O século XVIII foi o ponto de partida do que ficou conhecido na história do direito, como o constitucionalismo. E, são por si eloquentes a Constituição norte-americana de 1787 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 da qual resultou, como sabido, a primeira Constituição da França.
Já o século XIX, pode-se dizer, foi o da codificação, em particular a dos códigos civis, o que se projetou, em diversos países, até o século XX.
Quanto aos códigos civis, recordem-se os dois que serviram de paradigma para diversos ordenamentos jurídicos: o Código Civil francês, de 1804, e o Código Civil alemão, de 1896, o famoso BGB (Burgerliches Gesetzbuch).
O Código francês ou de Napoleão, como também é conhecido, foi a expressão do primado do individualismo liberal. Lá estavam, por exemplo, a propriedade como um direito absoluto, que a Declaração de 1789 eregira em um dos direitos inalienáveis, imprescritíveis do homem e, de igual modo, o princípio da autonomia da vontade, do qual se extraía, inclusive, que o contrato fazia lei entre as partes.
Por sua vez, o Burgerliches Gesetzbuch – na expressão de Franz Wieacker – foi, em síntese, o resultado perfeito da ciência pandectística do século XIX, herança tardia do liberalismo clássico, ou, como nas palavras do próprio autor da História do Direito Privado Moderno: “O Burgerliches Gesetzbuch é – de forma correspondente ao ideal positivista da plenitude e da estrita vinculação do juiz à lei – uma codificação, é um propósito de compilação final e exaustiva de sua matéria. Através de uma estrutura conceitual rigorosa e de uma renúncia quase total à casuística, ele obtém, duma só vez, as suas famosas clareza e coerência. Mediando os anteriores códigos do jusnaturalismo e o Burgerliches Gesetzbuch situa-se a escola rigorosamente conceitual e sistemática da pandectística”.
No século XX advieram correntes contestatórias à necessidade das codificações, em particular com relação aos códigos civis, que já não seriam “o estatuto orgânico da vida privada”.
Muitas teses foram (e ainda têm sido) levantadas como, por exemplo, a de que as relações jurídicas, nos domínios do direito privado, devam reger-se por microssistemas legais, vale dizer, por leis especiais, cuidando, por exemplo, dos bancos, dos direitos autorais, da responsabilidade civil e tantos outros temas como, aliás, de certo modo, já ocorre com certas matérias.
Assim, não faria mais sentido um código único regulando “os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”, como dizia o art. 1º do Código Civil de 1916. Ao contrário, dizem os defensores da corrente anticodificadora que as relações privadas deveriam ser reguladas por legislações setoriais, ainda que possam ser designadas de códigos – códigos setoriais, evidentemente.
Em face dessa realidade, que alguns apontam como de desagregação do direito civil, em face do advento de novos direitos (como o do consumidor, o industrial, o bancário, o agrário e o próprio direito do trabalho, dentre outros) no direito do nosso tempo, repise-se, já não haveria falar-se em codificação, particularmente na do direito civil.
Malgrado esse posicionamento, que conta, aliás, com a adesão de expressivos juristas, a realidade tem apontado para a edição de novos códigos civis (e em sistemas jurídicos bem diferentes) como, por simples ilustração, registram-se o da República Socialista de Cuba (1987), o dos Países Baixos (1970), o da Rússia (1994) e o mais recente brasileiro, sancionado pela Lei nº 10.406, 10 de janeiro de 2002, e que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, a teor do seu art. 2.044.
Recorde-se, por oportuno, que, em 1941, se publicou um anteprojeto de Código de Obrigações, fruto do talento de três grandes juristas (Filadelfo Azevedo, Hahnemann Guimarães e Orozimbo Nonato), que objetivava a unificação (sonho de Teixeira de Freitas e Inglês de Sousa) do direito das obrigações.
Não encontrou eco, contudo, o notável trabalho.
A ideia voltou a ser agitada em 1961, quando o Poder Executivo tomou a si a tarefa de reformular a codificação do País, objetivando atualizar os principais códigos.
Dois extraordinários mestres foram convidados a redigirem anteprojetos, um de Código Civil, outro de Código das Obrigações, respectivamente, os Professores Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira.
Ambos anteprojetos foram transformados em projetos que, todavia, também não fizeram fortuna.
Em 1969, foi constituída comissão sob a presidência do Professor Miguel Reale e integrada por mais seis outros juristas (J. C. Moreira Alves, A. de Arruda Alvim, Silvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clovis do Couto e Silva e Torquato Costa) de cujo labor (em sua maior parte) adveio o atual Código Civil brasileiro.
Assim, o ordenamento positivo brasileiro inicia o século XXI com o importante diploma que revogou o Código Beviláqua, ainda que dele mantivesse boa parte.
O novo código, que tem sido objeto de tantas polêmicas e críticas é, naturalmente, o diploma básico nas relações privadas no País. E é isto o fundamental.
Pontes de Miranda assinalava que toda lei nova deve ser recebida com um mínimo de boa vontade, o que, evidentemente, não implica que não se deva submeter ao pensamento crítico dos juristas os novos diplomas.
Importante assinalar-se, desde logo, que o Código Civil de 2002 é obra de excelente qualidade, mesmo se consideradas eventuais críticas, que aparentemente tenham certa procedência.
Na palavra sempre autorizada de Mestre Miguel Reale o novo código caracteriza-se, basicamente, por três grandes princípios, a saber: o da socialidade, o da eticidade e o da operabilidade.
Em muito apertada síntese, adiante-se que o Código Civil em destaque: a) manteve, o mais possível, regras do Código Civil de 1916, portanto, não caiu na tentação de inovar simplesmente por inovar; b) introduziu novos institutos no ordenamento jurídico, por exigência dos novos tempos; c) redistribuiu as matérias (com relação ao código anterior), adotando sistemática mais moderna; d) unificou o direito das obrigações, no que seguiu a linha propugnada por Teixeira de Freitas e Inglês de Sousa; e) incluiu em seu corpo muitas matérias disciplinadas em leis extravagantes, advindas após 1916; f) excluiu as matérias referentes ao direito dito adjetivo, exceto naquelas poucas hipóteses em que, por natureza, esteja a regra processual mais intimamente ligada ao próprio direito material, g) aproveitou, como subsídios e contribuições, projetos anteriores e trabalhos e estudos críticos de diversos e importantes juristas; h) revogou toda a primeira parte do Código Comercial; i) consagrou um direito de empresa, e j) procurou ser um código à altura do seu tempo.
É, pois, o Código Civil de 2002, diploma a merecer atenta reflexão, não só por sua óbvia importância (em função das matérias de que trata), mas, principalmente, repita-se, por sua qualidade.
Por outro lado, recorde-se conhecimento bem sabido de que o legado básico do direito romano, para os sistemas jurídicos da chamada família romano-canônica, ou, como preferem outros, romano-germânica (v.g., René David, in Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo), traduz-se, basicamente, em institutos de direito civil e, naturalmente, não se desconhece a importância do direito público na velha Urbs.
A propósito, o professor Francisco Amaral, em síntese feliz, assinala: “O legado do direito romano, até hoje existente na cultura do mundo ocidental, traduz-se em alguns institutos de direito civil, como a teoria da personalidade, a capacidade de direito, a teoria dos bens e os direitos reais, a teoria da posse, a teoria geral das obrigações e dos contratos e a sucessão. E ainda, como princípios fundamentais, a liberdade, no sentido de uma esfera de atividade própria de cada indivíduo, e a existência e reconhecimento de direitos certos e precisos do cidadão. Dessa crença na liberdade surgiu o princípio da autonomia da vontade e a propriedade, como direito subjetivo absoluto” (in Direito Civil – Introdução).
Por ilustrativo recorde-se que o que se entende por direito romano originário (valha a digressão) é aquele conjunto de regras e princípios jurídicos que governaram os romanos, desde as origens (a fundação de Roma, que se admite como tendo ocorrido em 753 a.C.) até o século VI, mais precisamente até 565, ano em que morreu Justiniano – o célebre compilador do que Denis Geoffroy (Dionísio Godofredo) denominou em 1583, de Corpus Juris Civilis.
Com a queda do império romano do ocidente (no ano 476), como se sabe, sobrevive o império do oriente, com sede em Constantinopla, até 1453, e que só veio a desaparecer por efeito da ação dos turcos otomanos.
O direito romano, contudo, sobreviveu, ainda que houvesse perdido sua vigência como ordenamento positivo.
No chamado ocidente (aqui mais considerado um ocidente de valores do que propriamente um ocidente geográfico), por exemplo, de par com o direito bárbaro (que, aliás, sofreu grande influência do próprio direito romano) o direito romano (permita-se a redundância) continuou a ser empregado, ainda que subsidiariamente, até que, no século XII, ano em que, por assim dizer, recobra sua força e passa a ser praticamente considerado como jus commune (direito comum), em paralelo com o direito particular de cada unidade territorial: o jus proprium (o direito próprio).
É, precisamente, da combinação do jus commune com o jus proprium, que surge o direito territorial composto (jus compositum), embrião do que veio a ser conhecido como direito civil moderno.
Recorde-se, de passagem (por ilustrativa e oportuna), página de J. Isidoro Martins Júnior (in História do Direito Nacional): “Quem do pináculo da civilização hodierna, estende o olhar para o passado procurando ver as grandes marcas da estrada do Direito, os monumentos que serviram à edificação da moderna Cidade jurídica, encontra imediatamente diante de si três grandes construções legislativas. São elas: o Corpus Juris Romani, o Corpus Juris Germanici e o Corpus Juris Canonici (...)”.
E, após fazer reflexões sobre cada um desses Corpos de direito, arremata o professor da Faculdade de Direito de Recife: “Houve realmente uma época em que as três correntes jurídicas, romana, germânica e canônica, confluíram e combinaram-se, para formar o caudaloso rio de que emergiu mais tarde o Direito das nações modernas. Essa época, isto é, o sítio histórico do grandioso fenômeno foi o período medieval marcado, primeiro pela fase brilhante das universidades ecoantes à voz eloquente de Irnerius, de Gratianus e de seus continuadores; depois pela confecção dos costumeiros e das demais obras jurídicas inspiradas nas necessidades do tempo. Importa isto dizer que os séculos XII e XIII foram o ponto de convergência e de intercessão das grandes linhas do direito ocidental, traçadas pelo gênio dos romanos e dos germanos bem como pela admirável aptidão construtora, pelo enorme talento de sistematização, da Igreja Católica”.
Durante a Idade Média, todavia, o direito civil, propriamente dito, foi o direito romano.
Mais tarde, com o advento do que se conhece como Estado moderno (se bem que outros Estados nacionais já fossem conhecidos e assim também pudessem ser designados, como Portugal, por exemplo, que se formara já no século XII, como Estado nacional, após a vitória sobre os mouros na batalha de Ourique), sopro novo seria dado ao direito, particularmente ao civil.
Recorde-se, de passagem, que o chamado Estado moderno, de modo mais expressivo, surge com o absolutismo e ganharia mais força com o advento do Estado liberal. Esse itinerário passa naturalmente pela Declaração de Direitos inglesa de 1689 (o Bill of Rights) e pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, fruto da Revolução Francesa.
Ao passo que nascia o Estado liberal, conheciam-se não só o liberalismo político e filosófico, mas também o liberalismo econômico.
No campo do direito, surgiriam as Constituições e, mais tarde, as codificações – estas a partir da ideia do direito como um sistema.
Mais particularmente quanto à codificação, fruto do jusracionalismo, têm-se os códigos como instrumento de ordenação sistemática das normas jurídicas. Ao contrário dos códigos da antiguidade, que recolhiam leis, princípios, doutrinas, por exemplo, os códigos modernos apenas continham preceitos legais.
A primeira das codificações modernas, o código civil francês, foi elaborada por uma comissão, designada por Napoleão, composta por juristas práticos, como Portails, Tronchet, Bigot de Préameneu e Maleville e, dentre as fontes coligidas por jurisconsultos de porte de Domat e Pothier, estavam os costumes, as ordenações reais, as leis revolucionárias, o direito romano e, supletivamente, a jurisprudência e o direito canônico.
O código napoleônico pode-se dizer, em apertada síntese, foi o modelo de diploma de disciplina das relações entre o humanismo jurídico e a ordem civil, na medida em que continha as premissas filosóficas da legislação burguesa. Tal código civil influiu em vários códigos civis, inclusive no do Brasil, de 1916.
Quanto ao BGB, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1900, assinale-se, é ele expressão (ou síntese) da doutrina jurídica alemã desenvolvida no século XIX.
Sua base (ou fundamento), em grande parte, é romanística por excelência, posto que do direito romano recepcionou o sistema e conceitos técnicos, mormente na parte geral e no direito das obrigações.
Acolheu, ainda, o código alemão muito do que se conhece (e não vai aqui qualquer redundância) como direito germânico, por exemplo, na parte de família, sucessões e direitos reais.
Considerado como um código dogmático, pouco flexível e profundo, recebe, em geral como crítica, o rigor técnico de suas construções jurídicas, o que o torna pouco acessível a não juristas, além de ser demasiado abstrato, a prejudicar-lhe, ainda mais, a clareza. Também teve ele grande influência em muitos outros códigos civis, inclusive no brasileiro de 1916.
Eis alguns pontos que não podem ser ignorados em estudo mais profundo sobre as raízes do novo código civil brasileiro de 2002, que começou a viger em 2003.
O Código de 2002, nos seus 2.046 artigos (o código de 1916 contava com 1807) preservou muitas matérias, oferecendo-lhes idêntica disciplina à do Código Beviláqua, alterou tantas outras e, naturalmente, trouxe inovações de monta ao ordenamento positivo.
O novo diploma, como se sabe, tem uma Parte Geral, com três Livros (Livro I – Das Pessoas; Livro II – Dos Bens, e Livro III – Dos Fatos Jurídicos).
Assim, observe-se, desde logo (e, tão só quanto à estrutura) que, salvo com respeito a não ter agasalhado a Disposição Preliminar, nesse ponto não discrepa do Código de 1916.
No conteúdo das disposições, todavia, há alterações expressivas nessa Parte.
Quanto à Parte Especial, compõe-se de cinco Livros (mais um que o código anterior).
