias organizando os produtores e a distribuição dos bens culturais (regulamentação da profissão de artista e técnico; obrigatoriedade da exibição de longas e curtas-metragens nacionais nas salas de cinemas).

Deve-se levar em consideração que a modernização da sociedade brasileira implica uma mudança drástica do cenário cultural. Paralelamente à integração econômica das diversas regiões do país, consolida-se, pela primeira vez, um mercado de bens simbólicos em nível nacional. O advento da indústria cultural coincide com o período da ditadura, esse é o momento em que a televisão transforma-se num veículo de massa, o cinema consolida-se como atividade financiada pelo Estado, desenvolve-se de maneira ampla a indústria fonográfica, editorial e publicitária. Contrariamente à fase anterior, da década de 1940 a 1960, quando o capitalismo brasileiro era ainda incipiente, o desenvolvimento econômico propicia a formação de um mercado cultural até então inexistente. Os dados são eloquentes. A produção de livros entre 1966 e 1980 passa de 43,6 para 245,4 milhões de exemplares; o crescimento das revistas entre 1960 e 1985 foi de 104 milhões para 500 milhões de exemplares. Na década de 1950, a média anual de filmes produzidos no Brasil girava em torno de 32 películas. Com a criação do Instituto Nacional do Cinema e, posteriormente, da Embrafilme a produção cinematográfica toma outro fôlego. Em 1975 são produzidos 89 filmes, número que sobe para 103 em 1980. Talvez o veículo que melhor ilustre o processo de expansão da indústria cultural seja a televisão. Nos anos 1950 ela é regional, concentra-se apenas em algumas cidades, a maioria delas capitais de estado: São Paulo (1950), Rio de Janeiro (1951), Belo Horizonte (1955), Porto Alegre e Ribeirão Preto (1959), Recife, Salvador e Fortaleza (1960). Os programas são apresentados ao vivo, e com o advento do videoteipe podem ser comercializados entre os estados (no final de 1963 surge a telenovela diária), mas, somente com os investimentos tecnológicos feitos pelo Estado o mesmo sinal televisivo passa a integrar um sistema nacional de telecomunicação. Em 1959 havia apenas 434 mil aparelhos de televisão no país; a partir de 1965 esse número cresce vertiginosamente, atingindo, em 1980, 19.602 milhões de unidades. Difunde-se, assim, cada vez mais, o hábito de ver televisão. Se em 1959, na cidade do Rio de Janeiro, somente 7% da classe popular via televisão, em 1982 havia 15 milhões e 800 mil domicílios com aparelhos de TV, ou seja, 73% do total de domicílios.

Isso tem uma implicação. Durante o período ditatorial a censura não se define pelo veto a qualquer bem cultural, ela é seletiva:12 são censuradas peças de teatro, filmes, livros, artigos de jornal, mas não o teatro, o cinema ou a indústria editorial. O ato repressor atinge a especificidade de algumas obras, mas não a generalidade de sua produção. É isso que explica a conjunção de duas tendências aparentemente excludentes: controle e expansão modernizadora. Mas existe também, como se havia sublinhado anteriormente, uma tensão entre esses dois movimentos. Uma forma de apreendê-la é contrastar os valores do pensamento autoritário com a lógica da indústria cultural emergente. A diferença entre essas duas estratégias nos permite entender melhor as contradições inerentes ao processo de modernização no Brasil. Gramsci dizia que toda ideologia configura uma ordem ético-moral, isto é, determinada concepção de mundo ancora-se em valores e percepções que implicam certo comportamento.

Não é difícil apreender os traços dessa visão ético-moral nos documentos produzidos pela elite militar, na elaboração dos critérios para censura e nas propagandas políticas criadas pelo governo. Há, em primeiro lugar, um entendimento do que seria a sociedade, uma totalidade organizada em torno de um núcleo central. Nesse sentido, a nação, unidade territorial e moral, coincide com o Estado, lugar de uma única vontade de poder. Como observa Joseph Comblin,13 a nação não difere do que se constitui formalmente como Estado, ou seja, toda contestação ao Estado é uma ameaça a seus fundamentos. A defesa da nação do perigo “comunista” e “subversivo” (não se pode esquecer a importância da Guerra Fria nesse contexto) torna-se uma obrigação do Estado. Este atua como defensor do caráter nacional, conjunto de valores que constituíram a essência da “verdadeira” identidade brasileira (uma das críticas constantes à esquerda era de que ela se submeteria a uma doutrina “exótica”, importada do exterior, portanto contrária aos alicerces da identidade nacional). Mas o Estado militar se vê também como o promotor do desenvolvimento, e torna-se imprescindível abrigá-lo das intempéries políticas, estimulando um sistema baseado na dissuasão. Um exemplo disso é a criação da Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), agência de propaganda do governo, com o objetivo de produzir uma imagem positiva e otimista do país.14 As campanhas publicitárias do tipo “Brasil Grande” tinham o intuito de reinterpretar a imagem tradicional do Brasil (país mestiço, cordial, sem conflitos, pacífico), conciliando-a com a visão coercitiva dos militares. Tal perspectiva manifesta-se claramente nos critérios de censura. Uma das recomendações em relação às notícias de jornais dizia:

