26. Os primeiros traços jurídicos

Na linha de esquemas jurídicos enviados para a costa africana, D. Manuel I começou por se socorrer da velha figura do contrato de arrendamento. Celebrou-o em 1502, para as terras de Santa Cruz, com uma sociedade de mercadores representada por Fernão de Noronha. Os contratantes obrigavam-se, durante três anos, a enviar ao Brasil seis navios por ano, com os deveres essenciais de procederem ao reconhecimento de 300 léguas de terra e de fundar e manter fortaleza.222

Volvidos dois anos, D. Manuel I lançava a política de concessões para o Brasil, atribuindo a Ilha de S. João a Fernão de Noronha por duas vidas. Os benefícios pagavam-se com obrigações. Não havia um puro animus donandi. A Fernão de Noronha assinalava-se a tarefa de povoar e de, concomitantemente, explorar em termos econômicos o território. À guisa de contrapartida, entregava ao fisco uma parcela dos rendimentos obtidos. Além disso, certos produtos ficavam reservados à Coroa.

Podemos dar por esboçado um primeiro quadro da administração pública brasileira quando, em 1530, D. João III elaborou um concertado corpo normativo constituído por três cartas régias. Através destes diplomas, investiu Martim Afonso de Souza de amplos e excepcionais poderes para levar a cabo a instalação da nascente administração pública brasileira.223

O primeiro diploma declarava ir por capitão-mor Martim Afonso de Souza, tanto da armada que se dirigia ao Brasil como de todas as terras que ele achasse e descobrisse. Gozava de plena jurisdictio sobre todas as pessoas, as que seguiam e as que se achavam, com poder e alçada no plano cível e criminal. Podia proferir as sentenças que lhe parecesse de justiça, inclusive a pena de morte natural, sem apelação nem agravo.

A expansão administrativa esteve logo na mira do rei. Martim Afonso de Souza devia colocar padrões nas terras que descobrisse, tomando posse delas, mas sem as abandonar ao seu destino. Constituía, para esses territórios, capitão-mor e governador, no qual delegava idênticas competências às que recebera do monarca.

Ia mais longe um segundo diploma na construção da malha administrativa e judicial. Outorgava a Martim Afonso a faculdade de criar e de nomear tabeliães. Designaria também os oficiais de justiça que reputasse necessários, com vista às “cousas da justiça e governança” da terra do Brasil.

A ocupação dos territórios perspectivava-se de crucial importância. Daí que a terceira carta régia conferisse ao capitão-mor o poder de dar terras de sesmaria, quer às pessoas que levasse consigo, quer às “que na dita terra quiserem viver e povoar aquella parte das ditas terras que assim achar e descubrir”. E isto segundo dois critérios: o merecimento das pessoas pelos serviços prestados e as qualidades que exibissem para o aproveitamento das terras.224

27. O regime jurídico das capitanias no Brasil

Não nos debruçaremos sobre as vicissitudes históricas que rodearam a implantação do sistema das capitanias. Também não nos ocuparemos das figuras dos primeiros donatários e da sua extração social. O retrato jurídico das capitanias constituirá o alvo das nossas preocupações.225

A solução das doações de capitanias remonta, em Portugal, ao período imediato ao descobrimento da Madeira. O arquipélago surgiu dividido em capitanias hereditárias, com o fito de, premiando serviços, garantir do mesmo passo o povoamento e a exploração das ilhas descobertas.226 O sistema transplantou-se para o Brasil. Aí se inaugurou, na sequência da fundação do povoado de S. Vicente, em 1532. Mas só em março de 1534 se começaram a passar cartas aos capitães donatários.

O famoso Doutor Diogo de Gouveia procurou instilar no ânimo de D. João III a ideia de distribuir as terras do Brasil por diversos capitães donatários.227 Prometia, ao menos numa primeira fase, um rápido incremento da colonização. Vencido pela argumentação e pela premência dos fatos, o monarca anuiu.

Observemos agora a tecedura jurídica das capitanias. Fundavam-se, por um lado, numa carta régia de doação e, por outro lado, num foral. A carta de doação encerrava a régia mercê da capitania que comportava uma certa extensão de território. Tal mercê, de natureza hereditária, incluía a concessão de importantes atributos de soberania. Posteriormente, era proporcionado à capitania um foral, que servia de complemento à carta de doação, e onde se estabeleciam os foros, direitos e tributos que se iriam pagar ao rei e ao capitão donatário. Conforme explicou Paulo Merêa, “aplicavam-se deste modo ao território brasílico, adaptando-as às circunstâncias duas peças tradicionais do nosso sistema político-administrativo”. Aludia o Mestre de Coimbra às doações dos bens da coroa e direitos reais, e às cartas de foral.228

