9. O Código de Processo Civil de 1939

Dentre os códigos aprovados no período do Estado Novo, tem-se o de processo civil, também conhecido como código unitário, baixado pelo Decreto-Lei nº 1.608/39, para entrar em vigor em 1º de março de 1940.

A lei processual civil que mais tempo vigorou no Brasil, sobre a matéria, como se sabe, foi o código filipino, mais precisamente seu Livro III, sabido que, mesmo após a independência, continuaram a viger as Ordenações.

Recorde-se, em síntese histórica, que, com o advento do Código de Processo Criminal do Império (lei de 29 de novembro de 1832), este, muito embora com destinação específica, em disposição provisória, extinguiu o cargo de “enqueredores de testemunhas”, suprimiu os embargos antes da sentença final (salvo nas ações sumárias onde funcionavam como contestação) e reduziu os agravos de petição e de instrumento a agravos nos autos do processo, entre outras medidas.

Com regulamento de 1842, adveio processo verbal e sumaríssimo perante os juízes de paz e que disciplinou as hipóteses e os processos dos agravos.

Após o Código Comercial (1850), ainda neste ano adveio o célebre Regulamento nº 737, elaborado por comissão integrada por José Clemente Pereira, Nabuco de Araújo, Carvalho Moreira, Caetano Alberto e Irineu Evangelista de Sousa (o barão de Mauá).

O Regulamento nº 737 destinava-se, inicialmente, a regular o processo nas causas comerciais, mas acabaria sendo a lei de regência de quase todo o direito processual civil, por expressivo espaço de tempo, dado que pelo Decreto nº 763, de 19 de setembro de 1890, houve tal extensão.

É bem verdade que, em 1864, surgiu o processo hipotecário e, já em 1886, quanto às execuções, seria aplicável o Regulamento nº 737.

Com o Decreto nº 763, repita-se, houve maior amplitude na aplicação, do regulamento em destaque, aos processos cíveis, ressalvadas as disposições das Ordenações, relativas a processos especiais, como, por exemplo, as ações possessórias.

No mesmo ano de 1890, com a criação da justiça federal, o Decreto nº 848 organizaria o processo no âmbito de tal justiça e, mais tarde, em 1898, adviria a consolidação das leis da justiça federal, fruto do labor intelectual de José Higino.

A Constituição de 1891, consagrando a dicotomia entre justiça federal e justiça estadual, determinou também que houvesse leis processuais para cada uma dessas justiças.

Assim, para a federal houve a consolidação já mencionada de 1898 e para a estadual surgiram vários códigos, a bem da verdade quase todos calcados na lei federal e, ainda, mais particularmente, no Regulamento nº 737.

Como não há regra sem exceção, registre-se que os códigos de processo civil da Bahia e o de São Paulo apresentavam algumas inovações, ambos tomando como figurino, modelo ou inspiração o direito instrumental predominante nos países europeus.

A Constituição de 1934, estabeleceu a unidade processual, fixando o prazo de três meses para que fossem organizados, os Códigos de Processo Civil e o de Processo Penal da República.

Foi mais uma expectativa frustrada.

Em 1939, seria transformado em lei o projeto, que contou em sua elaboração com a destacada participação de Pedro Batista Martins.

E, a partir de 1º de março de 1940 (data fixada para início de sua vigência), passou o ordenamento positivo brasileiro a contar com novo diploma processual a disciplinar tanto o processo civil quanto o comercial, salvo com relação aos feitos por ele não regulados e que constituíssem objeto de lei especial.

Roger Bastide chegou a definir o Brasil como o “país dos contrastes”.

Discussão da assertiva, à parte, o código unitário de 1939 revela alguns deles.

É que, como observa Sergio Bermudes (in Iniciação ao Estudo do Direito Processual Civil), coexistiam no código “uma parte geral moderna, fortemente inspirada nas legislações alemã, austríaca, portuguesa e nos trabalhos de revisão legislativa da Itália, e uma parte especial anacrônica, ora demasiadamente fiel ao velho processo lusitano, ora totalmente assistemática”.

Na realidade, acrescente-se, ao limitar o legislador, aparentemente sem razão plausível, a extensão de aplicação do então novo código, deixou de fora, entre outros, os executivos fiscais, a ação de renovação de letra de câmbio, as desapropriações, as ações acidentárias de trabalho, as falências e concordatas, aqui citados, naturalmente, como meros exemplos.

