11. Por que lembrar? A memória coletiva sobre o governo Médici e a ditadura em Bagé1
JANAÍNA MARTINS CORDEIRO
Redemocratização e ostracismo: a construção do silêncio coletivo sobre Médici e a ditadura
Em 1982 fazia oito anos que o ex-presidente Emílio Garrastazu Médici havia deixado o cargo para o qual fora indicado em 1970. Desde então, ele passou a viver em completo recolhimento e quase absoluto anonimato. Passava o tempo vendo TV e recebendo poucos, raros amigos que ainda o visitavam vez ou outra.
Médici não gostava de falar. De temperamento taciturno e retraído, nunca fora conhecido como grande orador, mas as pessoas próximas sempre o definiram como “bom ouvinte”. Era, na feliz expressão utilizada por Elio Gaspari para definir sua carreira militar e sua participação nas agitações golpistas de 1964, “o silêncio da orquestra”.2 A mesma expressão pode ser utilizada para definir o comportamento adotado pelo general no decorrer do longo processo de abertura política no Brasil: enquanto setores mais radicais das Forças Armadas vociferavam contra o projeto iniciado pelo presidente Ernesto Geisel, enquanto, por outro lado, aqueles segmentos ligados à distensão tentavam se situar como podiam no jogo político, Médici seguia como “o silêncio da orquestra”.
No entanto, o “silêncio” ao qual Médici se recolheu após o fim do mandato não está ligado apenas às características de sua personalidade. Para além desse aspecto, o general se dizia “injustiçado”.3 Em primeiro lugar, pelo próprio regime, que, como se ressentiam o ex-presidente e sua família, relegara-o ao ostracismo. Para ele, seus sucessores teriam assumido os méritos pela abertura e lhe reservado o peso e a responsabilidade de uma “herança maldita”. Diante disso, calava-se: “Não, eu não posso dizer nada. Tenho que ficar calado. Eu sou o arbítrio, eu sou a ditadura. A ditadura não fala.”4
Simultaneamente, ele sentia-se injustiçado pela sociedade que não mais reconhecia “sua obra”, mas representava-o cada vez mais como ditador, o carrasco de terríveis anos de chumbo. O general percebia a lenta transformação pela qual passava a sociedade e respondia, mais uma vez, com o silêncio: “Gostaria de desfazer alguns equívocos, colocar tudo em seu devido lugar, responder a algumas críticas, separar o gado. Mas ainda prefiro a lição do velho [Eurico Gaspar] Dutra. Aqui é minha rua do Redentor, a aguardar o julgamento da História. Só este me interessa.”5
Em silêncio, Médici notava que, se seu governo era já há alguns anos qualificado como o mais duro e o mais popular de toda a ditadura, com o passar do tempo a memória dos “anos de chumbo” ia prevalecendo sobre a dos “anos de ouro”,6 e cada vez menos as pessoas se lembravam do “popular” presidente Médici. A rigor, a grande maioria da sociedade não queria lembrar. Assim como o ex-presidente, mas por razões diversas, optou-se pelo silêncio sobre o passado. Não o “esquecimento” puro e simples, mas o “silêncio”,7 a escolha coletiva por não mais falar dos “anos dourados” que o governo Médici representou para parcelas expressivas da sociedade.
Assim, à medida que o processo de redemocratização se consolidava, o “milagre brasileiro” – que outrora mobilizara os espíritos e difundira uma otimista sensação de “construção do Brasil potência” – passava a ser visto como mero instrumento de manipulação de uma propaganda todo-poderosa e mal-intencionada. As grandes obras, como a Transamazônica e a ponte Rio-Niterói, apresentadas como “vitrines de um Brasil moderno”, eram chamadas agora, de modo irônico e anedótico, de “faraônicas”, em referência, poderia ser dito, à sua falsa magnificência. Como se tais obras lembrassem à nação, no contexto de crise econômica da década de 1980, não mais sua pretensa grandeza, mas os dramas e traumas do “eterno país do futuro” e as promessas da potência que jamais se realizava.
Enfim, quando, por trás dos tons dourados que o milagre prometia, começaram a aparecer as sombrias tonalidades e o peso do chumbo, a euforia desenvolvimentista dos primeiros anos da década de 1970 tornou-se um incômodo, passou a constranger a sociedade. A imagem de Médici estava – do chumbo da repressão às falsas promessas do milagre – indissociavelmente ligada a tudo sobre o que a memória coletiva nacional queria então silenciar. Dessa forma, à medida que avançava o processo de transição democrática e se consolidava a “memória da sociedade resistente”,8 o lugar reservado a Médici pela memória coletiva oscilava entre o de grande carrasco e o silêncio.
