24. O Direito do Consumidor

A Constituição de 1988, na vaga dos novos direitos, ditos de terceira geração, agasalhou o direito do consumidor (arts. 5º, XXXII, e 170, V).

Tal direito tem sua expressão positivada, em nível infraconstitucional, no Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), que, na observação autorizada do professor Paulo Távora, é diploma que encerra a mais revolucionária concepção em matéria do direito das obrigações desde o Código de Napoleão.

Importante observar que a proteção ao consumidor reflete uma tendência universal, com a existência (e ativa participação) de entidades, da chamada sociedade civil, organizadas para a defesa dos que consomem, como na França a Union Française Civique Sociale, o Institut National de la Consommation e a Organisation Générale des Consumateurs, por exemplo.

Não é proteção tão nova, contudo, Othon Sidou (in Proteção ao Consumidor) lembra que, nos Estados Unidos, “a proteção ao consumidor teve seu advento legislativo com a Lei de 1872 que, genericamente, tachava os atos fraudulentos de comércio. A esfera foi ampliada em 1887, com a criação, por lei federal, da Comissão de Comércio entre Estados, encarregada de regulamentar e fiscalizar o tráfico ferrocarril”.

Ademais, o autor dá breve notícia da proteção e defesa do consumidor (além de nos países já citados), na Alemanha, na Áustria, na Bélgica, no Chipre, na Dinamarca, na Espanha, na Finlândia, na Holanda, na Itália, em Luxemburgo, na Noruega, no Reino Unido, na Suécia e na Suíça, por ordem alfabética, evidentemente.

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, na linha dos diplomas legais mais modernos, preocupa-se com as definições, e, por isso, explicita, em particular, o que entende por consumidor, fornecedor, produto e serviço.

Assim, para o código, por exemplo, consumidor “é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”, ao qual se equipara “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”.

O conceito de fornecedor também é bastante amplo, posto que por ele se entende “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.

Amplo também o alcance das expressões produto e serviço.

Quanto a produto, definiu o código como sendo “qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”, e, quanto a serviço, “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”, ressalvadas tão só as atividades decorrentes das relações tuteladas pelo direito do trabalho.

Rompe o código em destaque, por outro lado, com cânones tradicionais do direito.

Desse modo, a proclamação clássica, contida no art. 1.134, do Código de Napoleão aceita, pelo menos desde 1807 e repetida em muitos outros códigos civis, não prevalece no direito do consumidor.

O Capítulo VI do Código, ao tratar da proteção contratual, contém diversas disposições que põem por terra a assertiva de que “o contrato faz leis entre as partes”, nas relações de consumo.

Por ilustrativo, veja-se o art. 46 do Código: “Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

Por outro lado, não há invocar-se, sequer, igualdade contratual entre as partes, posto que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira favorável ao consumidor”, enquanto, “as declarações de vontade constantes de escritos particulares, recibos e pré-contratos relativos às relações de consumo, vinculam o fornecedor ensejando inclusive execução específica”.

De outra parte, o consumidor pode arrepender-se da contratação em determinadas situações, como também expresso no código: “o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 (sete) dias a contar da sua assinatura ou do ato do recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produto e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Ocorrendo a hipótese desse nítido arrependimento, “os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados”.

Apenas mais duas ilustrações quanto ao tópico em destaque, qual seja, no referente a contratos: a primeira é a de que são nulas, de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que, por exemplo, transfiram responsabilidades a terceiros ou que “impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos”.

A segunda é a de se constituir direito básico do consumidor, dentre outros, “a proteção contra a publicidade enganosa, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra as práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços”.

Acrescente-se que o código admite a desconsideração da personalidade jurídica, sendo expresso: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Ademais, que também pode ser desconsiderada a pessoa jurídica, sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Imperioso observar que a desconsideração da personalidade inaugurada no ordenamento positivo brasileiro com o código baixado pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, influenciou na elaboração do código civil de 2002, vigente a partir de 2003.

Por último, registre-se que a máxima “o ônus da prova cabe a quem alega” também comporta hipótese de inversão no direito do consumidor.

25. Os direitos ou interesses coletivos e difusos e os individualmente homogêneos

Como se sabe, a humanidade experimenta a hora e a vez dos chamados direitos de terceira geração (já se falando em direitos de quarta geração). E o Brasil, naturalmente, está inserido nesse contexto, assinale-se de passagem. Dentre eles, têm-se os direitos coletivos e os difusos, também designados interesses coletivos e difusos, a que, por construção, inicialmente, da doutrina, se acresceram os chamados interesses (ou direitos) individuais homogêneos, hoje já também positivados pelo ordenamento jurídico brasileiro, como, por exemplo, no art. 81, III, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

Boa parte dos doutrinadores consideram as expressões em destaque como sinônimas, sendo expressivo lembrar que Mauro Cappelletti sustenta que interesses “tipici de questo mondo nuovo, come quelle alla salute e all’ambiente naturale, hanno carattere ‘diffuso’, ‘colletivo’, poiché non appartengono a singoli individui in quanto tali, ma alla collettività” (v. Appunti sulla tutela giurisdizionale di interessi colletivi o diffusi).

Em outras palavras, para o grande mestre italiano tais interesses têm caráter difuso, coletivo, posto que não pertencem singularmente aos indivíduos enquanto tais, mas à coletividade.

Ada Pellegrini Grinover, abordando o tema, com autoridade, observa: “(...) tenta-se uma distinção, falando-se de interesses coletivos quando existe um grupo de pessoas com interesses comuns que só seriam comunitariamente perseguíveis, ao passo que interesse difuso não se caracterizaria por qualquer momento associativo” (in Enciclopédia Saraiva de Direito, verbete interesses difusos).

Sob uma ótica ou outra da doutrina, pode-se, em síntese, dizer que tais direitos ou interesses (coletivos ou difusos) constituem direito sem dono específico, ou direito no qual não se identifica o rosto específico do seu titular.

Desses direitos, um dos mais significativos é o direito ao ambiente ou, como se diz na linguagem brasileira, o direito ambiental.

A Constituição de 1988, agasalhando o que de melhor tem-se produzido na doutrina e na legislação, nos países de vanguarda quanto à proteção ao meio ambiente, dedicou a este todo um capítulo (o sexto do Título VIII, que trata da ordem social). É dizer-se, o meio ambiente está cuidado no mesmo título que trata da seguridade social, da saúde, da previdência social, da assistência social, da educação, da cultura, do desporto, da ciência e tecnologia, da comunicação social, da família, da criança, do adolescente, do jovem, do idoso e dos índios, naturalmente, cada matéria com seus respectivos capítulos (ou seções) próprios.

É eloquente o caput do art. 225 da Lei Fundamental de 1988 (a primeira Constituição brasileira a cuidar do tema, enfatize-se): “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

José Afonso da Silva (in Curso de Direito Constitucional Positivo) observa que “o capítulo do meio ambiente é um dos mais importantes e avançados da Constituição de 1988” e, mais adiante, afirma que a nova Constituição segue, e até ultrapassa constituições recentes (que aponta), e consigna: “toma consciência de que a qualidade do meio ambiente se transformara num bem, num patrimônio, num valor mesmo, cuja preservação, recuperação e revitalização se tornara um imperativo do Poder Público, para assegurar a saúde, o bem-estar do homem e as condições do seu desenvolvimento. Em verdade para assegurar o direito fundamental à vida. As normas constitucionais assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem e que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Compreender que ele é um valor preponderante, que há de estar acima de quaisquer considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é um valor maior: a qualidade da vida humana.

