7.   Para onde foi o “novo sindicalismo”? Caminhos e descaminhos de uma prática sindical

RICARDO ANTUNES
MARCO AURÉLIO SANTANA

Entre as décadas de 1970 e 1980 um espectro rondou o movimento sindical brasileiro. O espectro do “novo sindicalismo”. O movimento operário e sindical no país viveu, no fim dos anos 1970, um momento de extrema importância para sua história. Após o duro impacto do golpe militar de 1964, que lhe havia deixado pouco espaço de ação, o sindicalismo de corte classista voltava à cena, cobrando a ampliação dos espaços para a representação dos interesses da classe trabalhadora. No cenário político mais amplo, a emergência do movimento dos trabalhadores estremeceu os arranjos políticos da transição para o regime democrático que iam se efetivando sem levá-lo em consideração.

O momento de ressurgimento do sindicalismo nacional foi caracterizado, em uma de suas dimensões, pela concorrência de projetos políticos e sindicais entre setores da esquerda. Fruto dessa conjuntura, o “novo sindicalismo” era produto da confluência de variadas posições que se enfrentavam. Ele propugnava uma ruptura com o passado, que teria sido de “colaboração de classe”, “reformista”, “conciliador”, “cupulista” etc. Direcionando muitas de suas críticas à estrutura sindical, o “novo sindicalismo” propunha “romper” com ela, articulando-se por vias alternativas. Caminhando nessa direção, organizou-se a Central Única dos Trabalhadores (CUT), que, a um só tempo, era fruto e motor do “novo sindicalismo”. E ele, em algumas de suas vertentes, apesar do suposto “antipoliticismo” de origem, esteve também na base da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), chegando com ele ao poder nas eleições presidenciais de 2002, com um de seus filhos diletos, Luiz Inácio Lula da Silva.

Passados já pelo menos trinta anos de trajetória do que seria esse “novo sindicalismo”, ele enfrenta no presente um conjunto de dilemas, quando confrontado com suas práticas e seus discursos de fundação. Viveu um importante processo de redefinição, incorporando proposições bastante distintas daquelas defendidas nos primórdios. As alterações discursiva e prática indicam o processo de construção de outra identidade. A longevidade desse projeto sindical, demonstrativa de seu vigor, tem ensejado sempre um amplo balanço acerca de sua trajetória. Nessa trilha, buscaremos analisar aqui o caminho percorrido por ele desde seus momentos iniciais até os governos Lula.

A ditadura militar e as origens do “novo sindicalismo”

A estrutura sindical brasileira foi urdida, em seus lineamentos fundamentais, nos anos 1930, sob a égide de Getúlio Vargas, com a criação da legislação sindical que garantia o controle estatal dos sindicatos, tanto em termos financeiros quanto organizativos, políticos e ideológicos. Essa era uma engenharia poderosa, pois, ao mesmo tempo que se criava a legislação trabalhista, sua aplicação e efetividade vinculava-se à vida do sindicato oficial, o que foi um duro golpe dado no pequeno, mas ativo, sindicalismo autônomo em vigor antes de 1930, o qual procurou resistir no período seguinte.

Reorientados pelo arcabouço jurídico e político, os sindicatos foram limitados em suas orientações classistas, encontrando nova vitalidade na ação predominantemente assistencialista, ainda que contassem com o direito de estabelecer a negociação salarial das respectivas categorias. Articulando-se incorporação de classe, reconhecimento de direitos e repressão, garantia-se o controle pela via da legislação sindical e fomentava-se o mito varguista do “Pai dos Pobres”, por meio do que seriam concessões na legislação social do trabalho.1

