Preciso contar o resto da história rápido, porque é muito provável que eu morra logo. Não quero, mas chegou a hora, eu sinto. Estava tentando chegar à luz, então puxei um bloco — ao menos, acho que era um bloco — e algo se soltou. Ouvi um grande rangido e então ele caiu em cima de mim, me esmagando. Acho que minha perna está quebrada. Não importa, de verdade. Logo vou morrer de fome ou de sede mesmo.
Manman estava certa. Nasci na escuridão e vou morrer na escuridão. Não consigo mais nem ver o filete de luz, porque foi bloqueado pela coisa que caiu.
Agora você sabe por que quero jogar a minha história para trás de mim, como os escombros. Agora você sabe por que não a quero mais. Sou um assassino e atirei tantas vezes que acertei o alvo no fim das contas, e alcancei o que vinha na minha direção. Percebo que mereço tudo isso. Ainda assim, a sensação que tive quando soube que Biggie era um dos homens que mataram meu papa, quando percebi que era tudo Route 9, que foi como algo se partindo dentro de mim, como se eu tivesse dando à luz algo, mas a única coisa que pode sair de mim são a desgraça e a escuridão.
Tintin veio me visitar no hospital, eu te disse. Não expliquei nada. Apenas o ouvi falar aquela conversa de hip-hop ridícula e, então, fingi cair no sono, daí ele foi embora. Trouxe um walkman com tocador de CD e alguns CDs. Um deles era de Biggie fazendo rap sobre ataques aéreos e Tec-9s, e um era de Biggie Smalls, que falava estar pronto para morrer, e eu pensei, isso aí, eu conheço essa sensação. No fim das contas, não consegui ficar com ódio do Biggie, não de verdade — ele é um chimère, o que eu poderia esperar? —, mas não quero ouvir a música dele também, e quando Tintin foi embora eu deixei os CDs de lado.
Tintin vai acabar liderando a Route 9, eu aposto. Biggie está morto, Mickey também. Tintin vai dizer que ele foi um herói naquela noite em Boston; vai falar com empolgação como se ele não tivesse fugido. Sei disso. Mas não me importo. Deixe-o ficar com a preciosa Route 9. Ainda vai acabar numa tempestade de balas, como cantam os raps.
Stéphanie veio me visitar também. Sentou-se na ponta da cama, embora eu não quisesse que ela se sentasse. Ela estava chorando; podia ver a vermelhidão ao redor dos olhos.
— Não querem fazer o funeral do Biggie — ela disse. — Acham que viraria um pretexto para violência no Site. Depois de tudo o que fizeram com as armas deles!
Ela começou a chorar. Senti que deveria abraçá-la ou algo assim, mas não fiz. Talvez ela quisesse ajudar o Site no início, mas foi seduzida pelo Biggie e pelo estilo de vida gângster, e tudo foi por água abaixo. Ela pode ter sido da ONU, mas não passava de uma garota, vinte e cinco anos no máximo. Algumas pessoas gostam disso, apelam para o poder das armas, mesmo se disserem que querem apenas salvar o povo.
— Por que eles fizeram aquilo? — eu perguntei para ela. — Minustah. Por que eles o mataram e os outros?
— Acham que estão ajudando — ela falou. — Acham que estão ajudando a manter o Site livre do crime.
— Se quiserem fazer isso, deveriam pagar algumas escolas, criar empregos. Assim as pessoas não iam querer droga.
Merda, eu pensei. Parece o Biggie falando.
— Concordo — Stéphanie disse. — Falo pra eles, mas não me ouvem. Às vezes, quando você tem uma arma na mão, ela começa a pensar por você.
Sabia do que ela estava falando. Às vezes, quando eu segurava uma arma, era como se a arma quisesse matar as pessoas, não eu. Eu, nunca.
O que eu acabei de falar foi uma mentira. Desculpe. Não sei por que eu minto. Você sabe perfeitamente bem que eu queria matar as pessoas no meu tempo, e que eu fiz isso também.
Stéphanie não ficou muito tempo. Não tínhamos muito para conversar. Perguntei o que ela faria com o bebê. Disse que sabia do Biggie que ela estava ansent, e dava para ver também pela maneira que ela pousava a mão na barriga, mesmo que ela ainda não aparecesse.
— Vou voltar para a França — ela disse. — Para Lille. Não quero meu bebê crescendo aqui.
Disse a ela que era uma boa ideia. Que não iria querer meu filho crescendo aqui também se eu tivesse um. Ela sorriu. Logo depois, foi embora. Ela disse que me visitaria de novo.
Não visitou.
Espero que ela saia viva. Espero que o terremoto não tenha enterrado ela e o bebê de Biggie. Como já estou fazendo confissões, talvez eu pudesse dizer a você que parte de mim não se importaria se o bebê dele nunca nascesse. Entendo Biggie e não o odeio, mas isso não significa que o perdoo.