Merece registro o papel de mais relevante que foi dado ao juiz na direção do processo, com o novo diploma processual.

Francisco Campos, em sua conhecida Exposição de Motivos, fez consignar: “o primeiro traço de relevo na reforma do processo haveria pois de ser a função a que se atribui ao juiz. A direção do processo deve caber ao juiz; a ele não compete apenas zelar pela observância formal das regras processuais por parte dos litigantes, mas o de intervir no processo de maneira que este atinja, pelos meios adequados, o objetivo de investigação dos fatos e descoberta da verdade. Daí a largueza com que lhe são conferidos poderes, que o processo antigo, cingido pelo rigor de princípios privatísticos, hesitava em lhe reconhecer”.

E, mais adiante, em tópico sob o título “Chiovenda e a concepção publicística do processo”, após exaltar o mérito da citada concepção, dizia expressamente: “O juiz é o Estado ministrando a justiça; não é um registro passivo e mecânico de fatos (...) Não lhe pode ser indiferente o interesse da justiça; este é o interesse da comunidade, do povo, do Estado, e é na pessoa do juiz que um tal interesse se representa e personifica”.

Evoluiria a concepção do direito processual. Hoje, fala-se mesmo em garantia de um processo justo, mais do que em um processo legal.

O Código de Processo Civil de 1939 acabaria superado (em sua maior parte) e seria substituído pelo Código Buzaid (Lei nº 5.869/73) que, por sua vez, apesar de ser quase um modelo (considerado da óptica científica), também se revela insatisfatório, a ponto de exigir inúmeras reformas que, aliás, já vêm sendo feitas.

A verdade, contudo, é que, nos corredores forenses, ouve-se a blague de que com o atual código, o “processo corre, mas não anda”.

Atualmente, tramita no Congresso Nacional projeto com vistas à aprovação de um novo código de processo civil.

10. O Código Penal de 1940

Em 1932, adveio a famosa Consolidação Piragibe (o nome, como se sabe, deve-se ao desembargador Vicente Piragibe, que se encarregou de sua elaboração), com o sentido não só de facilitar a consulta, mas a própria aplicação da lei penal no país.

Vigente estava o Código de 1890. Contudo, paralelamente, havia excessiva quantidade de leis penais extravagantes, e daí, machadianamente, poder-se-ia dizer que a “confusão era geral”.

A consolidação em destaque, todavia, ainda revelava o quanto era insatisfatória a própria legislação penal brasileira.

Recorde-se que, logo após a promulgação do Código de 1890, houve projetos tendentes a sua substituição e, dentre eles, por certo, o mais famoso, foi o de Virgílio Sá Pereira.

Tal projeto, sem embargo do mérito do autor (e das contribuições que recebera de Evaristo de Morais e de Mário Bulhões Pedreira), revelava muitos defeitos, e disso encarregou-se de demonstrar a literatura especializada.

Diante de tal quadro, foi encarregado o professor Alcântara Machado da elaboração de um novo projeto do código penal e, de passagem, lembre-se que o notável penalista registrou as suas linhas fundamentais em artigo que publicou na revista Direito (Rio de Janeiro, volume 8, 1941) sob o título “Para a História da reforma penal brasileira”.

O fato é que o Projeto Alcântara Machado (1938) serviu de base para o Código Penal de 1940, de cuja elaboração encarregou-se comissão (ainda que designada de revisora) integrada por Narcélio de Queiroz, Vieira Braga e Nelson Hungria e que contou com a colaboração do grande penalista Antônio José da Costa e Silva, de São Paulo.

Nunca é demasiado recordar-se do labor intelectual de Alcântara Machado como a célula-máter (ou bem mais do que isso) do código penal, ainda em grande parte vigente.