Com efeito, a Carta de 1988, que proclama o direito à vida como um direito inviolável (nunca é demasiado assinalar), cuida da proteção ao meio ambiente também sob essa ótica.

É um direito coletivo, que obriga à coletividade, de par com o Poder Público, a sua defesa e a sua preservação, não só para as presentes, mas também para as gerações futuras.

De passagem, registre-se que, quando a Lei Maior fala em Poder Público, não é apenas o federal, posto que a Carta é expressa: “É da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (e) preservar as florestas, a fauna e a flora” (art. 23, VI e VII).

Interessante, por outro lado, observar que a Constituição de 1988 inovou, em matéria de bem público, ao definir o meio ambiente “como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”.

Em outras palavras, o meio ambiente é um bem público de uso comum do povo, a exemplo dos mares, rios, ruas, estradas e praças, e sempre é oportuno enfatizar que sua preservação é “essencial à sadia qualidade de vida”.

A propósito, a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira foram erigidos em patrimônio nacional, por efeito da própria Constituição.

De par disso, a biodiversidade, isto é, o patrimônio genético, tem que ter sua integridade preservada.

Ademais, estudos prévios de impacto ambiental constituem exigência para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação, com a obrigação de que a tais estudos se deva dar efetiva publicidade.

Fácil extrair-se que o direito ambiental pode afetar o próprio direito de propriedade, sabido que esta tem que atender sua função social (v. art. 5º, XXIII, da CF).

Assim, por exemplo, incumbe ao poder público, em todas as unidades da federação, definir “espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção”.

Desnecessário enfatizar que tal limitação pode afetar, repita-se, o direito de que propriedade que, tradicionalmente, se proclama como de uso, gozo e disponibilidade – jus utendi, fruendi et abutendi.

26. Uma nova visão sobre a responsabilidade civil

O direito positivo brasileiro deu passos avançados em matéria de responsabilidade civil, a partir do século XX, em particular no que envolve relações de consumo e no referente ao transporte aéreo.

Sabe-se que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.

Ademais, tem-se que não constituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido e, ainda, a deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente, nesta hipótese quando as circunstâncias tornarem o ato absolutamente necessário, e desde que não exceda os limites do indispensável, para a remoção do perigo.

Acrescente-se que “os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado, e, se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão, solidariamente, pela reparação”.

Não é difícil identificar o abono das assertivas nos arts. 159 e 1.518 do antigo Código Civil disposições reproduzidas e até ampliadas no Código de 2002, que entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, repita-se.

Por ilustrativo, transcrevam-se os arts. 186 e 927 do novo diploma: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral comete ato ilícito” (q. v. art. 186) e “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem é obrigado a repará-lo”, sendo que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade naturalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem” (v. art. 927 e seu parágrafo único).

Recorde-se, ainda, que a responsabilidade civil, por vezes, não recai na pessoa do infrator e sim sobre outra pessoa física ou jurídica, em decorrência de ato de um de seus representantes ou mandatários. Por exemplo, a responsabilidade dos patrões, por atos dos seus empregados ou, das pessoas jurídicas de direito público, por ato de seus agentes que, nessa qualidade, causarem danos a terceiros.

Em um esquema, dir-se-ia didático, pode-se dizer que a responsabilidade civil classifica-se em direta e indireta; contratual e extracontratual, além da objetiva.

Diz-se direta, quando ela recai sobre a própria pessoa do infrator, e indireta, naturalmente, quando incide sobre uma pessoa física ou jurídica por ato praticado por seus agentes, quer sejam empregados, representantes ou mandatários.

A responsabilidade contratual decorre, obviamente, de um pacto, e manifesta-se quando ocorre o inadimplemento do ajuste; já a extracontratual decorre de ato ocorrido em hipótese em que não haja convenção escrita. Em outras palavras, que resulte de prescrições legais.

Quanto à responsabilidade objetiva, tem-se que, por ação de empregados de empresas privadas ou de servidores (ou agentes outros) de pessoas jurídicas de direito público, por ela respondem os entes em referência, independentemente de dolo ou culpa.

A Constituição brasileira, por exemplo, é expressa em seu art. 37, § 6º: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes nessa qualidade causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Como se observa, tal dispositivo agasalha a responsabilidade objetiva, sendo o bastante realçar-se que o regresso só caberá se houver dolo ou culpa do agente.

À responsabilidade extracontratual denomina-se também responsabilidade aquiliana ou culpa aquiliana.

O qualificativo, como se sabe, origina-se do nome do tribuno da velha Roma chamado Aquiles, que formulou princípios sobre a responsabilidade, no ano de 286 antes de Cristo.

A culpa aquiliana, não parece demasiado recordar-se, pode ser in constituendo, in eligendo, in omitendo e in vigilando.

Denomina-se culpa in constituendo aquela que decorre da falta de atenção, cuidado ou cautela, em relação a pessoa, coisa ou animal sob a guarda de alguém. Caracteriza-se a culpa in eligendo pela má escolha de empregado ou agente. Já a culpa é in omitendo, quando decorre de omissão por parte do infrator. E, finalmente, diz-se culpa in vigilando quando ela se origina na falta de diligência, atenção, fiscalização ou qualquer outro ato do agente, no cumprimento do seu dever e, de cujo ato decorre prejuízo para outrem.

Mais modernamente, tem-se a responsabilidade extrapatrimonial, vinculada ao dano moral, que diz de perto com os direitos de personalidade.

Os danos morais, observa Rui Stoco, “são apensos aos direitos da personalidade, assim como o direito à imagem constitui um direito de personalidade, ou seja, àqueles direitos da pessoa sobre ela mesma (...)” (q. v. O dano estético, São Paulo, RT, 1980. p. 24), direitos esses insuscetíveis de serem avaliados em dinheiro).

A jurisprudência vai-se fazendo farta, no particular em destaque.

Sobre direito de personalidade versus liberdade de informação, tenha-se, por ilustração, acórdão do Superior Tribunal de Justiça, em que foi relator o Ministro César Rocha: “Civil – Direito à Imagem. Reprodução indevida (art. 49, I, f) – Dever de indenização – A imagem é a projeção dos elementos visíveis que integram a personalidade humana, é a emanação da própria pessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individualizem. A sua reprodução, consequentemente, somente pode ser autorizada pela pessoa a que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sob pena de acarretar o dever de indenizar que, no caso, surge com a sua própria utilização indevida. É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente à sua imagem. Todavia, não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de se consentir que o direito à própria imagem seja postergado, pois a sua exposição deve condicionar-se à existência de evidente interesse público, a ser satisfeito, de receber informações, isso quando a imagem divulgada não tiver sido captada em cenário público ou espontaneamente” (veja-se Recurso Especial nº 58.101 – São Paulo).

Eis aí alguns alicerces da revolução copernicana, em matéria de responsabilidade civil, evidenciada no direito brasileiro, a partir das últimas décadas do século XX.

Também nas relações das empresas aéreas com os seus usuários, o direito brasileiro vive um novo tempo.

Durante muito tempo, abrigaram-se tais empresas, em matéria de responsabilidade civil, sob o manto da Convenção de Varsóvia e do Protocolo de Haia, de par com o Código Brasileiro do Ar, atualmente de Aeronáutica.