Subordinava-se a capitania doada aos princípios da inalienabilidade e da indivisibilidade. De acordo com um sugestivo comando da lavra de D. João III, ao donatário de modo nenhum se permitia “partir a capitania e governança, nem escambar, nem espedaçar, nem de outro modo alienar, porque minha intenção e vontade é que a dita capitania e governança, e coisas do governador nesta doação dadas, andem sempre juntas, se não partem, nem alienem em tempo algum”.229

Obedecia a capitania a um direito sucessório especial que a aproximava do morgadio. Basicamente, estabelecera-se uma hierarquia de três classes de sucessíveis: descendentes, ascendentes e transversais. Em cada classe, o legítimo preferia ao bastardo, a regra per propinquiorem excluía o de grau mais afastado, mas, encontrando-se no mesmo grau, o varão prevalecia sobre a mulher. Tanto basta para se perceber o propósito expresso de isentar as capitanias brasileiras da aplicação da Lei Mental, porquanto esta vedava a sucessão às fêmeas, aos bastardos, aos transversais e aos ascendentes.

As doações brasileiras comportavam dois regimes fundiários. Um compelia o capitão a repartir as terras de sesmaria por pessoas que fossem cristãs, sem foro, nem direito algum. Excetuava-se o pagamento do dízimo a Deus que, aliás, se considerou extensivo a todas as terras da capitania. Representava o outro a porção de terra “livre e isenta”, portio essa que o capitão não se via obrigado a dar de sesmaria, podendo antes explorá-la, arrendá-la ou emprazá-la. Ressalvado também o dízimo a Deus, o capitão nada pagava por essas terras.

Não convirá omitir o elenco dos direitos, máxime na esfera publicista, de que o capitão desfrutava. Se, no domínio do direito privado, as leis régias não sofreriam, via de regra, afronta, já no âmbito do direito público, de acordo com o alvitre de Haroldo Valladão, o poder excepcional conferido aos donatários mostrava-se de molde a abrir brecha no campo legislativo metropolitano.230

Tinha o capitão a prerrogativa de criar vilas onde julgasse conveniente. Não podia ser importunado na sua capitania por corregedor ou alçada régia.231 Ele, sim, nomeava ouvidor, o qual conhecia das apelações e agravos em toda a capitania. Em matéria de crime, o capitão e o seu ouvidor tinham alçada, tanto para absolver como para condenar em qualquer pena. Ao capitão era ainda dada competência em ordem a designar tabelião, quer de notas, quer judiciais. Eis uma pequena mostra dos privilégios de um pequeno príncipe.

Mas o capitão necessitava também de rendimentos pingues. E o rei oferecera-lhos. Beneficiava do direito à vintena do rendimento líquido do pau-brasil, à vintena de todo o pescado, à redizima, o que equivalia ao dízimo de todos os dízimos e quaisquer outros direitos pagos à Coroa e à Ordem de Cristo. Juntava-se-lhes ainda o tributo da barcagem para passagem dos rios e o direito a uma pensão paga pelos tabeliães. Pertenciam ao capitão, por fim, todas as marinhas de sal, moendas de água e quaisquer outros engenhos.232

A Coroa reservava para si o quinto do ouro e pedras preciosas, o exclusivo do tráfego das drogas e especiarias, e o monopólio do pau-brasil. Quanto a este último, o capitão e os habitantes tinham o direito de o usar, mas não de o comercializar. Na qualidade de grão-mestre da Ordem de Cristo, o monarca via afluir às suas arcas o importante caudal do dízimo de todos os produtos da terra.

28. A Instituição do Governo Geral

O regime das capitanias mostrou-se claudicante.233 Apontam-se como causas de uma progressiva deterioração os conflitos com os indígenas, as incursões dos franceses e as desinteligências entre colonos e capitães.234 Não custa admitir que os cometimentos assinalados aos donatários estivessem para além das suas forças. Uma administração pouco diligente e as rivalidades entre capitanias não ajudaram a sustentabilidade do regime.