As demandas do tempo presente e o lento caminhar do país em direção à reconstrução democrática exigiam uma sorte de reorganização da memória e do silêncio coletivos em relação ao passado. Portanto, se a nova ordem democrática, quando chegou, encontrou Médici em silêncio, coube a ela aprofundar e consolidar essa condição, da qual o ex-presidente somente seria retirado para ocupar o lugar de “grande carrasco da velha ordem”.
Assim, angustiado, amargando a solidão à qual estão destinados os derrotados – embora, paradoxalmente, tivesse vencido a batalha contra os “inimigos do regime”9 –, Médici recolheu-se a um silêncio quase sepulcral. Não gostava de jornalistas, abominava a ideia de conceder entrevistas. Causava-lhe ainda mais horror a possibilidade de opinar ou participar dos processos políticos então em curso, embora os seguisse minuciosamente pela TV. Naquele ano de 1982, por exemplo, acompanhava o processo eleitoral e, entre apreensivo e indignado, surpreendia-se com os rumos que a abertura tomava e as transformações pelas quais passava a sociedade brasileira:
Veja aqui o Rio de Janeiro. Está aí na televisão o Vladimir Palmeira dizendo que foi banido, exilado etc. Eu o mandei embora do Brasil porque ele foi trocado por um embaixador que seus amigos sequestraram. Agora ele é candidato e fica aí na televisão dizendo essas coisas, cheio de orgulho. E o Brizola? Também está aí. … Os cassados viraram heróis, mas isso é um absurdo, não pode ser.10
Diante de um quadro no qual, como ele próprio observava, consolidava-se uma posição de hostilidade à ditadura e aos militares, Médici preferia o recolhimento. Recusava-se mesmo a comparecer a determinadas – e cada vez mais raras – homenagens. Julgava que sua presença poderia ser impertinente, polêmica, ensejando acusações que correntemente afloravam, a respeito de torturas, perseguições e assassinatos políticos sob seu mandato.
Foi nesse contexto, quando as batalhas de memória travavam-se com particular intensidade, que veio à tona uma notícia inesperada, à qual, todavia, a imprensa nacional deu pouca ou nenhuma atenção. Naquele mesmo ano de 1982, quando o presidente, estarrecido, via “os cassados virarem heróis” e a sociedade esforçar-se para se dissociar das incômodas lembranças da ditadura, chegou de Bagé, sua cidade natal, no Rio Grande do Sul, a notícia de que lá seria criada a Fundação Emílio Garrastazu Médici.
O espaço, que começaria a funcionar a partir de março de 1983, deveria ser um centro de estudos sobre o governo do “ilustre bajeense”, responsabilizando-se pela guarda de textos e documentos produzidos no e sobre o período em que ele exerceu a Presidência, os quais, até aquele momento, Médici guardava em seu acervo pessoal, no apartamento da rua Júlio de Castilhos, em Copacabana. A Fundação abrigaria ainda um pequeno museu constituído de objetos e documentos pessoais do ex-presidente.11
Poderia parecer estranho o relativo empenho por parte do ex-presidente em constituir uma fundação daquele tipo, cuja finalidade era a guarda e preservação de documentos e que, em última instância, pretendia ser uma espécie de repositório da memória de seu governo. Justo ele, que não gostava de falar sobre o passado, que muito depressa optara pelo silêncio. Não obstante, a Fundação foi criada e passou a ocupar um dos prédios mais belos e imponentes da cidade.12 Médici, por sua vez, contrariando as regras de seu autoexílio, em raríssima aparição pública, compareceu à inauguração e ouviu atento as homenagens de seus conterrâneos.13
A partir de 1983, a Prefeitura de Bagé disponibilizou professores da rede municipal de ensino, em regime de urgência, para que a Fundação começasse a funcionar, assinou um convênio com a Universidade da Região da Campanha (Urcamp), localizada em Bagé, e criou uma Comenda Emílio Médici. Os objetivos eram ousados. Mais que a guarda e preservação do acervo e da memória do governo Médici, a instituição pretendia constituir um centro de estudos sociológicos e econômicos sobre a cidade e a região,14 que, aliás, tinham sido bastante beneficiadas por obras de diversos tipos durante os quatro anos em que o general ocupou a Presidência.
