Este quadro está guardado — pode-se dizer até que escondido — no subsolo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e nunca houve uma ocasião em que tenha sido trazido aos andares superiores para alguma exposição. Na verdade, apenas um funcionário, de tempos em tempos, vê esta pintura, pois é ele quem se incumbe dos cuidados para a conservação desta obra e de outras esquecidas.
Este quadro é uma tela de noventa por setenta centímetros, pintado no último quarto do século XVIII, é o que se deduz pelos materiais e técnicas utilizados. Nele é retratada, frontalmente, uma jovem negra nua, a não ser pela veste branca que sustém com a mão direita, o que não impede a visão de seu sexo e de seu seio esquerdo, mas parecendo, pelo segurar da veste, que ela hesita em deixar-se ver por um contemplador que figura no quadro. Esse contemplador, que olha para a moça e dá as costas para quem olha para o quadro, vê-se, por sua batina e pelo círculo cortado em seu cabelo, que é um padre ou seminarista, branco e jovem.
O local em que se encontram é o interior de um casebre de pau a pique, com o chão de terra batida, e o aposento é mobiliado apenas com um catre, um banco e uma mesa tosca, sobre a qual há uma moringa e um caneco. E pela janela aberta vê-se um matagal.
No quadro, não há assinatura nem data, mas é de supor que represente os tempos da escravatura ou próximos a esses.
Este quadro, antes de ser enviado aos subterrâneos do museu — houve quem chegasse a saber em outras épocas — foi relegado também aos porões de uma fazenda, e quis, quando da penhora dessa fazenda para pagar dívidas, o capricho de um jovem herdeiro que ele escapasse da fogueira, como o queriam as autoridades civis e eclesiásticas. Sumiu o jovem senhor com a obra e guardou-a num barraco de um sítio que lhe restou de propriedade e, de vez em quando, dava-lhe uma espiada com um olhar lúbrico, também satisfazendo suas ideias anticlericais.
O jovem senhor se arruinou completamente, e o quadro, apesar dos protestos de eclesiásticos e outros moralistas que novamente o queriam na fogueira, foi a leilão junto com outros bens, mas não houve quem o arrematasse, e declarou o leiloeiro que o destruiria, mas conhecedor que era do sobe e desce dos preços das pinturas, guardou-o bem guardado num depósito. E esse senhor não deixava de excitar-se ao ver a obra, e também sentia por ela uma espécie de repulsa, mas acabou por esquecer-se do quadro e deixá-lo de lado, até que, por fim, quando da ampliação do acervo do Museu Nacional de Belas Artes, foi a obra comprada com várias outras por um curador itinerante, que era também um livre-pensador ou um desavisado.
Porém, quando outros setores da sociedade deram por ela no acervo, os protestos foram veementes, em geral pelos mesmos motivos religiosos e morais, pois era impensável a exibição de uma obra dessas num museu frequentado até por mulheres e crianças.
Os livres-pensadores contra-argumentaram com a nudez, embora mais velada, exposta no próprio Vaticano, mas bispos e padres contrapunham que em nenhuma obra no Vaticano, ou em outro templo cristão de Roma, havia aquela insinuação de um prelado praticando, ou prestes a praticar, atos libidinosos.
E também podiam juntar, os que se julgavam mais entendidos em arte, aos argumentos de ordem moral os de imperfeição técnica, e que elementos da anatomia eram desproporcionais entre si, a ponto de os olhos da moça saltarem de suas órbitas. Mas não poderia se sustentar que essa imensidão do olhar tinha o poder de sugerir que a jovem negra tanto temia como desejava o moço? Também o bico do seio visível está intumescido, enquanto o sexo é visto entre os pelos pubianos. E os entendidos, que também podiam ter objeções de ordem moral, sabiam que tinham diante de si um quadro que, se fosse absolvido, digamos, espiritualmente, não o seria artisticamente.
Por outro lado, havia o jovem clérigo, e nele, visto de costas, havia menos por onde errar a mão, a não ser que fosse pelo crucifixo que ele tirara do pescoço e deixara sobre o catre, o que tornava implícita a intenção de pecar. Cristo era um sombreado, mas a cruz não deixava de ser uma cruz, o crucificado um crucificado, ali no caso infamado e testemunha da infâmia.
Mas havia outra obscenidade ali, e esta apenas um dos doutos da igreja e outro das artes tiveram a coragem de levantar, que era o fato do jovem ministro de Deus, além de ceder ao desejo da carne, o fizesse por uma negra, e o escancarado de uma negra, de um modo como nunca alguém havia pintado antes, era muito mais obsceno do que se fosse o de uma branca, ainda mais com um padre.
Então se poderia pensar que a decisão dos curadores do museu era simples: destruir o quadro e pronto. Mas o fato é que temiam aqueles senhores — de forma nenhuma do vulgo — que, de repente, se descobrisse que deitaram fora algo de valor estético, embora exótico, que na Europa pudesse ser considerado uma preciosidade artística. Que a obra, naquilo que se poderia tomar como inabilidade, teria, talvez até sem o saber, algum parentesco com o impressionismo, movimento depois do qual haviam se perdido todas as certezas.
E não se deixou de lembrar que o Museu Nacional de Belas Artes era de propriedade do governo, e assim o quadro era um bem público. A solução que veio foi hábil, política, ouvindo-se gente do Ministério da Educação: decidiu-se por remeter a obra às profundezas do museu e que ali permanecesse até que se pudesse fazer uma avaliação mais segura. Ali, nas profundezas, só é vista, com raras exceções, por aquele funcionário que tem como dever a conservação do purgatório, como se apelidou aquela seção. Este funcionário, homem infeliz no casamento, dado a beber, solitário, às vezes tem a mente tomada, no botequim que frequenta, ou mesmo em casa, por aquele quadro. E não consegue deixar de pensar que, na escuridão do purgatório, lá estão eles, sem que ninguém possa vê-los, o jovem padre e a jovem negra. Nesse momento e para sempre estarão atraídos um pelo outro, com o coração batendo de medo e desejo, e, embora possa parecer louco o movimento, durante as noites o padre retira pela cabeça a batina, e aí estará, naquele casebre, o jovem branquinho em pelo, enquanto a negra que foi surpreendida por ele, largada a veste que segurava com a mão direita, deita-se no catre e abre as pernas, toda molhada, esperando a penetração. Sabem que cometem um pecado maior que o simples pecado do sexo, pela condição dele de filho de Igreja, mas sabem ainda que o contraste de suas peles e o pecado sacrílego lhes dá um tesão enorme, como o do funcionário ébrio do museu, que põe em movimento seu quadro interior. Ao lado do casal no catre, a veste branca, a batina negra e a cruz de Cristo.