Toussaint olhou para a feição preocupada de Boukman e tentou entender o que estava errado. Levou um tempo para discernir que o ângulo entre seus olhos e o rosto do homem era distorcido — que ele estava, de fato, deitado de costas, esticado. Levantou a mão pedindo ajuda e Boukman a agarrou, fazendo-o ficar em pé.
— Você foi o escolhido — Boukman disse.
— Pardon? — Toussaint falou.
Ele não tinha certeza de como acabou no chão, mas agora que estava em pé novamente descobriu que olhava ao redor com uma espécie de satisfação e algo de tranquilidade. Sentiu como pertencia àquele lugar, como se ficasse confortável ao falar com qualquer daquelas pessoas, como se fosse sua terra, e ela seguraria seus pés, não importava o que tentasse atrapalhar seu equilíbrio. Isso é comum, não é? Teve a estranha sensação de que sempre fora incompleto até aquele exato momento.
Lembrou-se, antes daquele instante, de sentir-se sempre do lado de fora das coisas. Ao mesmo tempo, parecia para ele que se lembrava de ter sido jovem e nervoso, e machucar muitas pessoas, e isso era estranho, porque nunca machucou ninguém na vida. Imagens atemorizantes passavam diante dos seus olhos: uma coisa curvada de metal e vidro sobre rodas passando por uma estrada estranhamente suave e escura entre cabanas, antes de explodir em um flash branco e quente, pessoas gritando, pulando para fora do caminho; jovens em roupas bizarras com objetos nas mãos que poderiam ser armas se não fossem tão compactas e de aparência estranha; uma coisa grande e voadora, pairando como um inseto imenso, cuspindo fogo de dentro dela, todo o aparelho rugindo.
Enquanto via essa coisa, uma palavra estrangeira ecoou nas reentrâncias de sua mente, uma palavra que não se adequava em nada ao seu léxico mental, não significava nada para ele. Helicóptero. Ele pôs a mão na testa.
Viu muitas pessoas mortas numa rua enlameada, queimadas e sangrando. Estava olhando para elas e sabia que era por sua culpa que estavam mortas, e tinha consciência de que na sua mão havia outra daquelas armas incomuns.
Todo esse tempo, ele ainda estava em Bois Caiman.
Teve uma convicção repentina e ampla, algo que o atingiu com a força da experiência vivida, de que a vingança apenas levaria à dor. Isso também era estranho, pois nunca se vingara de ninguém na vida. Mas sua mente estava… diferente agora. Sentiu-se ao mesmo tempo sábio e esperançoso e vulnerável.
Doía, mas era extraordinário.
Toussaint balançou a cabeça. Olhou ao redor e viu os escravos reunidos o observando, atônitos. Antes, teria recuado, mas agora entendia — estava inteiro agora, e precisava liderá-los.
Por quê?, ele se perguntava. Por que tu? Tens mais de cinquenta anos.
Porque, ele respondeu a si mesmo, eles estão se rebelando apenas para ferir os brancos. Estão fazendo isso por vingança, não pela liberdade, e isso matará a revolução deles antes mesmo de ela nascer, como uma mãe escrava que se violenta para destruir seu bebê mulat no ventre, o fruto do estupro morto no galho antes de poder cair.
Perguntava-se por que ele estava se rebelando, mas já sabia a resposta. Ele mesmo era livre — tão livre quanto precisava ser, de qualquer forma. Gostava do emprego satisfatório e vivia com o filho, Isaac, numa cabana com horta no fundo. Mas os outros não eram livres. Todos os dias os via sendo vendidos e trocados e estuprados e assassinados.
Agora tentaria parar essa propriedade de pessoas e as maldades que isso engendrava. De alguma forma — talvez tenha sido algo que Boukman disse, talvez a cerimônia — ele sabia que conseguiria.
Boukman aproximou-se e sussurrou para ele.
— Eu te disse. Agora és Ogou, e nos fará fortes.
— Não — disse Toussaint. — Ogou não. Outra coisa.
Boukman olhou, perturbado.
— Tens certeza?
Toussaint concordou com a cabeça. Boukman baixou sua cabeça, decepcionado.
— Estou tão…
Toussaint sorriu.
— Não disse que não faria.
Virou-se para os negros ao redor, todos eles armados com as melhores armas nas quais eles puderam botar as mãos — facas e facões e pás.
— Hoje à noite nos levantaremos! — ele gritou.
Por um momento, entendeu que era a coisa certa a dizer, mas apenas por um momento — a única coisa que poderia dizer estava diante de sua mente. Era uma mentira, mas uma mentira sincera. Cinquenta rostos, talvez mais, encaravam-no a partir da escuridão.
— Ogou Badagry está dentro de mim! — ele gritou. — Ele me diz que venceremos esta guerra! Seremos livres!