Bagé entre os anos de ouro e os anos de chumbo
Cabe aqui se questionar a respeito de Bagé: afinal, que lugar era aquele onde se empreendia um esforço no sentido de preservar a memória do “presidente do arbítrio” justamente no momento em que a maior parte da sociedade se propunha a deixar o passado para trás e virar a página da ditadura? Que tipo de relações com o passado se tecia naquela cidade no exato momento em que a sociedade brasileira, em sua maior parte, elegia como memória oficial a resistência contra a ditadura?
No início da década de 1980, Bagé, a Rainha da Fronteira, era uma cidade de aproximadamente 70 mil habitantes. Distante apenas 60 quilômetros da fronteira com o Uruguai, foi declarada área de segurança nacional pela Lei n.5.449, de 4 de junho de 1968. Desde 1969, portanto, e até 1985, as eleições municipais ali e nas demais áreas abrangidas por essa lei foram suspensas, e os prefeitos passaram a ser nomeados pelos governadores dos respectivos estados, “mediante prévia aprovação do presidente da República”.15
A especificidade da situação de área de segurança nacional em um estado de fronteira e, portanto, de forte presença militar, mas também onde a tradição trabalhista ainda era expressiva, precisa ser levada em consideração se quisermos compreender as transformações políticas e sociais pelas quais a cidade passou nas últimas décadas.
Em 1982, ano em que foi criada a Fundação Emílio Médici, estava em curso aquele que seria o último mandato municipal indireto desde a transformação da cidade em área de segurança nacional. O então prefeito, Carlos Azambuja, era antigo político da Aliança Renovadora Nacional (Arena) e filiara-se ao Partido Democrático Social (PDS) – sucessor da Arena – tão logo a reforma partidária de 1980 extinguira o bipartidarismo.16 Hoje, aos olhos de muitos, a criação daquela entidade parece um último suspiro da “Bagé área de segurança nacional”, algo que partiu muito mais do prefeito, antigo aliado de Médici, do que um reflexo dos anseios e expectativas da população.
Todavia, é importante destacar que, durante anos – particularmente enquanto Médici ocupou a Presidência da República –, os laços que Bagé procurou tecer com seu “filho ilustre” foram de proximidade e familiaridade. De modo geral, prevaleceu a sensação de “orgulho pelo presidente bajeense”. Por exemplo, ainda em 1969, quando o general tomava posse no cargo, o jornal gaúcho Correio do Povo noticiava:
Eram exatamente 8h, quando o espoucar de mais de quatro toneladas de foguetes, o troar dos canhões da 3ª Brigada de Cavalaria Mecanizada, ao som do hino nacional … marcaram o início das festividades com que o povo desta cidade (de uma maneira tão vibrante que constituiu episódio jamais registrado aqui) saudava a posse de seu ilustre filho, que dentro de pouco mais de duas horas assumiria a Presidência da República.
Às 9h, mais de 20 mil pessoas se concentravam ao longo da avenida Sete de Setembro para assistir [ao], e de certa forma participar do desfile de todas as entidades representativas da cidade, desde autoridades, sociedades religiosas e esportivas até clubes carnavalescos.17
Por outro lado, o advogado João Abero, à época militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), relembra com certa tristeza na voz as visitas presidenciais, o entusiasmo da população de Bagé e as decepções da oposição:
Quando ele vinha, nós sentíamos uma amargura muito grande. … Nunca se cogitou um protesto durante as visitas presidenciais, porque eles apelaram para uma condição de conterraneidade, e o país já vivia uma circunstância de desenvolvimentismo que tornaram as coisas difíceis para nós.18
Assim, orgulhosa do “conterrâneo ilustre” e partilhando a euforia desenvolvimentista que tomava conta do país, a cidade foi imensamente beneficiada por uma série de obras. Dentre elas, podem-se destacar a BR-293 – ligando Bagé a Pelotas – e a construção de um ginásio coberto, cujo nome homenageava seu patrono, Emílio Médici, conhecido ainda hoje como Militão. Aliás, eis aí um interessante aspecto das relações que parcelas expressivas da cidade de Bagé procuraram construir com o célebre conterrâneo. Ali ele não era o general ou presidente Emílio Médici, ali ele era Milito. Os jornais locais e os cartazes nas ruas por ocasião de suas visitas à cidade faziam questão de chamá-lo pelo apelido familiar de infância, intimidade da qual poucos desfrutavam, evidenciando assim a profundidade do laço que unia aquela terra àquele homem.