A situação tornara-se tão periclitante que se chegou a erguer o fantasma da perda do Brasil. O rei tomou conhecimento da ameaça. Numa carta escrita em 29 de abril de 1546, o donatário Pero de Góis não escondia o drama que lhe ia na alma. “Tudo nasce da pouca justiça e pouco temor de Deus e de Vossa Alteza que em algumas partes desta terra se faz e ha, por donde e de Vossa Alteza não hé provida perder-se-á todo o Brasil antes de dous annos”. Os avisos sucederam-se. Num deles, advertia-se o rei que se não socorresse “a estas capitanias e costa do Brasil... Vossa Alteza perderá a terra”.235

D. João III reagiu. Obedecendo a um novo rasgo político-
-administrativo de tendência centralizadora, criou o Governo Geral do Brasil. Para o cargo de governador foi nomeado, em 7 de janeiro de 1549, Tomé de Sousa.236

Da carta de nomeação transparece nitidamente que Tomé de Sousa foi encarregado da capitania da Baía e governador geral de todas as outras. Significa que, em rigor, não se extinguia por completo o sistema das donatarias, erguendo-se apenas uma entidade intermédia entre o monarca e os capitães. Explica o caso especial da capitania da Baía o fato de se encontrar vacante, porquanto o seu donatário ao tempo, Francisco Pereira Coutinho, fora devorado pelos indígenas.

A despeito de a instituição do governo geral não extinguir o regime das capitanias hereditárias, o certo é que definhou consideravelmente o poder e a autonomia dos donatários. As capitanias converteram-se em regiões administrativas unificadas pela subordinação jurídica a um único representante da Coroa.237

A Tomé de Sousa foi dado o Regimento de 17 de dezembro de 1548. Há quem veja nele a primeira Constituição do Brasil.238 A lei regimental definia o quadro de competências e de deveres funcionais cometidos ao governador. À cabeça, ressaltavam os desvelos com os índios e o voto régio na sua conversão.

Ocupando o vértice da administração pública e da organização judicial, o governador acumulava tarefas nessas duas áreas.239 Assim, por exemplo, cabia-lhe decidir os conflitos de jurisdição, reprimir os abusos dos donatários, fiscalizando-os e punindo-os sempre que estorvassem a administração da justiça, e promover a realização de obras públicas através do lançamento de fintas. Disposições de natureza militar, normas incentivadoras das terras de sesmaria, preocupações com o justo preço das mercadorias e preceitos de índole jurídico-fiscal e econômica povoavam a ordenação regimental.240

Dentre os servidores cimeiros do governador geral encontravam-se o ouvidor geral do Brasil e o provedor da Fazenda.241 O ouvidor seria o mais destacado obreiro da justiça régia em terras que dela estavam desamparadas, conforme reconheceu o ouvidor Pero Borges numa carta remetida a D. João III em 7 de fevereiro de 1550.242

Espreitando a desvalorização das capitanias, encontrava-se um problema jurídico que não pode ser omitido. Dizia respeito ao eventual conflito entre as cartas de doação das capitanias e as Ordenações régias. Um embate de que estas últimas saíram progressivamente vencedoras. Sinal disso mesmo viu-se em São Paulo quando, no ano de 1624, o ouvidor-geral Lázaro Fernandes se dirigiu à Câmara para determinar que os juízes obedecessem às Ordenações e não à carta de doação da capitania, nos domínios em que subsistissem contradições normativas.243 Havia que preservar a pirâmide hierárquica.

Claro que nem sempre as imagens da justiça colhidas no Brasil colonial se afiguravam dignas de encômios. A título ilustrativo e pela sua inspirada veia poética, salienta-se, para o século XVII, a crítica feroz que Gregório de Matos Guerra dirigiu aos juízes e letrados em geral. A acutilância da sua pena está bem patente nos versos seguintes. “Valha-nos Deus, o que custa / O que El-Rei nos dá de graça. / Que anda a Justiça na praça / Bastarda, vendida, injusta”.244

Razão esmagadora tinha o Padre António Vieira quando prevenia para o perigo de um voluntarismo judicativo desvirtuador, tão em voga na justiça colonial: “Quem julga com o entendimento, pode julgar bem e pode julgar mal; quem julga com a vontade nunca pode julgar bem. A razão é muito clara. Porque quem julga, se entende mal, julga mal, se entende bem, julga bem. Porém, quem julga com vontade, ou queira mal, ou queira bem, sempre julga mal; se quer mal, julga como apaixonado, se quer bem, julga como cego”.245

Em suma, o terceiro quadro da administração pública brasileira que tracejamos experimentou uma propensão centralizadora acompanhada por uma uniformidade de vistas que domesticou as capitanias. Seria preciso aguardar pelo consulado do Marquês para se assistir à integral desaparição das capitanias da paisagem administrativa brasileira.246



222 Ver Walter Vieira do Nascimento, Lições de História do Direito, 11. ed., Rio de Janeiro, 1999. p. 192.

223 As ditas cartas régias foram dadas em Castro Verde, a 20 de novembro de 1530. Encontram-se registadas no liv. 41 da Chancelaria de D. João III, fls. 103 e 105.

224 Ver Jordão de Freitas, A Expedição de Martim Afonso de Souza, in “História da Colonização Portuguesa do Brasil”, vol. III, Porto, MCMXXIV, p. 97 e segs., em especial, o apêndice que inclui as citadas cartas régias, p. 159 e segs.