Além disso, o novo código tem um Livro Complementar, cuidando das Disposições Finais e Transitórias (do art. 2.028 ao art. 2.046), ao contrário do Código de 1916, que tinha, em suas Disposições Finais, apenas dois artigos: um, o de número 1806, que estabelecia sua entrada em vigor em 1º de janeiro de 1917, e, o outro (art. 1.807), declarando revogadas as Ordenações (o Livro IV das Filipinas, naturalmente, que vigera, com algumas alterações e adaptações, desde 1603) e os Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes, concernentes ao direito civil.
Não só o acréscimo de mais um Livro constitui a novidade da Parte Especial, mas também (e sobretudo) a disposição das matérias.
Ao contrário do código anterior, em que o Livro I cuidava do Direito de Família, o novo diploma começa pelo Direito das Obrigações, onde introduziu algumas inovações interessantes. Vejam-se três ilustrações: nas obrigações de não fazer foi assegurado, ao credor, a faculdade, em caso de urgência, de desfazer o ato ou mandar desfazê-lo, independentemente, de autorização judicial, sem prejuízo do ressarcimento devido; na solidariedade ativa, o julgamento contrário a um dos credores solidários não atinge os demais, já o julgamento favorável aproveita-lhes, a menos que se funde em exceção pessoal ao credor que o obteve, e, quanto ao lugar do pagamento, este “reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”.
Ainda nessa parte, isto é, do direito das obrigações, tem-se a merecer relevo a opção pela unificação (em boa parte) do direito privado, velho sonho de grandes juristas, sendo o bastante recordar-se a figura exponencial de Teixeira de Freitas.
Outra grande inovação encontra-se no Livro II, disciplinando o Direito de Empresas, já havendo quem fale em um direito empresarial.
De passagem, assinale-se que o novo código, em seu art. 2.045, revogou também, expressamente, a Parte Primeira do Código Comercial (Lei nº 556, de 25 de junho de 1850).
Do Direito das Coisas trata o Livro III. E, dentre as novidades introduzidas, tem-se a referente ao condomínio edilício (arts. 1.331 a 1.358), no Título III (Propriedade) e todo o Título IV, cuidando da superfície (arts. 1.369 a 1.377).
Por mera ilustração, registre-se que nessa parte o código disciplina a concessão da superfície. Enfim, disciplina o chamado direito de superfície, alcançando, inclusive, a constituída por pessoa jurídica de direito público interno, salvo no que for diversamente disciplinado em lei especial.
Por outro lado, no Título X do Livro III em referência (que disciplina o penhor, a hipoteca e a anticrese), no que diz respeito ao penhor, há dispositivos sem qualquer correspondência no Código Beviláqua, como os referentes ao penhor industrial e mercantil, ao penhor de direitos e títulos de créditos e ao penhor de veículos. O Livro IV cuida da família, cujas disposições gerais estão expressas nos arts. 1.511 a 1.516.
Nesse particular, observe-se de plano, que os princípios fundamentais da família emigraram, do Código Civil para a Constituição. É fenômeno que se observa no ordenamento jurídico brasileiro, antes mesmo da Constituição de 1988, mas, a partir desta, a disciplina ficou mais intensa e extensa.
Assim, colhem-se na Lei Fundamental os princípios basilares sobre a família, sabidamente, um conceito histórico, posto que a instituição tem mudado com o correr dos tempos.
A família é a base da sociedade e conta com especial proteção do Estado (art. 226, caput, da CF) e o casamento é civil (admitido o religioso, com efeito civil, nos termos da lei) e gratuita sua celebração (art. 226, §§ 1º e 2º). Ademais, a união estável entre o homem e a mulher é reconhecida como entidade familiar, contando também com a proteção do Estado e “devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (§ 3º do cit. art. 226).
Registre-se de passagem que relativamente a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, com respeito à união entre pessoas do mesmo sexo, não fala em um momento sequer em casamento, mas, tão só, em síntese, em reconhecimento de relações homoafetivas (para usar-se neologismo em voga).
Por outra parte, agregue-se que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. De par disso, “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
O casamento está disciplinado no Subtítulo I do Título I (Do Direito Pessoal), sendo que no Capítulo I estão suas disposições gerais, obviamente, com atenção ao texto constitucional.
Dessarte, tomem-se como exemplos, “o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direito e deveres conjugais” (art. 1.511 do CC) e “o casamento é civil e gratuita a sua celebração” (CC, art. 1.512).
Nos 11 capítulos seguintes, encontram-se as regras, respectivamente, sobre: a capacidade para o casamento, os seus impedimentos, as causas suspensivas, o processo de habilitação, a celebração, as provas do casamento, a invalidade, a eficácia do casamento, a dissolução da sociedade e do vínculo conjugal e a proteção dos filhos.
No Subtítulo II, estão disciplinadas as relações de parentes dispostas em cinco capítulos: disposições gerais, filiação, reconhecimento dos filhos, adoção e poder familiar.
Na realidade, o direito de família, no novo código, conta com disciplina distribuída por quatro títulos, a saber: I) o direito pessoal (que acaba de ser, de certo modo, resumido); II) o direito patrimonial (regime de bens entre cônjuges, usufruto e administração dos filhos menores, alimentos e bens de família); III) a união estável; e IV) a tutela e curatela.
O Livro V, como já registrado, cuida do Direito das Sucessões, distribuído por quatro títulos. São eles: da sucessão em geral (I), da sucessão legítima (II), da sucessão testamentária (III); e do inventário e da partilha (IV).
Nas disposições gerais, encontram-se inovações referentes à participação na sucessão da companheira ou do companheiro. Quanto à herança e sua administração, também muitas novidades foram introduzidas. Por exemplo: “É lícita a deixa ao filho do concubino, quando também o for do testador” (art. 1.803).
A rigor, algumas apontadas novidades não o são propriamente ditas, posto que reflexos ou decorrência da jurisprudência ou, até mesmo, da legislação extravagante anterior ao código de 2002.
Registre-se, ademais, o Livro Complementar, já anteriormente referido que, em termos práticos, não contém qualquer dispositivo correspondente no código de 1916.
Observe-se, agora, que em sua Parte Geral, e em particular no Livro I, que cuida das Pessoas (Naturais, Título I; e Jurídicas, Título II; além do domicílio, Título III) trouxe algumas inovações, como, por exemplo: a) a incapacidade relativa dos ébrios habituais, dos viciados em tóxicos e dos que por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; b) a disciplina sobre os direitos de personalidade; c) a maioridade aos 18 anos completos; e d) a aplicação às pessoas jurídicas, no que couber, da proteção dos direitos de personalidade.
No referente ao início da personalidade civil, em essência, conservou a disposição do Código Beviláqua. Veja-se: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (art. 2º).
Recorde-se o texto do código revogado de 1916: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos dos nascituros” (art. 4º).
Sabe-se que Clóvis Beviláqua,8 seguindo as pegadas de Teixeira de Freitas, tinha concepção mais ampla, no particular, do que a que fez consignar no texto do seu projeto. Em outras palavras, admitia ele também a existência da pessoa e da personalidade, anteriormente ao nascimento.
Teixeira de Freitas, no seu clássico esboço (art. 56) cuidou das pessoas por nascer: “São pessoas por nascer as que, não sendo ainda nascidas, acham-se, porém, já concebidas no ventre materno”.
De pronto observe-se que a redação do código de 2002, ao falar que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida (...)” é mais ampla (e há quem a considere mais feliz) do que a do diploma de 1916.
Contudo, o que ficou no Código de 1916 – permita-se a explicitação do óbvio – foi a proteção tão só do nascituro, sem referência a tratar-se de pessoa ou de qualquer aspecto outro vinculado à personalidade.
O professor J. C. Moreira Alves (in Direito Romano) observa que “no terreno patrimonial, a ordem jurídica, embora não reconheça no nascituro um sujeito de direitos, leva em consideração o fato de que, futuramente, o será (..)”. Em vista disso, o nascituro pode, por exemplo, ser instituído herdeiro num testamento. E, para resguardar o interesse do nascituro, a mulher que o está gerando pode requerer ao magistrado competente a nomeação de um curador: o curator ventris. E, acrescenta o citado autor: “Com base nesses princípios que foram enunciados pelos jurisconsultores clássicos, surgiu, no direito justinianeu, a regra geral de que o nascituro, quando se trata de vantagem em seu favor, se considera como se estivesse vivo (in rerum natura esse)”.
De passagem, veja-se, por oportuno, o disposto no art. 1.779 e seu parágrafo único, que, aliás, constituem transcrição servil do art. 462 e seu parágrafo do Código Beviláqua.
A proteção, pois, dos direitos do nascituro, vale dizer desse ser vivo (humano, evidentemente) ainda não nascido, é matéria, com efeito, que transcende da própria personalidade, que, consoante lição de Clóvis, “é a aptidão de alguém, para exercer por si os atos da vida civil”.
Por outro lado, recorde-se que é velha a discussão na doutrina sobre a unidade do direito privado (onde o direito civil compreenderia toda a matéria dessa grande divisão do direito) ou se se deve manter a dicotomia clássica, isto é, o direito civil de par com o direito comercial.
De passagem, assinale-se que, mais modernamente, já se aceita, de algum modo, por superada a própria dicotomia público e privado.
O Código Civil de 2002 acolheu a unificação do direito privado, pelo menos no que diz respeito ao direito das obrigações. Permanece, contudo, incólume boa parte da legislação referente ao direito mercantil.
Assim, se por um lado o novo diploma, em seu art. 2.045, é expresso na revogação da Parte Primeira do Código Comercial (Lei nº 556, de 25 de junho de 1850), dispõe, literalmente, no art. 2.037: “Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis”.
É, de certo modo, a consagração tardia das concepções de Teixeira de Freitas, que foi o pioneiro no Brasil, sobre o particular, malgrado a reivindicação, para si próprio, por parte de Silva Costa.
A propósito, Levi Carneiro, em Estudo Crítico-Biográfico, sobre o autor do Esboço, registra: “(...) Parece, contudo, que Silva Costa cuidara apenas da distribuição das matérias, sem ter proposto a inteira unificação, porquanto dizia: ‘As relações civis e comerciais constituem duas vastas especialidades, tendo, entretanto, pontos de contato, que chegam a identificar-se, com efeito certos contratos existem que participam dos mesmos caracteres, obedecem às mesmas causas geradoras, dando lugar a iguais efeitos, só diferenciando-os os fatos que os pactuantes têm em vista. A compra e venda, por exemplo, o mútuo, a locação o depósito e outros contratos têm a mesma conformação, devem por isso estar sujeitos aos mesmos preceitos dominantes’”.
Em verdade, a ideia de Teixeira de Freitas, no particular da unificação, desdobrava-se em duas partes, a saber: o Código Geral, que conteria os dispositivos fundamentais aplicáveis a todos os ramos do direito (uma espécie de Lei de Introdução ampla, para a aplicação do direito), e o Código Único de direito privado, ainda que sob a denominação do Código Civil.
No Esboço, todavia, Teixeira de Freitas, conserva o Código de Comércio. Vejam-se dois significativos artigos de seu genial trabalho: “Art. 1.899. Os contratos especialmente regulados pelo Código de Comércio, e seus efeitos, serão por ele julgados, sem haver distinção entre contratos civis e comerciais, não havendo no Código de Comércio disposição excepcional em contrário. Tal disposição determinará unicamente a competência do Juízo Comercial, ou para ambas as partes contratantes, ou só para uma delas”. E, no art. 1.900, está expresso: “Os contratos especialmente regulados pelo Código de Comércio, e seus efeitos, serão por ele julgados e só em subsídios, serão julgados pelas disposições deste Código que lhes forem aplicáveis”.
Por ilustrativo, recordem-se, como seguidores da mesma corrente pró-unificação, juristas como J. X. Carvalho de Mendonça, Lacerda de Almeida, Coelho Rodrigues, Carlos de Carvalho, Sá Viana, Basílio Machado, Inglez de Souza e Waldemar Ferreira, entre outros.
Observe-se, agora, que, na Parte Primeira (Do Comércio em Geral), que o Código Civil de 2002 expressamente revogou, se tinha o Título I, com quatro capítulos, cuidando dos comerciantes; o Título II, com a disciplina sobre as praças de comércio; o Título III, disciplinando os agentes auxiliares de comércio; o Título IV, tratando dos banqueiros; o Título V, contendo as regras sobre os contratos e obrigações mercantis; o Título VI, versando sobre o mandado mercantil; o Título VII com disciplina da comissão mercantil; o Título VIII, regulando a compra e venda mercantil; o Título IX, com a matéria sobre o escambo ou a troca mercantil; o Título X, contendo as regras sobre a locação mercantil; o Título XI, disciplinando o mútuo e os juros mercantis; o Título XII, com dois capítulos, com as normas sobre as fianças e as cartas de crédito e abono; o Título XIII, regrando, respectivamente, a hipoteca e o penhor mercantil, em dois capítulos; o Título XIV, contendo a disciplina do depósito mercantil; o Título XV, com três capítulos, tratando das companhias e sociedades comerciais; o Título XVI, que continha a disciplina sobre as letras, notas promissórias e créditos mercantis; o Título XVII, com três capítulos regulando os modos por que se dissolvem e extinguem as obrigações comerciais, e o Título XVIII, cuidando da prescrição.
As normas em referência estão todas expressamente revogadas (art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – redação dada pela Lei nº 12.376, de 30 de dezembro 2010).
Na realidade, dos 456 artigos constantes da Primeira Parte do Código Comercial, 91 artigos já haviam sido revogados por diplomas anteriores: arts. 68 a 73 (dos agentes de leilões), pelo Decreto-Lei nº 21.981/32; arts. 265 a 270 (da hipoteca e penhor mercantil), pelo Código Civil de 1916; arts. 295 a 299 (das companhias de comércio ou sociedades anônimas), pelo Decreto Lei nº 2.627/40, e este pela Lei nº 6.404/76, e arts. 354 a 427 (das letras, notas promissórias e créditos mercantis), pelo Decreto nº 2.044, de 31 de dezembro de 1908.
De par disso, boa parte dos dispositivos (que ainda não estavam revogados) encontra correspondência em artigos do Código Civil de 2002.