Em sua última visita como presidente, quando foi inaugurar uma série de obras, em março de 1974, um enorme cartaz fixado em uma das principais avenidas de Bagé dizia: “O presidente foi sempre Milito. O Milito será sempre presidente.”19 Dois anos após deixar a Presidência, Médici foi homenageado em sua cidade natal, na inauguração de novas obras do Ginásio Militão. Na época, o periódico local Correio do Sul reproduziu na íntegra o discurso de agradecimento lido por uma jovem estudante, intitulado “Obrigado, ‘Tio Milito’”. Eis um trecho:
A juventude sabe expressar a sua gratidão àquelas pessoas que são amigas em todas as ocasiões e que acreditam nos jovens. Por isso, Tio Milito, em nome da juventude de nossa Terra, dedico esta mensagem ao senhor e à Tia Scylla, que são nossos grandes amigos e incentivadores.20
Bagé viveu de forma particularmente eufórica os primeiros anos da década de 1970. O entusiasmo desenvolvimentista que tomava conta do país somava-se, na cidade, ao orgulho de ser “a terra do presidente Médici”, amada e querida por um homem que, segundo consideravam, estava “mudando o país”. Em discurso proferido em homenagem ao general, ainda antes de se tornar presidente, o historiador local Tarcísio Taborda expressava bem a forma pela qual as relações entre Bagé e seu conterrâneo ilustre foram abordadas ao longo de todo o mandato presidencial:
Quando um filho sai pelo mundo a galgar posição, a lhe dar glória e honra, toda a gente [na cidade] fica a admirar, a observar, a ver, para, afinal, estourar de vibração. Vibração que é manifesto sentimento de vaidade, de orgulho, por sentir que um pedaço seu, que uma parcela da terra, cresceu como ela toda e não desmereceu o berço de seu nascimento. É a vaidade e o orgulho maternal. Assim é, também com V. Ex.ª: Bagé está cheia daquele justo orgulho maternal, por ver que seu filho, de modesta origem, a quem viu cadete, é hoje general de Exército com missão de enorme importância para a segurança da nação.21
Assim, em razão dos fortes laços construídos no passado, em Bagé, parece que no primeiro momento o ex-presidente não foi abandonado. Ao longo dos anos que se seguiram ao fim de seu mandato, as homenagens prosseguiram: em 1974, pouco antes de deixar a Presidência, Médici esteve na cidade para a inauguração do Militão, da Escola Presidente Médici – financiada pela Fundação Bradesco – e de outras obras locais. Em 1976, na já mencionada homenagem organizada pela cidade, um dos articulistas do Correio do Sul anunciava: “Pelo tempo afora, Médici será o presidente perene dos bajeenses”;22 em 1982, inaugurou-se uma agência do Banco do Estado que levava seu nome;23 finalmente, em 1983 começou a funcionar a Fundação Emílio Garrastazu Médici.