Em síntese, a aceitação da responsabilidade civil do transportador, de modo limitado, por decorrência de tais diplomas, que consagram o princípio da indenização tarifada, e não o do pleno reparo do dano.

Fazia-se, assim, tábula rasa, por exemplo, das regras contidas no Código Civil e, nesse quadro, seria até inconcebível falar-se em danos morais, que hoje são indenizáveis até por extravio de bagagem aérea.

O Supremo Tribunal Federal, no ano de 1997, deixou superada a discussão.

Com efeito, a Suprema Corte, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 172.720/RJ, de relato do Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, examinando a matéria, naturalmente, à luz da Constituição de 1988, decidiu: “O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais. Configurados esses pelo sentimento de desconforto, de constrangimento, aborrecimento e humilhação decorrentes de extravio de mala, cumpre observar a Carta Política – incisos V e X do art. 5º, no que se sobrepõe a tratados e Convenções ratificadas pelo Brasil.

Não bastara essa autêntica revolução em termos de jurisprudência, e veio o Superior Tribunal de Justiça oferecer inteligência mais consentânea, também no referente à responsabilidade civil, quanto ao dano material.

Foi o que resultou do julgado do Recurso Especial nº 173.526/SP, de relatoria do Ministro Ruy Rosado de Aguiar.

A decisão, tomada por unanimidade pela Quarta Turma da Corte Superior, foi a seguinte: “RESPONSABILIDADE CIVIL. Transporte aéreo internacional. Limite indenizatório. Dano Moral. 1. A perda de mercadoria em transporte aéreo internacional, causada pela negligência da empresa, deve ser indenizada pelo seu valor real, não se aplicando a regra da indenização tarifada. 2. É possível a condenação pelo dano moral resultante da perda durante o transporte. Divergência superada (...)”.

Por oportuno, registre-se que o magistrado, em seu voto, entre muitas outras considerações recordou lição do professor Dieter Grimm, juiz do Tribunal Constitucional da Alemanha que, ao discorrer sobre a “Importância dos Direitos Fundamentais para o direito privado”, afirmou “que eles se prestam não apenas à defesa do cidadão contra o Estado (efeito imediato), como também criam dever de proteção ao indivíduo nas relações privadas, produzindo efeitos sobre terceiros (drittewirkung)”.

Frise-se bem, ainda uma vez, que a Convenção de Varsóvia (de 1929), alterada pelo Protocolo de Haia (de 1955), toma, como básico, o princípio da responsabilidade limitada que se expressa, em termos práticos, pela indenização tarifada, para as hipóteses de dano ocasionado por morte, ferimento ou qualquer outra lesão corpórea sofrida pelo viajante, que, naturalmente, resultem de acidente, ocorrido a bordo de aeronave, ou no curso de quaisquer operações de embarque ou desembarque.

Ademais, o mesmo princípio aplica-se ao “dano ocasionado por destruição, perda, avaria de bagagem despachada, ou de mercadorias, desde que o fato que causou haja ocorrido durante o transporte aéreo”. De igual modo, é invocada tal norma basilar para indenização por atraso em voo.

O art. 20 da Convenção de Varsóvia, contudo, mitiga ainda mais, assinale-se de passagem, a responsabilidade em destaque, por último, ao prescrever, expressamente: “1) O transportador não será responsável se provar que tomou ou tomaram seus prepostos, todas as medidas necessárias para que se não produzisse o dano, ou que lhes não foi possível tomá-las, e 2) No transporte de bagagem, ou de mercadorias, não será responsável o transportador se provar que o dano proveio de erro de pilotagem, de condução da aeronave ou de navegação, e que, a todos os demais respeitos, tomou, e tomaram seus prepostos, todas as medidas necessárias para que se não produzisse o dano.

No seu art. 22 a Convenção estabelece os limites da responsabilidade (naturalmente, para as hipóteses de que trata), enfim, também sob a forma de indenização tarifada.

Como se vê, no sistema da convenção há uma imposição de responsabilidade subjetiva (e não objetiva, como vez por outra se alega), baseada na presunção de uma culpa juris tantum, se se pode designar assim.

É que, como observa Cláudia Lima Marques (in A responsabilidade do transportador aéreo pelo fato de serviço e o Código de Defesa do Consumidor, artigo, na Revista Direito do Consumidor, nº 3), “a responsabilidade fica presumida sob prova em contrário, mas ficaria excluída se provada a ocorrência de força maior ou caso fortuito, bem como a culpa exclusiva da vítima”.

Para que melhor se perceba a assertiva da articulista tenha-se ainda o texto do art. 21 da Convenção: “Se o transportador provar que o dano foi causado por culpa da pessoa lesada, ou que esta para ele contribuiu, poderá o tribunal, de conformidade com as disposições de sua lei nacional, excluir ou atenuar a responsabilidade do transportador.

É importante, assinale-se, por outro lado, que já se faz sentir muito forte reação contra a Convenção de Varsóvia, em muitos (e expressivos) países. Os Estados Unidos, por exemplo, em 15 de novembro de 1965, formalizaram notificação de denúncia, ao diploma em destaque.

Muito embora não se tenha consumado a referida denúncia em termos formais, do fato resultou o Arrangement of Montreal expressando acordo dos Estados Unidos com 80 companhias aéreas, que se comprometeram a aumentar os limites referentes à responsabilidade com relação a voos que utilizem aeroportos em território norte-americano, sejam de chegada, de saída ou em escala.

Se a falta de consenso não permitiu maiores progressos nessa Convenção de Montreal, quanto ao particular em destaque, não se pode deixar de se considerar que daí resultou a quebra (ou o fim) da própria universalidade da Convenção de Varsóvia, no concernente à limitação da responsabilidade que ela prevê.

O direito brasileiro contemporâneo, quer pelo ordenamento positivo (Constituição de 1988), quer pela via jurisprudencial, está nessa linha.

Observe-se, por outro lado, que o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986), como bem sabido, também inspirou-se em princípios da Convenção de Varsóvia de 1929, em matéria de responsabilidade limitada para as empresas aéreas, em diversas hipóteses.

O professor Antônio Chaves, em uma aproximação histórica, observou sobre a citada Convenção, em artigo publicado na Revista Direito do Consumidor (nº 25/7), que para boa compreensão do que ficou estabelecido no Tratado de Varsóvia é preciso remontar ao início do século XX, “quando a aviação ainda era uma atividade em nascimento e onde os riscos eram enormes tanto para os passageiros, para a carga transportada, para os tripulantes e para as próprias empresas aéreas. A aplicação das regras da responsabilidade comum dificultava o desenvolvimento deste importante setor econômico e ao mesmo tempo permitiam que se incluísse nos contratos de transporte oferecidos pelas empresas cláusulas de exoneração da responsabilidade” (apud Claudia Lima Marques inA responsabilidade do transportador aéreo pelo fato de serviço e o Código de Defesa do Consumidor – antinomia entre a norma do CDC e de leis especiais.” – Revista Direito do Consumidor, nº 3).

Acontece que, na visão contemporânea do direito, já não prosperam (ao menos com tranquilidade) os princípios, regras e (ou) normas da Convenção de Varsóvia, em matéria de responsabilidade civil das empresas aéreas.

