Estou perto do andar onde eu estava quando tudo caiu, alguns dias atrás. Vi Marguerite naquele tiroteio perto do mar apenas um mês antes de eu terminar aqui, antes de aqui se transformar num caixão.
Sinto como se eu contasse minha história para você até o ponto quando vim para o hospital, então esse será o ponto quando eu abrir caminho até a luz. Soa estúpido, eu sei, mas é o que estou fazendo. Estou cavando e falando essa merda toda pra você, e estou jogando as coisas que cavo atrás de mim, bem como estou deixando minha história para trás.
É suja minha história. Não preciso mais dela.
Não percebo mais a dor nas minhas mãos também. Para começar, os pedaços de concreto estão escorregadios com meu sangue, e agora acho que devo ter desenvolvido calos, porque quase não dói mais. Não sei se avancei, de verdade, ou quanto tempo estou cavando. Parece que são horas, mas pode ser mais.
Uma hora atrás, talvez, ouvi alguém chamando de novo. Dessa vez em inglês.
— …alguém aí embaixo?
Não gosto de ouvir a palavra embaixo. Eu estava no quinto andar. Se estou embaixo de onde as pessoas estão cavando, então as coisas estão bem ruins. Eu grito de volta, mas nenhuma moun responde, como de costume. Ou estou morto ou minha voz está batendo no concreto.
— Não posso ir até aí — Stéphanie disse.
Ela não estava no carro com a gente, estava do outro lado da linha — Biggie gostava de falar no viva-voz quando dirigia. Estava cruzando a favela, tentando fazer Stéphanie ir lá para buscar Mickey, aquele soldado ferido, só que ela não queria mais entrar no Site.
— Não é seguro pra mim — ela continuou. — Estou no meu hotel.
Biggie riu.
— Steph — ele falou. — Steph, chérie, ma copine chou-chou. Calma. Todo mundo te conhece… eu falo pra todos os meus soldados de você. Eles sabem que eu te amo, sabem que não podem te machucar. Écoute… quand je serai riche t’auras une belle maison. T’auras tout ce que tu voudras car je t’aime, tu sais?
— Sim — Stéphanie respondeu. — Sei que você me ama, sei que vai me comprar uma mansão… você sempre fala isso. Mas não é tão simples, Biggie. Atiraram na gente quando estávamos distribuindo a porra da comida! Tu comprends ça? É maluquice. Não posso mais entrar no Site.
— Por favor — Biggie pediu. — Estou com um soldado que foi baleado no pé. Preciso que você o leve pro hospital.
— No pé?
— Sim, no pé.
Stéphanie suspirou no telefone. É a única pessoa que eu conheço que consegue suspirar num telefone e obter o efeito certo. Aquele suspiro é uma das coisas que realmente lembro dela.
— Alguém de Boston atirou nele, foi isso? — ela perguntou.
— Não — Biggie falou. — Eu atirei nele.
Silêncio por um momento.
— Você atirou nele? Por quê?
— Ele me desrespeitou.
Era verdade. O cara — ele chama a si mesmo de Mickey — estava falando que se fosse a Route 9 que atirasse nas pessoas e assassinasse os soldados de Boston, então Boston já teria revidado. Estava insinuando que Biggie era fraco, que não estava enfrentando aquela bosta. Esse tipo de coisa sempre acontecia — Biggie fala que, quando você é líder, as pessoas sempre vêm pra te desafiar. É parte de ser líder, isso eu entendi.
Mas Stéphanie riu, uma risada vazia.
— Meu Deus — ela falou. — Vocês gângsteres com seu respeito.
— Não sou gângster — Biggie retrucou. — As pessoas vêm aqui, me chamam de gângster, mas não sabem bosta nenhuma do Site. Nenhuma moun quer ajudar com educação aqui, nenhuma moun quer distribuir comida além da gente. As pessoas aqui não têm anyen pra comer, anyen pra beber, mas conseguem armas. O que você acha que vai acontecer?