Não obstante, a partir de meados da década de 1980, o quadro se alteraria profundamente. Bagé vivia, naquele momento, com respeito ao passado então recente, uma relação bastante complexa, que tenderia a se acentuar à medida que avançava o processo de transição democrática. As batalhas de memória exacerbavam-se de maneira intensa, e ali o quadro se agitava de forma ainda mais expressiva em virtude do retorno das eleições para o Executivo municipal em outubro de 1985. Assim, com as transformações que o lento retorno da democracia impunha à cidade, os bajeenses puderam, como no restante do país, “reincorporar sua margem esquerda, reconfortando-se na ideia de que suas opções pela democracia tinham fundas e autênticas raízes históricas”.24
A partir daquele momento, Bagé tenderia a acompanhar os processos nacionais de reconstrução do passado. Sobre o período Médici, da mesma forma, a memória dos anos de chumbo prevalecia sobre a dos anos de ouro. Veja-se, por exemplo, artigo publicado no jornal local O Minuano, por ocasião das rememorações dos 44 anos do golpe, em 31 de março de 2008. Intitulado “Bagé sob os anos de chumbo”, explicava:
No dia 31 de março de 1964 os bajeenses amanheceram sob o véu cinzento da ditadura militar. … Bajeenses foram perseguidos e presos, e o último prefeito eleito democraticamente antes da revolução, Luiz Maria Ferraz, foi cassado, assim como seu vice, Frederico Petrucci. … Nomes conhecidos sofreram a crueza do arbítrio dos anos de chumbo, entre os quais se destacam Frederico Petrucci, Ramon Wayne, Wilson dos Santos, Élida Costa, Ilka Pegas, Djalma Dias da Silva, João Bosco Abero e Walter Almeida, que era vereador e foi cassado, além do médico Paulo Passos, cujas convicções ideológicas resultaram em sérias consequências.25
É importante notar como em uma cidade onde os efeitos do milagre e a euforia desenvolvimentista por ele desencadeada foram sentidos de forma tão intensa, e em que a popularidade de Médici beirava o incontestável, a “memória da resistência” à ditadura tenha se consolidado tão fortemente. Sobretudo porque se trata de região na qual a presença militar é significativa. Aí se cultiva ainda uma memória positiva sobre o período e certa nostalgia do passado. Mas, a princípio, o movimento predominante na cidade é aderir à memória coletiva nacional, reforçando a participação de seus cidadãos na resistência à ditadura e silenciando sobre o fato de que, na década de 1970, Bagé viveu muito mais sob os anos de ouro que propriamente sob os anos de chumbo.
Sobre as batalhas de memória travadas na cidade, o professor e ex-secretário municipal de Educação e Cultura de Bagé, entre 1982 e 1985, Cláudio Lemieszek explica:
Aqui, se você pegar as pessoas mais velhas, você vai ver uma memória muito mais positiva. A glorificação fica restrita aos mais velhos. O Médici aqui foi totalmente abafado por esses governos de esquerda. As novas gerações vão falar da história lida, e não vivida. O Getúlio também esteve aqui, andou pelas ruas, assim como o Médici. Mas você não vai ver aqui uma tentativa de apagar a memória do Getúlio, o que não é o caso do Médici.26
Ao contrário, os bajeenses não apenas não desejavam “apagar a memória de Getúlio”, como, a rigor, a ascensão do Partido Democrático Trabalhista (PDT) à prefeitura, a partir de 1986, buscou retomar a longa e forte tradição trabalhista que havia na cidade e na região antes de 1964, e que fora massacrada pelo golpe. Isso ajuda a compreender as vias pelas quais os bajeenses, não sem conflitos, ao reconstruir suas relações com o passado recente, vêm silenciando sobre o “orgulho maternal” que sentiram pelo seu filho ilustre e buscando enfatizar a “memória da resistência” e dos sofrimentos impingidos a segmentos de sua população – sobretudo àqueles ligados à militância trabalhista e comunista – pela repressão. É a retomada dessas tradições na cidade que, de acordo com o professor Cláudio Lemieszek, ajuda a explicar as metamorfoses da memória local:
Bagé não difere da memória nacional. A expressividade do Médici aqui desapareceu porque, pouco tempo depois da democratização, as eleições foram vencidas pela oposição. As eleições de 1985 já consagraram o PDT, e só depois, por dois mandatos, nos anos 1990, os partidos de esquerda foram interrompidos, para serem retomados depois pelo PT, que vai completar dezesseis anos de mandato. Os governos de esquerda procuraram apagar qualquer memória, qualquer vestígio que pudesse ter [das relações da cidade com Médici].27
Assim, um dos primeiros atos do PDT na Prefeitura de Bagé foi redirecionar os professores designados para trabalhar na Fundação Emílio Garrastazu Médici de volta para as escolas municipais. A Fundação foi logo esvaziada, e o prédio transformado em Casa de Cultura, com o nome de Pedro Wayne, em homenagem a um escritor e jornalista local falecido em 1951.28