A jurisprudência (que, na feliz expressão de Ferrara, “é o estado atual do direito tal como refletido pelo conjunto de soluções que, sobre dada matéria, se encontram consagradas pelas decisões judiciais”) tem, mais recentemente, reconhecido a responsabilidade objetiva das empresas aéreas, inclusive afastando a indenização tarifada, diante de hipóteses de extravio de bagagens, atrasos de voos e “overbooking” (ou seja, a venda de passagens acima do número de lugares disponíveis para determinado voo).

Dos suprimentos jurisprudenciais, no particular, tomem-se como ilustrações importantíssimas decisões: a) do Supremo Tribunal Federal, como a anteriormente referida, ao reconhecer a indenização por dano moral em caso de extravio de bagagem aérea em voo internacional, e b) do Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo a responsabilidade civil do transportador aéreo, por danos morais resultantes de atraso em voo internacional e, ainda, o direito a indenização, em caso de extravio de bagagem, pelo valor real da mercadoria (e não pela regra da indenização tarifada), sem prejuízo do dano moral.

Das decisões da Suprema Corte, merece transcrição a ementa do Agravo Regimental em Agravo de Instrumento (AGRAG 196379//RJ – relator, ministro Marco Aurélio): “INDENIZAÇÃO – DANO /MORAL – EXTRAVIO DE MALA EM VIAGEM AÉREA – CONVENÇÃO DE VARSÓVIA – Longe fica de vulnerar o art. 5º, inciso II, e § 2º (da Constituição, naturalmente) decisão mediante a qual, a partir do disposto nos incisos 5º e 10 nele contidos, é reconhecido o direito de indenização por dano moral decorrente de atraso em voo e perda de conexão (Precedente – Recurso Extraordinário nº 172 720-9).”

Quanto às do STJ, vejam-se, por bastante expressivas, as ementas dos Recursos Especiais: 1) nº 197.808-SP, relator, ministro Antônio de Pádua Ribeiro, e 2) nº 173.526-SP, relator, ministro Ruy Rosado Aguiar), respectivamente: 1) “RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE AÉREO EM VOO INTERNACIONAL. DANO MORAL (...) 1. Cabível a indenização por danos morais sofridos por passageiro em virtude de atraso de 10 horas em voo internacional, caso em que é razoável o valor fixado em 5000 francos Poincaré. Via de regra, a prova do fato e das circunstâncias do atraso é suficiente para que se forme a convicção acerca do desconforto, dor ou aflição do passageiro (...)”, e 2) “RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE AÉREO INTERNACIONAL. LIMITE INDENIZATÓRIO. DANO MORAL. 1. A perda de mercadoria em transporte aéreo internacional, causada pela negligência da empresa, deve ser indenizada pelo seu valor real, não se aplicando a regra da indenização tarifada. 2. É possível a condenação pelo dano moral resultante da perda durante o transporte. Divergência superada (...)”.

Tais decisões, naturalmente, expressam o estágio do direito contemporâneo em que a Constituição, como ápice do sistema jurídico e com sua força normativa (Konrad Hesse), não só determina o conteúdo das leis novas (isto é, as que sejam aprovadas no seu regime), mas também manifesta sua força modificadora ou transformadora, por via interpretativa, quanto à legislação que lhe é pretérita.

No ordenamento positivo brasileiro, por exemplo, a Constituição de 1988 (em seu art. 5º, incisos V e X), garante indenização por dano moral e, no inciso XXXII do mesmo art. 5º, é expressa que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Ademais, extrai-se da Lei Fundamental que a mencionada defesa do consumidor é um dos princípios da própria ordem econômica (art. 170, V).

Em outras palavras, à luz da Constituição e da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – Código de Defesa do Consumidor) e, ainda, em face de que a letra de um tratado (observada tão só a ressalva expressa no § 3º do art. 5º da Carta de 1988) não prevalece, no ordenamento positivo brasileiro, sobre a Constituição, está praticamente assentado que os limites indenizatórios constantes da Convenção de Varsóvia já não se aplicam às relações jurídicas de consumo, uma vez que deve haver, com respeito a elas, o reparo integral dos prejuízos sofridos pelo consumidor.

Mais ainda, está consagrado o entendimento do cabimento também da reparação por dano moral, decorrente de extravio de bagagem de atraso em voos.

A jurisprudência, apoiada nos mesmos princípios, vem avançando muito mais e, agora, já no sentido de reconhecer a indenização, também por dano moral, decorrente de “overbooking”, como, aliás, já feita breve referência.

Esse entendimento (ou no plural, se se achar melhor), que se vem formando com relação aos voos internacionais, tem-se estendido também aos voos internos.

E, já se vai fazendo também robusta jurisprudência no particular.

Por exemplo, tanto o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios quanto o do Estado do Rio de Janeiro têm importantes decisões sobre o tema.

Em síntese, a prática de mau vezo adotada pelas companhias aéreas, ao venderem bilhetes em número superior ao de assentos disponíveis na aeronave (overbooking), tem sido configurada, pelos Tribunais, como intolerável violação do direito do consumidor e do contrato de transporte, da qual decorre indiscutível dano moral indenizável. Dano esse consubstanciado na decepção, revolta, ansiedade e frustração do passageiro ao ver desrespeitada sua reserva.

27. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas

O Brasil acolheu, em seu ordenamento jurídico, quanto aos danos ambientais, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Como fica isso?

Societas delinquere non potest, proclama a velha parêmia.

Recorde-se que o velho brocardo latino exprime que a sociedade (e em inteligência mais moderna, a pessoa jurídica) não pode delinquir. E, com efeito, assim se entendeu por muito tempo.

Mais recentemente (e em expressivos ordenamentos jurídicos), tem-se admitido, expressamente, a responsabilidade penal em destaque. E, é natural, não sem muita polêmica, em particular no campo da doutrina.

Na França, por exemplo, desde o projeto de código criminal de 1934 (passando por elaborações ocorridas em 1978 e 1986), veio se consagrando a tese da responsabilização penal das pessoas jurídicas o que, hoje, está plenamente consagrado no seu código penal de 1994.

Por sua vez, no Reino Unido a admissão da responsabilidade penal dos entes coletivos tem sido entendimento pacífico na jurisprudência, salvo obviamente, os delitos de mão própria.

Em verdade, no ordenamento britânico, como sabido, baseado na common law, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas praticamente não encontra limites, sendo de se assinalar os delitos contra o meio ambiente, a economia, a saúde pública e a segurança do trabalho.

Nos Estados Unidos conhece-se a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, desde o século XIX. Aliás, o ordenamento norte-
-americano socorre-se de tal responsabilidade como meio de controle das corporações. Em matéria de lesão ambiental, registre-se, por bem significativo, é o bastante a ação descuidada da pessoa jurídica, para a fixação de uma sanção penal.

Por oportuno, recorde-se que o primeiro precedente judicial sobre responsabilização criminal de pessoa jurídica, que se conheceu nos Estados Unidos da América do Norte, ocorreu no caso da Central Nova Iorque e a estrada de ferro Rio Hudson (New York Central and Hudson River Railroad) versus os Estados Unidos, que foi julgado pela Suprema Corte norte-americana em 23 de fevereiro de 1909, onde se firmou o entendimento no sentido de que se a lei fixa que o crime pode ser cometido por uma pessoa (sem fazer distinção se física ou jurídica), impõe-se a conclusão de que ambas podem ser responsabilizadas.

