ACONTECIMENTO-X 2

QUANDO PODEMOS COMER?

Corte da rede global de abastecimento de alimentos

Factos sobre comida

Sabia disto?

> Mais de quarenta milhões de pessoas foram levadas à pobreza desde junho de 2011 devido ao aumento dos preços dos bens alimentares.

> Devido à diminuição das fontes de água, a Arábia Saudita deixará de ter capacidade para produzir trigo a partir de 2012.

> Uma vez que o modo como produzimos e transportamos os alimentos hoje em dia está muito dependente do petróleo, os preços dos alimentos continuarão a seguir o preço do petróleo e se esse preço se mantiver elevado algumas formas de produção de bens alimentares deixarão de ser economicamente viáveis.

> De acordo com estudos da Global Phosphorus Research Initiative, nas próximas duas ou três décadas deixará de haver fósforo suficiente para responder às necessidades da produção de comida.

> O preço mundial dos bens alimentares subiu quase 40 por cento desde o início de 2010.

> Doenças como a ferrugem do trigo UG99 estão a destruir largos segmentos do abastecimento mundial de bens alimentares.

E podia continuar neste registo por muitas mais páginas. Mas não há dúvida de que o abastecimento mundial de alimentos está ameaçado por uma imensa “complexificação” da indústria alimentar. A agricultura industrializada, as modificações genéticas, os pesticidas, a monocultura, a instabilidade climática, o crescimento populacional, a invasão de terrenos agrícolas (e das suas fontes de água) por parte das cidades – é só escolher. Tudo isto, individual e coletivamente, está a criar condições para um colapso de tipo acontecimento-X da produção e distribuição mundial de alimentos. A industrialização dos alimentos conduziu a um excesso de dependência de certas colheitas – milho, trigo e soja – deixando-nos com uma diversidade natural drasticamente reduzida, uma diversidade que durante muito tempo nos protegeu de pragas, de variações climáticas e coisas do género. Alguns receiam que os pesticidas estejam a contribuir para a evolução de “superpragas” (tal como os antibióticos conduziram aos supervírus) que poderiam devastar a Terra, imunes a todas as tentativas para as combater.

As complexidades em competição nas diferentes partes do sistema alimentar global parecem bem mais inclinadas a aumentar a sobrecarga de complexidade no sistema do que a reduzi-la, a menos que mais, muito mais cooperação internacional tenha lugar para reduzir os desequilíbrios. De outro modo, o terceiro cavaleiro do Apocalipse, a Fome, cavalgará implacavelmente pela Terra e forçará o mundo a enfrentar o problema da comida em condições bem menos favoráveis do que as que temos hoje.

A maior parte de nós, que vivemos no mundo industrializado, está habituada a prateleiras de supermercado vergadas ao peso de alimentos baratos de uma variedade desconcertante. É difícil para nós imaginar que a vida alguma vez poderia ser diferente. Mas à semelhança de muitas outras eras que abordo neste livro, a era da comida barata e facilmente acessível está a chegar ao fim, à medida que nos aproximamos de uma época em que pura e simplesmente não haverá comida suficiente para todos. Se o leitor está a começar a pensar que esta é apenas mais uma história de terror malthusiano à espera de ser desmentida por outra “revolução verde”, continue a ler.

Peste negra 2.0

No final dos anos de 1800, um fungo originário dos Himalaias viajou para a Europa a partir das Índias Orientais e mais tarde chegou à América do Norte, onde grassou pelas florestas do leste do Canadá e dos Estados Unidos, matando a grande maioria dos ulmeiros. Ganhou a designação de doença holandesa do ulmeiro pelo facto de ter sido identificada por cientistas holandeses, em 1917. Nos anos de 1970, surgiram novas estirpes no Reino Unido, onde morreram mais de três quartos dos ulmeiros. Fique agora a conhecer o seu bem mais agressivo irmão mais novo, o Phytophthora ramorum (PR), outro fungo patogénico que se pensa seja igualmente proveniente da Ásia, de onde terá viajado para a Europa e para as Ilhas Britânicas em contentores de navios, no final dos anos de 1990. Mas, em vez dos ulmeiros, que praticamente desapareceram, o PR está a atacar os larícios que cobrem as regiões rurais do Devon, Cornualha e Gales do Sul.