Os escravos reunidos e os negros livres gritaram sua aprovação, mesmo quando Boukman olhou para ele com o rosto franzido. Toussaint o ignorou — explicaria tudo mais tarde, quando a noite acabasse.
Bom deus, assim é o poder.
Caminhou até onde um cavalo estava amarrado a uma árvore. Não era seu cavalo, mas não importava. Desamarrou o animal e montou-o num salto, facão na mão.
— Matem qualquer um que resistir — ele gritou. — Mas apenas eles. Se um branco baixar a guarda, dê a ele passagem segura. Deixe-o ir até Porto Príncipe e dizer às pessoas que somos livres agora. Deixe-o ir até a França e dizer ao rei.
Quando virou o cavalo pronto para dirigir-se à sua fazenda, pensou em outra coisa.
— Não destruam as propriedades — ele gritou. — Esta terra será nossa em breve, e precisamos viver dela.
Então, Toussaint girou o cavalo e chutou seus flancos com os calcanhares, seguindo na direção das árvores. Os galhos pareciam esticar-se para ele, agarrando-o. Sombras selvagens moviam-se, dançando ao vento, enquanto a lua se sustentava, inchada, sobre ele. Tinha ciência das pessoas que o seguiam, algumas a pé e algumas a cavalo; conseguia ouvir o estampido de pés e cascos no solo denso, argiloso. A luz das tochas tremulava. Formas erguiam-se do pântano nos dois lados da senda. Ele esperava que fossem apenas madeiras, e não crocodilos.
Cerrando os dentes, esporou o cavalo ainda mais, deixando o som dos seguidores para trás.
Assim que entrou na estrada para a fazenda de Libertas, começou a passar por pequenos grupos de pessoas. Boukman já reunira os mais capazes de influenciar as massas, mas todos os escravos sabiam que algo importante estava acontecendo naquela noite em Bois Caiman, e se reuniam, agitados.
Toussaint observou um grupo descendo um negro enforcado numa árvore. Cavalgava com nervosismo.
Não sou um líder como Boukman, ele pensou. Ainda não.
Ficou apavorado. Estava a uma distância de poucas milhas entre Bois Caiman e sua casa, mas era um negro num cavalo à noite. Se houvesse algum senhor de escravo ou milícia nas ruas a essa hora da noite, eles o prenderiam imediatamente.
Todos aqueles escravos que estavam na cerimônia seguiam para locais diversos. Eles se espalhariam e alguns deles morreriam, mas essa seria apenas a primeira investida da sua guerra. Precisavam se unir e formar uma força mais coesa se quisessem arrebatar o país. Ele precisaria uni-los.
Havia tempo para tanto, e ele conseguira uma vantagem agora, pois sabia que a história do que acontecera em Bois Caiman, de como ele fora possuído, se espalharia rapidamente, e em breve muitos saberiam seu nome. Poderia usar aquele relato para reunir os escravos, convencê-los de que, caso se unissem sob seu comando, ele lhes daria sua liberdade.
No entanto, precisava primeiro chegar à fazenda antes dos outros escravos. Dissera a eles para matar apenas os que resistissem, e quem podia dizer que Bayou de Libertas não resistiria? O senhor de Toussaint era um bom homem, mas era orgulhoso também, e tinha uma esposa e filhas. Tinha livros e posses que amava, os quais sem dúvida ele morreria para proteger, por mais estúpido que Toussaint achasse esse sentimento.
Quando virou uma esquina que circundava um monte baixo, homens que estavam sentados na grama ficaram em pé de pronto, gritando. Não conseguia dizer no escuro se eram negros ou brancos, então se agarrou ao cavalo, mantendo seu perfil abaixado. Houve um estrondo e ele viu a poeira próxima dos cascos do cavalo levantada por uma bala. Praguejando, apertou o cavalo com ainda mais força, perguntando-se se conseguiria chegar lá.
Quando atravessou os milharais que pertenciam ao conde Vendoux, viu um negro lá, uma sombra na escuridão, ateando fogo no milho. Toussaint parou, desceu do cavalo, e lançou sua capa sobre as chamas — pequenas naquele momento, mas vorazes e devoradoras. Quando o tecido grosso pousou sobre elas, apagaram-se, e a fumaça amarga subiu numa coluna.
O escravo o empurrou. Toussaint observou que tinha um nariz chato, deformado em alguns pontos. Quebrado em algum momento numa briga com outro escravo ou, mais provavelmente, por seu senhor.
— Por que fizeste isso? — o homem perguntou. — Meu sangue alimentou este milho. Nosso sangue. Tenho que queimá-lo para ser livre.
— Apenas o sangue vai te alimentar se fizeres isso.
O escravo olhou para ele sem entender.
— Quando o país for nosso — disse Toussaint —, que vais comer? Se tiveres queimado o milho, o que vai te sustentar?