Atualmente, são raros os bajeenses que se recordam que a atual Casa de Cultura já abrigou um centro de estudos sobre o governo do presidente Médici. Cláudio Lemieszek, que chegou a trabalhar na Fundação, explica também o peso das disputas políticas locais para selar o destino da instituição: “E na comunidade, quando acabou, ninguém ficou decepcionado. Havia uma rixa muito grande entre o Azambuja [antigo prefeito] e o [Luis Alberto] Vargas [prefeito do PDT, a partir de 1986]. Ficou sendo uma ofensa muito mais ao Azambuja do que à memória do Médici.”29
João Abero, por sua vez, afirmava, sobre a Fundação Emílio Garrastazu Médici: “Essa Fundação, eu já tinha até esquecido, se a senhorita não tivesse me lembrado. … Essa história de Médici tem um ou outro daquela época que lembra, mas, de resto…”30 Da mesma forma que ocorreu com a Fundação, outros “lugares de memória” que evocavam a relação “maternal” da cidade com seu “filho ilustre” foram relegados ao abandono ou ao silêncio. Por exemplo, apesar da placa de informação turística indicando o local do casarão da família Garrastazu Médici, o prédio, atualmente ocupado pela loja popular VestSul, teve a fachada descaracterizada, bem como o interior. No colégio que leva seu nome, subsidiado pela Fundação Bradesco, a diretora foi enfática ao afirmar que a escola leva seu nome “porque foi inaugurada na época dele e porque ele era bajeense”, mas hoje a identidade do colégio é relacionada muito mais à Fundação Bradesco do que ao homenageado.31
Por fim, um dos casos mais polêmicos e que mobilizou a opinião pública local diz respeito à obra mais popular que Médici deixou: o Ginásio Militão. Durante os dois primeiros mandatos do PT, o ginásio passou por grandes obras. No entanto, antes que as reformas começassem, a prefeitura cogitou a hipótese de retirar da entrada do ginásio uma grande placa, que datava da inauguração, em 1974, e na qual se lia “Obrigado, presidente Médici”. As pretensões do prefeito de retirar a placa dividiram a sociedade: houve os que se indignassem com a proposta, afinal, Médici fora o grande incentivador do desenvolvimento de Bagé; houve os que, por indiferença, consideraram a proposta dispensável, uma vez que a placa “já estava plenamente incorporada àquele ambiente”;32 mas houve também quem concordasse com a iniciativa.
Nesse caso, no entanto, é curioso notar que, ainda assim, aparentemente não houve questionamento a respeito da mudança do nome do ginásio, este, sim – Militão –, definitivamente incorporado à identidade local. Por fim, houve aqueles que reagiram, como João Abero, embora certamente se tratasse de uma minoria:
Mas não tem que tirar nada. … Essas coisas existem e têm que existir para essas pessoas serem odiadas. Eu sou contra tirar. Deixa ali o “Obrigado, presidente Médici” para servir de escárnio. Para que quem pergunte saiba que aquele homem foi um ditador sanguinário.33
Contudo, é interessante observar que, entre as pessoas com as quais pude conversar, ninguém – embora todos se lembrassem bem dos debates – soube dizer se a placa tinha sido afinal retirada ou não. Isso de certa forma é indicativo da indiferença com a qual os assuntos relacionados ao passado recente são tratados na cidade.
O caso do Ginásio Militão e o da cidade de Bagé, de maneira geral, situa o pesquisador diante daquilo que Alessandro Portelli chamou de “memória dividida” em seu sentido mais complexo. O autor explica que, em geral, entre uma aparente dualidade de memória “oficial e ideológica” e memória “comunitária pura e espontânea”, “existe uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas”.34
No caso da memória construída sobre os anos Médici em Bagé, mais que observar a dualidade entre as antigas e as novas gerações, ou entre antigos partidários da Arena e os novos partidos de esquerda surgidos com a redemocratização, importa observar a multiplicidade de memórias, “internamente divididas”, que se constroem sobre o passado recente: os inúmeros silêncios, as indiferenças e, sobretudo, a necessidade de continuar convivendo com pessoas que têm ainda importante papel na cidade, e que no passado conviveram bem com a ditadura e se orgulharam do “ditador bajeense”.
Assim, entre aqueles que, como João Abero, manifestam franco repúdio à ditadura e os nostálgicos da antiga ordem predomina, como comportamento-padrão, certo cuidado na expressão das opiniões sobre o período, ou mesmo certo constrangimento público em falar a respeito do assunto. Festeja-se a “resistência bajeense” – muito bem localizada socialmente –, mas não se pode deixar de levar em conta, naquele microcosmo, a importância de conviver bem com os grupos militares locais, antigos políticos civis ligados à ditadura, e mesmo com os remanescentes da família Médici, ainda que sejam poucos.