Claro está que isso não impediu que, em diversas situações, capitaneado por grupos de esquerda, o sindicato oficial tenha sido posto a funcionar para além das orientações que lhe eram atribuídas, como demonstram vários movimentos de greve, organizações sindicais de base etc.2 Se a estrutura sindical serviu como redutora das ações de classe, seria um grave erro considerá-la o único elemento dificultoso. Seu objetivo não era outro senão desestruturar qualquer experimento de sindicalismo autônomo no Brasil. Travado em suas possibilidades de exercer com liberdade a representação dos interesses do trabalho, o “sindicalismo oficial” criou, desde 1931, a unicidade sindical; consolidou sua estrutura confederativa; ampliou crescentemente sua prática assistencialista, sendo que, no fim da década de 1930, em especial com a criação do imposto sindical e da Lei de Enquadramento Sindical, ampliou ainda mais o controle do Ministério do Trabalho sobre os sindicatos, o que se concretizou, em 1943, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).3

Apesar de todo o esforço no sentido de se controlarem os limites da estrutura sindical, o movimento dos trabalhadores logrou, através dos poros existentes, abrir caminhos alternativos. A década de 1950, por exemplo, foi um período de extrema importância nesse sentido. O movimento sindical, capitaneado pela aliança das militâncias do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), reformista, obteve grande avanço em termos de organização e mobilização, “por dentro” e “por fora” da estrutura, na “base” e na “cúpula”, o que resultou em decisiva participação dos trabalhadores no seio da sociedade e na vida política nacional. Pode-se mesmo dizer que se viveu um período rico das lutas.4

O sindicalismo, oscilando entre o controle estatal e a prática da resistência, encontrava suas principais bases de organização, ainda que não somente, nas empresas estatais, setores em que o PCB detinha grande presença e força. Esse movimento levou à criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), que atuou diretamente, com outras organizações populares, para a realização das “reformas de base” durante o governo de João Goulart.

Malgrado isso, após mais de uma década de intenso crescimento e atividade, toda a estrutura organizacional dos trabalhadores brasileiros, na base e na cúpula, foi duramente atingida pelo golpe de Estado de 1964.5 Os golpistas apresentavam como uma de suas justificativas exatamente impedir a implantação de uma “República sindicalista” no país.

O golpe de 1964 atuou, então, de modo dual: fortaleceu sobremaneira a tendência de controle estatal dos sindicatos e, por outro lado, desencadeou uma intensa repressão aos setores sindicais mais combativos, liderados pelos comunistas e também pelos trabalhistas reformistas.6 A repressão foi vital para desorganizar a classe operária e, paralelamente, para a reordenação capitalista no pós-1964, que sepultava as reformas de base, exigia a reorientação conservadora dos sindicatos, e o consequente rebaixamento dos salários, a fim de avançar no processo de acumulação monopolista e oligopolista que os capitais exigiam.

Desencadeando enorme repressão contra o sindicalismo, a ditadura decretou a ilegalidade dos organismos intersindicais e determinou a intervenção em mais de uma centena de entidades sindicais, sendo este, obviamente, o golpe mais duro desfechado nas entidades lideradas pela aliança comunista-trabalhista.7

Ao longo desse período, ampliaram-se algumas tendências na economia que iriam produzir vigorosa transformação na face do país como um todo, mas principalmente na classe operária. O incremento da introdução de plantas industriais modernas e sua concentração geográfica possibilitariam o surgimento do que se convencionou chamar de “nova classe operária”. Ainda que não exclusivamente, são esses os atores que iriam despontar mais tarde, assumindo papel central na crise da ditadura militar. Aumentou-se o padrão de acumulação e expandiu-se a indústria em gestação desde os anos 1950, ampliando assim, significativamente, a partir do golpe de 1964, o novo proletariado industrial no Brasil, concentrado, em particular, no cinturão industrial automotivo e metalúrgico do ABC paulista, onde estavam instaladas as grandes montadoras.8

Essa classe trabalhadora expandida, no final dos anos 1970, constituiu a principal base social do “novo sindicalismo” que então começava a florescer. Forjou-se um novo movimento sindical – cuja liderança de maior destaque era Luiz Inácio Lula da Silva –, que encontrava capilaridade em trabalhadores industriais, assalariados rurais, funcionários públicos e setores assalariados médios urbanos que se “proletarizavam”, entre tantos outros segmentos do mundo do trabalho então em profunda mudança. O setor de serviços e a agricultura também gestavam novos contingentes de assalariados que ampliavam a classe trabalhadora.