Por oportuno, assinale-se, uma vez mais, que o novo Código Civil tem, em sua Parte Especial, o Livro II, especificamente sobre o Direito de Empresas, disciplinado em quatro Títulos (o Título II, com dois subtítulos), do art. 986 ao art. 1.195.
Tomou a si o Código Civil de 2002 a disciplina dos empresários, da sociedade, do estabelecimento, dos institutos complementares.
Contém o código sucintas (e precisas) definições, no particular. Assim, o empresário é “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços”. O conceito de contrato de sociedade está expresso no art. 981, com um parágrafo, a saber “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obriguem a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício da atividade econômica e a partilha entre si, dos resultados. Parágrafo único. A atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados”.
A sociedade constitui o título mais longo do Livro em destaque, contando com um capítulo único sobre as disposições gerais e mais 11 capítulos específicos.
O conceito de estabelecimento está no art. 1.142, assim considerado “todo complexo de bens organizado, para o exercício da empresa, por empresário ou por sociedade empresária”.
Sob o manto de institutos complementares, o código de 2002 trata do registro, do nome empresarial, dos prepostos e da escrituração.
Merece destaque, dentro do princípio basilar da socialidade do código de 2002 (os outros dois, como se sabe, são o da eticidade e o da operabilidade), que o diploma prescreve que a lei deve assegurar tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes.
O fato é que já se fala hoje em um direito empresarial, ideia bastante robustecida com o novo Código Civil, que, como já enunciado, dedicou todo o Livro II, de sua Parte Especial, ao Direito de Empresa (arts. 966 a 1.195).
A par disso, há quem fale também no fim do Direito Comercial, enfatizando a unificação do direito privado, em particular quanto ao Direito das Obrigações (e, em face de que não haveria mais falar-
-se em atos de comércio, por exemplo), e, mais significativamente, por decorrência da revogação de toda a Parte Primeira do Código Comercial, pelo Código Civil de 2002 (art. 2.045, in fine).
Com efeito, vive-se, no ordenamento positivo brasileiro, a hora e a vez do empresário, assim considerado aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, repita-se.
Ouça-se a palavra, sempre autorizada, de Miguel Reale, quanto ao particular do destino do direito comercial, após o Código Civil de 2002: “(...) quero esclarecer (que) o direito de empresa incluído no Código Civil não significa de maneira alguma o fim do direito comercial. Esta é uma estrutura lógico-científica que diz respeito a determinada atividade jurídica, o que o código estabelece são apenas as normas gerais que também se aplicam no mundo dos negócios. Não realizamos, notem bem, a unificação do direito privado, longe de nós essa ideia. O que estabelecemos foi a unidade das obri-gações, pois essa ideia já era uma prática no Brasil. Em razão do absolutismo no Código Comercial de 1850, as questões eram resolvidas à luz do Código Civil de 1916. O Código Comercial, porém, não foi todo revogado. Só na parte geral, e as demais continuam em vigor com os complementos da parte empresarial. Esta estabelece as grandes diretrizes, menos as das sociedades anônimas e das cooperativas” (in palestra no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio de São Paulo).
De qualquer modo, a noção jurídica de “atos de comércio”, por sua vez, perdeu importância, posto que hoje não se há falar em um regime jurídico diferenciado para os atos jurídicos.
Tem-se, contudo, como evidente, que, muito embora siga existindo o direito comercial, experimenta ele nova fase de concentração, ou seja, na empresa.
Assim, dir-se-ia que, na longa história do Direito Comercial, após a fase subjetivista (centrada no comerciante), que foi sucedida pela objetivista (centrada nos atos do comércio), vive o direito comercial o tempo da empresa, como centro da sua própria existência.
Sobre a fase subjetivista, recorde-se, assinalou Alfredo Rocco: “Aos costumes formados e difundidos pelos mercadores, só estes estavam vinculados; os estatutos das corporações, isto é, aos inscritos na matrícula; e igualmente à jurisdição consular estavam sujeitos, somente, os membros da corporação” (in Princípios de Direito Comercial).
Com o Código Comercial francês de 1807 adviria a fase objetivista, quando se desloca a base do direito comercial, do comerciante para os atos de comércio.
Observa Joaquim Carriges (em uma tradução livre) que o direito comercial cessa de ser “o direito próprio dos comerciantes para tornar-se o direito próprio de uma classe de atos: os atos de comércio; mas entendendo esta expressão (ato de comércio) em sentido diverso do antigo. Enquanto nas compilações anteriores ao código francês o ato de comércio se referia sempre ao comerciante e à indústria mercantil, no código francês se desvincula pela primeira vez o ato de comércio da pessoa do comerciante e se reformula, assim, o conceito de ato objetivo de comércio que servia para fundar o sistema legislativo de muitas nações” (in Tratado de Derecho Mercantil).
A novidade trazida com o Código Civil de 2002 é, repita-se, mais uma vez, o Direito de Empresa e, mais particularmente, a figura jurídica do empresário.
Por ilustrativos (e bastante esclarecedores) transcrevam-se os arts. 967, 1.150 e 2.037 do Código Civil de 2002: “Art. 967. É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade”; “art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária”, e, “art. 2.037. Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis.”
Não bastara o até aqui visto, recorde-se que o direito comercial tradicional não cuidava apenas dos atos de comércio e do regime jurídico do comerciante, posto que de sua seara são também, por exemplo, o direito marítimo, o direito aeronáutico, a matéria referente à falência e à concordata, a disciplina sobre as marcas e patentes etc.
Sobre esse novo tempo do direito comercial, a propósito, observa Arnoldo Wald (in O Novo Código Civil, publicação em homenagem a Miguel Reale, sob a coordenação dos Ministros Domingos Franciulli Netto, Gilmar Mendes e Ives Gandra Martins Filho): “Podemos afirmar, assim, que está ultrapassada uma fase do direito comercial que fazia prevalecer sempre a vontade e o interesse dos detentores do capital. Na nova fase que se inicia com o Código Civil, instituiu-se uma verdadeira democracia empresarial que deve corresponder à democracia política vigorante no nosso país, substituindo-se o poder arbitrário do dono da empresa por um equilíbrio que deve passar a existir entre as diversas forças que cooperaram para a realização das finalidades empresariais.”
A propósito, parecem oportunas duas palavras sobre a chamada autonomia científica sobre os ramos do direito que, sabidamente, não se confunde com a autonomia formal, sabido que esta se expressa por diplomas legislativos.
A designada autonomia científica, como se sabe, exige a existência de um objeto único ou de objetos relacionados quanto à tutela. Assim como ocorre, por exemplo, entre o direito penal (cuidando de tipos penais e das sanções) e a criminologia (como ciência que tem objeto relacionado com esse ramo do direito).
Exige, ademais, a existência de princípios e institutos próprios.
Assim, no direito penal não se admite a analogia; no direito do trabalho são nulos, de pleno direito, os atos praticados com objetivo de desvirtuar, fraudar ou impedir a aplicação dos preceitos do diploma consolidado, valham as ilustrações, meramente exemplificativas.
Ademais, caracteriza, ainda, a autonomia a existência de expressões próprias e de método interpretativo diferenciado.
Nos direitos mais recentes, como o Direito do Consumidor, têm-se, como exemplos, a desconsideração da personalidade, a inversão do ônus da prova e tantas outras peculiaridades. E, no direito tributário encontram-se regras específicas no referente a interpretação.
De igual modo, no direito autoral, tem-se que se interpretam restritivamente os negócios jurídicos referentes ao dito direito, como também são reputados, como bens móveis (para todos os efeitos) os direitos autorais (expressão que abrange os direitos de autor e os direitos conexos).
Desnecessário assinalar que o direito comercial ajusta-se nesses indicadores referentes à autonomização. Não é preciso recordar-se mais, do que a importância que nele têm os usos e costumes e o quanto daí se extrai.
Impõem-se ainda algumas palavras sobre os princípios básicos do Código Civil de 2002.
Tal código obedece a três princípios ou valores fundamentais, a saber: o da eticidade, o da socialidade e o da operabilidade.
Com efeito, o código de 1916, certamente por influência dos pandectistas alemães (e não se esqueça a própria tradição luso-
-brasileira), tinha por ideal resolver o direito dentro dos seus estreitos limites, é dizer-se dar respostas às questões surgidas, dentro do ângulo da juridicidade. Em outras palavras, o jurídico como sinônimo do lícito e vice-versa.
O código de 2002, contudo, tem outras propostas, a começar por sua concepção sob a égide de grandes princípios, como já registrado.
Pode-se evidenciar, por exemplo, o principio da eticidade, em alguns dispositivos.
Assim, no art. 113, por exemplo, está expresso: “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Divisa-se aí, pois, uma condicionante na autonomia da vontade, posto que ela se sujeita à boa-fé, de par com a consideração à experiência consuetudinária, esta expressa pelos usos do lugar de celebração dos negócios em referência.
Ademais, dispõe o código de 2002, em seu art. 187: “Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Eis aí, mais uma vez, manifestação do princípio da eticidade, de par com o da socialidade.
Extrai-se, com toda a clareza, do código de 2002, que o titular de um direito não pode fazer dele o que bem entender, posto que seu exercício está sujeito a valores, expressos em uma unidade cogente, ou seja, o fim econômico, o fim social e a atenção à boa-fé e aos bons costumes.
A boa-fé é invocada, como valor e como limite, em outras disposições, sendo bem eloquente a dicção do art. 422: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”.
De igual sorte, o princípio da socialidade é uma das linhas mestras do Código Civil de 2002.
Longe está o dia, observe-se, da plena autonomia da vontade, quando se admitia, sem maiores reservas (como o fez o Código de Napoleão, em seu art. 1.134: “as convenções legalmente estabelecidas fazem leis entre as partes”), isto é, a vontade podendo também, como o Estado, criar direito.
Mais modernamente, essa concepção já vinha sendo mitigada, em atenção a questões de ordem pública. Agora, o que se tem, enfatiza-se, é que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Sabe-se que, a partir das primeiras décadas do século XX, adveio uma onda de proteção aos chamados direitos sociais, em relação aos quais as Constituições do México (de 1917) e a de Weimar (1919), por exemplo, foram marcos significativos.
O fato é que, a partir daí, a humanidade passa a conhecer (ou conceber) os direitos fundamentais de segunda geração, isto é, os direitos sociais.
A Constituição brasileira de 1934 era expressa (art. 113, 17): “É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo (...)”, e, a Constituição de 1988, no particular, é eloquente: “a propriedade atenderá a sua função” (art. 5º, XXIII). Ademais, dedicou todo o Capítulo II do Título II aos direitos sociais.
Por outro lado, é imposto ao juiz, na aplicação da lei, o dever de atender “aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (q. v. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – redação dada pela Lei nº 12.376, de 30 de dezembro de 2010).
Agora, tem-se que a própria liberdade de contratar só pode ser exercida “em razão e nos limites da função social do contrato”.
Ainda sob a ótica do princípio da socialidade, tem-se uma revolução copernicana no referente ao instituto da posse.
Tradicionalmente, a posse é estudada sob a visão que dela tiveram Savigny e Ihering, respectivamente, como suas teorias subjetiva e objetiva.
Como bem sabido, pela teoria subjetiva, a posse constitui-se pelo corpus e pelo animus domini. O corpus revelando-se pela detenção da coisa ou pela possibilidade de tê-la em mãos, e o animus pela intenção de tê-la (ou ocupá-la) como própria, como dono, o que se expressa bem pela expressão latina animus rem sibi habendi, ao pé da letra a intenção de ter a coisa para si.
Quanto à teoria objetiva, concebe ela que a posse mostra-se simplesmente, pela relação de fato estabelecida entre a pessoa e a coisa, com sua utilidade econômica.
Assim, a posse, repita-se, funda-se em uma situação de fato, onde a pessoa tem a coisa em mãos ou a tem a sua disposição, de modo que possa exercer direitos sobre ela, comportando-se como verdadeiro titular deles.
A novidade, em matéria de posse, sob o ângulo do princípio da socialidade, colhe-se no § 4º do art. 1.228 do código de 2002: “O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizando em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante”.
Por oportuno, registre-se que o caput do artigo em destaque está inserido nas disposições preliminares sobre a propriedade (e, nesse ponto, não traz qualquer novidade, posto que reproduz, em termos práticos, o caput do art. 524 do código de 1916), sendo expresso: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
De par do § 4º, assinale-se que também os §§ 1º, 2º e 3º estão sob a égide do princípio da socialidade.
Por último, quanto ao princípio da operabilidade, consigne-se que diz ele de perto com todas as medidas que ensejam a que o direito seja uma realidade imediata. Direito que não se realiza, ensina Ferrara, é um nada jurídico.
Na verdade, esse princípio, pode-se afirmar, decorre do que Mestre Reale designa direito como experiência e que outros juristas, como Karl Engisch e Karl Larenz, por exemplo, denominaram direitos concretos.
Exemplos que parecem bastante elucidativos da aplicação do princípio encontram-se no parágrafo único do art. 575: “Se o aluguel arbitrado for manifestamente excessivo, poderá o juiz reduzi-lo, mas tendo sempre em conta o seu caráter de penalidade”. Ou, diante da quase sempre tormentosa distinção entre decadência e prescrição, quanto os prazos relativos a esta foram todos fixados no código de 2002.
Por último, observem-se inovações quanto à filiação no Código Civil de 2002 e, ainda, breves considerações sobre a clonagem humana.
O Código de 2002, ao cuidar da filiação, trouxe, pelo menos, três inovações ao dispor (art. 1.597) que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos a) “por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido”; b) “a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga”; e c) “por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.
Fecundação artificial homóloga é a que ocorre, em hipóteses de infertilidade ou hipofertilidade da mulher. O que é feito artificialmente é tão só a fecundação, posto que não seja a mulher incapaz para a gestação. A fecundação é feita em laboratório e os embriões são introduzidos no corpo da mulher, para o desenvolvimento do processo natural; a partir daí, se a mulher for também incapaz para a gestação, os embriões podem ser levados ao útero de uma terceira pessoa. É o caso da chamada “barriga de aluguel”.