No entanto, talvez o aspecto mais importante a pautar os cuidados e os silêncios em relação ao passado recente seja a dificuldade de lidar com aqueles – possivelmente a maior parte da sociedade – que circularam entre o que Pierre Laborie denominou “zonas cinzentas”, ou comportamento attentiste.35 Ou seja, aqueles que, diante de uma situação que se tornou difícil, procuraram se adaptar a ela e conviver do modo considerado possível com a realidade de seu tempo. Ou, de outra forma, como sugere o emprego do verbo francês attendre, preferiram “esperar” os desdobramentos daquela situação antes de tomar uma posição. É importante destacar, contudo, que o significado desse termo não representa, de maneira alguma, “oportunismo”. Ao contrário, trata-se de um modo de se posicionar diante de determinada situação cujos desdobramentos pareciam imprevisíveis.
São dessas “memórias divididas” que nos fala Portelli. Ou seja, mais que a oposição pura e simples entre aqueles que cultivam uma memória positiva sobre o passado e aqueles que o querem esquecer, é preciso considerar, por exemplo, que entre os dois extremos há mediações importantes, responsáveis inclusive pela manutenção do equilíbrio da sociedade.
Por que lembrar?
As relações de Bagé com os anos de chumbo da ditadura civil-militar são extremamente complexas. Se, por um lado, a cidade mantém algumas das homenagens prestadas a seu conterrâneo famoso, vestígios de um tempo em que se festejaram os anos de ouro do milagre, em geral predominam a rememoração da resistência local e os silêncios sobre o forte apoio e admiração que Médici foi capaz de suscitar. Sob esse aspecto, Bagé é a perfeita síntese da nação, de seus complexos, limites e dificuldades para lidar com o passado recente.
Assim, se naquele microcosmo não era raro observar entre militares e pessoas mais velhas a manutenção de uma memória positiva sobre o passado recente, também era comum observar que tal memória se torna, com o passar dos anos, cada vez mais limitada a setores bastante específicos da cidade.
De todo modo, chamou minha atenção o fato de que, na cidade, ruas e instituições continuam exibindo o nome do ditador ou de sua família. Por isso, em conversa informal com uma moradora, insisti na pergunta: “Mas as pessoas aqui não falam mais sobre o governo Médici? Não se lembram mais do presidente?” Entre surpresa e indignação, minha interlocutora respondeu: “Por que lembrar? Não tem por que se lembrar do Médici. Ele não é uma figura para ser lembrada.”
Em sua indignação, a entrevistada formula a questão fundamental para o historiador que lida com a memória e o fascínio exercido por líderes autoritários: afinal, por que lembrar?
A pergunta, de certa forma, está na base da memória e dos silêncios constituídos sobre as relações da sociedade com a ditadura e seus ditadores. Afinal, é essa pergunta que define o que deve ser lembrado e o que deve ser silenciado pela memória coletiva. Por que se lembrar dos anos de ouro da ditadura? Como lidar com sua lembrança? Como compreender, passados os anos, que a sociedade tenha convivido, por vezes sem conflitos, com um regime que exilava, prendia, torturava e matava seus inimigos? Por que falar de assuntos tão incômodos? Por que não virar a página? Por que tocar novamente no nome de um ditador? Por que lembrar que um dia ele fora não apenas temido, mas também, e simultaneamente, amado?
Sob esse aspecto, a posição do historiador que lida com as relações entre sociedade e regimes autoritários, bem como com as disputas de memória que os envolvem, é extremamente complicada. Pierre Laborie explica, falando sobre a história e o historiador francês da resistência ao nazismo, que ele possui um estatuto bastante específico: o de um “historiador sob vigilância”, na medida em que precisa lidar ao mesmo tempo com seus testemunhos – e o controle que pretendem exercer sobre uma história que acreditam lhes pertencer – e com o “julgamento crítico tradicional da comunidade científica”.36
De certa forma, pode-se dizer que algo muito semelhante se passa com o historiador brasileiro que se propõe investigar os meandros das memórias e dos silêncios coletivos em torno da ditadura. Debruçar-se sobre as complexas relações estabelecidas entre ditadura, sociedade e os processos de construção coletiva do regime pode situar o pesquisador sob constante vigilância, do ponto de vista político e acadêmico.
Assim, quando se elege como objeto de estudos um tema ou um personagem que passaram a encarnar, mais que quaisquer outros, as mazelas de um período que deve ser esquecido, sob pena de comprometer o novo pacto social, é preciso tomar certos cuidados, estar sempre pronto a se justificar. É preciso sobretudo estar preparado para ter de responder a questões do tipo: Por que lembrar? Por que não virar a página?