O “novo sindicalismo” e a década sindical

A retomada das lutas sociais era questão de tempo. E foi na segunda metade dos anos 1970 que aflorou um vasto movimento grevista, a partir da paralisação da Scania, em 1978, em São Bernardo do Campo (SP), que se generalizou nos anos seguintes, em particular na década de 1980, quando o Brasil chegou a ocupar o topo dos países com altas taxas de greve entre as nações capitalistas. Eram greves gerais por categoria, greves com ocupação de fábricas, greves por empresas, espalhando-se por todo o país e praticamente em todos os ramos produtivos, sendo que pudemos presenciar também a eclosão de quatro greves gerais no plano nacional, dos quais a mais expressiva foi a de março de 1989, após o completo fracasso do Plano Cruzado.9

Foi nesse quadro de significativo ascenso do sindicalismo que se organizaram as centrais sindicais. A CUT, a mais importante de todas, foi criada em 1983, depois de um longo período sem centrais sindicais, intervalo iniciado com a já mencionada decretação da ilegalidade do CGT em 1964. Inspirada no sindicalismo emergente desde meados de 1970, herdeira maior e direta das lutas sindicais que renasciam com vitalidade, a CUT resultara de um movimento multiforme que aglutinou: o “novo sindicalismo” nascido no interior da estrutura sindical daquele período, e que tinha no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo seu melhor modelo; o movimento das “oposições sindicais”, cujo maior exemplo foi o Movimento de Oposição Metalúrgica de São Paulo (Momsp), que pautava sua ação, predominantemente, fora da estrutura sindical oficial; e outras tendências, como o sindicalismo de origem rural, que também ampliava seu campo de ação.10

Essa articulação entre várias forças conferiu à CUT um nítido e predominante sentido contrário ao “sindicalismo oficial”, agora ainda mais subordinado, atrelado e verticalizado pelas medidas ditatoriais e repressivas do imediato pós-1964, que, como vimos, desestruturou a organização sindical dos comunistas e trabalhistas em disputa pela hegemonia nos sindicatos. Em seu manifesto de fundação, a CUT defendia a constituição de uma estrutura construída pela base, classista, autônoma, independente do Estado, além de assumir a defesa de uma sociedade sem exploração do trabalho pelo capital; ou seja, ela mirava, em seu horizonte, a possibilidade efetiva de contribuir para a construção de uma sociedade socialista.

Vale acrescentar que essa proposta não era puramente verbal, mas se alicerçava na prática sindical da maioria das correntes que se unificaram tendo em vista a principal aspiração da classe trabalhadora brasileira: construir sua própria central autônoma e desatrelada do Estado. Os avanços obtidos até então, por meio da organização nos locais de trabalho e da criação de várias comissões de fábrica e de grupos de base vinculados ao “novo sindicalismo” ou às chamadas “oposições sindicais”, foram também decisivos para a defesa concreta da autonomia e da liberdade sindicais em relação ao Estado. Assim, o combate aberto ao imposto sindical, à estrutura confederativa e de cúpula, ao controle do Ministério do Trabalho para a criação de sindicatos, enfim, o combate aos fortes traços corporativistas vigentes na estrutura sindical estava no centro da proposta e da prática da central emergente.

Em 1983, quando a CUT foi criada, vivíamos um contexto já mais favorável para o “novo sindicalismo”, uma vez que a luta contra a ditadura e pela redemocratização ampliou-se muito com as ações do movimento estudantil, a campanha pelas Diretas, além da já mencionada onda grevista crescente.

No universo sindical, dada a conjuntura brasileira, caminhava-se em sentido inverso às tendências regressivas de crise sindical vigente nos principais países capitalistas avançados. O “novo sindicalismo” expandia-se no contrafluxo da direção antissindical vigente naqueles países, os quais ingressavam na tragédia neoliberal e na reestruturação produtiva do capital.