Embriões excedentários decorrentes de concepção artificial são aqueles que não foram utilizados em uma primeira fecundação artificial. Naturalmente, pode ocorrer a hipótese da utilização desses embriões quando o marido já esteja morto. Entende-se por inseminação artificial heteróloga aquela que ocorre quando o marido for infértil, e o óvulo de sua mulher, com sua prévia autorização, for fecundado por espermatozoide de um doador.
Enfim, as três hipóteses inovadoras referem-se a inseminação, fecundação ou concepção com desenvolvimento em um útero, vez que o Código não cuidou de nascituros fertilizados in vitro.
Não tratou também o Código (e, mais uma vez, com acerto) da clonagem humana. Assim, críticas que lhe fazem no particular, pode-se afirmar que são de todo improcedentes.
Recorde-se que o século XX foi assinalado por três megaprojetos, a saber: o Manhatan, que, de um lado, descobriu a energia nuclear, que é utilizada, por exemplo, na cura do câncer, mas também produziu as tragédias de Hiroshima e Nagasaki; o Apolo, que levou o ser humano ao espaço sideral; e o Genoma Humano, que teve início em 1990, com o objetivo de mapear (e ter a sequência) de todos os genes humanos, portadores de segredos biológicos e genéticos.
O projeto genoma humano, a rigor, tem suas raízes na descoberta do DNA (ácido desoxirribonucleico), em 1954, por Watson, Crick e Rosaling Franklin.
A partir daí fala-se até mesmo em uma era genômica, ou em uma revolução biológica, como expressão sinônima de uma nova revolução industrial. Ademais, fala-se que a humanidade vive a fase da medicina preditiva, após passar pelas medicinas preventiva e curativa.
Os geneticistas, por sua vez, em face das conquistas do projeto em referência, falam em cerca de quatro mil doenças (ou um pouco menos) de origem genética. Todavia, eles próprios se adiantam em afirmar que a medicina preditiva pode prever doenças genéticas, mas ainda não pode curá-las.
Uma primeira questão, desde logo, se põe, qual seja, a que se refere aos benefícios que esses avanços (se é que se pode designar assim) podem, efetivamente, trazer para a espécie humana. De outra parte (e não menor é a perquirição), impõe-se indagar sobre os limites éticos admissíveis para a tecnociência.
De plano, assinale-se que nem tudo o que é cientificamente possível é eticamente admissível.
A propósito, registre-se, desde logo, advertência do Dr. Wilmut (o “pai” da ovelha Dolly): “Não clonem seres humanos! A expectativa em torno da clonagem humana é de abortos tardios, crianças mortas e sobreviventes com anomalias”.
Recorde-se que, para o sucesso da clonagem da Dolly, a experiência foi precedida de muito mais do que duas centenas de tentativas, e a ovelhinha, ao completar 3 (três) anos, já tinha características de envelhecimento de sua matriz (poder-se-ia dizer mãe?) que contava então oito anos.
Não por acaso, Harry Griffin, do próprio Instituto Rosling (onde se clonou a ovelha), afirmou: “As chances de sucesso na clonagem humana são tão pequenas que é irresponsável encorajar as pessoas a acreditarem nesta possibilidade”. Muito provavelmente um clone humano já traria, incipientes, desde o “nascimento”, todas aquelas doenças degenerativas mais comuns de uma pessoa adulta: reumatismo, artrites, diabetes etc.
Assinale-se que, após a transcrição de cerca de 90% de todo o DNA contido nos cromossomos (o que representa apenas um por cento de todo o código genético), os cientistas tomaram conhecimento de que o número de genes é de apenas 30 (trinta) mil, ao invés dos 100 (cem) mil que imaginavam que formam “desertos” a ensejarem uma infinidade de combinação de variáveis.
Esse quadro levou Collins, considerado como “o comandante do projeto genoma”, a proclamar: “o Genoma é um livro texto de medicina numa linguagem que ainda não podemos compreender”.
Mais do que nunca, pois, impõe-se o entrelaçamento entre a ciência e a ética, e hoje fala-se muito em bioética, o que equivale a usar-se o conhecimento científico, nos limites éticos, para o bem da humanidade.
Leo Pessini, doutor em teologia moral, com área de concentração em bioética, com oportunidade, observa: “Frente ao imperativo tecnológico temos que contrapor o imperativo ético. Neste cenário surge com urgência a bioética, como novo rosto da ética científica. É por isso que os organismos internacionais e comissões nacionais de genética, dos países desenvolvidos estão elaborando normas éticas, diretrizes para orientar a pesquisa científica nesta área. Entre os documentos mais importantes já produzidos temos a Declaração Universal do Genoma Humano de 1997. Trata-se de um verdadeiro hino à dignidade humana. É importante observar que em todas as publicações da grande imprensa brasileira, seja escrita, falada ou televisada, houve um grande silêncio em relação a este documento que no fundo complementa a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), para a era genômica” (in Biotecnologia e Genômica: algumas reflexões bioéticas).
No Brasil, por exemplo, a Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, é expressa, no seu art. 8º, II: “É vedado, nas atividades relacionadas a OGM (organismo geneticamente modificado), a manipulação genética de células germinais humanas”.
A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, de 1997, por sua vez, é muito clara, na vedação em tela. No seu art. 11, por exemplo, está expresso: “Não serão permitidas práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem reprodutiva de seres humanos. Os Estados e organizações internacionais são convidados a cooperar na identificação de tais práticas e a determinar, nos níveis nacional ou internacional, as medidas apropriadas a serem tomadas para assegurar o respeito pelos princípios expostos nesta Declaração”.
Outra coisa, contudo, é a chamada clonagem terapêutica, onde, em princípio, não haveria problema de ordem bioética ou jurídica. Isso, todavia, não seria matéria para um Código Civil.
34. As origens do direito civil
Por último, a propósito do advento de um novo Código Civil, talvez seja oportuno um registro (ou uma reflexão) sobre as origens mais remotas do próprio direito civil.
Com efeito, quando se procura saber o que foi o direito civil entre os romanos, observa-se que nem sempre é fácil estabelecer-se, com precisão, o que foram propriamente o jus civile (o direito civil), o jus quiritium (o direito quiritário), o jus gentium (o direito das gentes) e o jus honorarium (o direito honorário) ou, também designado, jus praetorium (o direito dos pretores), por exemplo.
Os romanistas, contudo (ou, ao menos, pode-se falar em uma corrente predominante) aceitam os conceitos seguintes: o jus civile era o direito próprio dos cidadãos romanos (jus proprium civium romanorum) ou como o queria, de forma mais ampla e genérica, o jurisconsulto Paulus: “Aquele que, em cada cidade, é útil para a generalidade das pessoas” (quod ommnibus aut pluribus in quaquo civitates utile est, ut est civile).
Assim, sob essa ótica, o jus civile era o direito de cada cidade e útil à generalidade das pessoas.
Desde logo, recorde-se que Roma estava dividida em classes sociais (patrícios, plebeus e clientes, excluídos aqui os escravos, que eram considerados coisas) e que só os patrícios gozavam de todos os direitos civis e políticos (como o jus sufragii (direito de sufrágio), isto é, o direito de votar nos comícios; o jus conubii (o direito de casamento), vale dizer, o direito de contrair casamento, e tantos outros.
Para muitos autores, o jus quiritium (o direito quiritário) era sinônimo de jus civile, ou seja, era o direito próprio e peculiar dos cidadãos romanos (dos patrícios, naturalmente).
Apesar de, não raro, a expressão quiritium expressar o próprio jus civile, repita-se, muitos romanistas o entendem apenas como o direito arcqico, que se estende desde as legendárias origens de Roma até o século V antes de Cristo, centrando-se na Lex Duodecim Tabularum (Lei das Doze Tábuas).
Acontece que a própria Lei das XII Tábuas, que Titus Livius considerava a fonte de todo o direito público e privado (fons omnis publici privatique juris), também não escapa a esse quadro legendário, havendo, até mesmo, quem a aponte como apócrifa.
A propósito (sobre o particular da autenticidade) recordem-se, por ilustrativas, as teses de Ettore Pais, Lambert e Girard.
Discussões e polêmicas à parte, em geral aceita-se que a redação da Lex Duodecim Tabularum realizou-se entre os anos de 451 e 450 a.C. pelos decênviros (dez varões), como são conhecidos os legisladores aos quais é atribuída sua autoria.
Desse código romano, do qual não resultou nenhuma versão completa, sabe-se que com ele vieram, para os plebeus, algumas conquistas em matéria de igualdade de direitos, como, por exemplo, que em certas matérias devesse o direito ser público (isto é, conhecido por todos e não apenas por alguns privilegiados) e escrito (ou seja, não consuetudinário), além de aplicável a patrícios e plebeus, indistintamente.
Já por jus gentium, entende-se o direito mais universal, alcançando a todos os homens livres e não apenas ao civis romanum (cidadão romano).
Na realidade, o jus gentium foi durante muito tempo o direito dos estrangeiros ou dos peregrinos.
Observou R. Sohn, em sua obra clássica, Instituições, História e Sistema do Direito Privado Romano: “A história do direito romano teve grandes períodos: a época do direito da cidade (até o último século da República) – de passagem recorde-se que o período chamado de República foi de 510 a.C. até 27 a.C – é a época do direito universal (no tempo do império) – como se sabe o que é conhecido como Império em Roma foi de 27 a.C. a 565 d.C – No primeiro prevalece o direito estrito formal e nacional – o romano (latino) –, o direito civil à moda antiga; no segundo, o direito equitativo, livre de formas, a mercê do comércio internacional (jus gentium) e do intercâmbio do romanismo e do helenismo – o direito civil do futuro”.
Em síntese, o jus gentium transformou o jus civile de direito de um povo determinado – o romano, evidentemente – em um direito universal.
Quanto ao jus honorarium ou jus praetorium, que tanto impressionou a Savigny como formação não legislativa do direito, recorde-se, foi ele o resultado do labor dos magistrados.
Em verdade, o jus honorarium ou praetorium foi o direito que os magistrados criaram para ajudar a suprir ou, até mesmo corrigir o jus civile ou, consoante a lição de Papiniano, “direito criado pelos pretores, por utilidade pública: com fim de secundar, completar ou corrigir o direito civil”. É o que se colhe, ipsis litteris, no Digesto: jus praetorium est quod praetores introduxerunt adjuvandi vel supplendi vel corrigendi juris civiles gratia propter utilitatem publicam (D.I, I.7.I).
O direito pretoriano, sem embargo de sua enorme importância, possuía algumas limitações.
Em primeiro lugar sua esfera de aplicação só se estendia à jurisdição do pretor, ao contrário da lex, que valia para todo o Império; em segundo lugar o edito do pretor tinha uma limitação temporal, posto que sua validade era apenas de um ano, enquanto a lei (lex) tinha seu caráter de permanência, e, ademais, o edito do pretor, se bem que pudesse até corrigir o direito civil (em sua aplicação) não podia, a rigor, revogá-lo.
De outra parte, para que se possa recordar a importância do direito romano (aqui considerado como um todo), basta que se tenha em mente o que ocorreu após a queda do Império Romano do Ocidente, no ano de 476 da era cristã.
Como bem sabido, após o importante evento, ruiu a Pax Romana e uma nova ordem bárbara – se é que se pode designar assim – foi implantada, destruindo os fundamentos essenciais da cultura antiga, nos mais diferentes aspectos.
Todavia, os bárbaros deixaram subsistir a legislação imperial, ainda que, por vezes, aplicável somente aos súditos romanos (àquela altura, dominados). Acrescente-se que se valeram de tal legislação também para regular relações jurídicas entre os bárbaros (se bem que mantivessem, basicamente, os costumes tribais) que, em muitos casos, também se inspiravam em fontes romanas (como os códigos gregoriano, hermogeniano, teodosiano, as institutas de Gaio, as sentenças de Paulo etc.). Exemplo significativo foi a Lex Gondebalda (lei Gondebalda) ou Lex Roma Borgundiorum (lei romana dos borguinhões ou borgúndios), promulgada pelo rei Gondebaldo da Borgonha, para o seu povo.
Como já anteriormente assinalado, em decorrência do Código Comercial (Lei nº 556, de 25 de junho de 1850), recorde-se, adveio também o Regulamento nº 738 (Lei de 25 de novembro de 1850) que, quase cinco anos depois, foi modificado pelo Decreto nº 1.597, de 1º de maio de 1855.
A Lei nº 738 regulamentou precisamente a parte terceira do citado código que, como se sabe, tratava das quebras.
Assim, foram disciplinados o processo das falências e o funcionamento dos tribunais de comércio.
Seguiram-se-lhe outros diplomas como, por exemplo, a Lei nº 1.083, de 22 de agosto de 1860, dispondo sobre as hipóteses de falência dos bancos de circulação, enquanto o Decreto nº 2.691, de 14 de novembro do mesmo ano, cuidou das falências das sociedades anônimas.
Em 1864, conheceu o país grande crise comercial, o que fez gerar o Decreto nº 3.308, de 17 de setembro de 1864, tratando da falência bancária, e o Decreto nº 3.516, de 30 de setembro de 1865, que acabou sendo declarado sem efeito pela cessação dos motivos que o fizeram gerar, remanescendo, portanto, o citado Decreto nº 3.308.
Com o Decreto Legislativo nº 3.605, de maio de 1882, que alterou a redação dos arts. 844 e 847 do Código Comercial, foi permitida a concordata por abandono.
Proclamada a república, surgiu o célebre Decreto nº 917, de 24 de outubro de 1890, fruto em grande parte do saber jurídico de Carlos Carvalho (já que, como se tem notícia, em sua elaboração houve a colaboração de terceiros), que introduziu importantes inovações no processo de falência.
O Decreto nº 917 instituiria, como meio preventivo da declaração da falência, a moratória, a cessão de bens, o acordo extrajudicial e a concordata preventiva.
Naturalmente, houve muitos abusos em sua aplicação, inclusive práticas muito pouco éticas, o que fez surgir quase que um clamor propugnando por sua reforma.
A emenda, porém, veio pior que o soneto, posto que a precipitada Lei nº 859, de 16 de agosto de 1902, acabou por se transformar em porta aberta para as mais elevadas fraudes, com apoio em seu texto contraditório ou ambíguo.
Em verdade, admite-se que, ao invés de “lei de salvação do comércio honesto” foi um monumento à corrupção.
