11. Este quadro

Este quadro está guardado pode-se dizer até que escondido no subsolo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e nunca houve uma ocasião em que tenha sido trazido aos andares superiores para alguma exposição. Na verdade, apenas um funcionário, de tempos em tempos, vê esta pintura, pois é ele quem se incumbe dos cuidados para a conservação desta obra e de outras esquecidas.

Este quadro é uma tela de noventa por setenta centímetros, pintado no último quarto do século XVIII, é o que se deduz pelos materiais e técnicas utilizados. Nele é retratada, frontalmente, uma jovem negra nua, a não ser pela veste branca que sustém com a mão direita, o que não impede a visão de seu sexo e de seu seio esquerdo, mas parecendo, pelo segurar da veste, que ela hesita em deixar-se ver por um contemplador que figura no quadro. Esse contemplador, que olha para a moça e dá as costas para quem olha para o quadro, vê-se, por sua batina e pelo círculo cortado em seu cabelo, que é um padre ou seminarista, branco e jovem.

O local em que se encontram é o interior de um casebre de pau a pique, com o chão de terra batida, e o aposento é mobiliado apenas com um catre, um banco e uma mesa tosca, sobre a qual há uma moringa e um caneco. E pela janela aberta vê-se um matagal.

No quadro, não há assinatura nem data, mas é de supor que represente os tempos da escravatura ou próximos a esses.

Este quadro, antes de ser enviado aos subterrâneos do museu houve quem chegasse a saber em outras épocas foi relegado também aos porões de uma fazenda, e quis, quando da penhora dessa fazenda para pagar dívidas, o capricho de um jovem herdeiro que ele escapasse da fogueira, como o queriam as autoridades civis e eclesiásticas. Sumiu o jovem senhor com a obra e guardou-a num barraco de um sítio que lhe restou de propriedade e, de vez em quando, dava-lhe uma espiada com um olhar lúbrico, também satisfazendo suas ideias anticlericais.

O jovem senhor se arruinou completamente, e o quadro, apesar dos protestos de eclesiásticos e outros moralistas que novamente o queriam na fogueira, foi a leilão junto com outros bens, mas não houve quem o arrematasse, e declarou o leiloeiro que o destruiria, mas conhecedor que era do sobe e desce dos preços das pinturas, guardou-o bem guardado num depósito. E esse senhor não deixava de excitar-se ao ver a obra, e também sentia por ela uma espécie de repulsa, mas acabou por esquecer-se do quadro e deixá-lo de lado, até que, por fim, quando da ampliação do acervo do Museu Nacional de Belas Artes, foi a obra comprada com várias outras por um curador itinerante, que era também um livre-pensador ou um desavisado.

Porém, quando outros setores da sociedade deram por ela no acervo, os protestos foram veementes, em geral pelos mesmos motivos religiosos e morais, pois era impensável a exibição de uma obra dessas num museu frequentado até por mulheres e crianças.

Os livres-pensadores contra-argumentaram com a nudez, embora mais velada, exposta no próprio Vaticano, mas bispos e padres contrapunham que em nenhuma obra no Vaticano, ou em outro templo cristão de Roma, havia aquela insinuação de um prelado praticando, ou prestes a praticar, atos libidinosos.

E também podiam juntar, os que se julgavam mais entendidos em arte, aos argumentos de ordem moral os de imperfeição técnica, e que elementos da anatomia eram desproporcionais entre si, a ponto de os olhos da moça saltarem de suas órbitas. Mas não poderia se sustentar que essa imensidão do olhar tinha o poder de sugerir que a jovem negra tanto temia como desejava o moço? Também o bico do seio visível está intumescido, enquanto o sexo é visto entre os pelos pubianos. E os entendidos, que também podiam ter objeções de ordem moral, sabiam que tinham diante de si um quadro que, se fosse absolvido, digamos, espiritualmente, não o seria artisticamente.

Por outro lado, havia o jovem clérigo, e nele, visto de costas, havia menos por onde errar a mão, a não ser que fosse pelo crucifixo que ele tirara do pescoço e deixara sobre o catre, o que tornava implícita a intenção de pecar. Cristo era um sombreado, mas a cruz não deixava de ser uma cruz, o crucificado um crucificado, ali no caso infamado e testemunha da infâmia.

Mas havia outra obscenidade ali, e esta apenas um dos doutos da igreja e outro das artes tiveram a coragem de levantar, que era o fato do jovem ministro de Deus, além de ceder ao desejo da carne, o fizesse por uma negra, e o escancarado de uma negra, de um modo como nunca alguém havia pintado antes, era muito mais obsceno do que se fosse o de uma branca, ainda mais com um padre.

Então se poderia pensar que a decisão dos curadores do museu era simples: destruir o quadro e pronto. Mas o fato é que temiam aqueles senhores de forma nenhuma do vulgo que, de repente, se descobrisse que deitaram fora algo de valor estético, embora exótico, que na Europa pudesse ser considerado uma preciosidade artística. Que a obra, naquilo que se poderia tomar como inabilidade, teria, talvez até sem o saber, algum parentesco com o impressionismo, movimento depois do qual haviam se perdido todas as certezas.

E não se deixou de lembrar que o Museu Nacional de Belas Artes era de propriedade do governo, e assim o quadro era um bem público. A solução que veio foi hábil, política, ouvindo-se gente do Ministério da Educação: decidiu-se por remeter a obra às profundezas do museu e que ali permanecesse até que se pudesse fazer uma avaliação mais segura. Ali, nas profundezas, só é vista, com raras exceções, por aquele funcionário que tem como dever a conservação do purgatório, como se apelidou aquela seção. Este funcionário, homem infeliz no casamento, dado a beber, solitário, às vezes tem a mente tomada, no botequim que frequenta, ou mesmo em casa, por aquele quadro. E não consegue deixar de pensar que, na escuridão do purgatório, lá estão eles, sem que ninguém possa vê-los, o jovem padre e a jovem negra. Nesse momento e para sempre estarão atraídos um pelo outro, com o coração batendo de medo e desejo, e, embora possa parecer louco o movimento, durante as noites o padre retira pela cabeça a batina, e aí estará, naquele casebre, o jovem branquinho em pelo, enquanto a negra que foi surpreendida por ele, largada a veste que segurava com a mão direita, deita-se no catre e abre as pernas, toda molhada, esperando a penetração. Sabem que cometem um pecado maior que o simples pecado do sexo, pela condição dele de filho de Igreja, mas sabem ainda que o contraste de suas peles e o pecado sacrílego lhes dá um tesão enorme, como o do funcionário ébrio do museu, que põe em movimento seu quadro interior. Ao lado do casal no catre, a veste branca, a batina negra e a cruz de Cristo.