Muitos outros sistemas jurídicos vêm admitindo a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, como o da Austrália, o da Áustria, o da Dinamarca, o da Escócia, o dos Países Baixos, o do Japão, o do México, e o da Noruega e o da Nova Zelândia, por exemplo.

Portugal, por sua vez, muito embora em atenção ao princípio da culpabilidade, não consagre expressamente a responsabilidade penal dos entes coletivos, por intermédio do chamado Direito Penal Administrativo, estabelece multas pecuniárias às pessoas jurídicas, em decorrência do que designa prática de contraordenações, por tais entidades no exercício de suas atividades.

De outra parte, muitos países não admitem essa forma de responsabilidade penal e, entre eles, a Alemanha, a Itália, a Espanha, a Bélgica, a Grécia, a Suíça e tantos outros.

O Brasil, pela “Lei que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras pro-vidências” (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998) inseriu em seu ordenamento a responsabilidade penal dos entes coletivos, expressamente: “Art. 3º As pessoas jurídicas são responsabilizadas administrativa, civil e penal conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade.” Ademais, “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato” (parágrafo único do citado art. 3º).

Essa inovação legislativa tem provocado muita discussão, ou melhor, muita polêmica mesmo.

De passagem, dê-se relevo especial ao fato de que dois dos sistemas que, de modo significativo, têm influenciado a legislação penal brasileira (o alemão e o italiano) não adotam a responsabilidade em comento.

Importantíssimos autores (e situados no que de melhor a doutrina brasileira tem revelado nos últimos tempos) sustentam até a inconstitucionalidade da disposição contida no art. 3º da Lei nº 9.605/98, contestando que a Lei Fundamental de 1988, em seus arts. 173, § 5º, e 225, § 6º, tenha autorizado a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, e enfatizam que as pessoas morais (como gostam de designar os franceses) só se sujeitam a sanções administrativas.

Dentre os que estão nessa linha, encontram-se René Ariel Dotti, o saudoso Luiz Vicente Cernicchiaro, Miguel Reale Júnior, Luiz Régis Prado e José Cretella Júnior.

Em contrapartida, opõem-se à tese publicistas do porte de José Afonso da Silva, o pranteado Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, Pinto Ferreira e ambientalistas como Paulo Afonso Leme Machado e Vladimir Passos de Freitas.

Ivette Senise Ferreira, professora titular de Direito Penal da Faculdade do Largo de São Francisco, em trabalho sob o título La responsabilité penal des personnes morales, cuidando, obviamente, da responsabilidade penal das pessoas jurídicas (ou morais), apresentado na Academia de Ciências da Rússia, em junho de 2001, observa, dentre outras considerações, que “a ordem jurídica brasileira conhece há pouco tempo a responsabilidade das pessoas jurídicas no domínio penal, unicamente no setor particular do direito ambiental, a propósito de todas as infrações determinadas pela Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998”.

E assinala a professora da USP que “essa lei resultou de discussão acerca da necessidade de unificação e de harmonização de uma dúzia (de várias) leis que dispunham antes sobre as infrações ao meio ambiente no Brasil, de modo desordenado e contraditório, posto que o Código Penal, datado de 1940, não apresentava nenhuma solução dos conflitos nesse domínio. Uma lei penal mais completa sobre o meio ambiente era portanto reclamada pela comunidade jurídica desde a promulgação da nova constituição federal de 1988, onde foi proclamado que o meio ambiente de qualidade é um direito fundamental, tanto do indivíduo quanto da coletividade (...)”.

No seu estudo, a autora em destaque transcreve o § 3º do art. 225 da Lei Maior de 1988, para registrar que ele permitiu a introdução da Lei nº 9.605, ressaltando que, enquanto a responsabilidade administrativa não se questiona, no particular da penal, ainda há divergências expressivas no campo da doutrina.

Com efeito, a propósito da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, recorde-se a dúvida (ou a dialética?) do indigitado príncipe Hamlet: “ser ou não ser – eis a questão”.

Em paráfrase (ou quase isto) indagar-se-ia: “as pessoas jurídicas podem ou não podem delinquir?”, ou, em versão latina, “societas delinquere potest aut non potest?

A corrente – expressiva, aliás, registre-se de passagem – que se opõe ao reconhecimento da pessoa jurídica, como passível de responder penalmente, centra-se no princípio da culpabilidade (consagrado no direito penal brasileiro, por exemplo), como um impeditivo para tal. Em outras palavras, o caráter acentuadamente volitivo da ação, excluiria ipso facto a possibilidade de o ente coletivo delinquir.

A propósito, observam Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (in Manual de direito penal brasileiro): “Não se pode falar de uma vontade em sentido psicológico no ato da pessoa jurídica, o que exclui qualquer possibilidade de admitir a existência de uma conduta humana. A pessoa jurídica não pode ser autora do delito, porque não tem capacidade de conduta humana no seu sentido ôntico-ontológico.

Acrescente-se, por outro lado, que a doutrina designa de juízo de reprovação social (que é, por certo, o conteúdo maior da culpabilidade), não prescinde, naturalmente, de imputabilidade em si, da consciência da ilicitude da conduta (isto é, do ato praticado) e a possibilidade de seu enquadramento na norma penal em atenção ao clássico princípio da reserva legal – nullum crimen sine lege; nulla poena sine lege.

Daí extrai-se que a consciência da ilicitude constitui, por óbvio, um obstáculo (transponível?) à responsabilidade penal das pessoas jurídicas.

Outras teses e (ou) argumentos poderiam ser invocados contra a admissibilidade da responsabilização penal dos entes coletivos, inclusive passando pelo conceito de pena e, obviamente, também pela sua própria função.

Por sua vez, os que admitem a responsabilidade em destaque pretendem enfrentar a forte argumentação oposta, mormente invocando um novo tempo no direito penal.

Hans Joachim Hirsch, professor de direito penal e processual penal da Universidade de Colônia (Alemanha), em trabalho traduzido para o espanhol, sob o título “La cuestión de la responsabilidad penal de las asociaciones de personas” (in Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XLVI, Fascículo III, septiembre-diciembre MCMXCIII, Madrid), após assinalar que o direito penal alemão vigente, e também o da maioria dos países, salvo os anglo-saxônicos, não conhece a punibilidade das associações de pessoas, ou seja, das pessoas jurídicas e demais associações de pessoas organizadas em forma de corporação (em outras palavras, para tais sistemas jurídicos só a pessoa humana ou pessoa física e jamais a corporação é considerada penalmente capaz), e mais adiante, observa que (e aí, já firmando posição na diretiva da possibilidade da responsabilização penal dos entes coletivos): “La concepción de que sólo el hombre podría ser penalmente capaz en la compreensión del derecho penal europeocontinental, nos es tan obvia como se lo afirma muchas veces. El principio frecuentemente mencionado societas delinquere non potest era probablemente acertado para el derecho romano, al que todavía le eran absolutamente extraños el concepto de corporación como tal, y en particular también el concepto de persona jurídica.

E, prossegue o professor Hans Joachim Hirsch, oferecendo a seguinte síntese histórica: “(...) el cuadro se modificó en la Edad Media. Los glosadores comenzaron a ocuparse más detenidamente del problema de si son posibles acciones penales contra agrupaciones de personas de esa clase. A ello se agregaron los canonistas, que elaboraron el concepto de universitas, para la Iglesia, como algo no idéntico a sus miembros y plantearon la cuestión de si la universitas podia ser excomulgada. La mayoría de los canonistas afirmó esto y a la vez, con ello, de capacidad penal de la universitas.