Ilustre-se apenas com um fato: a figura dos síndicos, designados pelas juntas comerciais.
Na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a verve carioca não poupou os 40 síndicos nomeados para o então Distrito Federal, logo apelidados de Ali-babás.
Tão insatisfatória a Lei nº 859 que, cerca de 10 meses após sua edição, foi expedido um regulamento baixado pelo Decreto nº 4.855, de 2 de junho de 1903, publicado no Diário Oficial de 4 de junho do mesmo ano.
Daí resultaria fato curioso. É que, sob o pretexto de ter saído publicado com incorreções, no Diário Oficial de 7 de junho de 1903, foi novamente publicado o decreto, e juntamente com ele também a Lei nº 859, só que com textos em divergência com os originários.
Desnecessário registrar a celeuma que daí decorreria.
Isso conduziu à elaboração de um novo projeto, que, inclusive, se apoiou em trabalho do notável comercialista José Xavier Carvalho de Mendonça.
Gerava-se, assim, a Lei nº 2.024, de 17 de dezembro de 1908, que também se inspirou no Decreto nº 917, de 1890.
Essa lei objetivava aperfeiçoar as disposições sobre falência, “conforme o progresso cientifico e a jurisprudência dos tribunais, aplicando-as segundo as necessidades práticas e modificando-as, quando houver mister debelar a fraude e a má-fé”.
Spencer Vampré, criticando a legislação de falência, em especial a então relativamente recente Lei nº 2.024, de 1908, observou, “ao encararmos os defeitos de uma legislação qualquer sobre falência, devemos levar em conta, em primeira linha, a fatal imperfeição deste instituto.
Necessitando, por um lado abranger toda atividade mercantil, em seus multiformes aspectos, e produzir efeitos não só quanto ao devedor como a terceiros, em uma palavra, devendo a falência instaurar juízo universal, onde brevemente se discutem e decidem as mais transcendentes questões jurídicas e mercantis, e, por outro lado, sendo o processo de liquidação rápido e terminante, não podem as respectivas regras contentar a todos.
Ninguém se persuade facilmente a desfalcar o seu patrimônio, e no mar da falência naufragam muita vez, as melhores ilusões de credores honestos e de boa-fé.”
E, apoiando-se em Segóvia (Explicación y crítica del Nuevo Código de Comércio Argentino), prossegue Vampré: “Da complexidade, criada por todos esses elementos, nasceu o considerar-se a falência uma verdadeira quadratura do círculo”.
A Lei nº 2.024 sofreu modificações de pequena monta, em 1929 (Lei nº 5.746) e acabaria revogada pela Lei de Falências, advinda pelo Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945 (que sofreu algumas alterações como, por exemplo, as introduzidas pela Lei nº 4.993/66), e foi revogado pela Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e que entrou em vigor em 10 de junho de 2005, por efeito da vacatio legis (de 120 dias) expressa no art. 192.
Rubens Approbato Machado,9 na Introdução que intitulou Visão Geral da Nova Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que reforma o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945 (Lei das Falências) e cria o instituto da recuperação da empresa, observa sobre o Decreto-Lei nº 7.661/45: “Essa norma deu relevo ao instituto da falência, com a previsão da continuação do negócio por parte do falido, e da concordata (preventiva e suspensiva) como um favor legal ao comerciante, desde que obedecidos os requisitos fixados no citado decreto-lei. Na falência todos os credores se sujeitam aos seus efeitos – é o denominado ‘juízo universal’. Na concordata, apenas os credores quirografários a ela se submetem”.
De passagem, recorde-se que credor quirografário, tradicionalmente, é o desprovido de qualquer garantia real ou pessoal, relativamente à exigência do seu crédito. Em outras palavras, é o credor sem direito de preferência ou garantia real, distinguindo-se bem dos credores privilegiados ou preferenciais aos quais assistem, como bem sabido, os privilegia exigendi (em vernáculo, privilégios de exigir), naturalmente, o crédito.
Como quirográfico, ao pé da letra, significa escrito do próprio punho ou autógrafo (a nota promissória, por exemplo, revela-se, repita-se, um quirógrafo), não é demasiado frisar-se que a qualidade de credor quirografário significa que ele está desprovido de qualquer garantia real ou pessoal, relativamente à exigência de seu crédito, pouco importando que este seja representado por documento ou título assinado pelo devedor (quirográfico) ou resultante de um contrato (síngrafo).
Voltando-se às observações iniciais de Rubens Approbato Machado, registre-se: “A falência (com a previsão da continuação do negócio) e a concordata, ainda que timidamente permitissem a busca da recuperação da empresa, no decorrer da longa vigência do Decreto-Lei nº 7.661/45 e ante as mutações havidas na economia mundial, inclusive com a sua globalização, bem assim nas periódicas e inconstantes variações da economia brasileira, se mostraram não só defasadas, como também se converteram em verdadeiros instrumentos de própria extinção da atividade empresarial. Raramente uma empresa em concordata conseguia sobreviver e, mais raramente ainda, uma empresa falida era capaz de desenvolver a continuidade de seus negócios. Foram institutos que deixavam as empresas sem qualquer perspectiva de sobrevida. Com a manutenção do modelo constante do Decreto-Lei nº 7.661, se extinguiam, periodicamente, fontes de produção, geradoras de empregos, de créditos, de tributos, de gerência social e de fonte de fortalecimento da economia brasileira.
Esse quadro levou à necessária produção de uma reforma substancial da Lei de Falências, com o objetivo principal de preservação da empresa, dentro de seu novo conceito de fonte geradora de bens patrimoniais, econômicos e sociais”.
Por oportuno, registre-se ainda que o advogado R. Approbato Machado reconhece como de valor jurídico o relatório do senador R. Tebet, na Comissão dos Assuntos Econômicos do Senado, quando da apreciação do Projeto de Lei nº 71, que viria a transformar-se na Nova Lei de Falências.
Desse documento, ressaltam-se 12 princípios, adotados na análise do projeto e nas modificações propostas.
Em resumo, são eles: 1. preservação da empresa; 2. separação dos conceitos de empresa e de empresário; 3. recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4. retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5. proteção aos trabalhadores;
6. redução do custo do crédito no Brasil; 7. celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8. segurança jurídica; 9. participação ativa dos credores; 10. maximização do valor dos ativos do falido;
11. desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 12. rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial.
A nova Lei de Falências, em seu capítulo II (com quatro seções), cuida das disposições comuns à recuperação judicial e à falência propriamente dita.
Na Seção I (art. 5º) têm-se as disposições gerais definindo, de plano (art. 5º), o que não é exigível do devedor tanto na recuperação judicial quanto na falência, a saber: I – as obrigações a título gratuito; e II – as despesas que os credores fizerem para tomar parte na recuperação judicial ou na falência, salvo as custas judiciais decorrentes de litígio com o devedor.
Nessas disposições gerais, encontra-se regra da maior importância, versando sobre a suspensão do curso da prescrição, bem como de todas as ações e execuções em face do devedor.
É expresso o diploma (art. 6º), no particular: “A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário”.
Normas de procedimento (e, dir-se-ia, algumas de exceção) com respeito à disposição em relevo encontram-se em sete parágrafos. E merecerem destaque, pelo menos, três deles, a saber, o 2º, o 4º e o 7º, respectivamente: “É permitido pleitear, perante o administrador judicial, habilitação, exclusão ou modificação de créditos derivados da relação de trabalho, mas as ações de natureza trabalhista, inclusive as impugnações (...) serão processadas perante a justiça especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral dos credores pelo valor determinado em sentença” (§ 2º); “na recuperação judicial, a suspensão (isto é, a do curso da prescrição e a de todas as ações e execuções em face do devedor) em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial” (§ 4º), e “as execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica” (§ 7º).
Por oportuno, ressalte-se aqui o advento da Lei Complementar nº 118, de 9 de fevereiro de 2005 (e não por acaso é da mesma data da nova Lei de Falências e foi publicada no mesmo Diário Oficial da União, de 9 de fevereiro 2005), que, dentre outras disposições, dá nova redação aos arts. 186 e 188 do CTN. Veja-se: “Art. 186. O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente do trabalho”.
Desde logo, observe-se que, como alteração, além do acréscimo referente a crédito decorrente da legislação do acidente do trabalho houve o de um parágrafo único, com três incisos, precisamente vinculados à falência, a saber: “Parágrafo único. na falência: I – o crédito tributário não prefere aos créditos extraconcursais ou às de importância passíveis de restituição, nos termos da lei falimentar, nem, aos créditos com garantia real, no limite do valor do bem gravado; II – a lei poderá estabelecer limites e condições de preferência dos créditos decorrentes da legislação do trabalho; e III – a multa tributária prefere apenas aos créditos subordinadores”.
Já a nova redação do art. 188 diz que “são extraconcursais (ou seja, fora do concurso de credores) os créditos tributários decorrentes de fatos geradores ocorridos no curso do processo de falência”.
A Seção II das disposições gerais, referentes às disposições comuns à recuperação judicial e à falência, cuida (de modo pormenorizado) da verificação e da habilitação de créditos, inclusive com disciplina extravagante de ordem processual civil.
Assim, em 14 artigos (do art. 7º ao 20, com respectivos parágrafos e incisos) disciplina a matéria, parecendo oportuno destacar que “a verificação dos créditos será realizada pelo administrador judicial, com base nos livros contábeis e documentos comerciais e fiscais do devedor e nos documentos que lhe forem apresentados pelos credores, podendo contar com o auxílio de profissionais ou empresas especializadas” (art. 7º).
O contido do dispositivo in fine não se trata de perícia, mas tão só de auxílio especializado. Em outras palavras, não se cuida aí de prova a depender de conhecimento técnico ou científico, mas de ajuda ao administrador judicial no exame dos livros e documentos apresentados, pelos respectivos credores, que só pode ou só deve ser praticado por profissionais ou pessoas jurídicas especializadas.
O administrador judicial, nomeado pelo juiz (art. 52, I, da Lei nº 11.101/05), com base nas informações e documentos colhidos, fará publicar edital (com prazo assinado pela lei), contendo a relação de credores, com a indicação de local, horário e prazo, para que os (legal ou legitimamente) interessados possam examinar os documentos e (ou) elementos que fundamentaram sua elaboração.
Homologado o quadro geral de credores, aqueles que eventualmente não habilitaram seu crédito poderão (nos termos do Código de Processo Civil) requerer ao juízo de falência ou da recuperação judicial) a respectiva habilitação que, em sendo procedente, ocasionará, obviamente, a retificação do aludido quadro.
Ocorrendo, eventualmente, impugnação aos créditos os respectivos credores serão intimados a se manifestar sobre elas com prazo de cinco dias, juntando documentos e outras provas que reputem necessárias.
Da decisão judicial sobre a impugnação cabe agravo para a Corte ad quem.
Tal agravo inominado está próximo do agravo de instrumento, prescrevendo a lei, expressamente: “Recebido o agravo, o relator poderá conceder efeito suspensivo à decisão que reconhecer o crédito ou determinar a inscrição ou modificação do seu valor ou classificação no quadro geral de credores, para fins de exercício de direito de voto em assembleia-geral” (parágrafo único do art. 17 da Lei nº 11.101/05).
A nova Lei de Falências prevê, ademais, duas figuras essenciais, uma (em princípio) singular e outra coletiva: o administrador judicial e o comitê de credores.
Quando se diz em princípio, ao referir-se ao administrador em destaque, é porque tal função essencial, no novo ordenamento positivo sobre matéria do direito dito falimentar, pode recair em pessoa jurídica especializada.
Na realidade, a lei estabelece que o administrador judicial deve ser profissional idôneo, sendo de preferência advogado, economista, administrador de empresas ou contador, ou (ainda) pessoa jurídica especializada.
O administrador judicial (cujas atividades são exercidas, sob a fiscalização do juiz e do comitê dos credores) tem ampla competência, que, por vezes, é a mesma tanto com relação à recuperação judicial e à falência (v. art. 22, I, alíneas de a a i) e, por outras, específicas quando se tratar de recuperação judicial (inciso II, alíneas a a d) ou de falência (inciso III, alíneas a a r).
Prevê a Lei nº 11.101/05 a existência de um comitê de credores, cuja composição e atribuições expressamente define.
Tal comitê deve ser constituído, por deliberação de qualquer das classes de credores em assembleia geral, e compõe-se de um representante indicado pela classe de credores trabalhistas, um outro, representante indicado pela classe dos direitos reais de garantia ou privilégios especiais e um representante indicado pela classe dos credores quirografários e com privilégios gerais, cada qual com dois suplentes.
Se, porventura, faltar a indicação de representante de quaisquer das classes, não será motivo inibidor para que funcione o comitê, posto que ele pode atuar com número inferior ao previsto.
De outra parte, pode o juiz, mediante requerimento subscrito por credores que representem, pelo menos, a maioria dos créditos de uma classe, determinar a nomeação do representante (e seus suplentes), independentemente da realização de assembleia.
Por outro lado, pode também o juiz, mediante o mesmo procedimento, determinar a substituição do representante (e seus suplentes) de respectiva classe.
Cabe aos membros do comitê indicar, dentre eles, quem deve presidi-lo.
O comitê tem atribuições que são as mesmas para as hipóteses de recuperação judicial e de falência, bem como outras exclusivamente para situações de recuperação judicial.
Do que se poderia designar de atribuições comuns, tem-se: a) fiscalizar as atividades e examinar contas do administrador judicial; b) zelar pelo bom andamento do processo e pelo cumprimento da lei; c) comunicar ao juiz competente casos em que detecte violação dos direitos e (ou) prejuízo aos interesses dos credores; d) apurar e emitir parecer sobre reclamações que lhe forem apresentadas, naturalmente, pelos interessados; e) requerer ao juiz a convocação da assembleia geral de credores; e f) manifestar-se nas hipóteses em que, por efeito de lei, deva fazê-lo.
Especificamente, na recuperação judicial a Lei nº 11.101/05 conferiu-lhe três atribuições essenciais: a) fiscalizar a administração das atividades do devedor, apresentando, a cada 30 (trinta) dias, relatório de sua situação; b) fiscalizar a execução do plano de recuperação judicial, e c) submeter à autorização do juiz, quando ocorrer o afastamento do devedor (nas hipóteses previstas na Lei nº 11.101/056), a alienação de bens do ativo permanente, a constituição de ônus reais e outras garantias, bem como atos de endividamento necessários à continuação da atividade empresarial durante o período que antecede a aprovação do plano de recuperação judicial.