A propósito, consignou Nelson Hungria: “Em belíssima oração pronunciada sobre Alcântara Machado (...) Cesar Salgado estranhou que ‘houvesse um delegado brasileiro, em conferência proferida ante o mundo jurídico de Santiago do Chile, sobre o novo Código Penal, omitido dentre os nomes dos seus artífices o de Alcântara Machado’. Como um dos membros da delegação brasileira já expliquei em carta ao ilustre orador o que realmente houve. Não se fez uma injustiça por amor à injustiça. A arguida omissão (em simples nota fornecida à presidência do 2º Congresso Latino-Americano de Criminologia, para instruir um voto de aplauso ao novo código brasileiro) foi motivada pelo fundado receio de que Alcântara Machado, jamais conformado com o trabalho da Comissão Revisora, nem mesmo depois da promulgação do Código (a cuja paternidade timbrou em alhear-se), enjeitasse a homenagem prestada pelo congresso do Chile, colocando-nos, a nós, representantes brasileiros, em situação de invencível constrangimento perante os demais congressistas. ‘Já disse e repito que é de todo verdadeira a comparação no sentido de que o Projeto Alcântara está para o Código Penal de 40 como o Projeto Clóvis está para o Código Civil’.3

Quanto ao código em si, conviria recordar-se observação de Magalhães Noronha (in Direito Penal, 15. edição, São Paulo, Saraiva): “Era e é um Código Penal eclético, como se falou e declara a Exposição de Motivos. Acende uma vela a Carrara e outra a Ferri. É, aliás, o caminho que tomam e devem tomar as legislações contemporâneas”.

A propósito desse entrelaçamento, em especial das escolas clássica e positiva, a presidir a doutrina (ou a ideologia?) do código, recordem-se palavras da própria Exposição de Motivos, firmada por Francisco Campos: “Coincidindo com a quase totalidade das modificações modernas, o projeto não reza em cartilhas ortodoxas, nem assume compromissos impenetráveis ou incondicionais com qualquer das escolas ou das correntes doutrinárias que se disputam o acerto na solução dos problemas penais. Ao invés de adotar uma política extremada em matéria penal, inclina-se para uma política de transação ou de conciliação. Nele os postulados clássicos fazem causa comum com os princípios da Escola Positiva”.

Como de praxe (ou padrão?) dos códigos penais, o de 1940 tem uma parte geral e uma especial.

Na parte geral são apresentados os princípios fundamentais do direito objetivo penal e, na parte especial, estão as figuras delituosas, distribuídas por capítulos que, por sua vez, estão subordinadas a títulos.

O Código de 1940, que entrou em vigor em 1942, como é do conhecimento geral, chegaria a ser revogado por um código penal de 1969 (que deveria entrar em vigor em 1º de janeiro de 1970).

O Código de 1969 teve o início de sua vigência prorrogado várias vezes e acabou sendo revogado em 1978, sem jamais (consigne-se o óbvio) entrar em vigência.

Vigorando continuou (de certo modo repristinado) o Código de 1940, cuja parte geral seria alterada pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984.

Assim, o Código Penal vigente tem a Parte Geral (arts. 1º a 120), com a redação que lhe deu a citada Lei nº 7.209/84 e a Parte Especial (evidentemente, com alterações introduzidas no curso do tempo), basicamente com a redação original de 1940.

A lei de 1984, que entrou em vigor seis meses após sua publicação (o que se deu em 13 de julho de 1984), além de dar nova Parte Geral ao código, estabeleceu que todas as referências a multa de (a que se seguia, obviamente, um valor) seriam substituídas, simplesmente por multa.

Ademais, o mesmo diploma legal dispôs que dentro de um ano, contado de sua vigência, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios deveriam tomar as providências necessárias para a efetiva execução das penas restritivas de direito (naturalmente, sem prejuízo de sua imediata aplicação onde já fosse possível). De outra parte, recorde-se que, de par com o Código Penal de 1940, foram editadas as Leis das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro 1941), e a Lei de Introdução ao Código Penal e a Lei das Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.914, de 9 de dezembro 1941).

A legislação extravagante penal é, contudo, bastante farta.

Assim, além do Código Penal, têm-se delitos previstos (e disciplinados), por leis específicas ou especiais (valeriam aqui ambos os adjetivos) algumas delas polêmicas ou, ao menos, suscitadoras de polêmicas e muitas discussões.

Em tal rol, a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, dispondo sobre os crimes hediondos; a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, definindo os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, ou a Lei nº 8.176, de 8 de fevereiro de 1991, que, definindo crimes contra a ordem econômica, também cria o Sistema de Estoques de Combustíveis.

Diversas outras leis contêm figuras penais em seu bojo, como, por mera ilustração, são citadas a Lei de Proteção ao “software” (Lei nº 9.609/98), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e a Lei que regula a recuperação judicial e extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária (Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005) entre outros.