Um tremeluzir de compreensão cruzou o rosto do homem, e ele baixou a tocha, triste.
— Terás soldados — disse Toussaint. — Do comissariado, talvez até da França. Seria melhor que tu queimasses a eles do que queimar nossa herança.
Sem olhar para trás, montou novamente o cavalo e o esporou na direção da fazenda. A revolução espalhava-se mais rápido do que ele esperava — estava surpreso, na verdade. Cavalgou forte de Bois Caiman e, ainda assim, parecia que as chamas da rebelião haviam se espalhado mais rápido e precisaria de uma capa maior do que Toussaint poderia costurar para apagá-las. Sabia que a rebelião era uma ideia que se enraizara, espalhando suas sementes pelo solo de forma mais irreversível do que qualquer erva daninha. A ideia fora semeada em solo fértil e, assim que a semente é plantada, nem sempre poderá ser controlada, especialmente quando essa semente é o fogo. Toussaint vira incêndios de florestas nas montanhas; começavam pequenos, mas tinham o potencial de consumir tudo. A ironia era que essa ideia, como sua escravidão, veio da Europa — fora concebida por aqueles revolucionários na França que se declararam livres e clamaram pela dissolução da monarquia.
Quando finalmente se aproximou da fazenda, a aurora começava a irromper. Os pássaros cantavam nas árvores ao redor. Ele viu a mancha avermelhada do sol nascente nas montanhas do leste, e parte dele viu como sangue, e outra parte viu como um recomeço.
Cruzou a entrada da fazenda aliviado em ver que não havia ninguém enforcado, pendurado em poste. Os outros escravos estavam circulando no pátio, como se esperassem instruções. Olharam para ele numa mistura de ansiedade e expectativa. Já o respeitavam, ele sabia. Cuidou da maioria deles quando ficavam doentes ou se feriam; contava histórias a eles. Em alguns dos rostos mais jovens, contudo, ele viu algo, uma espécie de entusiasmo que o perturbou. Reconheceu como sede de sangue. Buscou seu filho na multidão, mas o garoto não apareceu entre eles. Bom, ele pensou. Esperava que Isaac tivesse permanecido dentro da cabana, conforme ele instruiu. O filho de Toussaint era um jovem sensível, embora fosse quase um homem, e não do tipo que se envolveria em violência.
— Bayou está lá dentro — disse um deles.
Toussaint não conhecia o homem, pensou talvez que tivesse vindo de um dos sítios vizinhos. Apontava para a porta da casa.
— Vamos arrancá-lo de lá — disse outro. — Fazer com que ele pague.
Toussaint ergueu a mão.
— Bayou nos tratou com justiça — ele disse. — Vamos dar a ele passagem livre para o Cabo Haitiano.
— Por quê? — quis saber uma mulher. — Hoje à noite os brancos têm que morrer.
— Não. Hoje à noite os negros se erguerão — disse Toussaint. — E os brancos fugirão, se tiverem juízo. Se matarmos aqueles que se renderem, seremos piores que eles.
Ele sentiu a hesitação dos outros e dominou-a.
— Esperem por mim — ele disse. — Armem-se. Procurem os comissários, os vigilantes brancos, mas não levantem as armas para matar um velho.
Em silêncio, dando de ombros, eles o deixaram entrar na casa.
Bayou de Libertas ainda estava na cama. Toussaint abriu a porta sem bater e ajoelhou-se ao lado da cama, esforçando-se para esconder o facão. Mesmo assim, quando tocou o ombro do senhor e De Libertas acordou, olhou para Toussaint com inquietação.
— O que foi? São os mulats?
A tentativa de rebelião pelos mulats e sua supressão brutal tinham ocorrido apenas um mês antes. Ficou confinada às cidades, no entanto, onde os mulats ricos viviam, gastando o dinheiro de seus pais com putas descendentes da linhagem de suas mães e em vinhos cultivados pelos antepassados franceses. A rebelião dos mulats nunca chegou ao interior.
— Não — ele disse. — Não, Bayou. São os negros.
De Libertas encolheu-se dele, e Toussaint sentiu o coração dele endurecer.
Ele suspeita de mim, Toussaint pensou. Após tudo o que aconteceu, ele me olha e vê um animal.
Com esforço, Toussaint se recompôs. Madame De Libertas estava acordada também, e observava ao redor alarmada.
— Não quero lhes causar nenhum mal — disse Toussaint. — Foram bons comigo. Mas preciso ir embora. Agora. Dizei a qualquer um que encontrardes que me libertastes, que vossas terras pertencem aos escravos que a cultivam.
Bayou de Libertas concordou com a cabeça — sempre fora um homem de raciocínio rápido. Ele saiu da cama com gorro e camisola de dormir, e seguiu até o aparador. Começou a pegar os itens das gavetas.