O comitê decide por maioria dos seus membros, sendo tudo consignado (ou lavrado) em livro de atas, obrigatoriamente rubricado pelo juízo, livro esse que deve ficar sempre à disposição do administrador judicial, dos credores e do devedor.
Se ocorrer a hipótese de não ser possível uma decisão majoritária, a competência para decidir passa para o administrador judicial e, se este tiver incompatibilidade em relação à matéria vinda ao seu exame, caberá ao juiz decidir.
De igual sorte, se não houver comitê, cabe ao administrador judicial decidir ou, na sua incompatibilidade, ao juiz.
Quanto à remuneração do comitê, observe-se que ela não é custeada pelo devedor ou pela massa falida, mas as despesas comprovadas (e que, naturalmente, se refiram à realização de ato previsto na Lei nº 11.101/05) e efetuadas com a autorização do juiz, serão ressarcidas atendendo às disponibilidades de caixa.
Anote-se, agora, que estão impedidos de integrar o comitê de credores ou de exercer as funções de administrador judicial, quem nos últimos 5 (cinco) anos foi destituído da função de administrador ou membro do comitê ou, ainda, deixou de prestar contas dentro dos prazos legais ou teve a prestação delas desaprovada.
Ademais, são também, impedidos aqueles que tiverem relação de parentesco ou afinidade até o 3º (terceiro) grau com o devedor, seus administradores, controladores ou representantes legais bem como deles forem amigos, inimigos ou dependentes.
Observe-se que a lei em destaque fala tão só em amigo ou inimigo, sem cuidar da adjetivação como no CPC em seu art. 135, I, a saber: amigo íntimo ou inimigo capital.
Por certo, a doutrina exigida sobre a disposição instrumental em destaque informará a aplicação da regra contida no § 1º do art. 30 da Lei nº 11.101/05.
Em apertada síntese, recorde-se que a doutrina (de modo predominante) tem entendido que “apenas devem ser considerados como causas de suspeição do juiz (se bem que a nova Lei de Falências cuida de particular com impedimento) sua íntima, profunda e fraternal amizade com a parte, ou pela inimizade, fundada no rancor e no desejo de infelicidades ou desejo de vingança contra o desafeto”.10
Conferiu a lei, por outro lado, legitimidade ao devedor, a qualquer credor e ao Ministério Público, para requererem ao juiz a substituição do administrador judicial ou dos membros do comitê, que tiverem sido nomeados em desobediência ao diploma legal em exame.
O prazo para o juiz decidir sobre o requerimento é de 24 horas.
Pode ainda o juiz – acrescente-se, de ofício ou a requerimento de qualquer interessado (obviamente, no sentido processual do termo) – determinar a destituição do administrador judicial ou de quaisquer dos membros do comitê de credores, quando verificar desobediência à Lei nº 11.101/05, descumprimento de deveres, omissão, negligência ou prática de ato lesivo às atividades do devedor ou a terceiros.
No ato de destituição, o juiz nomeará novo administrador judicial ou convocará suplentes para recomporem o comitê.
Por último, nesse tópico, registre-se que o administrador judicial e os membros do comitê respondem pelos prejuízos causados à massa falida, ao devedor ou aos credores por dolo ou culpa, assegurando a lei ao dissidente (e para o fim de eximir-se de responsabilidade) que consigne sua discordância em ata. Em outras palavras, o registro de que não está de acordo com a deliberação do comitê, e ipso facto vota contrariamente a ela.
A Lei nº 11.105/05 prevê, ainda, a figura da Assembleia Geral de credores com atribuições específicas (e distintas) para deliberar na recuperação judicial ou na falência.
Na recuperação judicial, onde a assembleia em referência funciona como um dos seus órgãos, são cerca de cinco suas atribuições, a saber: 1) aprovar, rejeitar ou modificar o plano de recuperação judicial aposentado pelo devedor; 2) a constituição do Comitê de Credores, bem como a escolha de seus membros e respectiva substituição; 3) apreciar o pedido (excepcional) de desistência do devedor. Quando se designa de excepcional tal pedido – registre-se desde logo – é porque, como se sabe, não pode o devedor desistir do pedido de recuperação judicial depois de deferido seu processamento, salvo se obtiver a aprovação da desistência pela aludida assembleia geral); 4) aprovar o nome do gestor judicial, quando do afastamento do devedor; e 5) apreciar qualquer matéria que possa afetar os interesses dos credores.
Já na falência são três essas atribuições: 1) A constituição do Comitê de Credores e a escolha de seus membros (e a substituição deles); 2) A adoção de outras modalidades de realização do ativo, na forma que a lei admite em seu art. 145. Por oportuno transcreve-se aqui o caput do dispositivo em destaque da Lei nº 11.101/05: “O juiz homologará qualquer outra modalidade de realização do ativo, desde que aprovada pela assembleia-geral de credores, inclusive com a constituição de sociedade de credores ou dos empregados do próprio devedor, com a participação, se necessário, dos atuais sócios ou de terceiros”. 3) De modo mais genérico, qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores.
A propósito da assembleia-geral, registra Fábio Ulhoa Coelho,11 em seu Manual de Direito Comercial: “A assembleia dos credores é o órgão colegiado e deliberativo responsável pela manutenção do interesse ou da vontade predominantes entre os que titularizam crédito perante a sociedade empresária requerente da recuperação judicial sujeitos aos efeitos desta. De maneira geral, nenhuma recuperação de empresa se viabiliza sem o sacrifício ou agravamento do risco, pelo menos em parte, dos direitos de credores. Por esse motivo, em atenção aos interesses dos credores (sem cuja colaboração a reorganização se frustra), a lei lhes reserva, quando reunidos em assembleia, as mais importantes deliberações relacionadas ao reerguimento da atividade econômica em crise”.
A Lei nº 11.101/05 – nunca é demasiado repisar – disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.
Daí, dentre muitos outros, dois pontos parecem merecer destaque especial: a nova ótica sobre o empresário decorrente do novo Código Civil e a preocupação (ou objetivo) fundamental com a recuperação (sempre que possível) da empresa ou do empresário.
A recuperação, contudo, deve ser viável, pois situações há em que as empresas já não seriam sanáveis.
Fábio Ulhoa Coelho observa:12 “Nem toda empresa merece ou deve ser recuperada. A reorganização de atividades econômicas é custosa. Alguém há de pagar pela recuperação, seja na forma de investimentos no negócio em crise, seja na de perdas parciais ou totais de crédito. Em última análise, como os principais agentes econômicos acabam repassando aos seus respectivos preços às taxas de riscos associados à recuperação judicial ou extrajudicial do devedor, o ônus da reorganização das empresas no Brasil recai na sociedade brasileira como um todo. O crédito bancário e os produtos e serviços oferecidos e consumidos ficam mais caros porque parte dos juros e preços se destina a socializar os efeitos da recuperação das empresas”.
E, prossegue o professor titular da PUC de São Paulo: “Como é a sociedade brasileira como um todo que arca, em última instância, com os custos da recuperação das empresas, é necessário que o Judiciário seja criterioso ao definir quais merecem ser recuperadas. Não se pode erigir a recuperação das empresas em um valor absoluto. Não é qualquer empresa que deve ser salva a qualquer custo. Na maioria dos casos, se a crise não encontrou uma solução de mercado, o melhor para todos é a falência, com a realocação em outras atividades econômicas produtivas dos recursos materiais e humanos anteriormente empregados na da falida.
Em outros termos, somente as empresas viáveis devem ser objeto de recuperação judicial (ou mesmo a extrajudicial). Para que se justifique o sacrifício da sociedade brasileira presente, em maior ou menor extensão, em qualquer recuperação de empresa não derivada de solução de mercado, o empresário que a postula deve se mostrar digno do benefício. Deve mostrar, em outras palavras, que tem condições de devolver à sociedade brasileira, se e quando recuperado, pelo menos em parte o sacrifício feito para salvá-la.
O exame da viabilidade deve ser feito, pelo Judiciário, em função de vetores como a importância social, mão de obra e tecnologia empregadas, o volume do ativo e passivo, o tempo de existência da empresa e seu porte econômico”.
Há exigência, requisitos ou condições para que o devedor possa requerer a recuperação judicial. Desde logo, é preciso que exerça, no momento do pedido, atividades empresariais há mais de dois anos e que atendam, também, cumulativamente, o seguinte: não ter falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado as responsabilidades daí decorrentes; não ter, há menos de 5 (cinco) anos obtido concessão de recuperação judicial; não ter, há menos de 8 (oito) anos, obtido concessão de recuperação judicial para microempresas e empresas de pequeno porte; não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos na Lei nº 11.101/05.
Assinale-se, por oportuno, que a recuperação judicial também pode ser requerida pelo cônjuge sobrevivente, herdeiros do devedor, inventariante ou sócio remanescente.
Por outro lado, atente-se para o fato de que todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, ficam sujeitos à recuperação em tela.
A nova Lei de Falências define o que constituem meios de recuperação judicial, com a ressalva expressa (aliás, expletiva) de observância à legislação pertinente a cada caso.
São 16 os meios em referência, consignados no art. 50 da Lei nº 1.101/05, a saber: I – concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas; II – cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente; III – alteração do controle societário; IV – substituição total ou parcial dos administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos; V – concessão aos credores de direito de eleição em separado de administradores e de poder de veto em relação às matérias que o plano especificar; VI – aumento de capital social; VII – trespasse ou arrendamento de estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados; VIII – redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva; IX – dação em pagamento ou novação de dívidas do passivo, com ou sem constituição de garantia própria ou de terceiro; X – constituição de sociedade de credores; XI – venda parcial dos bens; XII – equalização de encargos financeiros relativos a débitos de qualquer natureza, tendo como termo inicial a data da distribuição do pedido de recuperação judicial, aplicando-se inclusive aos contratos de crédito rural, sem prejuízo do disposto em legislação específica; XIII – usufruto da empresa; XIV – administração compartilhada; XV – emissão de valores mobiliários; e XVI – constituição de sociedade de propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.
Tanto o pedido quanto o processamento, e bem assim o próprio Plano de Recuperação e o procedimento, estão disciplinados no Capítulo III do diploma em destaque.
Há, ainda, no mesmo título, regras específicas referentes ao plano de recuperação judicial para microempresas e empresas de pequeno porte e sobre a convolação da recuperação judicial em falência, registrando-se, de plano, que esta afasta o devedor de suas atividades, visando a preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive as intangíveis da empresa.
O pedido de recuperação judicial deve ser instruído com diversos documentos e (ou) elementos, que estão expressamente apontados em nove incisos do art. 51 da Lei nº 11.101/05.
São eles, em síntese: 1) exposição, indicando as causas concretas da situação patrimonial do devedor e com explicitação das razões da crise econômico-financeira; 2) demonstrações contábeis relativas aos três últimos exercícios sociais e as levantadas especialmente para instruir a pretensão, confeccionadas com estrita observação da legislação societária aplicável e compostas, obrigatoriamente, de balanço patrimonial, demonstração de resultados acumulados e do resultado desde o último exercício social e relatório gerencial do fluxo de caixa e de sua projeção; 3) relação nominal completa dos credores, inclusive aqueles por obrigação de fazer ou de dar, com a indicação do endereço de cada qual, a natureza, a classificação e o valor do crédito, com discriminação da origem, do regime dos respectivos vencimentos e da indicação dos registros contábeis de uma por uma das transações pendentes; 4) relação integral dos empregados, da qual deverão constar as respectivas funções, salários, indenizações e outras parcelas a que têm direito, com o correspondente mês de competência, e a discriminação dos valores de pagamento pendentes; 5) certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas Mercantis (veja-se o art. 1.150 do Código Civil de 2002), o ato constitutivo atualizado e as atas da nomeação dos administradores atuais da empresa; 6) relação dos bens particulares dos sócios controladores e dos administradores do devedor; 7) os extratos atualizados das contas bancárias do devedor e de suas eventuais aplicações financeiras de qualquer modalidade, inclusive em fundos de investimento ou em bolsas de valores, naturalmente, emitidas pelas respectivas instituições financeiras; 8) certidões de cartórios de protestos situados na comarca do domicílio ou sede do devedor, bem como naqueles em que possua filial; e 9) relação, subscrita pelo devedor, de todas as ações judiciais em que este figure como parte, inclusive as de natureza trabalhista, com a estimativa dos respectivos valores demandados.
Observe-se que: a) os documentos de escrituração contábil (e demais relatórios auxiliares), na forma e no suporte previstos em lei, permanecerão à disposição do juízo, do administrador judicial e de qualquer interessado, nessa hipótese dependendo de autorização judicial; b) as microempresas e empresas de pequeno porte, com relação a exigência de demonstrações contábeis relativas aos três últimos exercícios sociais (e as levantadas para instruir o pedido), poderão apresentar livros e escrituração contábil simplificados, na forma da legislação específica; e c) o juiz poderá determinar o depósito dos documentos de escritura contábil.
Essa fase, isto é, a que trata do pedido de recuperação judicial, a doutrina designa como postulatória, comportando todo o processo, além dela, mais duas, a saber: a de deliberação e a de execução.
Assinale-se, por outra parte, que sociedades há que não podem pleitear recuperação judicial, posto que não podem ter falência decretada.
A propósito da legitimidade ativa para a postulação, ilustre-se com observações de Fábio Ulhoa Coelho:13 “Só tem legitimidade ativa para o processo de recuperação judicial quem é legitimado passivamente para o de falência, isto é, o empresário e a sociedade empresária. Por outro lado, a recuperação judicial tem lugar apenas se o titular da empresa em crise quiser. Se credores, trabalhadores, sindicatos ou órgão governamental tiver um plano para a reorganização da atividade econômica em estado pré-falencial, não poderá dar início ao processo de recuperação judicial caso o devedor não tenha interesse ou vontade em fazê-lo.