Presentemente, aguarda-se um novo código penal, que deverá estar à altura do seu tempo, ou melhor, da própria contemporaneidade. Há projeto de lei tramitando no Congresso Nacional, com tal objetivo.

11. A Lei das Contravenções Penais

Em 1941, foi dada a lume a Lei das Contravenções Penais – (Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941), que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942.

Distanciou-se o diploma da solução legislativa preconizada por Alcântara Machado, o notável professor paulista, que tanto influenciou no aperfeiçoamento do direito penal brasileiro, que entendia que as contravenções deveriam estar disciplinadas no corpo do próprio código penal.

Contravenção, como se sabe, é vocábulo que deriva do verbo latino contravenire, que significa transgredir, infringir.

Assim, com fidelidade a suas origens etimológicas, contravenção é transgressão a preceitos, sejam de ordem legal, regulamentar ou contratual.

Em outras palavras, a contravenção revela ato direto de desprezo ou de desrespeito ao estatuído ou ao legalmente instituído. Daí dizer-se que contravenção é sempre fundada na voluntariedade, em síntese, na volição do agente.

Em direito tributário (ou fiscal) considera-se contravenção qualquer desrespeito aos seus preceitos, quer seja omissão culposa, quer intencional.

No campo do direito penal, não é tão ampla sua acepção, posto que aí se considera contravenção o mínimo de ameaça ou de agressão (voluntária ou culposa) ao direito ou à paz e conveniência sociais.

Por se tratar de infração penal de mínima gravidade, repita-se, sua apenação é por isso mesmo (consigne-se o óbvio) mais branda.

Assim, a pena de prisão simples não pode, em caso algum, ser superior a cinco anos, e o condenado deverá ficar separado dos condenados à pena de reclusão e de detenção.

Por outro lado, sem embargo de às contravenções se aplicarem as regras gerais do Código Penal, há certas ressalvas expressas na própria Lei Especial (o já referido Decreto-Lei nº 3.688/41).

Dentre as especificidades das contravenções, tem-se que a ela não se aplica o princípio da extraterritorialidade da lei penal, bem como não se pune a tentativa de contravenção, citem-se apenas essas duas por bem ilustrativas.

Ademais, para a existência da contravenção, basta a ação ou omissão voluntária. É bem verdade que se deve ter em conta o dolo e a culpa, se a lei fizer depender de um ou de outra, qualquer efeito jurídico.

Francisco Campos, com clareza didática, enfatiza o aspecto em destaque na Exposição de Motivos com a qual encaminhou o projeto da Lei das Contravenções: “O elemento moral das contravenções é a simples voluntariedade da ação ou da omissão, isto é, para o reconhecimento do fato contravencional, prescinde-se do dolo ou da culpa. Qualquer destas formas de culpabilidade só é tomada em consideração quando de sua existência depende algum efeito jurídico, como, por exemplo, quando qualquer delas condicione, excepcionalmente a própria existência da contravenção, ou quando se trate de graduar ou individualizar a pena aplicada no caso concreto”.

A propósito, observa Basileu Garcia (in Instituições de Direito Penal): “Subordinando-se a existência do fato contravencional a uma ação ou omissão voluntária não se pode, é claro, dizer que o elemento subjetivo é dispensado. Este necessariamente existe. E sendo manifestação de vontade, também o é de inteligência. Ocorre, pois, na contravenção, um processo intelectual-volitivo, em relação ao qual, porém, não se indaga se tendem ou não para um evento de dano ou de perigo (dolo) nem se a ação ou omissão oriunda de tal processo foi realizada com imprudência, negligência ou imperícia (culpa)”.

Aspecto curioso, veja-se por outro lado, parece ser o da ignorância ou da errada compreensão da lei, nas contravenções.

A velha parêmia “Ignorantia iuris allegari non potest; quia nunca presumitur; neque excusat” (não se pode alegar a ignorância da lei, porque nunca é presumida, nem escusa) ou, simplesmente, Ignorantia legis neminem excusat (a ignorância da lei a ninguém escusa), que se erigiu em um princípio jurídico é, de certo modo, admitida.

Recorde-se que a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (redação dada pela Lei nº 12.376 de 2010), em seu art. 3º, é expressa: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”, e o antigo art. 16 do Código Penal prescrevia “a ignorância ou a errada compreensão da lei não eximem a pena”.