— É melhor que o senhor não leve nada — disse Toussaint. — Nem dinheiro nem armas. Assim, haverá menos motivos para matarem o senhor.
Madame De Libertas começou a chorar e seu marido mandou que se calasse.
— Pegue as meninas — o senhor disse, embora não fosse senhor de nada agora. — Toussaint vai preparar a carruagem.
Madame De Libertas apressou-se para fora da sala, mas não antes de virar-se e lançar a Toussaint um olhar de medo e suspeita, um insulto que não precisava de palavras para desferir seu golpe.
— Pegue os cavalos — disse Toussaint. — Uma carruagem será lenta demais.
De Libertas continuou a arrumar os itens no aparador, pegando uma pena de uma caixa de papel de carta de madeira, mergulhando-a no tinteiro embutido — quantas vezes Toussaint trocou aquela tinta! — e curvando-se para rabiscar algo numa folha de papel.
— Não te preocupes, não levarei nada — ele disse, percebendo o olhar de impaciência de Toussaint.
Entregou o papel a Toussaint antes de sair apressado da sala. Toussaint começou a dobrá-lo, enfiou-o no bolso para Boukman ler mais tarde. Mas, para sua surpresa, os garranchos pretos pularam do papel para sua mente e formaram as palavras lá dentro. Ele as olhou, descrente. Mas eu não posso ler!, ele pensou. Ainda assim, o papel oferecia-se a ele e revelou seu significado.
Pousou a mão no coração, sentindo-o bater com selvageria. A sala inteira parecia flutuar, respirar. É magia? O que aconteceu comigo naquela clareira? Sentia-se ao mesmo tempo ele mesmo e outro. Não era um fato — fato inegável — que ele não sabia ler? E, ainda assim, aqui estava ele, olhando para aquele pedaço de papel, apreendendo as palavras escritas nele. Sentiu que poderia desmaiar e equilibrou-se agarrando o canto do aparador. Encarava, boquiaberto, o papel.
Eu, Bayou de Libertas, estando em pleno juízo e boa saúde, neste ato declaro que meu mestre cavalariço, que atende pelo nome de Toussaint, está, a partir desta noite de 8 de agosto de 1791, livre. Favor conceder-lhe todos os direitos e privilégios de um súdito da França.
Estupefato, Toussaint virou-se para a porta, o papel farfalhando na sua mão trêmula.
— O senhor não pode declarar isso — ele disse.
De Libertas já desaparecera nas câmaras escuras da casa, assim, Toussaint falou para a madeira da porta e com os pregos de ferro.
— O senhor não pode declarar isso, porque já estou livre. Não me submeto a ninguém, nem à França nem a outrem.
Ele ficou parado por um momento. Parecia, de forma tão catastrófica, que seu antigo senhor havia entendido mal a enormidade do que estava acontecendo, e Toussaint quase sentiu pena dele. Se tivesses sido livre, e então fosses capturado e levado para outro país, então entenderias que as coisas podem mudar de lugar. Se sempre tiveres sido o senhor, esta visão será impossível para ti.
Apenas aí houve um grande estrondo do andar de baixo. Toussaint foi até a janela e viu mais escravos reunidos lá, armas nas mãos, a lua cheia refletida em suas lâminas.
Apressando-se até a porta, ele parou e virou-se para o aparador. Abriu a prancha de escrita, passou os dedos por baixo para encontrar o ferrolho escondido e liberou a gaveta que continha a pistola. Estava certo que De Libertas não percebeu que ele sabia desse local secreto, mas um bom escravo conhece seu senhor. Verificou se a pistola estava carregada com bala e pólvora, então voltou ao seu caminho para fora do corredor.
De Libertas estava descendo as escadas às pressas, ofegante, uma criança embaixo do seu braço. Ficou boquiaberto quando viu a arma e o facão nas mãos do escravo.
— Toussaint, não… Tu mesmo disseste que eu tinha sido bom para ti.
— Fique quieto — disse Toussaint. — Me siga. Finja obediência. Dominado, se seu orgulho puder aguentar. Este país será meu, mas, como o senhor disse, sempre me tratou bem. Vou tirar o senhor daqui vivo antes do derramamento de sangue.
De Libertas empalideceu quando ouviu um som de estilhaços vindo de baixo, e um grito de triunfo da multidão. O medo retorcia-se na barriga de Toussaint como uma cobra. Esperava que Isaac estivesse seguro; esperava também que seu filho não tivesse se juntado à multidão enfurecida. Não veria seu filho morto, mas também não o veria matar.
Assim que eu puder, ele pensou, vou mandar Isaac embora daqui.
— São teus irmãos — De Libertas disse, apontando para a porta. — Vão te matar se resistires a eles.
Toussaint sorriu.
— Não — ele falou. — Este não é o meu destino.