17. Amor a Buda

Na escultura Tentação (Tangseng e Yaojing), de 2005, do chinês Li Zhanyang, uma bela jovem tenta seduzir Buda. É muito impressionante que, já ao nos aproximarmos da obra, como que penetrando em seus domínios, somos capturados por uma atmosfera de sensualidade única, iminente, literalmente original, que envolve não apenas nossos sentidos, mas todo o nosso ser. Uma sensualidade que nada tem a ver com o erotismo que poderia se esperar de representações do sexo e do desejo orientais, nem com o erotismo banalizado do Ocidente.

Nesse conjunto escultural, todo ele feito em fibra de vidro pintada, há várias surpresas que nos encantam e fazem nosso coração bater mais forte. Mas acho que o encanto e a surpresa maiores ficam por conta da maneira ao mesmo tempo tão ostensiva e tão delicadamente feminina com que a moça se oferece ao mestre. Mas isso deixo para daqui a pouco.

Também é absolutamente surpreendente esse Buda, nem magro nem gordo, muito elegante em seu quimono amarelo como se feito do melhor tecido coberto em parte por um manto vermelho, com riscos brancos que formam quadriláteros com a forma e a cor de tijolos compridinhos, propiciando que uma guia ali no centro cultural diga a estudantes que, com esses tijolos, essa construção, o artista quis representar a Muralha da China, que tem sido transposta, nos últimos tempos, por uma enxurrada de influências ocidentais.

Não há dúvida de que a obra de Li Zhanyang integra esse diálogo com o Ocidente. No livro catálogo da exposição China Hoje, coleção Uli Zigg, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, em que foi exposta essa Tentação em 2007, faz-se uma aproximação do artista chinês com a pop art e com o norte-americano Jeff Koons, por celebrar a força subversiva da sensualidade em suas esculturas gritantes, perigosamente próximas do kitsch. Mas não é bem esse o caso de Tentação.

E penso que, a partir da maioria das esculturas que pude ver reproduzidas de Zhanyang, o mais exato seria aproximá-lo dessa variante da pop art que é o hiper-realismo, o que não deixa de ser coerente com o desenvolvimento da arte num país em que, como em todos os outros países comunistas, os artistas foram coagidos a ser figurativos e positivos em relação à sociedade e ao regime. Para serem críticos desse regime e de sua arte oficial, bastava realçar, ou mesmo exagerar, a representação realista, chegando ao realismo cínico, expressão das mais felizes e que é citada por Li Xianting no seu breve ensaio crítico “Arte chinesa contemporânea e declínio de uma cultura”, publicado no catálogo da exposição China Hoje.

Mas me parece que na escultura Tentação há muito mais refinamento do que nas obras hiper-realistas ocidentais que conheço, mesmo observando as afinidades entre ambas, como na utilização da fibra de vidro pintada e de um minucioso figurativismo fortemente expressivo. Nessa obra de Zhanyang há toda uma sutileza, um pé fincado na tradição da China, como o fato de o casal que não se toca estar ocupando um espaço íntimo no aconchego de uma flor de lótus portanto, um espaço também simbólico e que nos remete à frase de Joyce tão valorizada por Marshall McLuhan: Quando o leste encontrar o oeste, teremos a noite como manhã.

De todo modo, é um Buda (no subtítulo leva o nome de um personagem lendário, Tangseng) com uma coroa de príncipe na cabeça, conforme seus inícios, segundo a tradição, e nessa coroa vários outros Budas ou monges pintados, diferentes deste principal, mas nenhum andrajoso ou obeso, como em algumas das representações do divino mestre, porém sempre em postura de oração ou meditação.

Sim, as mãos do Buda (Tangseng), de Li Zhanyang, assim como o corpo dele estão em posição de orar e meditar.

Em seu rosto cheio, aparentando trinta e poucos anos, um viço incomum, sem nenhuma ruga ou vinco, enfim uma expressão de absoluta serenidade. Em princípio, Buda está imune à tentação, seus olhos parecem fitar o vazio.

Significaria isso que ele está completamente alheio à moça? Deixemos uma possível resposta para depois.

Mas como é mesmo a moça e como se apresenta? Para apreender alguns detalhes na figura da jovem, é preciso dar a volta em torno do conjunto, e mais uma vez se evidencia sua formosura, tanto de rosto como de corpo, e é importante ressaltar que, embora não deixe dúvidas quanto às suas intenções, nada é excessivo nela, como se soubesse que qualquer acinte vulgar seria desmerecer o divino mestre, que ela tem, é claro, em alta conta.