No âmbito do código penal, assinale-se de passagem que a escusa foi mitigada, como expresso no art. 21 (erro sobre a ilicitude do fato) do código em destaque: “o desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato se inevitável, isenta de pena; se evitável poderá diminuí-la de um sexto a um terço”.

Na Lei das Contravenções Penais, o que vigora (art. 8º), contudo, é que: “no caso de ignorância ou de erro da compreensão da lei, quando escusáveis, a pena pode deixar de ser aplicada”.

Na Exposição de Motivos, Francisco Campos, ao fazer referência à ignorância ou à errada compreensão da lei penal, exemplifica com hipóteses motivadas por força maior (força a que não se pode resistir) ou por evidente rusticidade.

Recorde-se, de passagem, a propósito da rusticidade, que Mestre Nelson Hungria falava de um homo sylvester (ou homo rusticus), inteiramente desprovido das aquisições éticas do civilizado homo medius, este (é óbvio) penalmente responsável.

Por outro lado, a exemplo do Código Penal, a Lei das Contravenções contém duas partes, uma geral e outra especial.

Na especial, têm-se as figuras contravencionais e (quase se poder dizer de modo simétrico), assim como há os crimes contra a pessoa, contra o patrimônio, contra a incolumidade pública, contra a paz pública, contra a fé pública, contra a organização do trabalho, contra os costumes, e contra a administração pública, têm-se as contravenções referentes à pessoa (Capítulo I), as referentes ao patrimônio (Capítulo II), à incolumidade pública (Capítulo III), as referentes à paz pública (Capítulo IV), as que se referem à fé pública (Capítulo V), as relativas à organização do trabalho (Capítulo VI), as relativas à polícia dos costumes (Capítulo VII) e as referentes à administração pública (Capítulo VIII).

Ressalvada ficou a legislação especial sobre florestas, caça e pesca, isto é, os códigos ou diplomas especiais que as regulam, que contêm também, ao lado de outras, matéria penal.

Por mera curiosidade, consigne-se a contravenção prevista no art. 27 da Lei das Contravenções Penais: “Explorar a credibilidade pública mediante sortilégios, predição do futuro, explicação de sonho ou prática congêneres”, para a qual está prevista pena de prisão simples de um a seis meses e multa.

Nas velhas Ordenações do reino, isso era considerado feitiçaria (Livro V, Título III) e tinham “os feiticeiros” como pena o açoite público com baraço e pregão da Vila onde o crime acontecesse, além da condenação ao degredo para o Brasil e pagamento de multa de três mil réis, para o acusador.

A bem da verdade, nos tempos que correm, a rigor já não há repressão penal no país a videntes, místicos (religiosos ou não), e, por extensão, a paranormais, parapsicólogos e quejandos.

Aliás, mais particularmente com relação à parapsicologia e à paranormalidade, há universidades de alto padrão científico estudando-as com profundidade, como é o caso (aqui são citados como duas simples ilustrações) da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, e da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá.

12. O Código de Processo Penal

O Código de Processo Penal, ainda em vigor, foi editado em 3 de outubro de 1941 (Decreto-Lei nº 3.689), com vigência a partir de 1º de janeiro de 1942 (art. 810).

Antes dele, como se sabe, vigoraram no Brasil o Livro V das Ordenações (em especial das filipinas), o Código de Processo Criminal de 1832 (mais conhecido como Código de Processo Criminal do Império) e, já na república, os códigos estaduais (poucos, aliás, parecendo ser significativo registrar que o estado de São Paulo não chegou a contar com um código instrumental penal próprio).

Ao tempo do descobrimento, como se sabe, vigoravam em Portugal (ou melhor, no império lusitano) as Ordenações Afonsinas, substituídas pelas Manuelinas, em 1514, e estas, por sua vez, revogadas pelas Filipinas, que passaram a viger em todo o reino português em 1603, a essas alturas sob domínio espanhol.

Nas três ordenações, a matéria criminal (e o respectivo processo) era tratada no respectivo Livro Quinto.

Assim, nas Ordenações Afonsinas, em seus 121 títulos, estava encerrada toda legislação sobre o direito criminal e o respectivo processo, enquanto nas manuelinas a matéria estava distribuída pelos 113 títulos (sempre e naturalmente), do Livro Quinto, repita-se.