— Cala a boca, Biggie — Stéphanie disse. — Não sou documentarista pra você recitar sua bobagem poética. Eu conheço o Site. Você é gângster. Vende drogas e mata pessoas.
— Ah, é? — Biggie soltou. — Tá bom. Sou um gângster. G-star na hood fodona. É o que estou falando pro Mickey… logo mais vou derrubar Boston.
Então, Biggie começou a fazer um rap:
— Não pode pegar os caras com arma, pega eles com facões. Fatia os caras inteiros, derruba com bastões.
— Se ele te desrespeitou — falou Stéphanie —, por que você quer levá-lo pro hospital?
Biggie olhou pra mim e balançou a cabeça, tipo, como essa vaca pode ser tão estúpida?
— Ele é meu soldado, cara, meu frère chou-chou. Eu o amo. Só tive que ensinar pra ele um pouco de respeito.
Stéphanie suspirou de novo.
— Vou ver o que posso fazer — ela falou. — Mas, olha aqui, Biggie. Eu gosto de você, entendeu? Quero que você fique o.k.. Não quero que você morra.
— Não quero morrer também.
— Então, ouça. Eu estava num bar ontem à noite. Muitos dos voluntários vão lá e alguns soldados da Minustah também estavam lá. Dizem que vão bater as gangues no Site, bater forte. Algum jornalista conseguiu fotos do tiroteio daquele dia. Os Minustah tiveram de olhar como se eles se importassem.
— Pff — Biggie disse. — Se eles gastassem tanto em hospitais e água potável quanto gastam em tanques, talvez a gente acreditasse neles.
Olhei para ele. Às vezes, Biggie não falava como se estivesse num gueto dos Estados Unidos. Às vezes dizia coisas que não eram totalmente estúpidas.
— Concordo, Biggie. Sabe que concordo — Stéphanie falou. — Mas, presta atenção, esses caras estão falando sério. Vão atrás de você logo, logo. Querem pegar uns gângsteres, mostrar algumas pilhas de armas confiscadas na TV.
Conseguia ouvir preocupação real na voz dela, cuidado de verdade, mas Biggie fez aquele som de desdém novamente.
— Os Minustah não fizeram merda nenhuma no Site desde que assassinaram o Dread Wilmè — ele rebateu. — Tudo o que fazem é ficar sentados nos postos de controle. Deixam até a gente passar quando saímos para vender drogas se a gente pagar.
— Só estou te avisando — Stéphanie disse. — É isso.
Ouvimos um clique — ela desligou.
— Mulheres, cara — Biggie falou e fez aquele sinal, girando o dedo ao lado da cabeça. — Sa ansente, por isso se preocupa tanto. Acha que não vou cuidar dela. Vivo dizendo pra ela que vou ser um rapper rico um dia. Aquela gravadora vai comprar minhas coisas. Vou ser igual ao Wyclef.
Agora eu estava encarando Biggie.
— Ela tá grávida? — eu perguntei.
— Claro — ele disse. — Meu esperma é o superesperma. Supersoldados.
Já falei que Biggie tinha uma filha de três anos com Valerie, a manman dela. Engravidar Stéphanie, isso foi incrível. Como ele achava que ia criar a criança, eu não sei. E o que ele pensou que ela ia fazer? Pensou que ela mudaria pro Site, brincaria de casinha com ele? Não conseguia acreditar que ele era tão estúpido — tipo, ele não tinha ouvido falar de camisinha ou essas coisas?
— Ela é francesa — eu falei. — Trabalha para a ONU. O que vai acontecer?
— Eu te disse. Vou ser figurão um dia, matador, cheio da grana, fodão.