Não publicar manchetes ou títulos que chamem atenção do público, referentes a crimes, nem estampar fotografias que despertem a concupiscência ou atentem contra a moralidade da família brasileira, sejam obscenas ou deprimentes, inclusive comentários de atividades teatrais, cinematográficas, boates, circos ou estabelecimentos congêneres. É vedada a descrição minuciosa do modo de cometimento de delitos.15

Estamos longe dos motivos meramente partidários; pretende-se preservar a família brasileira da obscenidade e do erotismo desenfreado. Assim, são interditados os programas de auditório, que seriam de “baixo nível”, “grotescos”, “imorais”; ou revistas como Ele e Ela, que promoveriam o abuso da sexualidade em suas fotos lascivas. A concepção de mundo da elite militar era tradicional e conservadora, com aversão a tudo que a contradizia.

A lógica da indústria cultural é o reverso de tudo isso. A produção dos bens culturais não se encontra articulada a uma ideologia de contenção, mas de expansão do mercado. A cadeia de fabricação dos produtos deve ser meticulosamente conhecida, programada, os investimentos são de monta. Para isso é preciso um conhecimento específico das técnicas de marketing, pesquisas de audiência e consumo, utilização eficiente dos recursos publicitários. Em todos os setores da área cultural – televisão, editoras, empresas jornalísticas –, o que se vê nesse período é o avanço da racionalidade empresarial. Um exemplo: a fabricação da telenovela diária.16 Trata-se de uma atividade complexa, que envolve autor, atores, filmagem de cenas internas e externas, cenaristas, edição, pesquisas de audiência, publicidade, merchandising. Isso só é possível quando existe um sistema de gestão capaz de ajustar de forma sincrônica os diferentes elos da cadeia de produção. Quadro inteiramente diverso do que existia nos anos 1950, quando a telenovela ia ao ar duas vezes por semana, era realizada ao vivo, sendo sua produção marcada por uma série de improvisações. Naquele momento, os meios de comunicação não constituíam ainda indústrias culturais, no sentido em que Adorno forja o conceito, isto é, empresas orientadas fundamentalmente para o mercado. Isso ocorrerá somente no pós-1964. O testemunho de um executivo do jornal Folha de S.Paulo ilustra a distância entre a ideologia repressiva dos militares e a engrenagem empresarial. Ele diz:

Acho que a [censura] deprecia a mercadoria jornalística. É mais ou menos como fabricar suco de tomate que não possa ter gosto de tomate; tenho a impressão de que isso iria reduzir o mercado do suco de tomate. É um exemplo grosseiro, mas imagino que se possa especular um pouco nessa direção: depreciar o valor da mercadoria jornalística e, portanto, não poder eventualmente significar algum tipo de redução ou não crescimento do mercado jornalístico confrontando-se com o que ele poderia ter crescido em um ambiente de liberdade política.17

Não se trata de defesa da liberdade de consciência; o ato repressivo é apreendido como entrave aos negócios. Durante o período militar há diversas tentativas de minimizar a tensão entre essas duas propostas distintas. Por exemplo, ao admitir o censor no interior da própria indústria cultural, estimulando a autocensura. No entanto, esse tipo de artimanha tinha apenas o intuito de contornar problemas cuja origem era de cunho estrutural. A tensão entre a lógica dos militares e a do mercado somente tende a crescer com a emergência de uma sociedade de consumo. Nela o indivíduo não mais se encontra prisioneiro de um conjunto de instâncias tradicionais (família ou Igreja), ele é o centro das atenções, escolhe as mercadorias expostas à sua vista. A ideologia militar alicerça-se nessas instituições que são postas em causa pelo processo que ela desencadeia. Os anos 1960 e 1970 são um momento de liberalização dos costumes que dificilmente poderiam ser contidos por qualquer tipo de ideologia (incluindo a de esquerda). O consumo de drogas, a liberdade sexual, a emancipação feminina não eram simples epifenômenos que pudessem ser administrados por uma determinada concepção de mundo conservadora.

