Os jantares da embaixatriz Berenice Azambuja eram finos e concorridos, apesar de o embaixador já estar aposentado, após apresentar inquietantes brancos de memória, que logo levaram à suspeita de um início de mal de Alzheimer. E o exercício da função se tornou insustentável quando o diplomata não conseguiu lembrar-se de sua assinatura, que deveria figurar num contrato de cooperação energética entre o Brasil e o Turzequistão, país em que servia. Depois de algum tempo segurando com mão fechada a caneta, ele escreveu no papel o garrancho kcuf, para constrangimento do próprio presidente brasileiro e de seu ministro das Relações Exteriores, na presença do secretário-geral do Partido Comunista do Turzequistão e de sua alteza imperial Bordi VI, imperador daquele país.
Pois o regime do Turzequistão era uma ditadura de partido único comunista, com uma grande abertura para o capital externo, e monarquista, uma vez que os dirigentes revolucionários houveram por bem, por uma questão estratégica, manter em seu cargo o imperador, de uma dinastia milenar respeitadíssima pelo povo. Toleravam ainda a religião filosófica de origem taoista, pois mantinha a população feliz com seu quinhão de sorte e gratificada com seu trabalho mal remunerado, em muitos casos na fabricação de produtos eletroeletrônicos, em empresas com capital multinacional.
Os jogos eletrônicos do Turzequistão eram apreciados no mundo inteiro, pois ofereciam não apenas as lutas e construções de impérios e civilizações, com sofisticadíssimas alianças políticas, de que o próprio país era um modelo, como jogos mais subjetivos. Na verdade, seu regime era único, contando com a simpatia da China, pois o que todos temiam, a princípio, era a imposição pela força da democracia de Bush, ameaça praticamente extinta com a entrada de capital norte-americano no país.
Mas talvez o jogo mais sofisticado fosse o da luta entre deuses e demônios travada em uma mente que o jogador identificava como sua. Para a fabricação desses jogos, cérebros eram importados do Japão e, no que toca à espiritualidade contida neles, do vizinho Curzequistão. Enfim, em tudo em que entravam a metafísica e o espírito, como teorias e práticas filosóficas e religiosas, plantas medicinais e arte, o Turzequistão e o Curzequistão eram êmulos, os polos de onde essas coisas verdadeiramente irradiavam.
Politicamente, o Curzequistão tinha um quê de teocracia, mas gentil, porque taoista. E, militarmente, era tão frágil que qualquer país poderia dominá-lo, então as grandes potências resolveram transformá-lo num protetorado, em tese do Turzequistão, mas este, por sua vez, vivia sob proteção forte da China aliada a países ocidentais, estados com empresas solidamente instaladas em território turzequistanês.
Num contexto desses, era natural que o médico mais conceituado do país fosse o dr. Jawadal Varma, insigne mestre do curzo-taoismo e clínico da própria família imperial e dos mais altos quadros do PC e do mundo diplomático, conhecedor profundo da medicina e psicologia orientais e ainda com pós-graduação na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. E Varma, médico do casal Azambuja, não deixou de reconhecer o Alzheimer impeditivo de que Saulo continuasse a satisfazer às exigências do seu cargo, mas também, visto por outro prisma, era uma abertura para os abismos do espírito e do inconsciente.
Chamado então de volta e aposentado o embaixador, voltou o casal a residir em seu apartamento com dois andares e um terraço, na avenida Atlântica, em Copacabana, Rio de Janeiro, onde a embaixatriz continuou a fazer jus à sua fama de exímia anfitriã, pois o convívio social era o que a consolava do golpe adverso do destino. E foi dentro desse espírito que ela ofereceu o jantar daquela noite para convidados seletos do mundo da diplomacia, da cultura e da política.
Antes do prato principal, vitela à francesa, foi servida uma sopa de ervas finas do Turzequistão, que eram cultivadas no jardim do terraço do apartamento, onde também foi plantada uma muda de papoula, de cuja flor o cozinheiro retirava um pó que, em pequenas pitadas, dava à sopa um sabor todo especial e provocava certo bem-estar nos que a consumiam. Além de servir vinho, Berenice gostava de ter à mesa, sempre à mão, em seus jantares, uma garrafa do uísque Seven Crown e um recipiente com gelo, para satisfazer aqueles que, como ela, sofriam de um alcoolismo moderado, tão comum no mundo diplomático.