Já no Código Filipino, que vigorou no Brasil (no particular das leis processuais penais) de 1603 até 1832, isto é, de sua edição até o advento do código de processo criminal do império, as disposições sobre as leis penais e processuais criminais estavam em 143 títulos, obviamente, no Livro V.

De passagem, registre-se que as Ordenações Filipinas, além de acolherem os delitos previstos nas Manuelinas, contemplaram vários outros, sendo que nos títulos de 139 a 143 aparece o Brasil, como lugar de degredo – e o pior de todos, assinale-se.

Na prática, tanto as Ordenações Afonsinas quanto as próprias Manuelinas não chegaram a ser aplicadas na Terra de Santa Cruz, até porque a colonização só começou a se fazer, efetivamente, a partir de 1532 (com Martim Afonso de Sousa).

Recorde-se, por outro lado, que houve, de par com o direito geral português, um direito colonial geral (para todas as colônias lusitanas) e um direito colonial especial para o Brasil.

Nesse último direito estavam compreendidas, por exemplo, as cartas de doação e as cartas forais (no referente ao regime das capitanias e hereditárias) e o Regimento do Governador Geral (o primeiro, como bem sabido, dado a Tomé de Sousa, em 1548).

Nas cartas de doação estava expresso que ao capitão-mor competia “exercitar toda a jurisdição cível e crime (...) creando ouvidor, e nomeando-lhes meirinho, escrivão e mais officiaes necessários e costumados no reino, assim na correição da ouvidoria como nas villas e logares da capitania (...)”. No crime, o capitão e seu ouvidor tinham jurisdição conjunta com alçada até a pena de morte “inclusive em escravos, gentios, peões christãos e homens livres, em todo e qualquer caso, assim para absolver como para condemnar, sem appellação nem aggravo” (salvo, naturalmente, as pessoas de maior qualidade).

No Regimento do Governador Geral, era expresso que este deveria “prover nas cousas da justiça”.

Como as relações jurídicas na colônia, a cada momento, ficavam mais complexas, as Ordenações Filipinas tiveram, de muitos modos, aplicação efetiva, recordando-se, inclusive, que alguns tribunais foram criados no período colonial (as Relações da Bahia e do Rio de Janeiro, por exemplo).

Proclamada a independência, continuou em vigor o código filipino, tendo havido manifestação expressa em tal sentido, emanada da Assembleia Geral Constituinte Legislativa.

Após a Constituição do Império, e por expresso comando dela, como se sabe, foi aprovado o código criminal de 1830, que exigiu também a edição de um código de processo criminal, advindo em 1832.

O Código de Processo Criminal de 1832 foi alterado pela Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, esta regulada pelo Decreto nº 120, de 31 de dezembro 1842.

Com as Leis nos 4.824, de 28 de novembro 1870, e 2.033, de 20 de setembro, também de 1871, praticamente ficou consolidado o direito instrumental penal.

Com a proclamação da república, os estados passaram a ter Constituições próprias e poderiam também possuir cada qual seu código de processo penal (poucos, contudo, o tiveram).

Em termos práticos, o processo penal básico que vigorou até 1941 foi o que estava contido nas citadas Leis nos 4.824 e 2.033, ambas, repita-se, de 1871, com alterações introduzidas pelo Código Penal de 1890 (art. 407).

A Constituição de 1934 determinou a unificação processual no país (no que foi repetida pela Carta de 1937). Daí adveio o Código de Processo Penal de 1941.

Da sua ideologia, ou melhor, do seu espírito, diz a Exposição de Motivos, firmada por Francisco Campos, ao consignar que o projeto “se norteou no sentido de obter equilíbrio entre o interesse social e o da defesa individual, entre o direito do Estado à punição dos criminosos e o direito do indivíduo às garantias e segurança de sua liberdade (...)”.