As sociedades em comum, de economia mista, cooperativa ou simples não podem pleitear a recuperação judicial exatamente porque nunca podem ter a falência decretada. Estão também excluídas do benefício, por razões ligadas à regulação econômica, as instituições financeiras, integrantes do sistema de distribuição de títulos ou valores mobiliários no mercado de capitais, corretoras de câmbio (Lei nº 6.024/74, art. 53), seguradoras (Decreto-Lei nº 73/66, art. 26) e as operadoras de planos privados de assistência à saúde (Lei nº 7.565/86, art. 187)”.
Registrem-se, agora, algumas reflexões sobre o Plano de Recuperação Judicial.
Tal plano deve ser apresentado pelo devedor, no prazo improrrogável de 60 (sessenta) dias da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação, sob pena de sua convolação em falência.
Constituem elementos essenciais ou indispensáveis dele: a) discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados (na conformidade do que define expressamente a Lei nº 11.101/05, em seu art. 50), e seu resumo; b) demonstração da viabilidade econômica, e c) laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou por empresa especializada.
É o plano a mais importante peça do processo de recuperação judicial ou de “reorganização da empresa”, como, por vezes, também se diz. Ipso facto, da própria fase de deliberação, que, como de certo modo (ao menos) já foi registrado, se inicia com o despacho de processamento.
Fábio Ulhoa Coelho14 sintetiza que, no tocante à alteração das obrigações da beneficiária, a Lei nº 11.101/05 preocupou-se em estabelecer quatro balizas: “a) os empregados com direitos vencidos na data da apresentação do pedido de recuperação judicial devem ser pagos no prazo máximo de 1 ano, devendo ser quitados os saldos salariais em 30 dias; b) deve-se buscar o parcelamento do crédito fiscal na forma autorizada pelo art. 155-A do CTN; c) se o plano prevê a alienação de bens onerados (hipotecados ou empenhados), a supressão ou substituição da garantia real, é suficiente que o plano de recuperação judicial seja aprovado, com ou sem o voto do titular da garantia; se, porém, for prevista a alienação do bem como meio de recuperação judicial, será indispensável a concordância dele; nos créditos em moeda estrangeira, sua conversão para moeda nacional depende de expressa concordância do titular do crédito.
Portanto, com a exceção aos créditos referidos nas quatro balizas acima, todos os demais titularizados perante a requerente da recuperação judicial podem ser objeto de amplas alterações no valor de pagamento, nas condições de cumprimento das obrigações etc.”.
A última fase do processo de recuperação judicial é a da execução, que se encerra de duas formas diferentes, quais sejam: 1) o cumprimento do plano de recuperação, o que deve ocorrer no prazo de até 2 anos; ou 2) com o pedido de desistência do devedor, pedido esse que pode ser apresentado a qualquer tempo, dependente, contudo, da aprovação pela assembleia geral dos credores.
Da falência, propriamente dita, cuida a Lei nº 11.101/05 em seu Capítulo V e, de modo mais preciso, do art. 75 ao art. 160.
Falência, no sentido tradicional que lhe empresta o direito comercial, significa o estado ou a situação do comerciante que falhou nos pagamentos de obrigações líquidas, a que, naturalmente, estava vinculado.
O vocábulo deriva do latim fallere, infinitivo de fallo – is, ere, fefelli, falsum – verbo que tinha diversas semânticas, a saber: 1) esconder, encobrir, ocultar; 2) enganar, lograr, induzir em erro; 3) fazer esquecer; e 4) enganar, escapar e ignorar.
Falência (de fallentia), em si, significa, originariamente, falha, defeito, carência, engano ou omissão.
Assinale-se, desde logo, que no antigo direito português a expressão significava exceção da lei.
Observe-se, por exemplo, o disposto no Livro IV, Título LXXII, §§ 2º ao 4º, das Ordenações Afonsinas (que teve vigência entre 1447-1521): 2. “E pero que esta Lei seja geral, recebe porem em si muitas falências. A primeira é na guarda e condecilho (...). 3. A segunda falência é em todo caso de força, rombo, furo, ou outro qualquer caso semelhante (...) 4. A terceira falência é quando a alguém é devido algum mantimento, ainda que seja de quantidade, quer seja devido por contrato (...). 5. A quarta falência é quando aquela dívida de que se faz compensação (...).”
Na técnica jurídico-comercial a expressão falência veio a substituir falimento, vocábulo empregado para significar o ato de falir, a insolvência ou a chamada bancarrota.
Em outras palavras, o vocábulo traz consigo a semântica de quebra que, como sabido, era como se chamava a falência na linguagem primeira (ou primitiva) do Código Comercial;
Pode-se dizer que falência é a falta de cumprimento de obrigação assumida ou o engano do devedor ao credor, pela inadimplência da obrigação na data do seu vencimento.
A garantia dos credores, como se sabe, é o patrimônio do devedor. Se este não honra seus compromissos, o credor pode, obviamente, exigir a satisfação integral da obrigação e, para tanto, não lhe faltam os meios judiciais.
Quando o devedor tem patrimônio inferior ao montante de suas dívidas, a regra da individualidade da execução revela-se iníqua. Vale dizer, o credor que se antecipar na execução, por certo, receberá a totalidade de seu crédito, enquanto outras ficariam à míngua.
Para evitar situação de injustiça é que adveio a execução concursal, ou seja, do concurso de credores, outrora denominada execução coletiva (ou coletiva entre aspas, como, por vezes, se emprega).
Assinala Fábio Ulhoa Coelho,15 examinando o particular em destaque: “Os credores do devedor que não possui condições de saldar, na integralidade, todas as suas obrigações devem receber do direito um tratamento parificado, dando-se aos que integram uma mesma categoria iguais chances de efetivação de seus créditos.
Desta forma o direito tutela o crédito e especialmente o crédito comercial, possibilitando que melhor desempenhe sua função na economia e, consequentemente, na sociedade. As pessoas se sentem menos inseguras em facilitar o crédito na exata medida em que podem contar com esse tratamento parificado na hipótese de vir o devedor a encontrar-se numa situação patrimonial que o impeça de honrar, totalmente, seus compromissos.
A falência é a execução concursal do devedor empresário. Quando o profissional exercente de atividade empresária é devedor de quantias superiores ao valor de seu patrimônio, o regime jurídico da execução concursal é diverso daquele que o direito prevê para o devedor civil, não-empresário. O direito falimentar refere-se ao conjunto de regras jurídicas pertinentes à execução concursal do devedor empresário, as quais não são as mesmas que se aplicam ao devedor civil”.
A Lei nº 11.101/05 é expressa, ao dispor sobre a decretação da falência do devedor que: I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados, cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 salários mínimos na data do pedido de falência; II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal; III – pratica qualquer dos seguintes atos (exceto, naturalmente, se fizer parte de plano de recuperação judicial): a) procede à liquidação precipitada de seus ativos ou lança mão de meio ruinoso ou fraudulento para realizar pagamentos; b) realiza ou, por atos inequívocos, tenta realizar, com o objetivo de retardar pagamentos ou fraudar credores negócio simulado ou alienação de parte ou da totalidade de seu ativo a terceiro, credor ou não; transfere estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem consentimento de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo; simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de burlar a legislação ou a fiscalização ou para prejudicar credor; c) dá ou reforça garantia a credor por dívida contraída anteriormente sem ficar com bens livres e desembaraçados suficientes para saldar seu passivo; ausentar-se em deixar representante habilitado e com recursos suficientes para pagar os credores, abandonar estabelecimento ou tenta ocultar-se de seu domicílio, do local de sua sede ou de seu principal estabelecimento; ou d) deixa de cumprir, no prazo estabelecido, obrigação assumida no plano de recuperação judicial.
Veja-se, agora, quem pode requerer falência do devedor: 1) ele próprio, na forma que dispõe a lei (v. arts. 105 a 107, da Lei nº 11.101/05); 2) o cônjuge sobrevivente, qualquer herdeiro do devedor ou inventariante; 3) o cotista ou o acionista do devedor, na forma da lei ou do ato constitutivo da sociedade, ou, ainda, 4) qualquer credor.
A nova Lei de Falências é expressa, em seu art. 200: “Ressalvado o disposto no art. 192 desta Lei, ficam revogados o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de julho de 1945 e os arts. 503 a 512 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.”
Recorde-se, desde logo, que no art. 201 o diploma em destaque fixou a vacatio legis de 120 (cento e vinte) dias, a contar de sua publicação, que se deu, como se sabe, em 9 de fevereiro de 2005.
A ressalva, quanto ao art. 192, refere-se a que a Lei nº 11.101/05 não se aplica aos processos de falência ou de concordata (figura esta que, aliás, desaparece com o novo ordenamento falimentar) ajuizados anteriormente ao início de sua vigência e, ipso facto, tais processos se concluirão sob a égide do Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945 (sabidamente, a lei de falência revogada pela Lei nº 11.101/05).
Registre-se que o novo procedimento penal, referente ao direito positivado falimentar, está contido na seção III, do Capítulo VII da já muitas vezes citada Lei nº 11.101/05. Mais precisamente, dos arts. 183 a 188.
Prevê também a Lei nº 11.101/05, tipos penais, definidos em seus arts. 168 a 178.
Em síntese, pode-se dizer que a Lei nº 11.101/05 é um marco na história do direito brasileiro, no campo do que se pode designar de direito falimentar.
36. Novos Estatutos sob a ótica dos chamados direitos de terceira geração
A Constituição de 1988 concebida (também) na escala dos chamados direitos de terceira geração, dedica, como bem sabido, especial proteção à criança, ao adolescente, ao idoso, ao desporto, além do meio ambiente (sobre este já visto, anteriormente).
Com relação à criança, ao adolescente e ao jovem destaque-se que o texto constitucional é expresso: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227 da Lei Fundamental).
Em 1990, adveio o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).
O Estatuto em destaque já sofreu inúmeras alterações e, naturalmente, o diploma, pela própria matéria que disciplina, não tem ficado imune a críticas e tem gerado, até mesmo, discussões, não raro, polêmicas.
Diversos são os diplomas que alteraram o Estatuto da Criança e do Adolescente, como as Leis nos 9.455/97, 9.975/2000, 10.764//2003, 11.259/2005, 12.509/2012, 12.594/2012, 12.696/2012, entre outras.
Destaquem-se, por oportunas, as seguintes alterações: a que assegurou à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar as consequências do estado puerperal, (redação do § 4º do art. 8º, dada pela Lei nº 12.010, de 2009).
Na realidade, a Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009, dispôs sobre a adoção, não efetuando alteração de monta no Estatuto da Criança e do Adolescente, como algumas do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) e da Consolidação das Leis do Trabalho – Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943).
A Lei nº 11.185, de 7 de junho de 2005, por sua vez, alterou o art. 11 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que passou a vigorar com a seguinte redação: “É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.”
A propósito da referência acima à Consolidação das Leis do Trabalho, registre-se, de passagem, que, com apoio na Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 60, proíbe qualquer trabalho a menor de 14 anos de idade, salvo na condição de aprendiz.
A Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, ao instituir o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, introduziu alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente, como a do § 7º do art. 121 e a do § 1º do art. 122, respectivamente: “a determinação judicial mencionada no § 1º (previsão das atividades externas, a critério da equipe técnica, salvo determinação judicial em contrário) poderá ser revista a qualquer tempo pela autoridade judiciária” e “o prazo de internação na hipótese do inciso III (descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente proposta) deste artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses, devendo ser decretada judicialmente após o devido processo legal”.
A Lei nº 12.696, de 25 de julho de 2012, alterou os arts. 132, 134, 135 e 139 do Estatuto da Criança e do Adolescente, em disposições que cuidam do Conselho Tutelar, que é “órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”, como definido na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
O conselho em referência deve existir em cada município (no mínimo um) e em cada Região Administrativa do Distrito Federal.
Importante frisar que, por efeito do art. 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “é vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional”. E a Lei nº 10.764, de 12 de novembro de 2003, deu a seguinte nova redação ao parágrafo único do artigo em destaque: “Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome.”
O art. 198 do Estatuto da Criança e do Adolescente é expresso em que nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e do Adolescente, inclusive os relativos à execução de medidas socioeducativas, adotar-se-á o sistema recursal do Código de Processo Civil, com as adaptações apontadas nos incisos I a VIII.
Pela Lei nº 11.829, de 25 de novembro de 2008, foi alterado o Estatuto da Criança e do Adolescente, com o objetivo de aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pornografia na internet.
Assim, foi dada nova redação aos arts. 240 e 241 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – o Estatuto da Criança e do Adolescente –, como sabido, bem como foram-lhe acrescidos os arts. 241-A a 241-E.
Com efeito, dizia o parágrafo em referência, em sua redação original: “Se o fato for praticado por órgão de imprensa ou emissora de rádio ou televisão, além da pena prevista neste artigo, a autoridade judiciária poderá determinar a apreensão da publicação ou a suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico até por dois números.”
O Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a expressão acima grifada.
Na realidade, o art. 247 do Estatuto da Criança e do Adolescente trata do particular do tipo “Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional.”
36.1. O Estatuto da Juventude
A Emenda Constitucional nº 65, de 2010, alterou o capítulo VII do Título VIII da Constituição Federal e modificou o art. 220, para cuidar dos interesses da juventude.
Daí decorreu o advento da Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013 – o Estatuto da Juventude.
O novo diploma conta com 48 artigos espalhados por dois grandes Títulos, a saber: o primeiro tratando dos direitos e das políticas públicas da juventude, e o segundo, do Sistema Nacional de Juventude – SINAVE.
O Título I possui dois capítulos, dispondo, respectivamente, dos princípios e diretrizes das políticas de Juventude e dos direitos dos jovens; já o Título II, com três capítulos, tratando o de nº I do Sistema Nacional de Juventude em referência – o SINAVE; o de nº II, das competências da União, dos Estados e dos Municípios; e o III, dos Conselhos da Juventude.
Para os efeitos do Estatuto em destaque, são considerados jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos de idade.
Aos adolescentes com idade entre 15 (quinze) e 18 (dezoito) anos aplica-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, e excepionalmente, o Estatuto da Juventude, quando não conflitar com as normas de proteção total do adolescente, como prevista no ECA.
36.2. O Estatuto do Idoso
Com referência ao idoso, a Lei Maior de 1988 (art. 39) prescreve: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.”