Eu desisti. Recostei no meu banco. O ar fresco do mar entrava pela janela aberta e minha mão estava em cima de uma escopeta de cano serrado. Me sentia bem. Tinha o pulmão cheio de erva também — Biggie tinha acabado de passar a maconha pra mim. Mas, mesmo que eu sentisse o gosto doce, ainda tinha minha irmã na cabeça. Pra mim, eu queria guerra. Mas, se quisesse que Biggie fizesse algo, não tinha que simplesmente falar pra ele. Foi assim que Mickey tomou um balaço no pé.
— A Boston chegou bem perto desta vez, Shorty. Eles não deviam ter feito aquilo, não deviam ter zoado nosso trabalho comunitário daquele jeito.
— Certo — eu falei. — A gente precisa dar o troco pesado, cara.
Estava pensando em Marguerite, mas não disse aquilo pro Biggie. Mas era o que eu queria — queria derrubar a Boston para poder livrar minha irmã, arrancá-la dos babacas da Boston, e trazê-la de volta para morar comigo. Merda, talvez eu pudesse achar um cachorro pra ela ou algo assim, talvez o cão que Tintin quase atropelou. Ela podia cuidar dele, alimentar. Então, a gente a levaria pra escola, a ajudaria a se tornar médica um dia. Ela sempre disse que sairia do Site. Queria ajudá-la a sair mais do que qualquer coisa no mundo.
— Isso aí — Biggie falou. — Mas primeiro vamos ver o houngan. Quero mais feitiços. Mais proteção. Quero o lwa da guerra.
— O lwa da guerra? — eu perguntei.
— É. Ogou Badagry. Os neguinhos vão respeitar aquele desgraçado. Você está certo… Boston entrou no nosso território, temos que dar o troco pesado. Aquele houngan me deu os ossos do Dread pra vestir, mas agora a gente precisa de um vodu mais profundo: maji negra. Entende?
— Vai ter uma guerra? — eu quis saber.
Estava pensando em Marguerite. Estava pensando que, se eu for até o território da Boston sozinho, vou morrer. Mas, se a gente for, todo mundo, em guerra, talvez eu tenha uma chance de encontrar ela, trazê-la de volta.
— Legal — eu falei.
O houngan, ele vivia naquela van no fim de um beco. Não estava no mapa que eu desenhei, então achei que Biggie não queria que as pessoas soubessem onde o cara morava. A van não tinha rodas. Um lado estava escorado numas revistas, o outro lado em tijolos. As janelas estavam quebradas, mas havia cortinas nelas. E flores. Pensei que era uma decoração bem bizarra pra um houngan, mas não disse nada.
Biggie bateu na porta. Nunca o vi bater numa porta. Em geral, ele só abria e entrava, ou parava do lado de fora com a música bombando e esperava que você fosse até ele. Um velho abriu a porta. Vi que não era o mesmo houngan que fez o funeral de Dread; talvez aquele tivesse morrido ou algo assim. Esse estava vestido com shorts sujos, sem camisa. O corpo era mirrado e tinha pelos grisalhos nele inteiro. A barriga caía em cima dos shorts. Era como se quisesse esconder o meio das pernas. Tinha bolsas grandes embaixo dos olhos e veias grandes e vermelhas no nariz, os olhos injetados de sangue.
— Tem uísque? — ele perguntou. — Tem kleren?
Biggie negou com a cabeça.
— Vou falar pra um dos pequenos trazer pra você — ele disse. — De qualquer forma, não é Baron Samedi que eu quero.
O houngan riu pra mim. Na verdade, era mais um olhar malicioso. Vi seus dentes acabados, os buracos onde alguns deles tinham caído. Tinha um cheiro de podre e de álcool nele. Era velho. Tipo, quarenta, no mínimo.
— Não é Baron Samedi que ele quer — disse o houngan —, então não traz uísque. Babaca.
Não conseguia acreditar naquilo. Biggie, ele uma vez atirou no pé de um cara por dizer que o cabelo dele parecia de idiota com as tranças nagô. Agora o houngan o chamou de babaca.
Puxei minha Glock.