Outros pontos poderiam ser enfatizados, partindo-se, ilustrativamente, da citada Exposição de Motivos: 1) a abolição da “injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre a tutela social”; 2) uma pretendida eliminação de formalismos excessivos, ficando o processo “joeirado de certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal compreendido individualismo ou de um sentimentalismo equívoco”, acabava-se por transigir-se “com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal”; 3) a redução ao mínimo de nulidades processuais, com a consagração do princípio pas de nullité sans grief; 4) a coibição à chicana, com o fim (é natural) de evitar “o êxito das fraudes, subterfúgios e alicantinas”; 5) a mitigação no princípio do in dubio pro reo; 6) a ampliação da noção de flagrante delito; 7) a não consagração da proibição irrestrita do julgamento ultra petitum; 8) a transformação em dever da faculdade, em certos casos, de decretação da prisão preventiva; 9) a conservação do inquérito policial; 10) a consagração do princípio do ne procedat iudex ex officio, em particular “na completa separação entre o juiz e o órgão de acusação, devendo (a este) caber exclusivamente a iniciativa da ação penal”. Desnecessário, aqui, o registro de que o procedimento ex officio ficou mantido, devido a razões especiais, nas contravenções; 11) a manutenção da separação entre a ação penal e a ação civil ex delicto; 12) quanto às provas, dentre outros pontos, o abandono do sistema de certeza legal e, ainda, a rejeição do princípio do testis unus testis nullus (no texto está nullius, o que também faz sentido), vale dizer, testemunho único, nenhum testemunho, além da inovação do interrogatório do acusado, isto é, sem fórmulas prévias, sem prejuízo do princípio do nemo tenetur se detegere (ninguém pode ser compelido a responder, a revelar ou a pôr-se a descoberto) e, 13) a manutenção do júri.

O Código de Processo Penal sofreu muitas alterações como as advindas, por exemplo, com a Lei nº 263/48, que modificou a competência do Tribunal do Júri; com a Lei nº 6.416/77, que alterou vários dos seus dispositivos e do Código Penal e, mais recentemente, com a Lei nº 8.038/90, que instituiu normas de procedimento dos processos no STJ e no STF, bem como com a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.930/94).

Além dessas, citadas como meras ilustrações, repita-se, posto que o número de alterações é bem mais amplo, têm-se as importantíssimas Leis de nos 9.099/95 (disciplinando também os juizados especiais criminais) e 7.210, que passou a reger a execução criminal.

13. A Consolidação das Leis do Trabalho

Já no século XIX, começara a agitar-se o que se poderia designar de questão operária. No seio da própria igreja católica (transcendendo de sua missão originária de cuidar de almas) surgiria um dos mais importantes documentos sobre o tema: a Carta Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, dada a lume aos 15 de maio de 1891.

Consigna a Encíclica que o século XVIII “destruiu sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para (os operários) uma proteção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada”.

Não é difícil, pois, compreender o porquê de o século XX haver estreado com tanta preocupação com o direito social.

Na realidade, o século em referência inaugurou-se de modo muito agitado, em particular na Europa, e essa agitação um pouco mais tarde (isto é, em 1929), tornar-se-ia mais aguda, quando nos Estados Unidos ocorreu a quebra da bolsa de Nova Iorque.

Adveio, nesse ínterim, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a paz que dela resultou – a de Versalhes – não foi paz, foi um armistício.

Mal alinhavado o fim da guerra, logo espoucaram conflitos e confrontos em várias partes, ao tempo em que surgiam os Estados de partido único.

Em verdade, o Tratado de Versalhes, de 1919, não foi instrumento suficiente para impedir a instabilidade, que se poderia designar geral e, mais particularmente, na ordem social, econômica e política.

Lembre-se, ademais, que, em 1917, o mundo surpreendeu-se com a revolução bolchevista.

Os 10 dias que abalaram o mundo (recorde-se John Reed) elevaram as relações entre o capital e o trabalho à condição de preocupação primeira de todas as potências, ou melhor, em todo o canto e lugar.

Não por acaso o direito do trabalho teve, como carta básica, o próprio Tratado de Versalhes e que, no mesmo ano de 1919, tenha surgido o Bureau (escritório) Internacional do Trabalho, hoje Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Na busca de uma harmonia entre o capital e o trabalho, muitas soluções foram propostas e, dentre elas, a surgida no estado italiano fascista expressa na célebre Carta del Lavoro, de 21 de abril de 1927.

No Brasil, onde a preocupação com os direitos sociais já grassava com certa intensidade (não seria ocioso registrar-se aqui o disposto no art. 121 da Constituição de 1934), rapidamente, avolumou-se a vaga da proteção social.

A propósito, o caput do citado art. 121 da Carta de 1934 (esta inspirada nas Constituições de Weimar e do México) prescrevia que “a lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador”.