Porém, para além do julgamento crítico tradicional da comunidade científica, a respeito do qual é importante refletir, formulo o problema da situação do pesquisador diante de seus testemunhos. Alessandro Portelli fala que a busca da construção da entrevista como um experimento em igualdade deve constituir o objetivo do pesquisador, “como condição para uma comunicação menos distorcida”. No entanto, como alcançar tal objetivo, já que a pretendida igualdade “não depende da boa vontade do pesquisador, mas de condições sociais”?37 Particularmente, quando o pesquisador lida com temas espinhosos para as sociedades contemporâneas, como é o caso da memória coletiva daqueles que viveram experiências autoritárias recentes, como constituir esse experimento em igualdade? Como conquistar essa condição para tratar de um assunto sobre o qual se optou pelo silêncio? Como lidar com as diferentes memórias em disputa, sobre as quais as paixões políticas ainda estão vivas e atuantes?
Desse ponto de vista, o caso de Bagé é exemplar. Como, na cidade, a memória encontra-se bastante dividida entre as antigas gerações e as mais novas, o pesquisador nunca sabe que tipo de reação vai encontrar. Os saudosistas do regime e do presidente olham para o pesquisador – que é antes de tudo um forasteiro, um estranho – ao mesmo tempo com desconfiança – “Acho que estamos dando armas aos inimigos”38 – e com certa satisfação, pois finalmente encontraram alguém interessado em suas (boas) lembranças, em seu passado. Outras vezes, essas pessoas enxergavam na jovem pesquisadora alguém que poderia, afinal, fazer justiça ao seu herói, que se tornou tão malquisto no país e, o que lhes parecia ainda mais grave, em sua própria cidade.
Por outro lado, era muito frequente encontrar em Bagé, sobretudo entre as gerações nascidas a partir da década de 1970, o mesmo julgamento crítico de que fala Pierre Laborie sobre a comunidade acadêmica. Em suas expressões ou em suas palavras, havia um incômodo latente, um questionamento incompreensível: afinal, por que uma jovem como eles estava interessada naquele homem, naquela história? Por que tocar em um assunto que a cidade se esforçava em deixar para trás?
Em suma, para os entrevistados, parecia sempre fundamental tentar desvendar as verdadeiras intenções da entrevistadora. Afinal, de que lado ela estaria? Em nome de quem falava? Não se trata aqui de advogar em defesa de uma pretensa neutralidade científica, mas de demonstrar como as paixões do passado jogam ainda um peso importante na vida cotidiana das pessoas e misturam-se, irremediavelmente, aos partis pris do presente,39 dificultando, sob esse aspecto, a construção da entrevista como um experimento em igualdade.
Por fim, indissociavelmente ligada à pergunta “Por que lembrar?” está outra: “Por que Médici?” Por que falar dos “carrascos”, dos ditadores? E, particularmente, por que recuperar a trajetória e a memória a respeito de Médici? Por que ele deve ser lembrado? Afinal, dentro de setores das próprias Forças Armadas, não são raras opiniões sobre ele similares à do presidente Geisel: “É verdade que não era um homem de grandes luzes, também não era de trabalhar muito.”40
Além disso, hoje, as “grandes obras” de seu governo são consideradas “faraônicas”, parte do “anedotário político sobre a ditadura”,41 reveladoras do grande “complexo de inferioridade” de uma nação que sonha em ser “potência”, mas que não consegue superar problemas básicos. Assim, os esteios da popularidade de Médici são frequentemente contestados sob o argumento da falácia que teria sido o milagre e pelo papel desempenhado por sua propaganda, capaz de seduzir e ao mesmo tempo calar uma nação, tornando-a impotente diante dos horrores que se passavam nos porões.
Não obstante, acredito que a questão “Por que Médici?” deve ser formulada sob outros ângulos. Em vez da negação de sua popularidade, caberia questionar por que ele foi tão popular. Quais eram as bases de popularidade? Será mesmo que a dupla propaganda-repressão é capaz de tudo explicar? Por fim, por que se desfez tão rapidamente sua popularidade? Não estariam nos processos que resultaram na rápida ascensão de um presidente “de poucas luzes”, nas paixões que ele foi capaz de suscitar e em seu rápido ostracismo as chaves para compreender as intensas transformações pelas quais passou a sociedade brasileira a partir da segunda metade da década de 1970?