Porém, a lógica do mercado contrapõe-se ainda aos movimentos de resistência à ditadura militar. A tensão que analisamos de um lado do espectro cultural se repõe no outro extremo. Diversos autores sublinham que nos anos 1960 havia uma grande efervescência cultural entre nós. A rigor, deveríamos dizer que isso se inicia no fim da década de 1950, com Bossa Nova, Cinema Novo, teatro de Arena, CPC da UNE, intelectuais do Iseb, movimentos de cultura popular no Recife. Ela não se interrompe com o golpe militar, mas prolonga-se nas peças do Teatro Oficina, nos shows de MPB, nos festivais de música da televisão, na Tropicália. O público dessas expressões culturais é constituído sobretudo por jovens universitários, agora um número expressivo de pessoas concentradas nas capitais de alguns estados. Pode-se sentir o clima de entusiasmo da época ao se ler um texto de Roberto Schwarz sobre a relação entre cultura e política:

Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. [Ela] pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estreias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa, a esquerda dá o tom. Essa anomalia é o traço mais visível do panorama cultural brasileiro entre 64 e 69.18

Deixo de lado a referência à hegemonia cultural da esquerda (Schwarz, escrevendo posteriormente, diz que seu texto tinha um prognóstico equivocado). Cabe sublinhar o contraponto entre a exuberância das manifestações culturais e o autoritarismo. De fato, o período em questão é marcado por uma abertura da imaginação política na qual a ideia de revolução social encontrava-se presente. Marcelo Ridenti, partindo de outro ponto de vista, também procura dar conta dessa especificidade ao dizer que os artistas da época compartilhavam certo “romantismo revolucionário”.19 Isso marcava de maneira indelével a esfera cultural, por exemplo, no teatro, onde Arena, Oficina e Opinião afirmavam-se como espaços de criatividade e contestação. A ideia de revolução não era apenas uma aspiração partidária, ela continha uma metáfora libertária encenada nos palcos de teatro, nos filmes de Glauber Rocha, nas letras das canções de protesto. No entanto, havia outro lado da realidade não contemplada na passagem mencionada. A anomalia considerada por Roberto Schwarz dizia respeito ao embate entre as forças do autoritarismo e as esperanças da esquerda, mas ela silenciava a respeito da relação entre política e indústria cultural. Ora, esse é o momento em que se consolida no Brasil uma indústria fonográfica, explorada pelas empresas nacionais e pelas majors internacionais; em que se expande o público consumidor; em que há transformações técnicas na área da gravação e o advento de um novo suporte para música, o LP (o Brasil era o quinto mercado fonográfico do mundo).20 Na área editorial, os jornais de oposição disputavam espaço com outras publicações: revistas com apelo masculino (Quatro Rodas, Moto, Playboy), infantil (Cebolinha, Luluzinha, Piu-Piu), ou voltadas para as donas de casa (Agulha de Ouro, Forno e Fogão, Casa, Claudia). Surgem ainda as grandes agências de publicidade, novas associações de profissionais, o Conselho Nacional de Propaganda (1964), a Federação Brasileira de Marketing (1969), além de multiplicarem-se os institutos de pesquisa mercadológica, como Gallup, Simonsen, Audi-TV, Nielsen, LPM.

Não se trata de movimentos opostos, de um lado a resistência política, de outro o mercado. As manifestações culturais realizam-se no seio desse espaço de bens simbólicos em desenvolvimento. O exemplo dos festivais de MPB é sugestivo.21 Não há dúvida de que eles galvanizavam a inquietude política existente, por isso eram vigiados pelo poder estatal. Eles congregavam um clima de festa e contestação, ludismo e liberdade de expressão. Mas também constituíam uma estratégia de mercado para incorporar o público universitário aos novos segmentos de consumo. Inspirados nos festivais internacionais de canções, produzidos por empresas de televisão concorrentes entre si (TV Excelsior, TV Record), eram incentivados pela indústria fonográfica, que os percebia como potente instrumento de marketing. No Brasil, somente nos anos 1960 a categoria “juventude” passa a delimitar um segmento de mercado a ser comercialmente explorado. O público jovem, com a ascensão da nova classe média, encerra um potencial importante de consumo de MPB, rock nacional (Roberto Carlos), música pop (Beatles etc.). Basta olharmos os programas preferidos dos telespectadores da TV Record: O Fino da Bossa e Jovem Guarda, faces contrastantes dessa juventude. A tensão irá desaparecer na década de 1970. Vários fatores contribuíram para isso: a derrota política da esquerda no Brasil, o fracasso da luta armada na América Latina, o desencanto em relação à ideia de revolução, a barbárie do regime soviético. Sem mencionar o declínio do marxismo como teoria de interpretação da história.22 Não obstante, creio que no Brasil a relação entre cultura e política reorganiza-se sobretudo em função da consolidação da indústria cultural. Desde então, os critérios mercadológicos se sobrepõem ao engajamento político.