Naturalmente, o embaixador fora mantido fora de cena, num quarto afastado no andar de baixo, aos cuidados da jovem enfermeira da noite, que revezava com outra, que fazia o trabalho durante o dia.
O jantar transcorria no melhor dos mundos, com conversas inteligentes e espirituosas, risos cristalinos, em mesas mais ou menos compridas, cujas cabeceiras foram dispostas umas contra as outras, como num jogo de dominó, de modo a propiciar uma aproximação variada entre os convidados. Um embaixador aposentado acabara de fazer um comentário muito apropriado: que jantares como aquele sempre lhe traziam à mente os livros de Proust. O assunto ainda não morrera quando o comendador Soares, vizinho de mesa de Berenice Azambuja, aproximou sua boca do ouvido da embaixatriz, para fazer-lhe um comentário confidencial. Sim, em pleno século XXI, no Rio de Janeiro, ainda havia quem fosse chamado carinhosamente de comendador, aquele homem de setenta anos, aposentado do Itamaraty, que ao deixar seu último posto na Eurotrácia fora agraciado com uma importante comenda daquela nação.
“Há uma barata na sua sopa, embaixatriz”, segredou o comendador, ajustando seus óculos e fixando o prato de Berenice.
Por mais que Berenice já houvesse passado por situações sociais delicadas, uma barata em sua sopa, num jantar fino, era demais para uma anfitriã. E tão mais absurda seria tal aparição porque o apartamento passara, havia seis meses, por uma dedetização completa.
Mas a embaixatriz olhou para o prato e não havia dúvida: lá estava, embebida na sopa de ervas, que já descera a um nível bastante baixo do prato, uma barata. E Berenice pôde ver as formas geométricas no dorso do inseto, que caracterizavam as baratas do Turzequistão. Essas formas, mais ou menos nítidas e variando um pouco de barata para barata, podiam ser interpretadas como trigramas e hexagramas do i ching — e alguns intérpretes respeitados viviam se debruçando sobre elas —, ou uma antecipação do neoplasticismo, mais especificamente Mondrian. Houve até um crítico de arte britânico que levantou a questão se Mondrian não se inspirara nelas para chegar à sua geometria sensível.
Mas, quanto ao indivíduo e não à espécie, aquela barata só podia ter vindo nos contêineres que chegaram do Turzequistão, tempos depois da vinda do casal, trazendo seus objetos pessoais, a menos que já houvesse exemplares da espécie no Brasil. Porém, o que interessava isso à Berenice, que via em jogo sua reputação? E a embaixatriz só tinha uma saída, que precisava ser rápida. Com uma colherada da sopa deliciosa, sorveu decididamente a barata, para não ter de mastigá-la. Depois deu dois longos goles do uísque Seven Crown, na esperança de liquidar rapidamente o inseto em suas entranhas. E ralhou com o comendador Soares, bem baixinho:
“Barata? O senhor precisa mudar as lentes de seus óculos, ou então ir com urgência ao neurologista. Veja o exemplo de meu marido.”
“É que por instantes me pareceu nitidamente…”, disse o comendador, empalidecendo.
“Pareceu, pareceu, o senhor bem disse”, falou a embaixatriz, já mais animada com o Seven Crown. E, aproveitando o mote do ortóptero, tentou distrair o comendador, elevando um pouco a voz para ser ouvida por outros convivas que houvessem escutado aquela menção repugnante à barata. “Imagine, senhor comendador, que na Tauritânia, onde Saulo também serviu, uma das mais finas iguarias eram cabeças da aranha arac servidas em palitos de prata. Dizem os tauritaneses que fortifica a mente, o que, pelo menos no caso de Saulo, que tantas vezes provou a iguaria, infelizmente não se revelou uma verdade. Mas, quanto ao gosto, vou lhe contar, não tenho a menor noção do que sabem tais iguarias, pois nas poucas vezes em que pus uma na boca, para não fazer desfeita, tomava um gole de Seven Crown, já que eu sempre fazia avisar aos que nos recepcionavam que teria muito gosto se colocassem uma garrafa deste uísque à minha frente.”