Ao longo dos anos 1980, que podem ser considerados um período vitorioso para os movimentos sociais no Brasil, o “novo sindicalismo” esteve à frente das lutas sociais, junto com o PT e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outros; esteve presente na campanha por eleições presidenciais diretas; participou ativamente da organização das quatro greves gerais deflagradas; sua atuação foi decisiva na defesa dos interesses da classe trabalhadora durante a Assembleia Nacional Constituinte, até a promulgação da Constituição; participou das eleições para a Presidência da República; avançou na conquista da autonomia e da liberdade sindicais em suas ações concretas; combateu a estrutura confederativa, ao denunciar o imposto sindical; entre tantos outros importantes exemplos.11

Talvez o caso mais emblemático seja o resultado estampado na Constituição de 1988, que, apesar de limitada em vários aspectos, contemplou mudanças na organização sindical, como o fim do “estatuto-padrão”, o direito de greve, a livre organização sindical dos funcionários públicos, ainda que tenha preservado a “unicidade sindical” e o imposto sindical, entre outros elementos restritivos. Sem sombra de dúvida, os trabalhadores e suas organizações se mobilizaram no sentido de ver seus interesses dispostos na Constituição. Contudo, se em certos momentos operaram juntos, em outros se dividiram, tendo em vista suas variadas posições.

Ao longo dos anos 1980, portanto, presenciou-se o desenvolvimento e a institucionalização do “novo sindicalismo”, agora organizado na CUT e no PT. Sem dúvida, foram esses dois instrumentos que hegemonizaram a luta dos trabalhadores naquela década. Se o PT, porém, capitaneou a luta dos trabalhadores, não o fez sem problemas. Ao eleger deputados, prefeitos e governadores, e tendo de lidar com uma ampla gama de questões que o pressionaram para fora de sua seara, o PT e o “novo sindicalismo” (ao menos alguns de seus setores) várias vezes se enfrentaram.

Apesar de tudo, impulsionado por uma “década sindical” vitoriosa, em 1989, um digno representante do “novo sindicalismo” chegava às primeiras eleições diretas para presidente depois de 1964, como uma forte opção, propondo um projeto alternativo para conduzir a nação. Contudo, sua derrota no pleito já indicava que a década seguinte seria marcada por reveses para os trabalhadores.

Tanto o PT quanto a CUT começaram a alterar o que até então pareciam ser suas características definidoras. O PT se institucionalizava e, entre outras coisas, não só mudava sua estrutura interna, como ia assumindo alianças mais amplas, estratégia que sempre recusara. O “novo sindicalismo” também se institucionalizava, alterava sua estrutura e passava a questionar, por exemplo, a validade da greve como instrumento de luta imediata. Chegara a época do chamado “sindicalismo propositivo” e da “cooperação conflitiva”.12

Dadas as mudanças na conjuntura política nacional e internacional, os anos 1990 seriam marcados pela consolidação das “novas” práticas tanto do PT quanto da CUT. O refluxo do padrão conflitante, a inserção e a atenção cada vez maior do partido no cenário político-eleitoral seriam a tônica.

A década neoliberal

Como vimos, foi nos últimos anos da década de 1980, e especialmente na seguinte, que as primeiras manifestações regressivas começaram a ser sentidas em nosso país, em especial com a vitória de Fernando Collor de Mello, em 1989. Pouco a pouco, o “novo sindicalismo” seria confrontado por um contexto bastante adverso e começaria a esbarrar em dificuldades e desafios que contrariavam suas bandeiras originais. A forte pressão interna e externa exercida pelos capitais, visando ao deslanche da reestruturação produtiva; a financeirização ainda maior da economia; a livre circulação dos capitais; a privatização do setor produtivo estatal; a flexibilização da legislação trabalhista; em suma, a pressão para uma nova inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho que se desenvolvia sob a hegemonia neoliberal, todos esses fatores começaram a afetar mais intensamente o país.13