Apoiada na mão e na perna esquerdas, ela se encontra sentada aos pés de Buda, muito próxima a ele. Magra na medida certa, veste uma túnica cor-de-rosa num matiz discreto e estampada com flores, ramos e frutos que sugerem o lótus; traje que Zhanyang faz parecer de um tecido tão macio que dá ao contemplador uma vontade de tocá-lo, sentir a pele, o corpo da moça. Na parte da frente, a blusa de mangas compridas está aberta, deixando ver sobre um corpete a parte superior dos seios de tamanho perfeito, e essa é a maior ousadia do vestuário, sem que isso implique em qualquer concessão ao mau gosto.

O rosto jovem de Yaojing tem os melhores traços do Oriente, e por isso levemente mitigados, e nos lábios e nas faces há uma pintura sóbria ela não precisa de mais do que isso. Seus olhos contemplam o Buda, entre outras coisas como se quisesse desvendá-lo e ver também o possível efeito que causa nele, e para atraí-lo com o olhar, essa outra arma da sedução. A longa trança nos cabelos muito negros, assim como um adorno a eles preso um ser que tem algo de borboleta e algo de vegetal já são por si atributos de um amor que se propõe.

Amor e desejo que se expressam em gestos, como nos dedos entreabertos e esmaltados do pé direito, que se erguem em direção a Buda (Tangseng), e com esse movimento as pernas se afastam uma da outra, sob a túnica, marcando muito discretamente a roupa de baixo. Nunca esquecendo que tudo é feito de fibra de vidro pintada, que causa uma impressão de realidade, da carne e dos trajes, como se fossem palpáveis. Na mão direita, também com os dedos esmaltados, Yaojing segura, levemente, com o polegar e o indicador, uma frutinha que oferece ao mestre, creio que o fruto do lótus, que na Odisseia de Homero era utilizada pelos habitantes de uma terra visitada por Odisseu para ser transportados a um estado de sonho e esquecimento de si, o que seria notável e quase inimaginável caso consumida por alguém com a mente já tão expandida como Buda.

Voltando: estará Tangseng, ou Buda, tão alheio à moça e à tentação como seus olhos deixam transparecer?

Vamos apostar que não. Que mesmo que ele deixe ir e vir todos os estímulos externos que perpassam sua mente, terá havido alguns instantes em que a moça capturou seu olhar e seu pensamento. E não nos esqueçamos de que Yaojing, necessariamente, estará usando alguma fina essência, cujo perfume será impossível não notar à tão curta distância.

Do contrário, nem se poderia falar, rigorosamente, em tentação, e teria sido para ninguém, ou para si mesma, que ela apresentou, com tanto esmero e na medida certa, seus encantos.

Supondo, assim, que Buda esteve atento também a Yaojing, poderia haver, para além do tempo e do espaço da obra, possíveis movimentos, desdobramentos, às vezes apenas no interior dos protagonistas e, certamente, no interior de muitos que têm contemplado a escultura.

Tangseng, o Buda, é um homem em sua plenitude e, sob suas vestes, estará pulsando o sexo com grande vigor. Ele está atento também para isso em seu corpo, um estímulo que pode durar um bom tempo, sem que nada faça a respeito, até que o estímulo cesse e Tangseng volte apenas a meditar com plena atenção.

Yaojing, não obtendo êxito em sua tentativa, mantém, fascinada, sua atenção presa à fisionomia e ao corpo ereto de Buda. Sua admiração pelo mestre só faz aumentar com a aparente indiferença dele aos seus encantos. Seria ela, uma mulher, também capaz de atingir tal estado? Mas estaria isso de acordo com sua natureza?

Buda, com a parte de sua mente que está atenta a Yaojing, vê que ela lhe parece tão fiel à sua natureza, a seus atributos femininos. Por que haveria de querê-la diferente do que é? Por que não posso afastar-me de um rumo que parece traçado para mim, meu retiro físico e espiritual inabalável? Por que Buda não poderia amar uma mulher em particular?

Subitamente, num impulso, Tangseng vira o rosto para Yaojing, abre os braços para ela, que, surpresa e encantada, vai aninhar-se no colo dele. Não há palavras para descrever a beleza da posição em que se encontram, bem juntinhos. Ah, como Buda se sente homem; como Yaojing se sente uma frágil mulher.