— Presta atenção no que você fala, houngan — eu disse. — Se desrespeitar o Biggie, vai tomar um monte de azeitona na cara.
Biggie pôs a mão na minha arma, me fez abaixá-la.
— Calma — ele falou.
Então, frio como aço escovado, virou para o houngan.
— Já falei — Biggie soltou. — Vou conseguir algum. Vai deixar a gente entrar ou o quê?
— Depende do que você quer — o houngan falou. — Quer maji? Quer feitiços pra botar na encruzilhada e proteger seu território?
— Quero Ogou Badagry — Biggie revelou.
Os olhos do houngan se arregalaram. Biggie tirou aquele maço de notas, tipo, dois meses da grana das drogas. Entregou para o houngan.
— Vamos pra guerra. Precisamos de maji séria.
— Você precisa de um psiquiatra — o houngan falou.
No entanto, ele abriu a porta e deixou a gente entrar.
Lá dentro era uma bagunça. Revistas pra todo lado e alguns livros também. Roupas sujas, algumas xícaras e pratos jogados na sujeira. Nas laterais da van havia prateleiras que pareciam feitas de pedaços de aço ondulado e madeira que o houngan achou na rua. Havia jarros nelas, com pós e essas coisas. Tinha veves desenhados no chão. Um chocalho no formato de uma caveira, tambores. Conseguia sentir o cheiro de suor e uísque e comida apodrecendo. Era como eu imaginava a casa de um houngan, se você soubesse que o houngan era um mendigo, ou doente mental.
O houngan fez um gesto para um monte de sujeira que devia ser um sofá. Biggie não hesitou, apenas sentou. Eu comecei a sentar também, mas devo ter feito uma cara ou algo assim, porque o houngan riu e me deu um empurrão, então eu caí de bunda nas camisas e revistas e outras coisas. Recuperei o fôlego e tentei diminuir as batidas do coração.
O houngan deu uma boa olhada em mim.
— Você tem um pwen — ele disse. — Posso sentir.
Enfiei a mão no bolso, toquei a pedrinha lisa que Dread me deu.
— É — eu falei.
— Bom — disse o houngan. — Essa merda vai te proteger. Alguém deve gostar de você, garoto.
Biggie sorriu.
— Meus soldados têm que estar protegidos — ele falou.
O houngan riu.
— Nenhum deles tão protegido quanto você, meu caro.
Ele apontou para um jarro na prateleira à minha frente. Estava quase vazio, mas havia um pouco do pó cinzento no fundo.
— É Dread Wilmè — ele contou. — O que restou dele. O resto está no Biggie aqui, mantendo ele seguro das balas. Quer que eu bote pó em você também? Não vai ter arma pra te matar depois disso.
— Isso é Dread Wilmè? — eu quis saber.
Foi, tipo, a coisa mais estúpida que eu já disse, porque ele tinha acabado de falar, mas foi tudo o que eu pude pensar.
— É. Tudo o que eu faço é chamar o Baron Samedi, ele me cavalga, pega as cinzas e salpica em você. Desse jeito, ele vai te reconhecer quando estiver quase pra ser morto. Quando vir você coberto com aquele pó, sabe que não vai te levar. Deixa você em paz, com certeza. Dread Wilmè é sagrado, cara.
O houngan se inclinou para a frente. Seu hálito era como algo incorporado dentro da van.
— Tudo o que precisa fazer é me trazer um uísque — ele falou. — E algum dinheiro, talvez.
— Ele não precisa — Biggie disse. — Shorty já é abençoado. Dread salvou a vida dele — morreu bem em cima dele. Não é?
— É — eu respondi.
— Ele é aquele garoto? — o houngan soltou. — Caramba.
Ele estendeu a mão e eu a balancei.
— Você é uma lenda nesta parte do Site — ele comentou. — É verdade que Dread tinha mil buracos nele quando morreu?
— Acho que sim — eu respondi. — É o que minha manman diz.
— E o cara ainda tirou um tanque da frente do Shorty aqui — Biggie falou.