Enquanto ia tagarelando, Berenice fizera um sinal ao garçom para que retirasse os pratos de sopa, talvez um pouco cedo, mas ela não queria correr riscos. E uma vibração quase visível de alegria pairou sobre as mesas quando se começou a servir a vitela. Quanto ao comendador, que se mostrava um pouco melancólico, Berenice o consolou, dizendo que não ficasse triste com seu engano, e confidenciou-lhe, pedindo segredo, a adição de pitadas mínimas de opiáceo à sopa e ao molho da carne.
“É o que dá morar em países exóticos”, acrescentou ela.
E, assim, apesar daquele percalço ameaçador, transcorreu com grande brilho o jantar de Berenice Azambuja, em que a embaixatriz se destacou na conversação mais do que qualquer conviva, talvez pela dose generosa de Seven Crown, fazendo com que o incidente com o ortóptero lhe parecesse agora quase uma alucinação. E os temas à mesa escorregaram, naturalmente, dos bons livros e da boa pintura à crise político-militar no Oriente Médio; das divindades da astrologia tântrica às mulheres como governantes. Lá pelas tantas, Berenice falou:
“Vejam vocês, eu que estive nos mais perdidos rincões do planeta nunca fui a Paris, nem a passeio, e agora não quero ir mais, pois Paris só tem graça quando se está amando e sendo amada.”
Findo o jantar e já tendo ido embora os convidados, os garçons e o cozinheiro contratados, deixando a sala e as dependências de serviço limpas e arrumadas, Berenice resolveu passar pelo quarto de Saulo para verificar se estava tudo em ordem. Eudora, a nova enfermeira da noite, era uma negra muito bonita, e Berenice queria saber se ela estava se saindo a contento com seu paciente.
Caminhando o mais silenciosamente que podia, para não acordar Saulo ou Eudora se estivessem dormindo, aproximou-se do quarto e, de repente, deu com uma cena que fez seu coração bater forte por sua beleza e, pode-se dizer, erotismo. Eudora, que era uma mulher de um metro e oitenta, toda vestida de branco, penteava seus cabelos diante de um espelho, como uma distração para passar o tempo, talvez. Porém, o mais inusitado é que os botões de sua blusa estavam abertos e seus seios magníficos estavam à mostra.
Sentado numa poltrona, os olhos de Saulo se fixavam na enfermeira, e ele todo era quietude e atenção, sem que se pudesse dizer, diante de sua doença, que compreendia tudo o que se passava, mas Berenice era capaz de jurar que a mente dele estava em algum lugar da Ismaília, país da África oriental onde havia servido, terra de homens e mulheres muito bonitos, e onde Saulo havia tido dois ou três casos, à época Berenice teve certeza, conformada.
E houve um instante em que Eudora percebeu pelo espelho a figura de Berenice à porta, deu um pequeno grito e recompôs depressa o seu uniforme.
“Senhora, eu posso explicar.”
“Não, não precisa, Eudora”, disse Berenice.
Mas Eudora insistiu:
“Mas eu gostaria de dizer, senhora, que o embaixador se sente muito calmo quando me vê assim. E achei que, se era bom para ele, por que não fazer? Desculpe-me se a ofendi, senhora. E não quero que nada fique escondido. Às vezes ele me toca muito de leve.”
“Não, não me ofende. Mas há algo que você ignora.”
“A senhora não poderia me contar?”
Sentaram-se as duas na cama e, diante de um Saulo que agora parecia alheio, Berenice contou à enfermeira sobre a temporada deles na Ismaília, país africano onde costumes tribais consideravam com a maior naturalidade mulheres mostrarem os seios. Saulo se encantava com elas.
“E você, Eudora, não faria má figura diante daquela gente. Você é muito bonita, querida. Continuarei a vir aqui, claro, mas não me intrometerei entre vocês.”