225 Sobre o “judiciário e o regime das capitanias”, importa consultar a valiosa obra de Carlos Fernando Mathias, Notas para uma História do Judiciário no Brasil, Brasília, 2009. p. 35 e segs.

226 Ver Damião Peres, A Madeira sob os donatários, Funchal, 1914.

227 Diogo de Gouveia, reitor do Colégio de Santa Bárbara de Paris, comprazia-se em afirmar sabiamente que “trabalhava para edificar com pedras vivas”. Ver C. Malheiro Dias, O Regimen Feudal das Donatárias anteriormente à Instituição do Governo Geral (1534-1549), in “História da Colonização Portuguesa do Brasil”, vol. III, cit., p. 220.

228 Ver Paulo Merêa, A Solução Tradicional da Colonização Portuguesa do Brasil, in “História da Colonização Portuguesa no Brasil”, vol. III, cit., p. 174.

229 Ver Maria Emília Cardoso Ferreira, Capitão-Donatário, in “Dicionário de História de Portugal”, dirigido por Joel Serrão, vol. I, Porto, s. data, p. 47.

230 Ver Haroldo Valladão, História do Direito Especialmente do Brasileiro, 4. ed., Rio de Janeiro, 1980. p. 80.

231 Na eventualidade de o capitão cometer algum delito, devia apresentar-se na Corte para ser ouvido e julgado.

232 Ver Paulo Merêa, A Solução Tradicional da Colonização do Brasil, in loc. cit., p. 176.

233 Acerca da administração da justiça no período colonial, quer durante o regime das capitanias hereditárias, quer após a implantação do regime do governo-
-geral, consultar António Carlos Wolkmer, História do Direito no Brasil, 5. ed., revista com alterações, Rio de Janeiro, 2010. p. 74 e segs.

234 A ameaça dos muitos e cobiçosos franceses encontra-se bem patente na carta de Luís de Góis escrita da vila de Santos a D. João III, em 12 de maio de 1548: “e digo, mui alto e poderoso senhor que, se com tempo e brevidade Vossa Alteza não socorre estas capitanias e costa do Brasil, que ainda que nós percamos as vidas e fazendas, Vossa Alteza perderá a terra e que nisto perca pouco, aventura a perder muito, porque não está em mais de serem os franceses senhores dela, que em se acabarem de perder estas capitanias que ficam e de terem eles um pé no Brasil, hei medo onde quererão e podem ter o outro”. Ver Luís de Albuquerque, Alguns Documentos sobre a Colonização do Brasil (século XVI), Lisboa, 1989. p. 5.

235 Ver Pedro de Azevedo. A Instituição do Gôverno Geral, in “Historia da Colonização Portuguesa do Brasil”, vol. III, cit., p. 334.

236 Ver Carlos Fernando Mathias, Notas para uma História do Judiciário no Brasil, cit., p. 41 e segs.

237 No tocante à instituição do governo geral como sistema da unidade administrativa na pluralidade capitanial, ver Waldemar Martins Ferreira, História do Direito Brasileiro, tomo II, Rio de Janeiro, 1952. p. 9 e segs.

238 Ver Pedro Calmon, A Primeira Constituição do Brasil – Regimento de Dom João III a Tomé de Sousa, Rio de Janeiro, 1943.

239 No tocante à crescente intervenção da Coroa associada ao estabelecimento do governo geral do Brasil, ver Sérgio Buarque de Holanda, História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, Rio de Janeiro, 2005. p. 108 e segs.

240 Pode-se ler, na íntegra, o Regimento de Tomé de Sousa de 17 de dezembro de 1548, no apêndice ao estudo de Pedro de Azevedo, A Instituição do Govêrno Geral, in loc. cit., p. 345 e segs.

241 Acerca dos poderes dos ouvidores quinhentistas, consultar Arthur Virmond de Lacerda, As Ouvidorias do Brasil Colônia, Curitiba, 2000. p. 13 e segs.

242 Ver Ibsen Casas Noronha, Aspectos do Direito no Brasil Quinhentista, cit., p. 137.

243 Neste preciso sentido, ver Arno Wehling/Maria José Wehling, Direito e Justiça no Brasil Colonial. O Tribunal da Redação do Rio de Janeiro (1751-1808), Rio de Janeiro, 2004. p. 58.

244 Ver Gregório de Matos Guerra. Poemas Escolhidos, São Paulo, 1975.

245 Trata-se de um passo do sermão da Segundo Domingo do Advento.

246 Neste sentido, ver Maria Emília Cordeiro Ferreira, Capitão-Donatário, in loc. cit., p. 476.