É estranho, o jeito que todo mundo sabe da história, não só eu e minha manman. Eu nunca me acostumei com isso.
— Gângster frio igual gelo, cara — Biggie completou.
— Você é Marassa também? — quis saber o houngan. — Ouvi dizer que Aristide tirou vocês de dentro da sua manman com as próprias mãos.
— Não — eu falei. — Minha irmã foi embora. É só eu. Não sou nada.
O houngan concordou com a cabeça. Foi até a prateleira — não demorou muito, estava apenas a um passo no outro lado da van — e tocou o jarro. Então, chutou alguma coisa pra fora do caminho, limpou o espaço no chão.
— Está pronto? — ele se dirigiu a Biggie. — Pode ser intenso. Ogou é… Ogou é implacável. Você fuma maconha, brinca com Baron Samedi e os ossos de Dread. Mas essa merda aqui é igual heroína.
— Heroína é meu negócio, chapa — Biggie rebateu. — Mexo com heroína faz muito tempo. Boston invadiu meu território. Temos que varrer eles do mapa.
O houngan disse que sim com a cabeça de novo. Pegou um giz e começou a desenhar um veve no assoalho de metal da van. Era delicado, rápido, e eu não esperava que aquela derrota de cara pudesse desenhar daquele jeito. Então, jogou um tipo de pó no chão e pegou o tambor e começou a dançar.
Enquanto dançava, cantou:
Attibon Legba, ouvri bayè pou moin!
Ago!
Ou wè, Attibon Legba, ouvri bayè pou moin, ouvri bayè!
M’apè rentrè quando ma tournè,
Ma salut lwa yo.
Manman nos arrastava para um monte de cerimônias, então eu sabia o que ele estava fazendo. Chamou Legba para abrir o portão entre nosso mundo e o mundo dos lwa. Se Legba não abre o portão, nada passa.
O houngan batia e batia no tambor, entoando aquela pequena cantiga repetidamente. Comecei a ficar um pouco assustado. Em geral, quando essa coisa começa, o houngan muda rapidamente para algum outro lwa. Não há essa eletricidade no ar — eu podia senti-la estalando nos meus ouvidos, correndo como arrepios na minha pele. O cheiro do homem tinha desaparecido. Agora, o interior da van cheirava pólvora, sexo e flores. Era como se as paredes estivessem se fechando sobre mim, e me virei para Biggie, e ele olhava como se tivesse acabado de ver um fantasma.
De repente, o houngan parou. Houve silêncio, mas era como o silêncio que acontece antes de um trovão, ou antes de um cachorro latir. Então, a cabeça dele virou de uma vez para olhar pra mim, e seus olhos não eram dele mais, mas como portões que tinham sido abertos, e do outro lado deles tinha o vazio, e isso fazia a cabeça doer, como quando a gente pensa quanto o infinito é grande.
— O que você quer? — ele perguntou, e não era a voz dele… era algo que ecoava.
O houngan, ou fosse lá o que estivesse ali, não estava olhando para Biggie, olhava pra mim, mas foi Biggie quem respondeu.
— Queremos Ogou Badagry — ele disse. — Queremos ir pra guerra. Precisamos da ajuda dele.
— Eu sou a encruzilhada — disse o houngan que era Papa Legba. — Você está na encruzilhada. Então chegou até mim.
— Sim — Biggie falou. — Mas o senhor pode nos trazer Ogou Badagry? Precisamos de guerra na nossa met tet, precisamos ser fortes…
Ele parou, porque o houngan se virou para olhar pra ele, e Biggie fitou aqueles olhos.
— Não — Legba soltou.
— Não?
— Não.
Ele tocou a cabeça de Biggie e ele estremeceu.
— Você está cheio — Legba falou. — Tem um homem morto dentro de você.
Então, tocou a minha cabeça.