Berenice ergueu-se rápido, no que foi acompanhada por Eudora. E, ligeiramente ébria, a embaixatriz não resistiu à tentação de dar um abraço forte e carinhoso na outra. E depois voltou o rosto na direção de Saulo, pensou se devia beijá-lo no rosto ou não, decidindo-se por não fazer isso, como se o beijo fosse uma intrusão por parte dela, pois ele não dava sinais de reconhecê-la. Mas, para grande surpresa sua, Saulo disse:
“Você está com a auréola da morte.”
“O que foi que você disse?”, ela perguntou, estremecendo, assustada.
Mas Saulo nada mais disse, apenas tornou a olhar na direção de Eudora, talvez esperando algum gesto dela. E Berenice saiu decididamente do quarto.
Antes de subir para seu quarto, Berenice passou pela cozinha e abriu a geladeira para tomar um pouco de água gelada. Tomou um copo inteiro e, dentro da geladeira, viu uma terrina com um restante da sopa de ervas finas. Diante disso, não pôde deixar de pensar, com um arrepio de horror, no incidente da barata. Pensou em levar água para o quarto, para tomar um sonífero que guardava lá, dormir logo e esquecer-se do incidente. Mas depois pensou que a mistura do álcool com o sonífero poderia ter efeitos imprevisíveis. Mas não resistiu a pegar no armário uma garrafa de Seven Crown, pela metade, e pôr numa cesta. Tirou gelo do congelador, colocou-o num balde; pegou também um recipiente fechado com água e guardou tudo na cesta, que levou para o quarto. Se por acaso tivesse insônia, beberia um pouco mais de álcool.
Berenice foi ao banheiro, depois despiu-se e colocou um pijama leve, azul, deitou-se na cama e pegou o livro que estava lendo: Três mulheres, do austríaco Robert Musil.
Berenice ainda estava na primeira das três novelas, intitulada “Grigia”, que ela estava apreciando muito e anunciava um final trágico, principalmente para o personagem masculino, chamado simplesmente Homo, que se afastara da mulher e do filho pequeno e fora trabalhar como geólogo na reabertura das minas de ouro em determinado vale.
A novela era uma história de amor muito forte, em que duas pessoas conseguem se comunicar sobretudo carnalmente, e o primeiro encontro entre Homo e a camponesa Grigia, que é casada e ignorante, se dá quase sem palavras, num celeiro sobre o feno. Essa espontaneidade e, sobretudo, a sensualidade simples, do campo, o desejo sem complicações de Grigia, mexeram muito com Berenice. Na verdade, não havia como não amar aquela história escrita tão belamente, em que Homo se deixa levar pelo desejo, e o leitor ia se impregnando de um clima de tragédia possível. Ao reabrir o livro na página marcada, Berenice viu que chegara a sublinhar duas passagens que a comoveram profundamente e agora tornavam a comovê-la:
e quando a beijava ele nunca sabia se amava aquela mulher ou se lhe acontecia um milagre no qual Grigia estava apenas inserida, um sinal que o ligava a sua amada na eternidade.
De algum modo Homo sentia que ia morrer em breve, apenas não sabia como nem quando. Sua vida antiga esvaía-se; era como uma borboleta que se torna cada vez mais débil quando chega o outono.
O coração de Berenice bateu muito forte, porque, nessa leitura, as palavras do livro somavam-se às de Saulo: “Você está com a auréola da morte”. Mas talvez não passasse de uma pequena comoção, essa coincidência, não sobreviesse outro acontecimento. Naquele mesmo instante, Berenice tomou um longo gole de Seven Crown da própria garrafa. E sentiu um arranhar no que lhe parecia o esôfago, o mexer-se de alguma coisa em suas entranhas.
Berenice não levou mais do que uma fração de segundo para entender que o que se mexia dentro dela era a barata, que, tendo sido engolida de um só golpe, não fora atingida mortalmente nem ainda digerida. Um desespero imenso, multiplicando por dez o medo que já sentia normalmente de baratas, a fez pensar em pôr o dedo na garganta para vomitar o monstruoso inseto. Mas a ideia de que o ortóptero passasse outra vez por sua garganta e sua boca era intolerável.
A embaixatriz, que estava habituada à elegância e ao bem portar-se em todas as situações, agora era obrigada a conviver com o fato de não apenas ter engolido uma barata, como de esta ainda estar viva e movimentando-se dentro do seu corpo. E o grito de Berenice foi maior do que qualquer grito de mulher por causa de uma barata, em toda a história desses confrontos.