Quando escrevi A moderna tradição brasileira, eu mirava o passado intelectual do país. O livro dedicava-se a uma interpretação do Brasil e terminava com um ponto de interrogação: o internacional-popular. O tema abriu-me todo um horizonte de pesquisa sobre a mundialização da cultura. Torna-se fácil, hoje, questionar a relação entre nação e modernidade, o vínculo entre esses dois termos se rompeu.23 No entanto, na tradição do pensamento brasileiro e latino-americano, a associação entre nação e modernidade era vista como algo necessário. O dilema brasileiro e da América Latina era que nossa identidade encontrava-se em descompasso com os tempos modernos, era preciso construir a nação para realizar a modernidade. Muito do debate sobre a modernidade na periferia resume-se a uma constante reinterpretação do nacional-popular pelas diferentes forças políticas em concorrência direta. Durante a ditadura militar havia três propostas distintas em disputa: a dos militares, cuja versão autoritária procurava fundir uma visão de Brasil cordial e socialmente seguro, livre das forças “subversivas”; a dos movimentos de contestação, sem coincidir, porém, com a dos partidos de esquerda (tipo Partido Comunista Brasileiro), e na qual a noção de alienação desempenhava papel importante; por fim, a visão incentivada pela indústria cultural, privilegiando uma concepção mercadológica dos bens culturais. Nesse sentido, a substituição dos melodramas latino-americanos pela telenovela diária; a presença cada vez menor dos “enlatados” norte-americanos, superados por programas produzidos no país (shows de auditório, noticiário); o declínio das fotonovelas italianas diante das publicações da Editora Abril; a importância dos gêneros musicais autóctones, superando as vendas de música estrangeira, tudo isso passa a ser interpretado como afirmação da moderna tradição brasileira. Essa percepção acrítica da modernidade (meu intuito era considerá-la criticamente) pode ser vista como resultado de um “duplo desencantamento do mundo”, processo de racionalização inerente ao capitalismo no qual a dimensão coercitiva do autoritarismo era incorporada. Mirando o passado com os olhos do presente, talvez seja possível dizer que o período da ditadura militar inaugura uma nova etapa do debate sobre a modernidade entre nós. Contrariamente aos momentos anteriores, torna-se visível sua materialidade; ela estende-se às diversas regiões do país e às diferentes dimensões da vida em sociedade. Já não é mais necessário projetar nosso destino na indeterminação do futuro, de alguma maneira ele se atualizou. O progresso tornou-se presente, com suas promessas e decepções.

Maurice Halbwachs dizia que a memória coletiva age como um filtro, o presente não é um momento inerte, ele atua na reconstrução das lembranças. Minha impressão é de que os tempos da ditadura deixaram um mal-estar que se prolonga até hoje. O ato mnemônico faz-se num terreno minado, no qual as recordações são nebulosas. O esquecimento da tortura e dos assassinatos de militantes políticos e inocentes civis é exemplar. Em todo o Cone Sul a sociedade civil conseguiu rever e conciliar-se com essa época de arbítrio e violência. Entre nós, nenhum tribunal foi criado para avaliar a extensão dos crimes cometidos, o país brilha na sua excepcionalidade. Ao revisitar o passado, não consigo conter minha decepção e apontar pelo menos um aspecto que, a meu ver, inibe a atualização dessa memória comprometida: o tema da democracia. As forças de esquerda nunca o tiveram em grande consideração. Daniel Aarão Reis observa que para elas a democracia era um objeto incômodo e estranho ao ideário de transformação social.24 As organizações partidárias, na melhor das hipóteses, mantinham com ela uma relação ambígua: diante da ameaça golpista, reivindicavam a legalidade democrática, e em tempos normais a desqualificavam como atributo burguês. Mas as forças conservadoras também tinham pouco apego pelos ideais democráticos, e a noção de modernização conservadora capta bem o autoritarismo das elites (não deixa de ser constrangedor termos Oliveira Vianna como um dos principais patronos do pensamento político brasileiro). Eu havia sublinhado a tensão existente entre a ideologia dos militares e a indústria cultural. Isso permitiu às grandes empresas de comunicação construir uma memória parcial e falaciosa de seu passado comprometedor. Nos livros encomendados para celebrar suas histórias institucionais, nos artigos ritualmente publicados no dia 31 de março, elas relembram quanto foram atingidas pela censura e a intolerância repressiva. Mas recalcam as lembranças embaraçosas. O Estado de S. Paulo e a Folha da Manhã (hoje, Folha de S.Paulo) não apenas apoiaram o golpe militar, como também incentivaram-no desde o início. Talvez o texto mais emblemático explicitando a colaboração entre a imprensa e os militares seja o editorial do jornal O Globo, “Ressurge a democracia”, publicado no dia 2 de abril de 1964. Deixo o leitor apreciar a ambiguidade.

Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. Como dizíamos no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, ante a Nação horrorizada.

Diante da artimanha retórica, a memória se recolhe, busca conforto na ficção das lembranças.