— E você está vazio. Você era Marassa, agora você é nada. É metade de pessoa, mas não vai ser por muito tempo. A cerimônia já foi completa. Foi completa há muitos anos. Ogou Badagry não é pra você.
— Mas nossos inimigos — Biggie falou. — Precisamos destruir nossos inimigos.
— Este aqui sabe como — Legba respondeu, me tocando de novo. — Este aqui pode destruir qualquer coisa se quiser. Pode construir coisas também, mas depende dele o que ele faz.
Senti como se eu fosse desmaiar, mas enterrei minhas unhas na palma da mão. Papa Legba é a encruzilhada, eu pensei. Ele pode encontrar qualquer coisa e dar qualquer coisa. Pode devolver coisas que estão perdidas.
— Eu vou ter minha irmã de volta? — eu falei para o houngan que era Papa Legba.
— Que bosta você tá falando? — perguntou Biggie. — Que porra é essa aqui?
O houngan olhou pra mim.
— Não sei do que você está falando — ele falou. — Não mexo com aquela porta.
— Que porta? — eu quis saber.
O houngan balançou a cabeça.
— Eu não… Isso é tudo…
A voz do houngan voltou ao normal; não ecoava mais. Era como um dub mix que parou, e voltamos à música normal. Ele despencou de joelhos e os olhos velhos tremelicaram ao abrir, aqueles injetados, não aqueles com o vazio eterno.
— O que aconteceu? — o houngan perguntou pra gente.
— Não sei — Biggie falou. — Você era Legba, eu acho. Ele disse que eu estava cheio. Disse que Shorty era metade de pessoa. Sabe o que significa?
— Não — ele falou. — Mas não parece bom.
Ele se virou como se já tivesse acabado tudo.
— Hei, babaca — Biggie falou. — Não paguei pra isso. Me devolve o dinheiro.
O houngan balançou a cabeça.
— Fiz o que você pediu — ele retrucou. — Não é minha culpa se o lwa não te ajudou.
— Para de baboseira — Biggie disse. — Eu queria proteção. Agressão.
O houngan deu de ombros.
— Consulte os lwa — ele falou.
Ele pegou a Glock.
— Espera — o houngan pediu. — Você precisa de mim.
— Não preciso, não. Já me deu a maji do Dread. De qualquer forma, você me chamou de babaca. É uma questão de princípios, entende?
Ele esvaziou a Glock no houngan, e o cara foi lançado pra trás tão longe que derrubou todas as prateleiras, inclusive aquela com Dread dentro dela, e ela se espatifou quando caiu nele. O pó se espalhou sobre ele todo, mas era tarde demais. Estava morto.
— Você pode destruir qualquer coisa? — Biggie disse pra mim. — Melhor pensar rápido em alguma coisa, então.
O estranho foi que pensei em alguma coisa mesmo.
Depois que fomos ao houngan, tudo acelerou. Desde que Legba me tocou foi, tipo, sei lá, foi como se uma porta tivesse aberto na minha cabeça, e todo tipo de coisa tivesse passado. Saí da patrulha e ajudei Biggie a botar feitiços nas estradas que levavam para Solèy 19, e ajudei a separar alguns caras que estavam devendo pagamentos, e a todo momento era como se eu estivesse nesse lugar totalmente diferente, onde havia muito mais árvores e sombras.
Também tive aquele sonho estranho sobre um castelo e uma carruagem. Isso me deu uma ideia. Tinha tudo calculado.
— Olha só, Biggie — eu falei uma noite. — Tenho um plano de como podemos tomar Boston.
— Quê? — Biggie perguntou. — Tipo, todos eles?
— Sim — eu respondi. — Todos eles.
Fizemos à noite. Biggie não estava muito feliz em entregar seu carango, mas eu lhe falei:
— Se a gente conseguir, você vai poder ter quantos carros quiser. Vamos ser donos do Site inteiro se tomarmos Boston. Pensa nisso. Quer vender metade da heroína no Site ou toda ela?
Ele nos deu o carro.