Berenice, enlouquecida, teve vontade de virar-se pelo avesso. E não sendo isso, evidentemente, possível, seu pavor foi tão grande que ela nem chegou a hesitar. Correu e pulou pela janela aberta.
O embaixador, que estava insone e fora levado por Eudora até a sala do andar de baixo, viu passar, caindo no espaço, um corpo. E talvez porque ouvisse em seguida o choque do corpo contra a calçada Saulo tenha articulado algum pensamento, mas isso nunca se saberá. O certo é que Eudora, que já ouvira o grito meio abafado, sentou seu paciente à força num sofá e correu até o quarto de Berenice, apenas para ver a garrafa de uísque no chão. Com uma certeza sombria, chegou à janela e pôde ver, lá embaixo, um corpo, que, mesmo a uma distância de dez andares, identificou como o da embaixatriz, caída de costas diante de pessoas que se movimentavam de um lado para o outro, aturdidas. Apesar do choque, teve o sangue frio de telefonar dali mesmo para a polícia. Voltou à sala onde deixara o embaixador, como era seu dever, e levou-o para o quarto.
O fato é que a embaixatriz se chocara com grande estrondo contra a calçada da avenida Atlântica, sem atingir ninguém, talvez pelo adiantado da hora e porque ali, naquele trecho, não havia nenhum bar ao ar livre. Mas o horror que causou nas pessoas não é difícil de imaginar. Estragou definitivamente a noite de muita gente, deixando um trauma que durou dias, semanas, na verdade ficando para sempre na memória dos que testemunharam o fato, seja passando pela calçada, seja comendo e bebendo em algum bar das proximidades. Chegou a provocar colisões entre os que trafegavam de carro pela avenida, ao deixar os motoristas atarantados.
Como sempre acontece, logo o cadáver, todo arrebentado, foi cercado por pessoas menos assustadiças, ou dotadas de uma curiosidade mórbida, tendo à frente alguns mendigos que ocupavam uma pequena área com bancos de cimento próxima ao prédio do casal Azambuja.
“O jogo é bruto”, disse aquele que era uma espécie de líder dos mendigos.
“Vejam, ela ainda não está morta, sua boca está mexendo”, disse uma mulher gorda, que era, entre as pessoas do seu sexo, a que mais próxima estava do corpo caído.
“Não, não, mais parece…”, começou a dizer um guardador de automóveis.
“Uma barata”, gritou outra mulher, enquanto as pessoas recuavam, vendo o ortóptero surgir dos lábios da mulher morta, numa cena que nunca mais sairia da memória de quem a vira.
Coitada da embaixatriz, ela que cultivara a vida inteira a distinção e a elegância estava ali exposta, depois de morta, ao horror e nojo públicos. Seria bastante possível que algum dos curiosos esmagasse a barata, mas naquele momento chegou a polícia, com seus homens mandando que todos se afastassem. E a barata, apesar de ainda tonta dos percalços por que passara e do uísque Seven Crown, correu para esconder-se no vão de um muro de cimento, contando para isso com o medo de dois cidadãos que lhe abriram passagem.
No centro dos acontecimentos, peritos tiravam fotos, enquanto investigadores, devidamente informados pelo porteiro do prédio, subiram ao nono andar e, no apartamento do embaixador e da embaixatriz, onde, pelo depoimento de Isaura, a empregada, e Eudora, acompanhante de Saulo, e ainda pela falta de qualquer indício de luta, concluíram prontamente pela versão de suicídio. Quanto a Saulo, não pronunciou nenhuma palavra que se aproveitasse como depoimento, e sua situação mental foi explicada pelas mulheres. Se tiveram os policiais, por dever de ofício, de investigar um pouco mais, ouvindo convidados da festa, nada levava a crer, por uma hipótese mínima que fosse, em homicídio.
Lá embaixo, depois de todos os exames preliminares necessários, o corpo da embaixatriz foi coberto por um plástico negro e depois chegou o rabecão para buscá-lo. A essa altura as pessoas já se encontravam mais distendidas e um dos lugares-comuns mais pronunciados nas rodas de curiosos foi “dinheiro não traz mesmo felicidade”. Depois que a polícia autorizou que se lavasse o sangue da calçada, as pessoas se dispersaram.