Destaca o autor que tal posição afrontava até a posição do Papa Inocêncio IV no particular, a tal ponto que o pontífice, no Concílio de Lyon de 1245, rechaçou a ideia de excomunhão da universitas porque esta não seria capaz de culpabilidade (nihil potest facere dolo, ou seja “de modo nenhum pode cometer dolo” e “impossibile est quod universitas delinquat”, é dizer-se “impossível é que a universalidade [a referência à Igreja] delinqua”).

Lembra ainda que a capacidade penal das corporações foi amplamente aceita pelos pós-glosadores, destacando o papel de Bartolo no particular e que teve influência na Alemanha, por vários séculos.

E conclui o professor tedesco seu estudo nesse tópico, citando posições de V. Gierke, Franz von List e Max Ernst Mayer, para afirmar que “la punibilidad de las asociaciones de personas no es una idea totalmente ajena al desarollo del derecho alemán”.

O fato é que a Lei brasileira nº 9.605/98 admite expressamente a responsabilidade penal das pessoas jurídicas com relação aos delitos ecológicos, também designados crimes contra o meio ambiente.

Naturalmente, a responsabilidade penal, no caso, é a objetiva, posto que não há como se admitir a subjetiva com respeito a quem não tem vontade (permita-se o registro do óbvio).

Já se tem notícia de condenação pelo Judiciário de pessoa jurídica com apoio no diploma citado.

A jurisprudência, que é a seiva que mantém vivo o direito, certamente, amoldará o texto da lei, à luz das novas tendências do direito e com atenção aos novos ventos que sopram sobre os ordenamentos jurídicos.

28. Expectativa de um novo tempo no acesso à justiça: os juizados especiais na justiça dos Estados e do Distrito Federal e na justiça federal. A justiça de paz no nosso tempo

A Constituição de 1988, como se sabe, em seu art. 98, dispõe que a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I) “juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos nas hipóteses previstas em lei, a formação e o julgamento dos recursos por turma de juízes de primeiro grau.

Por efeito de tal comando constitucional adveio a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, dispondo sobre os referidos juizados especiais.

Tal diploma conferiu competência aos juizados especiais cíveis para o julgamento de causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas, dentre outras, aquelas cujo valor não exceda a 40 (quarenta) vezes o salário mínimo.

De outra parte, pormenorizando a disposição constitucional em destaque, dispõe a Lei nº 9.099/95 que o processo no juizado civil “orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação e a transação”.

Ademais, estabeleceu a lei dos juizados especiais normas flexíveis e facilitadoras em matéria do foro competente, dispondo ser ele: “I – do domicílio do réu ou, a critério do autor, do local onde aquele exerça atividades profissionais ou econômicas ou mantenha estabelecimento, filial, agência, sucursal ou escritório; II – do lugar onde a obrigação deva ser satisfeita; III – do domicílio do autor ou do local do ato ou fato, nas ações para reparação do dano de qualquer natureza.” Em qualquer hipótese a ação pode ser proposta no foro do domicílio do réu.

Assinale-se, desde logo, que os juizados especiais têm sido apontados como um caminho eficaz no que, a partir de Mauro Cappelletti, se convencionou designar acesso à justiça.

A rigor não é bem uma novidade no ordenamento positivo brasileiro, pois já a Lei nº 7.244, de 7 de novembro de 1974 (ora revogada), previa os juizados de pequenas causas.

Na verdade, trata-se de um passo adiante em direção à efetiva realização da justiça, tanto no referente à rapidez na resolução dos conflitos quanto no que diz respeito, repita-se, ao acesso do povo à justiça.

A Constituição é clara, no particular, inclusive ao indicar que os procedimentos devem prestigiar a oralidade e ser sumaríssimos, “permitidas, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento dos recursos por turmas e juízes de primeiro grau” (art. 98, I, in fine).

A disposição constitucional, em destaque, foi aperfeiçoada com a Emenda Constitucional nº 22/99, que lhe acrescentou parágrafo único, com a seguinte redação: “Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.

Daí resultou a Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, dispondo sobre tais juizados na Justiça Federal.

É preciso que se enfatize que esse novo ordenamento trouxe consigo também uma nova visão de processo e de procedimento que, por cuidar de bastante expressivo número de feitos perante a justiça, constitui um novo tempo no chamado direito instrumental.

Acentue-se a importante diretriz expressa em seu art. 2º: “O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando sempre que possível, a conciliação ou a transação.

Consagra, assim, a Lei nº 9.099/95 a tendência do processualismo moderno, em particular nas nações ditas de vanguarda.

Em outras palavras, são diretrizes e (ou) princípios que não deveriam valer apenas para os juizados especiais, mas para todo e qualquer processo judicial.

De passagem, recorde-se que já o Código de Processo Civil de 1973 traz orientação no sentido da busca da conciliação das partes. Isto é, a conciliação deve levar a palma sobre o litígio.

Assim, o art. 125, IV, é expresso, no sentido de que compete ao juiz “tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes”.

Ademais, ao dispor sobre o procedimento sumário, a lei processual civil básica é expressa no caput do art. 277 que “o juiz designará a audiência de conciliação (...)”. A Seção II, do Capítulo VII (Da audiência), por sua vez, trata, especificamente, da conciliação.

A conciliação, contudo, não tem sido a regra mais comum na resolução dos conflitos levados a juízo. Ao contrário, há até uma certa cultura de prolongamento das demandas, em particular com o uso (não raro, de forma meramente procrastinatória) excessivo de recursos.

– O que fazer?

O caminho não parece outro que, desde logo, se investir na transformação da mentalidade, posto que o problema é, também, basicamente cultural. A via (como praticamente em tudo o que diga respeito ao aperfeiçoamento do ser humano) é pela educação, seja formal ou informal, sistemática ou assistemática.

É preciso, insista-se, mudar a mentalidade. – Mas, que mentalidade mudar?

Primeiramente, a das partes. E, por que não dizer?, a dos advogados, também? Naturalmente, nessa mudança não podem ficar excluídos o ministério público e os juízes, ressalvadas, necessária e obviamente, as expressivas e honrosas exceções de sempre.

Voltando-se aos juizados especiais, repise-se que eles representam, em matéria de prestação jurisdicional, a de possibilidade de realização efetiva da justiça.

Nessa direção, a destacada Lei nº 9.099 é um diploma legal de vanguarda contendo disposições que tais: “os atos judiciais poderão realizar-se em horário noturno (...)” e serão válidos sempre que preencherem as finalidades (e não as formalidades) para os quais foram realizados. Além disso, “apenas os atos considerados essenciais serão registrados resumidamente, em notas manuscritas, datilografadas, taquigrafadas ou estenotipadas. Os demais (...) poderão ser gerados, em fita magnética ou equivalente, que será inutilizada após o trânsito em julgado da decisão.

Por outro lado, a Constituição de 1988, no art. 98, inciso II, dispõe sobre a “justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação.

A propósito dos juízes de paz, registre-se de passagem que já a Constituição do Império era expressa, em seus arts. 161 e 162: “Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará processo algum” (art. 161); “Para este fim haverá Juizes de Paz, os quaes serão electivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os Vereadores das Camaras. Suas attribuições, e Districtos serão regulados por Lei” (art. 162).