Eu disse que eu era o Mecânico, certo? Me mostre um motor quebrado e eu conserto, não importa se for num carro ou numa serra elétrica.
Assim, montei o servomotor numa arma na parte de trás. Tinha um controle remoto na mão, como aqueles de carrinho de brinquedo. Foi a coisa mais difícil de achar — tivemos de andar muito o dia inteiro pelo Site, perguntando pras pessoas. As crianças não têm brinquedos no Site, mas no fim das contas encontramos um menino que tinha comprado dos pais quando se mudaram pra Porto Príncipe para conseguir empregos melhores — e não é aquela piada, como eles dizem nas músicas? Pagamos cinquenta dólares por ele. Então, eu tirei o servomotor do carrinho de brinquedo, entende? E ele estava preso na AK na traseira do carango. Enfiado no porta-malas e embaixo do volante tinha um monte de dinamites, granadas e foguetes. Não conseguia acreditar naquilo tudo quando Biggie me mostrou. Disse que era de Aristide, de quando ele queria as gangues garantindo o país pra ele, mas Biggie disse que ele nunca soube o que fazer com aquela merda, então só deixou num barraco.
— Essa coisa é perigosa — ele falou.
— Sim, eu sei. — eu disse. — Esse é o ponto.
Então, carango, servomotor, arma, explosivos. O resto era apenas brincar de carro-fantasma.
Alguns dos caras, eles não gostaram. Disseram que Biggie não devia me ouvir, que eu tinha bosta na cabeça desde que fomos ver o houngan.
Lil’ Wayne disse bem na cara de Biggie.
— Boko ba w pwen, li pa di w domi nan kafou.
É uma expressão que todo mundo usa e era perfeita para aquele momento e para Biggie, eu acho, porque significa mesmo se o houngan te deu um amuleto protetor, não precisa ficar deitado num cruzamento. Significa: a gente vai se matar.
Biggie, ele apenas olhou com frieza e por um bom tempo para Lil’ Wayne.
— Se a gente sobreviver, você vem e me diz isso de novo — ele falou.
Então, foi isso. Conversamos sobre isso um pouco e já estávamos fazendo. Aprontamos o carro, os explosivos, as armas e fizemos.
Estávamos no fim da rua que leva até o território da Boston. Sabíamos que os líderes da Boston estavam dormindo lá naquela noite, porque botamos alguns pequenos na parada. Os pequenos pareciam iguais, correndo por aí, brincando. A gangue Boston não podia diferenciar um pequeno do Solèy 10 de um do Solèy 19.
Eu esperava que Marguerite estivesse lá também, e esperava não matá-la. Eu estava enjoado. Meu estômago estava duro, como um pacote cheio de erva. Sei que matei pessoas, e você deve estar achando que sou uma pessoa má, mas a verdade é que eu fiz isso apenas pra encontrar Marguerite. Eu só me juntei à Route 9 porque são o outro poder; são os únicos que podiam me ajudar a destruir a Boston e trazê-la de volta.
Então, bem ali, era o momento para o qual eu esperei quase metade da minha vida. Era o momento quando eu podia me unir novamente à minha gêmea.
Biggie levantou a mão e disse “vai”.
Eu me inclinei e liguei o motor. Botei o tijolo no pedal do acelerador, simples assim.
Tintin passou por mim e ajustou um pouco o volante.
— Melhor — ele falou.
O carro seguiu em frente para dentro da noite. Cruzou uma linha que nenhum de nós jamais tinha cruzado, e então estava em Boston, como se não fosse nada demais, mesmo que para nós estivesse em outro mundo. Cruzou em linha reta, o carro-fantasma, suave como seda.
Passou o barraco onde os chimères de Boston estavam dormindo, e eu peguei o controle remoto. Apertei a alavanca para a frente, e o servomotor respondeu, e a AK no carro disparou.
Metralhada do carro-fantasma.
Todo um tiroteio provocado.