Se no longo período da ditadura, e mesmo da “Nova República”, o Brasil ainda não havia se inserido efetivamente no processo de reestruturação produtiva do capital comandado pelo neoliberalismo, durante os dois anos do governo Collor essa realidade mudou completamente. Dada a intensa corrupção que caracterizava o governo, um amplo movimento social e político, deflagrado em 1992, resultou no impeachment do presidente. Não deve passar sem registro uma mudança de rota na concepção política da CUT nesse período: sua direção aceitou, pela primeira vez, uma proposta de negociação com o governo Collor, o que não ocorreu sem grandes tensões e polêmicas no interior da Central.

Depois do impeachment e do curto período de governo do vice-presidente Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso foi eleito, em 1994. Com a reeleição em 1998, nosso parque produtivo foi profundamente alterado pelas privatizações amplas do setor produtivo estatal, alterando-se o tripé que estruturava a economia brasileira, com o aumento da presença dos capitais estrangeiros e nacionais.14 Embora o capital estatal ainda preservasse participação importante em alguns ramos, parcela destacada do setor produtivo estatal foi privatizada e passou à propriedade do capital transnacional.

Esse processo foi muito intenso e acabou gerando fortes consequências, em particular na CUT e no “novo sindicalismo”. Desregulamentação, flexibilização, privatização, desindustrialização tornaram-se dominantes; informalidade, terceirização, subemprego e desemprego aberto atingiram altos níveis, produzindo uma pletora de distintas modalidades de trabalho precarizado e informal.15

Deve-se lembrar também que, logo no início do governo de Fernando Henrique, em 1995, houve uma importante greve dos trabalhadores petroleiros, duramente reprimida pelo governo, que lançou mão de todos os recursos existentes para derrotar o movimento. Esse foi, de fato, o primeiro teste contra a política neoliberal de Fernando Henrique, que por isso o reprimiu de modo exemplar. A greve também marcou uma divisão no interior da CUT, que, já mais propensa e aberta às políticas de concertação e negociação, foi duramente criticada por falta de coesão e de maior apoio aos petroleiros.

A derrota dessa importante greve deslanchou ainda mais o processo de reestruturação produtiva sob condução neoliberal. A nova realidade arrefeceu e tornou mais moderado e defensivo o “novo sindicalismo”, que assumia uma feição mais propensa à negociação, num cenário sindical marcado pela existência de várias centrais sindicais e pela emergência de um sindicalismo mais sintonizado com a onda neoliberal. Esse era o caso da Força Sindical, criada em 1991, e que viria a disputar com a CUT os espaços de representação dos trabalhadores.16

Paralelamente ao advento dessa nova variante no sindicalismo brasileiro, a CUT – impulsionada especialmente por sua tendência hegemônica, a Articulação Sindical – aproximava-se fortemente dos experimentos baseados no sindicalismo social-democrata europeu. Tratava-se, então, ao contrário de sua proposta original, de implementar um sindicalismo que tendia mais ao contratualismo, a ser mais propositivo, institucionalmente forte e cada vez mais verticalizado, capaz de constituir uma alternativa de enfrentamento possível ao neoliberalismo.

A defesa da redução dos tributos da indústria automobilística, como forma de dinamizá-la, e com isso preservar empregos; a política de incentivo às “câmaras setoriais”, espaço policlassista de negociação; a constante participação em outros fóruns e espaços de negociação tripartites, tudo isso distanciava cada vez mais a CUT dos valores presentes em sua fundação.

Os anos de ouro do “novo sindicalismo” começavam a ser substituídos por práticas de concertação. As políticas de “convênio”, “apoios financeiros”, “parcerias” com a social-democracia sindical, em particular a europeia, levadas a cabo amplamente ao longo de duas décadas, também acabaram reorientando o “novo sindicalismo”, ajudando a arrefecer sua postura mais classista, ao valorizar mais enfaticamente os espaços institucionalizados, as máquinas sindicais hierarquizadas e burocratizadas.

Lula e o PT chegam ao poder: e a CUT, o que fazer?