A lei em referência adveio em 15 de outubro de 1827, estabelecendo que “em cada uma das freguesias e das capelas filiais curadas, haverá um Juiz de Paz, e um suplente para servir no seu impedimento, enquanto não se estabelecerem os distritos, conforme a nova divisão estatística do Império”.

Por oportuno, observe-se que, em caráter emergencial (isto é, até a nova divisão do Império), foi adotada, repita-se, a divisão (ou jurisdição) eclesiástica, sabido que não poderia haver eleição para Juiz de Paz em paróquia que não estivesse provida economicamente.

As competências de tais juízes foram fixadas no art. 5º da lei de 1827, em destaque. Dentre elas: conciliar as partes, julgar pequenas demandas (ou seja, causas cujo valor não poderia ultrapassar mais de 16 mil réis; fazer separar os ajuntamentos, onde houvesse manifesto perigo de desordem; pôr em custódia o bêbado durante a bebedeira; evitar rixas; destruir quilombos e providenciar a que não se formem; fazer auto de corpo de delito etc.

Voltando-se, mais particularmente, aos juizados especiais (que, de muitos modos, tiveram como antecedentes os juizados de pequenas causas), lembre-se que tais órgãos, em essência, em outros sistemas jurídicos já são bem antigos.

O desembargador José Fernandes, em trabalho sob o título Juizados especiais: do sonho à realidade, disso dá boa notícia. Veja-se: “Em matéria cível, data, na Inglaterra, do século XI; a legislação austríaca, em 1873, acolheu o sistema. Nos Estados Unidos, em 1912, alguns estados instituíram a Poor Man’s Court (naturalmente, a Corte do Homem Pobre, valha a observação); em 1934, aparece em Nova Iorque as Small Claims Courts (permita-se a tradução, Cortes de Pequenas Causas), destinadas a julgar causas com valor inferior a cinquenta dólares. O pioneirismo da Noruega levou à instituição do sistema, nos fins do século XIX, tendo por objetivo proteger os camponeses que não podiam pagar advogados. Hoje, o sistema está praticamente acolhido nos Estados Unidos, com o propósito de descongestionar a justiça, merecendo especial destaque a experiência de Nova Iorque, em esforço internacionalmente reconhecido, com centenas de advogados funcionando como árbitros, sem qualquer remuneração, em processos de até cinco mil dólares (...).

A experiência também tem sido praticada na Alemanha, México, Japão e Argentina (...).

Lei Italiana, de 1981, instituindo modificações no sistema penal, permitiu que o juiz, a pedido do acusado e após manifestação favorável do ministério público, aplicasse a sanção com subsequente extinção da punibilidade, com o registro da pena exclusivamente para efeito de impedir um segundo benefício.

O código de processo penal português (17 de fevereiro de 1987) permitiu ao ministério público requerer a aplicação de pena de multa ou de pena alternativa, funcionando, ao mesmo tempo, como representante da vítima para formular o pedido de indenização civil.

A merecer destaque que os juizados especiais no Brasil são basicamente regidos pela Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que, no seu Capítulo II, trata dos juizados especiais cíveis (fixando-lhe a competência; tratando dos juízes, dos conciliadores e dos juízes leigos; dispondo sobre as partes; os atos processuais; o pedido; as citações e intimações; a instrução e o julgamento, e a sentença, dentre outras matérias), e, no Capítulo III, dispõe sobre os juizados especiais criminais (da competência e dos atos processuais, da fase preliminar, do procedimento sumaríssimo, da execução, das despesas processuais e disposições finais).

Os juizados especiais, tanto cíveis quanto criminais, quer na justiça comum, quer na federal, podem constituir, repise-se, uma revolução em matéria do chamado direito instrumental ou processual (como se queira designá-lo), a começar porque os processos devem orientar-se pelos critérios da oralidade, da simplicidade, da informalidade, da economia processual e da rapidez ou celeridade, tendo como escopo precípuo a conciliação das partes ou a transação.

Enfim, é uma justiça que, por sua própria natureza, deve afastar-se, o mais possível, da chamada justiça técnica e, rigorosamente, formal.

Esses juizados têm-se multiplicado pelo Brasil afora. E as estatísticas apontam que para mais de 40% da chamada massa processual do país já se encontram nela tramitando.

E a tendência é ampliar-se, e de muito, o acesso à justiça por tal via.

De passagem, assinale-se que os princípios “processualísticos” a serem empregados nos juizados especiais estão hoje espalhados por todo canto e lugar (e no mundo inteiro) e (vale a ênfase) não só para “pequenas causas” ou “pequenos delitos”.

Com efeito, as virtudes desse “novo processo” (que objetiva a verdadeira – isto é, rápida e eficaz prestação jurisdicional) não ficam só, evidentemente, no que diz respeito aos juizados cíveis.

No referente aos juizados especiais criminais, também saltam aos olhos o que eles podem representar avanço na prestação jurisdicional.

Hoje, qualquer infração penal (crime ou contravenção) cuja pena máxima não seja superior a um ano (salvo os casos em que a lei preveja procedimento especial) deve ser julgada por juízes togados ou togados e leigos, nos termos do novo ordenamento.

Destaque-se que nesses juizados é dever privilegiar a conciliação, pois aos referidos juízes togados e leigos compete conciliar, julgar o dissídio e executar o decisum.

Também nos juizados especiais criminais os processos (como não poderia deixar de ser), repita-se, orientar-se-ão pelos critérios da oralidade, da informalidade, da economia processual e da celeridade e, acrescente-se, “objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação da pena não privativa da liberdade”.

É um caminho (que se espera) sem volta, a implantação dos juizados especiais, tanto cíveis como criminais, com efetivo bom funcionamento.

Com isso, uma vez desafogados as varas e os tribunais, as causas nessas instâncias deverão correr, também, de modo mais rápido. Enfim, deverá realizar-se-á melhor a justiça, pelo melhor acesso a ela (consigne-se o óbvio). De passagem, não parece descabido recordar-se o velho brocardo: “de minimis praetor non curat”, ou, em português, “o pretor não cuida das coisas mínimas (ou pequenas)”.

Vive-se, pois, um tempo novo de esperança, em matéria de realização da justiça no Brasil.

Registre-se que ao juizado especial federal criminal cabe processar e julgar os feitos de competência da justiça federal, relativos às infrações de menor potencial ofensivo, entendidas como tais aquelas em que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.

Por seu lado, ao juizado especial federal compete processar, conciliar e julgar as causas de competência da justiça federal, até o valor de 60 salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.

Estão excluídas, contudo, da competência de tais juizados, as causas “entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no país”; as fundadas “em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional”; “a disputa sobre direitos indígenas”; “as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de divisão e demarcação, populares, execuções fiscais e por improbidade administrativa e as demandas sobre direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos”; “sobre bens imóveis da União, autarquias e fundações públicas federais”; “para anulação ou cancelamento de ato administrativo federal, salvo o de natureza previdenciária e o de lançamento fiscal”, e “que tenham como objeto a impugnação de pena de demissão imposta a servidores públicos civis ou sanções disciplinares aplicadas a militares”.

Merece destaque especial que a lei dos juizados especiais federais (a exemplo do diploma referente à disciplina da Ação Direta de Inconstitucionalidade) prevê a figura do amicus curiae (isto é, o amigo da Corte), ao admitir que o relator, na Turma de Uniformização Jurisprudencial, tem a faculdade de ouvir “eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo” (art. 14, § 7º, da Lei nº 10.259/01).