Os caras começaram a vazar dos barracos e estavam descarregando nele. Vi que um deles estava mancando, o sangue vazava da perna. As pessoas gritavam. Eu pensei, merda, eu fiz isso. Então ergui minha arma, porque alguém deles nos viu e começaram a atirar na gente. Biggie abaixou com um joelho no chão, sua Tec-9 cuspindo fogo.
Por um momento, fiquei apenas congelado. Nunca tinha visto ou ouvido tantas balas. A rua inteira estava presa numa cerca de tiros; o ar estava cheio de projéteis de lata e pontas de aço; estava em chamas. Era muito louco. Tentei gritar, mas as balas são mais rápidas que as palavras, e eu estava lá em pé, no meio de toda aquela morte metálica.
Pensei, vou morrer.
Pensei, foi uma péssima ideia.
Então eu a vi. Marguerite.
Estava correndo de um barraco, gritando de medo. Não tinha arma na mão e isso era bom, eu pensei — desse jeito, Tintin ou Biggie ou Mickey não atiraria nela. Mickey estava mancando feio, mas estava lá de qualquer forma.
Comecei a andar na direção dela, mas não muito perto. Tive de pegá-la pelos olhos, senão era…
Ela se virou, olhou pra mim. Estava correndo para os chimères que atiravam em nós e no carro, mas parou.
— Corre! — eu gritei. — Corre! Pra longe do carro!
Ela me encarou.
— CORRE!
Alguns caras da Boston viraram pra mim e começaram a atirar, e eu me joguei no chão. Pensei, merda, eles veem agora, eles veem o truque. Mas não se moveram.
No entanto, ela se moveu — eu a vi correr na direção oposta, mais para dentro de Boston.
Pensei, ah, obrigado, obrigado, obrigado.
A maioria da Boston estava atirando no carro. Isso era bom. Era o que eles deviam fazer mesmo, porque se continuassem a atirar, então…
BUM.
Foi no meio da noite, mas de repente tudo virou dia, e havia um sol queimando na rua. Pedaços voaram em todas as direções — pedaços de carro, um banco caiu em cima de um barraco. Veio um som nos meus ouvidos como aquele estalar elétrico quando você enfia a cabeça na água do mar — o som dos peixes se movendo, eu acho. Pus o dedo do lado da cabeça. Senti o sangue quente e melado na minha bochecha; parecia que estava vindo da minha orelha. Onde o carro estava era só fumaça preta. Um dos barracos despencou completamente, um estrondo de faíscas e aço ondulado. O ar estava cheio daquele cheiro de queimado.
Percebi que eu não estava fazendo nada, então levantei minha arma e atirei na tempestade. Não achei que importasse, porque ninguém poderia estar vivo ali.
Minha esperança era que Marguerite tivesse corrido o suficiente.
Tinha pó e fumaça em todo lugar agora, e alguns dos barracos queimavam. Caminhei para a frente, segurando a arma diante de mim. Um homem pegando fogo veio na minha direção, tropeçando, e eu atirei nele sem pensar. Um momento depois, uma bala atingiu meu braço e eu gritei, mas continuei andando. Era difícil segurar a arma na mão. Mas eu segurei. Estava apenas meio consciente de que as pessoas corriam pra lá e pra cá, as balas voavam. A maioria das balas era nossa, eu acho. A gangue Boston não era mais uma gangue.
Eu estava no meio da fumaça e no ar limpo quando a encontrei. Estava encostada numa bicicleta quebrada, assistindo às chamas. Era tão bonita e tão vulnerável. Era a única coisa pura e incorrupta naquela favela inteira.
— Marguerite — eu falei. — Marguerite, tudo bem.
Eu mostrei a metade do meu colar.
— Vê? — eu falei. — Vê, eu ainda tenho. Onde está o seu?
Ela me encarou, medo e horror em seu rosto.
— Do que você tá falando? — ela perguntou. — Quem é Marguerite?