Finalmente, minha manman veio me visitar.
Ela se sentou na cadeira de plástico ao lado da cama e chorou. Em seguida, me perguntou o que aconteceu. Contei a ela tudo o que disse a você — disse-lhe a história inteira. A única parte que deixei de fora foi que tinha sido Dread quem ordenou a morte do papa, porque eu não achei que ela aguentaria saber disso. No fim, ela não chorava mais, mas acho que era apenas porque não tinha mais lágrimas pra chorar. Então, ela se levantou da cadeira e se curvou sobre mim.
— É minha culpa — ela falou. — Amaldiçoei você quando se juntou ao Biggie e à gangue dele, e a culpa é toda minha.
— Não, não é, manman — eu falei. — Foi minha. Eu deveria ter ouvido você.
Ela soluçava.
— Não, foi ao me ouvir que você caiu nesta roubada — ela falou. — Você nunca deveria ter me ouvido.
— Por que, manman?
Ela voltou a se sentar e desviou o rosto de mim para a parede. Daí, tipo, veio um clique na minha cabeça, e eu conseguia ver por que na dor em seus olhos. Consegui ver o que ela estava prestes a me falar e desejei poder parar o tempo, como ele parou quando eu estava ao lado do mar, olhando para Marguerite, ou para a garota que parecia Marguerite. Mas o tempo continuou; consegui ouvi-lo ser fatiado em pedaços pelo relógio na parede. Não consegui fazê-lo parar.
Manman esfregou os olhos e olhou para o canto da sala. Aquela mosca estava lá, zunindo e zunindo contra a janela, sem perceber que estava tentando atravessar o vidro e ficou presa.
Me senti como aquela mosca.
Não. Eu desejei ser aquela mosca; ao menos eu morreria rápido, e a prisão estaria acabada. Lembro que o sol brilhava contra a janela, fazendo-a parecer uma pintura de uma chama, uma abertura para o inferno.
— Marguerite — manman começou.
— Não — eu falei. — Não.
Não queria que ela me dissesse. Sabia o que ela ia dizer e não queria ouvir. Tentei botar as mãos nos ouvidos, mas manman não parou e puxou meus braços.
— Eles mataram ela aquela noite — minha manman disse. — Marguerite. Eu menti sobre isso. Quando saí para a rua atrás deles, tinham ido embora… Não a vi de primeira, estava tão escuro. Quando vi… algo quebrou na minha mente. Disse a você que ela estava viva porque queria que você tivesse esperança. Algo que eu não tinha mais, mas queria que você tivesse.
Eu já sabia daquilo, mas, quando manman falou, algo se rompeu dentro de mim e eu parei de ser eu, parei de ser uma pessoa.
Tentei respirar, mas parecia que o ar da sala tinha ido embora, e eu estava num vazio. Bom, eu pensei, ao menos eu vou morrer.
Mas não morri.
Meu coração continuou a bater num ritmo descompassado no peito, continuou a fazer aquela música estúpida. Ao menos, com um som dolorido, o ar fluiu de volta para os meus pulmões.
— Mas… a garota… ela não atirou em mim, lá perto do mar.
— Outra pessoa — manman falou. — Outra pessoa que não quis te matar. Existem pessoas assim, você sabe… mesmo no Site.
Eu encarei manman. Ela partiu meu coração, e parte de mim queria quebrar o dela. Parte de mim quis falar para ela:
— Manman, sabia que foi Dread quem matou o papa? Sabia que quando você mudou para Solèy 19, mudou para a casa do assassino do seu marido e chamou de sua?
Mas eu não disse. Não queria machucá-la, mesmo naquele momento. Deixe ela pensar que o papa morreu porque vivíamos numa terra de ninguém, porque Aristide e seus companheiros viram nele uma perturbação. Deixe ela acreditar que o mundo era um lugar onde coisas ruins aleatórias aconteciam, não um lugar onde as pessoas — os garotos — faziam coisas terríveis só porque podiam.
Manman botou a mão no bolso e, antes que ela tirasse, eu sabia o que teria nela. Sabia o que ela estava tentando me dar e sabia que, se eu pegasse, seria como se estivesse absolvendo manman. Então, quando ela tentou me entregar a metade do colar de Marguerite, eu fechei meu punho contra ele, não quis pegá-lo, e cruzei meus braços no peito.
— Você deveria pegá-lo — manman disse. — Deveria juntar as peças do coração.
— Não, não posso — eu falei. — Ela morreu. Você pegou o colar… fique com ele.
— Sinto muito — manman falou. — Sinto muito mesmo.
Fechei os olhos.
— Vá embora, por favor — eu pedi.
Algum tempo depois disso, tudo desmoronou.