29. A arbitragem comercial

Com o objetivo de melhorar o acesso à justiça, vale dizer com a mais rápida (e, naturalmente, satisfatória) composição pacífica dos conflitos, adveio a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, dispondo sobre a arbitragem, mais particularmente (ainda que designada, de certo modo, com impropriedade) a arbitragem comercial.

Recorde-se que a insatisfação com a justiça (ou melhor, com a prestação jurisdicional) é um fenômeno (fique-se à moda) globalizado.

Contudo, tendo o Brasil (como comumente se aceita) apenas um juiz por 25 mil habitantes (no âmbito da Justiça Federal a proporção é bem maior), é fora de dúvida concentrar-se nele o maior número de serviço por magistrado em todo o mundo. Apenas para que se tenha uma ideia mais precisa, recorde-se que em grande número de países essa média não passa de um juiz por três mil habitantes.

Acrescente-se que a carência de juízes (e as perspectivas são de que esse quadro crítico tenda a agravar-se mais em futuro bem próximo) não é a única causa da morosidade na solução dos conflitos, eis que, evidentemente, há outras tão importantes quanto.

Sublata causa tollitur effectus (suspensa a causa, desaparece o efeito), diz o velho brocardo.

É preciso, pois, conhecerem-se bem as causas (isto é, o perfeito diagnóstico), para que se resolvam bem os problemas, valha a observação com sabor acaciano.

Parece que, além da flagrante necessidade de mais juízes (mas, enfatize-se, não é só do magistrado, evidentemente, que depende a realização da boa justiça), impõem-se: a) reformas nos procedimentos processuais; b) busca de outras vias para a solução mais rápida (e eficaz) das pendengas ou conflitos e o aperfeiçoamento da organização judiciária.

A reforma no chamado direito instrumental revela-se, à vista desarmada, um imperativo urgente.

Recorde-se, de plano, um aspecto de ordem cultural: é que os profissionais do direito no Brasil têm formação direcionada para tratar do processo, só como procedimento ordinário. Por exemplo, é quase um dogma de que a execução é aquilo que vem depois da sentença.

Reformar o direito instrumental é muito importante (e há quase que um clamor, no concernente aos recursos sabidamente excessivos). Todavia, só isto não parece, também, ser o suficiente, para resolver-se o angustiante problema da satisfatória prestação jurisdicional. É preciso buscarem-se outras vias, para se dirimirem os conflitos e, registre-se, que outros países têm encontrado esses caminhos, fugindo, inclusive, das formas tradicionais.

Nos Estados Unidos da América, por exemplo, experimenta-se o que designa de Case Management (gerenciamento de caso) e a Alternative Dispute Resolution – ADR (Resolução Alternativa de Controvérsias).

Se é verdade que não se deve, sempre, tomar-se o “modelo” de países com outra realidade, não se deve também, por outro lado, dispensar a observação do que ocorre em outras plagas, ou seja, como experiência acumulada.

Por outro lado, assinale-se que, nos Estados Unidos, é também de largo uso a prática da arbitragem ou arbitramento.

O recurso à arbitragem (ou arbitramento como, por vezes, também se diz), para a composição de conflitos, não constitui uma novidade no Brasil, parece importante assinalar.

Já a Constituição do Império era expressa, em seu art. 160: “Nas cíveis, e nas penais, civilmente intentadas, poderão as partes nomear Juízes Árbitros. Suas sentenças serão executadas sem recurso, se assim convencionarem as partes.”

O Código Civil de 1916 disciplinava, no Capítulo X do Título II (Dos Efeitos das Obrigações) do seu Livro III (Do Direito das Obrigações), o compromisso, que outra coisa não é que a opção pela arbitragem, para resolução de pendências judiciais ou extrajudiciais.

De passagem, registre-se, que, sem embargo de que o novo regime de arbitragem seja “correr o processo” fora do Judiciário, isto é, com a composição dos conflitos, por via de procedimentos próprios e pela justiça arbitral, há muitos pontos em comum entre o novo e o velho ordenamento, este expresso no Código Beviláqua.

Por exemplo, no texto do antigo Código Civil, encontravam-se disposições que tais: “As pessoas capazes de contratar poderão, em qualquer tempo, louvar-se, mediante compromisso escrito, em árbitros, que lhes resolvam as pendências judiciais, ou extrajudiciais” (art. 1.037); “o compromisso é judicial ou extrajudicial (...)” (art. 1.038); “o compromisso poderá também declarar: (IV) – a autorização, dada aos árbitros para julgarem por equidade, fora das regras e formas de direito”; “os árbitros são juízes de fato e de direito, não sendo sujeito o seu julgamento a alçada ou recurso, exceto se a contrário convencionarem as partes” (art. 1.041).

Diz a Lei da Arbitragem: “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais” (art. 1º); “a arbitragem poderá ser de direito ou de equidade a critério das partes” (art. 2º); “o compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial” (art. 9º) e “o árbitro é juiz de fato e de direito e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário” (art. 18). Neste ponto, aliás, a grande novidade, cuja constitucionalidade já foi declarada pelo Supremo.

De passagem, registre-se que a equidade, a que se refere à Lei nº 9.307/96, é a da justiça do caso concreto, quando as partes por ela optarem, vale dizer, para além do texto frio das leis. Observe-se, com ênfase, que a lei fala que “a arbitragem poderá ser de direito ou de equidade a critério das partes”.

Por mera ilustração, recorde-se que pela via arbitral foram solucionadas muitas questões de limites ou territoriais e diplomáticas de interesse do Brasil.

Assim, por exemplo, a questão Christie (a grande crise diplomática com a Inglaterra no Império) e questões de limites como as com a República Argentina e com a Guiana Francesa.

De sua parte, a Constituição de 1988 é expressa no sentido de que “a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (são dez e, entre eles a solução pacífica dos conflitos) – art. 4º, VII).

Para a solução pacífica dos conflitos na ordem internacional, como se sabe, há os chamados meios políticos e os meios jurisdicionais, destes últimos têm-se a arbitragem e a solução judiciária. Com relação a esta, por exemplo, tem-se a Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia.

A arbitragem é via jurisdicional (mas não judiciária). Nela, as partes escolhem os árbitros, além de limitarem a extensão do conflito, ou seja, a matéria conflituosa a ser resolvida, e a respectiva lei de regência.

Por oportuno, recorde-se que a Corte Permanente de Arbitragem (também sediada em Haia) não passa de uma lista de pessoas, ainda que altamente qualificadas, designadas pelos governos seus patrocinadores (no máximo, quatro pessoas por governo) e suas decisões não são, evidentemente, sentenças judiciais, mas arbitrais.

Francesco Carnelutti, observou que a tendência do direito é para o conservantismo e, assim, é até quase que natural, na escala do direito aplicado, uma certa resistência a mudanças. Evidentemente, esse registro nem de leve implica restrição às críticas e aos debates (aliás, saudáveis) que, vez por outra, ainda se ouvem sobre a Lei da Arbitragem.

O fato é que essa nova arbitragem (a da Lei nº 9.307/96, é óbvio) certamente, será mais um instrumento eficaz na rapidificação da justiça, na realização do direito, em que a prestação jurisdicional (por opção das partes) se realizará sem passar, necessariamente, pela via judicial.