Foi em sua quarta disputa eleitoral, em 2002, que Lula sagrou-se vitorioso nas eleições presidenciais. E o Brasil já não era mais o mesmo. Em 1989, quando ele foi candidato pela primeira vez, como vimos, atravessávamos um exuberante ciclo de lutas sociais, sindicais e operárias. Em 2002, o contexto era outro: a desertificação neoliberal fora poderosa, a reestruturação produtiva era avassaladora. O PT precisou publicar um documento emblemático, tranquilizador, para os mercados, especialmente o financeiro, conhecido como “Carta aos brasileiros”, em que evidenciava a aceitação dos elementos mais substantivos orientados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Para ter a chance efetiva de ganhar as eleições, Lula candidato deveria mostrar-se adaptado ao mundo financeiro globalizado, em conformidade com ele.

O impacto real e simbólico da candidatura operária deveria receber o aval do statu quo financeiro. Menos que ruptura, o país dominante exigia continuidade. A política econômica do novo governo não comportava dúvidas nem riscos. Além de preservar os benefícios dos capitais financeiros – garantir o superávit primário, preservar a estrutura fundiária concentrada, determinar a cobrança de impostos aos trabalhadores aposentados, manter as privatizações, sob a forma de parcerias público-privadas –, o governo Lula dava passos mais largos. Passou a incentivar fortemente a participação dos fundos privados de pensão, tanto na previdência privada quanto nas privatizações em curso.

Assim, pretendia-se integrar representantes de parcela dos trabalhadores à montagem do modelo capitalista em curso. O traço distintivo mais visível em relação ao governo de Fernando Henrique foi a ampliação do programa Fome Zero, depois metamorfoseado em Bolsa-Família, e que no governo anterior tinha a denominação de Bolsa-Escola e atingia um espectro bastante reduzido da população.

Se não há aqui espaço para aprofundar a análise dos movimentos e contramovimentos da era Lula, cabe mencionar pelo menos dois pontos centrais, diretamente vinculados à relação que se estabeleceu entre a cúpula sindical e o Estado: a proposta de “reforma trabalhista e sindical” e a ampliação do direito de recebimento do imposto sindical pelas centrais.

O campo sindical havia se ampliado e se tornado sobremaneira complexo ao longo dos governos de Fernando Henrique e do primeiro governo Lula. Foi entre os anos de 2004 e 2005 que ganhou força a proposta de reforma sindical elaborada pelo órgão tripartite denominado Fórum Nacional do Trabalho (FNT). Se essa proposta foi obstada tanto pelas denúncias do “Mensalão”, que atingiram duramente o governo Lula, quanto pela forte oposição que encontrou em diversos setores sindicais, ela indicava alguns pontos que contraditavam diretamente os princípios norteadores da criação da CUT e a prática do “novo sindicalismo”. Seria difícil imaginar que, entre outros, o reforço da verticalização presente na proposta pudesse contar com a adesão da CUT no período em que ela foi criada, quando organização de base, liberdade e autonomia sindicais eram princípios vitais e inegociáveis.

A nova política de controle de setores importantes do “novo sindicalismo” era vital para o governo Lula e recuperava, em certo sentido, uma política de mão dupla: a cúpula sindical ascenderia a cargos na alta burocracia estatal; as verbas seriam ampliadas por meio do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e outros fundos estatais, garantindo, desse modo, o apoio das principais centrais sindicais ao governo, num cenário claramente marcado pelo pluralismo das centrais.

Foi assim que, posteriormente, em 2008, pouco antes de terminar seu segundo mandato, Lula, ao mesmo tempo que reconhecia as centrais sindicais, permitiu que o imposto sindical também lhes beneficiasse. Além dos recursos do FAT, dos inúmeros apoios financeiros dos ministérios, também esse imposto passava a ser usufruído pelas centrais. A velha bandeira da CUT e de tantos sindicatos – a luta pela cotização autônoma de seus associados – passava a fazer mais parte da história que do presente.