Se Li Zhanyang houvesse realizado uma segunda escultura com eles assim como um verdadeiro par, esta não poderia ser nomeada de Tentação. E mais do que iconoclasta seria uma obra até herética. E, depois de uma segunda, por que não uma terceira, uma quarta? Bem, ainda que sem esculturas seria impensável um casal permanecer indefinidamente nessa posição. Um primeiro passo foi dado, outro teria de vir, e mais outro, e assim por diante.

Predominam agora a paixão e os sentidos, e eles experimentarão, no decorrer dos dias, várias formas de amar, descobrirão novas posições, como em uma escultura das mais escandalosas de Li Zhanyang, em que um homem copula com uma mulher pelas costas. Animalesco? Mas por que não dizer humano se todos e todas fazem assim?

Tangseng também ama Yaojing na posição mais simples de todas, com a moça frágil, magra, quebradiça, feminina, lânguida, sob o corpo dele. “Ah, a mulher”, Buda diz. “Gostaria de ser uma durante algum tempo, ser você, Yaojing, com seios e tudo, e me sentindo preenchida.” E Buda sorri, muito meigo. Yaojing ri e diz: “E eu ser você, Tangseng, ter um pau e metê-lo em mim”.

Yaojing está muito feliz, não apenas por ter conquistado Buda, mas também por que se sente plenamente uma mulher e essa é sua natureza. Eles trocam uma infinidade de juras de amor, palavras poéticas e até ridículas, mas sem dúvida o que mais condiz com amantes são as palavras cruas como aquelas de Yaojing de querer ter um pau. Buda também pronuncia as suas. Sentem extremo gosto, como todos os amantes, de descrever o que um faz com o outro e o mais íntimo de seus corpos.

Mas, ainda que a meditação de um Buda pareça fluir num tempo eterno, o tempo sempre se faz valer nos seres e nas coisas, até mesmo nas vastidões cósmicas. Ainda que os amantes pensem e se reassegurem de que serão felizes e se amarão para sempre, dessa maneira apaixonada, o tempo passa também para eles, que deveriam, caso tivessem sabedoria, satisfazer-se com alegrias mais modestas. Buda sabe muito bem disso, e pensa que se contentaria em nem mesmo ser um Buda, já que cedeu à tentação. Aliás, Buda sabe que é um homem, nunca deixou de sê-lo, só que conectado com o infindável e o inefável.

Yaojing, que gozou de seu triunfo de conquistar o que parecia ser impensável, conquistar um Buda, que gozou ao máximo dos prazeres e do amor, vai se dando conta de que os momentos mais excitantes que viveu com Tangseng foram os do desafio que ela venceu, os dos primeiros amplexos e carícias, os dos conhecimentos dos corpos deles inteiros. E que agora já há os intervalos de tédio, de certa melancolia, uma instabilidade de sentimentos, o ódio. Amar e foder demais é muito pegajoso. Mesmo sendo Tangseng um príncipe e um Buda, agora ele é o conhecido, a repetição, um homem, e ela quer lançar-se ao ainda não conquistado.

Buda não desconhece esses sentimentos, mas os aceita e deixa que passem. E não se importaria de viver a vida cotidiana. Que o imperfeito e o incompleto é que são a natureza, mesmo de um Buda. E o curso natural das coisas seria Yaojing ficar grávida, então eles teriam vivido o nascer do amor, o crescer dele, o gerar, o acalmar-se, o envelhecer. Mas Yaojing não se lembra de que é inútil tentar retardar o tempo, quer estar sempre apta à sedução.

Voltando ao primordial, Tentação, como toda escultura não interessando aqui as exceções —, fixa o momento em que Buda, em estado de profunda meditação, é tentado pela moça tão bela, Yaojing, que se vale de toda a sua beleza e todos os seus artifícios, que nela são naturalmente sedutores e graciosos.

Ainda que num fragmento mínimo de tempo, mas que para Buda é tão elástico, sua atenção cravou-se em Yaojing, e nesse tempo ele viveu os episódios possíveis de uma história com a moça, e também os desdobramentos que ela teria vivido com ele, a partir da tentação, de seu momento mais perfeito de sedução, conforme sua natureza, segundo Li Zhanyang.