Em oito parágrafos, sendo que o primeiro continha 10 alíneas, desde logo, foram estabelecidas diretrizes fundamentais dos direitos sociais, em particular os referentes ao trabalho, inclusive, consigne-se de passagem, com restrições à imigração.

A Carta de 1937 não faria por menos e, no capítulo “Da Ordem Econômica”, estabeleceria os preceitos básicos da legislação trabalhista, expressando, naturalmente, uma linha corporativista.

Aliás, “a polaca”, no particular, era clara, em seu art. 140: “A economia da produção será organizada em corporações, e estas, como entidades representativas das forças do trabalho nacional, colocadas sob a assistência e a proteção do Estado, são órgãos deste e exercem funções delegadas do poder público.”

Em 1º de maio de 1943 (e o dia 1º de maio, aí, obviamente, não foi uma coincidência), adviria a Consolidação das Leis do Trabalho que, ressalvados os capítulos concernentes ao direito individual, traz a marca da Carta del Lavoro, muito particularmente no referente à organização sindical e na previsão de poder normativo para a justiça laboral.

Assinale-se, por exemplo, que, no referente à associação profissional ou sindical, a Constituição de 1937 revela mais do que inspiração na Carta do Trabalho do Estado italiano fascista.

Não é preciso ser um experto (com x mesmo) na língua de Dante para divisar-se que o art. 138 da Lei Fundamental de 1937 é transcrição quase servil da Carta del Lavoro. Compare-se: “A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi constituído, e de defender-lhes o direito perante o Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções delegadas do poder público” (art. 138 da Constituição de 1937). E, diz a Carta del Lavoro: “L’organizzazione sindacale o professionale è libera ma solo il sindacato legalmente riconnosciuto o sottoposto al controllo dello Stato ha il diritto da rappresentare legalmente tutta la categoria di datori di lavoro o di lavaratori, per cui è constituto; di tutelarne, di fronte allo Stato e alle altre associazioni professionali, gli interessi; di stipulare contrate collettivi di lavoro obbligatori per tutti gli appartenenti alla categoria, di imporre loro contributi e di esercitare, rispetto ad essi, funzioni delegate di interesse publico.

Voltando-se à Consolidação das Leis do Trabalho, que entrou em vigência a partir de 10 de novembro de 1943 (e o dia 10 de novembro, certamente, também não foi mera coincidência) estatuiu normas reguladoras das relações individuais e coletivas de trabalho nela previstas.

Nos seus 922 artigos, as matérias ficaram assim distribuídas: do 1º ao 12 (introdução), onde está a importante disposição (art. 9º) de “considerar nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos” na Consolidação.

As normas gerais de tutela do trabalho foram expressas nos arts. 13 a 223, enquanto as normas especiais encontram-se nos arts. 224 a 441.

O contrato individual do trabalho está cuidado entre os arts. 442 a 510, onde se insere o importante cânon (art. 468) de que, sob pena de nulidade, só é lícita a alteração do contrato individual de trabalho, por mútuo consentimento e desde que não traga direta ou indiretamente prejuízo ao empregado.

Da organização sindical tratam os arts. 511 a 610, enquanto as convenções coletivas do trabalho estão disciplinadas entre os arts. 611 a 625.

Nos arts. 626 a 642 tem-se a regulação do processo de multas administrativas.

Da justiça do trabalho e do ministério público do trabalho trata a Consolidação das Leis do Trabalho, em seus arts. de 643 a 735 e 732 a 762 (com o capítulo III já revogado), respectivamente. E o direito instrumental é o objeto dos arts. 763 a 910.

Finalmente, têm-se, dos arts. 911 a 922, disposições finais e transitórias.

A “velha” Consolidação das Leis do Trabalho ainda conserva certa atualidade. Os dias que correm, contudo, exigem a modernização da legislação do trabalho. O conselheiro Acácio não diria melhor.

Registre-se, como mero exemplo, que já em 20 de janeiro de 1993, foi publicado no Diário Oficial da União, para debate com a sociedade, anteprojeto de lei, objetivando, naturalmente, uma legislação trabalhista na dimensão da contemporaneidade. Aliás, propostas não têm faltado.


3 Nelson Hungria, in Comentários ao Código Penal, vol. I, tomo 1, 5. edição, Forense, Rio de Janeiro, 1955. p. 72 e 73 (nota).