A exemplo do que ocorre com a criança, com o adolescente e com o jovem, o ordenamento jurídico brasileiro conta hoje com o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003), assim considerada, por esse diploma legal, a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
Por oportuno, anote-se que, desde o advento da Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994, o ordenamento positivo brasileiro conta com um diploma dispondo sobre uma política para o idoso. Desde logo, registre-se que o envelhecimento pelo Estatuto é definido como direito personalíssimo, e a sua proteção, um direito social.
Após disposições preliminares (Título I), o Título II versa sobre os direitos fundamentais do idoso, em 10 capítulos, tratando, respectivamente: 1) do direito à vida; 2) do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade; 3) dos alimentos; 4) do direito à saúde; 5) da educação, cultura, esporte e lazer; 6) da profissionalização e do trabalho; 7) da previdência social; 8) da assistência social; 9) da habitação; e 10) do transporte.
Dedicou o Estatuto do Idoso o seu Título III (dividido em dois capítulos) às medidas de proteção ao idoso, e o Título IV (com seis capítulos) disciplina a política de atendimento ao idoso.
Todo um Título (o V) cuida do acesso à justiça pelo idoso. Tal título, de par com um capítulo sobre as disposições gerais, contém capítulos específicos sobre o Ministério Público e sobre a proteção jurídica dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos.
Merece destaque, na parte referente às ações cíveis, fundadas em tais interesses, a legitimação concorrente, para a sua defesa, I – do Ministério Público; II – da União, dos Estados, do Distrito Federal; III – da Ordem dos Advogados do Brasil; e IV – das associações legalmente constituídas há pelo menos 1 (um) ano e que incluam entre os fins institucionais a defesa dos interesses e direitos da pessoa idosa, dispensada a autorização da assembleia, se houver prévia autorização estatutária.
O Título VI do Estatuto em destaque cuida especificamente dos crimes, em dois capítulos, o primeiro mandando aplicar subsidiariamente as regras da ação civil pública às situações previstas no Estatuto, e estendendo a Lei nº 9.099/95 aos crimes previstos no novo diploma, em hipóteses cuja pena máxima privativa da liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos. E, no Capítulo II, tem-se a disciplina dos crimes em espécie (em 14 artigos), definindo, de certo modo, novos tipos penais. Ademais, no Título VII (que trata das disposições finais e transitórias), além de prescrever como crime “impedir ou embaraçar ato do Ministério Público ou de qualquer outro agente fiscalizador”, altera oito dispositivos do Código Penal, um da Lei das Contravenções Penais e mais três, respectivamente, das Leis nos 9.455/97 (que define os crimes de tortura), 6.368/76 (que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica) e 10.048/2000 (que dá prioridade de atendimento às pessoas portadoras de deficiência física, os idosos com idade igual ou superior a 65 anos, as gestantes, as lactantes e as pessoas acompanhadas por crianças de colo).
O Estatuto do Idoso tem sido alterado por diversos diplomas, como, por exemplo, pela Lei nº 11.765, de 5 de agosto de 2008, que acrescentou inciso ao parágrafo único do art. 3º, para garantir aos idosos prioridade na restituição do imposto de renda.
De igual sorte, a Lei nº 12.461, de 28 de julho de 2011, alterou a redação inicial do seu art. 19, para estabelecer a notificação compulsória dos atos de violência praticados contra idoso atendido em serviço de saúde.
Outras alterações poderiam ser anotadas. Todavia, por se tratar de um marco na história do direito brasileiro, parece indicado que se transcreva os três primeiros artigos do Estatuto do Idoso, a saber: “Art. 1º É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral (de que trata o Estatuto), assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.”
E, no parágrafo único desse art. 3º, tem-se, em nove incisos, a definição do que compreende a prioridade garantida.
O desporto é também objeto de atenção e cuidados por parte da Constituição e conta com diversos diplomas específicos a disciplinarem, em síntese, suas atividades (Lei Pelé e Lei Zico, por exemplo).
De passagem, registre-se que a justiça desportiva foi constitucionalizada, sendo expressa a Carta de 1988 (art. 217, § 1º), em que “O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei”, justiça esta que tem o prazo máximo de 60 dias para proferir decisão nos processos que lhe sejam submetidos.
37.1. O Estatuto de Defesa do Torcedor
De outra parte, da conjugação da proteção aos esportes (e aí, de certo modo, ao consumidor) surgiu o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei nº 10.761, de 15 de maio de 2003).
Tal Estatuto oferece um conceito legal de torcedor como sendo “toda pessoa que aprecie, apoie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva”, enquanto a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora de mando de jogo, foram equiparadas, para todos os efeitos legais, a fornecedor, como tal definido pelo Código do Consumidor.
A figura de Ouvidor da Competição (em particular para receber sugestões, propostas e reclamações dos torcedores) foi criada e o seu nome deverá constar, dentre outras informações, obrigatoriamente, da publicidade das competições, publicidade esta que deve ser ampla, inclusive com o uso da internet e a afixação em local visível da informação, no lado externo de todas as entradas do local onde se realiza o evento.
Da segurança do torcedor cuida o Capítulo IV do Estatuto, prescrevendo (art. 13), em particular, que “o torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos esportivos, antes, durante e após a realização das partidas”.
Disciplina especial com relação aos ingressos (prazos para início da venda, numeração etc.) consta do Capítulo V, e os dois capítulos seguintes tratam, respectivamente, do transporte dos torcedores e da alimentação fornecida nos estádios, bem como da respectiva qualidade das instalações físicas e sua higiene.
Regras específicas com relação à arbitragem das competições são estabelecidas, como, por exemplo, que ela deve ser “independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões”.
Como se fosse preciso prescrever, o Estatuto manda que a justiça desportiva observe, no exercício de suas funções, os princípios da impessoalidade, da moralidade, da celeridade, da publicidade e da independência.
Penalidades são previstas, em capítulo próprio do Estatuto, para os dirigentes, para as entidades e para os torcedores, nas hipóteses que aponta.
38. O amicus curiae no direito brasileiro
O ordenamento positivo brasileiro, a partir da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999 (que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal), passou a conhecer a figura do amicus curiae.
Como se sabe, o Amigo da Corte (amicus curiae), de largo emprego no direito norte-americano (de onde, aliás, se origina), é um terceiro (que, naturalmente, não é parte do feito) que presta informações ou esclarecimentos de que o Tribunal necessite para proferir sua decisão, inclusive objetivando que esta se dirija para tal ou qual interesse público ou privado.
Em outras palavras, é um instituto de matiz democrático que enseja a terceiros penetrarem em processo judicial discutindo teses jurídicas que afetem, mormente, toda a sociedade.
Steven H. Gifis em seu dicionário jurídico (Law Dictionary) registra verbete que, em tradução livre, se pode dizer: “AMICUS CURIAE – do latim amigo da corte; alguém que dá informação à corte em alguma matéria de direito, em relação à qual ela esteja em dúvida (...) A função de um amicus curiae é chamar a atenção da corte para alguma matéria que possa, de outro modo (ou sob outros aspectos ou de outra maneira), escapar-lhe a atenção (...) Um AMICUS CURIAE BRIEF (ou AMICUS BRIEF) – (isto é, o Sumário ou o Resumo do Amicus curiae) – é submetido, por quem não seja parte, ao lawsuit (em português, dir-se-ia: processo, feito ou ação judicial) para ajudar a Corte a obter informação de que necessite para proferir uma decisão apropriada ou para impelir um resultado particular no interesse público ou um interesse privado de terceiros (de partes terceiras) que seria afetado pela decisão (solução ou resolução) da disputa” (v. Law Dictionary, 3. edição, Barron’s, New York, 1991).
Adhemar Ferreira Maciel (antigo professor visitante da Universidade de Brasília e ministro jubilado do STJ), em bem lançado artigo, oferece síntese do procedimento referente à intervenção do amicus curiae na Suprema Corte norte-americana, que é objeto da Regra 37 (Rule 37) do regimento interno do órgão de cúpula do Judiciário “yankee”.
Está lá no Brief for an Amicus curiae (algo como síntese para um Amicus curiae): “(1) O reconhecimento pela Corte da importância do instituto uma vez que o ‘amicus curiae’ deve trazer ‘matéria relevante’ (relevant matter) ainda não agitada pelas partes (not already brought to its attention by the parties). O dispositivo regimental lembra que se não for observado esse cânone (matéria relevante, não trazida antes), o amicus vai sobrecarregar inutilmente a Corte; (2) O amicus curiae deve trazer, por escrito o assentimento das partes em litígio, nos casos especificados regimentalmente. (caso seja negado o consentimento, o amicus curiae terá de juntar, com seu pedido, os motivos da negação para a Corte apreciar); (3) Mesmo em se tratando de pedido de intervenção para sustentação oral, o amicus deve, ainda, juntar o consentimento das partes, por escrito, para que possa peticionar; (4) O Solicitor General (Solicitador Geral, assistente do Procurador Geral) não necessita de consentimento das partes para intervir em nome da União. O mesmo tratamento é reservado a outros representantes de órgãos, quando legalmente autorizados; (5) O arrazoado não deve ir além de cinco páginas, e (6) em sendo o caso, o amicus deve ser munido de autorização de seu representado, e fazer uma espécie de ‘preparo’ para custeio processual, salvo se a entidade estiver previamente arrolada como isenta.”
A mencionada Lei nº 9.868/99, por sua vez, em seu art. 7º, é expressa: “O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.”
Acrescente-se, por outra parte, que a Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001 (cuida dos juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal), também acolheu a figura do amicus curiae, quanto à uniformização da jurisprudência. É o que se extrai do citado diploma. Veja-se: “Art. 14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. (...) § 7º Se necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias.”
Em apertada síntese, tem-se, pois, que o amicus curiae (instituto novo, sob a ótica do direito pátrio) é uma intervenção especial de terceiros no processo, para além das clássicas conhecidas, como a oposição, a nomeação a autoria etc., além da assistência e, de certo modo, o litisconsórcio facultativo.
A intervenção de que se cuida, vale dizer, a presença do amicus curiae, no processo, não diz tanto com respeito à causas ou aos interesses eventuais de partes em jogo em determinada lide, mas, sim, ao próprio exercício da cidadania e à preservação de princípios fundamentais e, muito particularmente, à ordem constitucional.
Dessarte, um amicus curiae, perante o Supremo Tribunal Federal, só poderá estar atuando (e outra não parece possível a inteligência da Lei nº 9.868/99 no particular), em defesa da Constituição, isto é, trazendo teses em favor da inconstitucionalidade ou, por outro lado, da declaração de constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo federal ou, ainda, estadual, nessa última hipótese, em caso restrito à ação direta de inconstitucionalidade.
Por outro lado, o amicus curiae poderá atuar também na esfera infraconstitucional, objetivando a uniformização de interpretação de lei federal, evidentemente diante de hipóteses de divergência entre decisões proferidas por turmas recursais, de que trata a Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001.
Logo que introduzida a figura no ordenamento positivo, começaram a surgir manifestações jurisprudenciais, no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
No julgamento do Agravo Regimental na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.130-3 (SC), relato do ministro Celso de Mello, o magistrado fez consignar em seu voto:
“A norma legal em questão (refere-se ao art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99), ao excepcionalmente admitir a possibilidade de ingresso formal do amicus curiae no processo de controle normativo abstrato, assim dispõe: ‘O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.’
No estatuto que rege o sistema de controle normativo abstrato de constitucionalidade, o ordenamento positivo brasileiro processualizou, na regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, a figura do amicus curiae, permitindo, em consequência, que terceiros, investidos de representatividade adequada, sejam admitidos na relação processual, para efeito de manifestação sobre a questão de direito subjacente à própria controvérsia constitucional.
A regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 – que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae – tem por objetivo pluralizar o debate constitucional, permitindo que o Supremo Tribunal Federal venha a dispor de todos os elementos informativos possíveis e necessários à resolução da controvérsia.
Vê-se que a aplicação da norma legal em causa – que não outorga poder recursal ao amicus curiae – não só garantirá maior efetividade e legitimidade às decisões deste Tribunal, mas, sobretudo, valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de informação e pelo acervo de experiências que esse mesmo amicus curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo – como o de controle abstrato de constitucionalidade – cujas implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e de inquestionável significação.”
E prossegue o citado relator:
“Na verdade, consoante ressalta PAOLO BIANCHI, em estudo sobre o tema (‘Un’Amicizia Interessata: L’amicus curiae Davanti Alla Corte Suprema Degli Stati Uniti’, in ‘Giurisprudenza Costituzionale’, Fasc. 6, nov/dez de 1995, Ano XI, Giuffrè), a admissão do terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões do Tribunal Constitucional, viabilizando, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize a possibilidade de participação de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais.”
Como se vê, a figura do amicus curiae já é realidade positiva no ordenamento jurídico brasileiro.
Não é difícil vaticinar que a participação do amicus curiae (com participação em feitos sobre o controle da constitucionalidade perante o STF), e no aperfeiçoamento da jurisprudência dos juizados especiais federais (em nível infraconstitucional, consigne-se o óbvio), que, aliás, já se vem afirmando, concretamente, e será mais um instrumento efetivo de participação da cidadania (ou, para ficar-se à moda, da sociedade civil organizada), no aperfeiçoamento da ordem jurídica, das instituições democráticas e, no que Paolo Bianchi designa, “legitimação social das decisões” da própria Corte Constitucional.
Acrescente-se que já é também uma realidade expressiva a participação de amici curiae em muitas questões que se põem perante o STJ. De igual sorte, vem-se afirmando a figura do amicus curiae nos mais diferentes tribunais do país.
É possível dizer-se que amicus curiae é uma figura em efetiva afirmação (e em expansão) na prática dos tribunais brasileiros.
8 Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, 7. edição, Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1955. p. 63.
9 In A Nova Lei das Falências, Ed. Quartier Latin, São Paulo, 2005.
10 Código de Processo Civil – interpretado, Coordenador Antônio Carlos Marcato, Ed. Atlas, 2004 – 2ª triagem, São Paulo, p. 379.
11 Op. cit., p. 372.
12 Idem, p. 369-370.
13 Op. cit., p. 378-379.
14 Idem, p. 382-383.
15 Op. cit., p. 308.