4. Madonna

Não demorei a me dar conta do quanto foi inútil entrar armados e encapuzados no museu, arriscar-nos em plena luz da tarde para levar as obras. Pois elas eram conhecidas demais de todo mundo para ser vendidas, e qualquer colecionador ou amante da arte que pagasse para ter os quadros teria de escondê-los para usufruir deles em segredo, como eu próprio, e às vezes chego a pensar e não apenas pelo roubo que minha angústia é idêntica à do homem que cruza a ponte e grita. Se fosse apenas este o quadro, creio que o teria destruído.

O grito é o inferno que uma mente humana pode abrigar, o retrato do desespero sem fim, e, se o destruísse, gostaria que fosse com uma faca pontiaguda retalhando a tela, como se assim pudesse destruir toda dor e todo sofrimento. Mas quantos bilhões são os seres humanos e quantas e quantas vezes tal angústia não poderá se repetir?

O inferno é aqui na Terra, e Edward Munch conseguiu retratá-lo na expressão do homem que atravessa de noite a ponte, na boca o ricto escancarado e as mãos segurando o rosto, sob uma atmosfera inacreditavelmente sinistra em cores esquizofrênicas, vermelho e amarelo. Suportaria eu, sem me destruir, a dor de conviver interminavelmente com O grito não fosse a Virgem?

Sim, a Madonna que está na outra tela que roubamos é virgem, sem dúvida, pois não podemos admiti-la partilhando sua intimidade com um homem e se para ser a mãe de Cristo não deveria haver nenhum conhecimento carnal, também não podemos admitir a Madonna de Munch em trabalhos assistidos de parto, amamentação, troca de fraldas. Ah, não, não há Jesus no momento desta pintura.

Há a Madonna de Munch e houve quem dissesse que representava também a angústia, mas não a vejo assim, o que há é a noite azul-escura e a virgem com um halo vermelho sobre a cabeça e o rosto lindíssimo e sonhador ou melancólico; o que há é a sedução da noite iluminada pelo tronco e pelos seios belíssimos da Madonna, em que temos vontade de repousar o rosto, e seria impensável e sacrílego, mesmo para os incréus, mostrar seu sexo. Enfim, os mistérios gozosos da parte superior de seu corpo oferecido a homens de sensibilidade. Oferecido a mim. E depois de ver a Madonna nunca mais poderei apartar-me dela, que aplaca toda angústia, embora permaneça em mim a ânsia de abraçá-la, envolver seus seios. E ela apaga todos os amores vividos, então tornados uma reles imitação, para ser para sempre o primeiro e único amor.