A barata, da fresta protegida no muro, recuperada em grande parte dos seus sobressaltos, sentiu um impulso de explorar o ambiente em volta e saiu para campo aberto, sentindo o pulsar da madrugada de Copacabana sob uma leve neblina, ouvindo o ruído das passadas dos poucos transeuntes àquela hora, dos carros correndo em alta velocidade, a intervalos irregulares, e uma vibração quase imperceptível de centenas de milhares de habitantes recolhidos a seus apartamentos, a maioria dormindo.
Já eram três horas da manhã e a barata, acometida de outro impulso irresistível, atraída pelo cheiro da maresia, iniciou uma corridinha que a fez cruzar as duas largas pistas da avenida Atlântica, escapando incólume dos veículos, por muita sorte. Perto do meio-fio, do outro lado, enfiou-se num bueiro. Lá havia um pedaço nada desprezível de cheesebúrger, atacado por três ou quatro baratas locais, às quais se juntou a barata do Turzequistão. E ela ficou morando ali, que era perto de um quiosque, tornando a alimentação, pelas migalhas de sanduíches que caíam das mãos dos fregueses, farta e saborosa. Matar a sede também não era problema, com gotas de coca-cola, água de coco e cerveja que espirravam ali. E assim, diante da fartura e proteção — quando não chovia forte e a sobrevivência obrigava a verdadeiros malabarismos —, a barata do Turzequistão adaptou-se ao meio circundante e fez um contato fácil com as baratas locais, que incluía sexo.
Mas havia algo em seu comportamento que era específico dela. Na alta madrugada, quando os humanos que passavam por ali eram raros, a barata do Turzequistão gostava de sair do bueiro e descer até a areia, depois deslocar-se em direção ao mar, para sentir de perto o vento e a maresia que traziam ao seu pequeno ser nostalgia do seu Turzequistão, banhado pelo Oceano Índico.
Aos que se espantam com essa capacidade de reviver a seu modo essas sensações, cabe informar que as baratas do Turzequistão são consideradas as de inteligência mais desenvolvida pelos biólogos, que tentam explicar este fato pelos milênios de predominância taoista e budista na região e a convivência entre humanos e ortópteros ter sido das mais pacíficas, não apenas pelo fato de a religião e a filosofia locais disporem sobre a transmigração entre espécies, valorizando a vida seja lá de que animal for, e ainda por apresentarem as asas e o dorso das baratas do Turzequistão trigramas e hexagramas do livro das mutações. Isso para não falar do fator estético que encantou pesquisadores ocidentais da arte turzequistânica, que perceberam nas asas dessas baratas os citados desenhos geométricos.
E, embora abstratamente, pois sua microsubjetividade dava-se antes em forma de sensações do que de pensamentos, a barata desta história sentia diante da imensidão do oceano a unidade de todas as coisas e, fosse ela capaz de entender a linguagem humana, saberia que se encontrava na pátria do eminente sábio de sobrenome Coelho, que já vendera centenas de milhares de livros no Turzequistão e mencionara numa de suas obras essa estirpe de baratas. A fama de Coelho naquelas plagas era tanta que fora condecorado pelo próprio imperador.
Além da saudade de sua terra, a grande falta da barata do Turzequistão, em sua nova esfera de existência, era que nunca mais pudera experimentar a embriaguez e exaltação provocada pelo uísque Seven Crown, quando fora engolida sem sofrer um só arranhão, para ser lançada depois ao novo mundo de luzes, após recolhida por tanto tempo no contêiner do casal Azambuja, roendo em quantidades ínfimas o insípido smoking do embaixador.
Sensações e indagações, dentro de suas possibilidades, tomaram conta da barata diante do mar, e ela chegou a borrifar-se muito levemente água salgada, nessa hora da madrugada que era uma fresta entre dois mundos. E sintonizando muito, muito ao longe, antes de retornar ao bueiro, captando com sua sensibilidade única as ondas do mundo turzequistânico, a barata estendia para esse longe as antenas da raça.