Teria, então, envelhecido o “novo sindicalismo”, aquele vigoroso movimento de meados dos anos 1970-1980? Estaria sendo envolvido pelas orientações e práticas que diagnosticava negativamente, com tanta ênfase, em sua origem? O “sindicalismo oficial”, ampliado e consentâneo aos novos tempos, com sua prática “negocial”, estaria reabsorvendo e envelhecendo (precocemente) o que havia originado o “novo sindicalismo”? Ele estaria, então, sofrendo um processo de fagocitose?

Uma breve nota final

As perspectivas e os grupos políticos que se associaram no “novo sindicalismo”, em sua gestação, tinham forte acento na ideia de ruptura. Dessa forma, esse sindicalismo conferiu grande ênfase a seu caráter de novidade, o que acabou impedindo que desse a devida atenção às dificuldades historicamente experimentadas pelo movimento dos trabalhadores no Brasil. Por isso, talvez, ele não tenha podido sequer desviar-se dos obstáculos, reproduzindo, ao longo do tempo, práticas que tanto dizia combater.

Ao estabelecer um corte total com a trajetória do movimento dos trabalhadores, o “novo sindicalismo” tomou-se como ponto zero dessa história. Assim, negadas as experiências passadas, alguns problemas já tradicionais acabaram enfrentados como se fossem novidade, percebidos como passíveis de resolução supostamente nova, simplesmente a partir da vontade política dos atores sociais. A realidade, contudo, mostrou-se muito mais complexa e relutante do que tal enquadramento poderia supor.

Pode-se perceber que o “novo sindicalismo” tem traços de novidade para o contexto, mas, ao mesmo tempo, exibe fortes marcas de continuidade. No processo de construção de sua identidade, o “novo sindicalismo” reforçara suas distinções relativas a práticas pretéritas, atribuindo a elas qualificações bastante negativas. Em termos discursivos, houve uma radicalização que em muito ofuscou também inúmeros dos dilemas já existentes na própria origem desse sindicalismo.

Não se pode deixar de indicar que, nos anos 1980, apesar das muitas e importantes conquistas em diversos aspectos, o sindicalismo não conseguiu superar alguns de seus tradicionais limites, mantendo, por exemplo, a dificuldade de se enraizar no interior das empresas. Dessa forma, apesar de muito valorizadas no discurso, as organizações por local de trabalho acabaram se tornando uma experiência muito esparsa e pontual. Além disso, se as mobilizações foram importantes para atenuar os impactos degenerativos da inflação na vida dos trabalhadores, elas não conseguiram a necessária generalização das conquistas, o que, dada a heterogeneidade e a disparidade organizacional e de poder de barganha entre as categorias, de certa forma restringiu-as às mais fortes e organizadas.

O “novo sindicalismo” trouxe em seus marcos, tanto nas limitações quanto nas possibilidades, uma retomada de práticas já experimentadas na história do sindicalismo por setores que, ao seu tempo, assumiriam posições progressistas no avanço da luta dos trabalhadores. Ao se identificar com o polo mais dinâmico da classe, em seu movimento, ele deu uma grande contribuição no sentido de combater as políticas conservadoras e restritivas para o movimento sindical, ampliando a participação dos trabalhadores em suas entidades, na luta por suas reivindicações, bem como uma intervenção no quadro político mais geral. A mudança de posição, sentida ao longo do tempo, pode ser atribuída tanto a fatores externos (conjuntura econômica e política) quanto internos (orientação política e luta pela hegemonia).

A classe em movimento teve no “novo sindicalismo” um importante canal, servindo-lhe como elemento vocalizador e fomentador de suas demandas, como outros já haviam sido antes. Da mesma maneira, o “novo sindicalismo” teve de enfrentar, e ainda enfrenta, as dificuldades que historicamente suscitam desafios para a experiência política e organizativa da classe trabalhadora brasileira. Talvez a ênfase exagerada em sua novidade tenha lhe impedido de colocar essas dificuldades em seu devido lugar.