À semelhança de algumas doenças humanas, como o cancro dos ovários, só detetamos a infeção de PR quando já é demasiado tarde para salvar a árvore. Os sinais externos começam quando a folhagem da árvore começa a enegrecer, o interior da casca torna-se castanho em vez de verde e um líquido negro verte da árvore a partir de inúmeras brechas na casca do tronco. Chegada a este ponto, a árvore não pode ser salva e tem de ser cortada e removida do local numa tentativa de proteger o resto da floresta. E não são só os larícios que podem ser infetados. O fungo de PR pode igualmente atacar faias, castanheiros bravos e castanheiros-da-Índia, bem como uma diversidade de plantas que incluem o rododendro, o lilás e o viburnum.

O PR surgiu pela primeira vez no Reino Unido em 2002, numa planta do género viburnum no Sussex do Leste. O fungo “saltou” depois para o rododendro e daí para outras espécies de plantas por meio dos esporos de rododendro transportados pela água, o ar e as neblinas. Até 2009, os cientistas especializados em árvores viram somente uma centena de árvores infetadas, geralmente junto a rododendros. Mas depois os esporos de PR começaram a germinar por todo o País de Gales, pela Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Pior ainda, os esporos nas árvores estavam a reproduzir-se cinco vezes mais depressa do que os dos rododendros. Tinha, pois, começado a corrida para salvar as florestas, colocando frente a frente o saber dos cientistas e a virulência dos esporos de PR.

Se subir hoje ao topo de uma colina no sul do País de Gales e olhar para a floresta em volta, o que vê faz lembrar mais um campo de batalha da Primeira Guerra Mundial do que uma floresta, pois os muitos hectares de cepos e ramos de árvores cortadas são testemunho do facto de não haver ainda uma cura conhecida para o fungo de PR, a não ser “cortar e queimar”, a estratégia de terra queimada de tempos antigos. Em fevereiro de 2011, quase 1,5 milhões de larícios tinham sido cortados nos quinze meses anteriores, havendo outros 1,2 milhões condenados e à espera do mesmo tratamento nos três meses seguintes – de maneira a evitar uma catástrofe ainda maior.

O que é ainda mais perturbador é que o PR patogénico continua nos solos durante pelo menos cinco anos. O futuro dos larícios no Reino Unido parece, pois, francamente pouco promissor. E o grande receio é que, logo que os larícios sejam removidos, o PR salte para outra espécie de árvore. Alguns analistas bem informados afirmam que o mirtilo ou até a urze são fortes candidatos. Os peritos em plantas parecem atualmente ter abandonado a ideia de erradicar o PR e estão a concentrar esforços em pura e simplesmente contê-lo. Na verdade, uma praga de proporções bíblicas está a fermentar nos bosques britânicos, mas trata-se de algo bem diferente da peste da Idade Média, na medida em que há poucas probabilidades de vir a desaparecer a breve prazo. Para ficarmos com uma ideia de como poderia ser o mundo se um assassino de plantas como o PR começasse a grassar de forma descontrolada por toda a Terra, meditemos sobre a seguinte história.

Alguns anos antes de vendedores de livros online como a Amazon terem tornado a procura de praticamente qualquer livro tão fácil como clicar umas quantas vezes num rato de computador, empreendi uma odisseia mundial por alfarrabistas desde Nova Iorque ao Rio de Janeiro, com escala em Christchurch, num esforço para encontrar os cem maiores romances de ficção científica de todos os tempos. Esta empresa quixotesca foi provocada pelo livro de 1986, Science Fiction: The 100 Best Novels, da autoria do crítico e editor David Pringle. Diga-se em abono de Pringle que ele não tentou ordenar o seu top 100 do melhor para o pior, listou simplesmente os romances por ordem de publicação, começando com Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell (1949) e terminando com Neuromante, de William Gibson, que, por coincidência, foi publicado em… 1984. Algures entre estes dois clássicos maravilhosos, que traçam uma visão negra do futuro, estava o romance de 1956, igualmente clássico – e igualmente negro – The Death of Grass, do escritor britânico John Christopher.

A premissa da história de Christopher é que um incontrolável vírus das plantas, o Chung-Li, aniquila todas as ervas da China, conduzindo à morte pela fome de centenas de milhões de chineses. Tudo isto parece desesperadamente remoto para os Custance, uma família britânica de classe média, um ramo da qual cultiva a terra no Lake District; o outro ramo, encabeçado pelo advogado John Custance, vive e diverte-se em Londres. À medida que a história se vai desenvolvendo, John Custance é informado por Roger, um amigo que integra o governo britânico, que o vírus Chung-Li se propagou ao Reino Unido. A seguinte troca de palavras capta a essência da história:

“Raios!”, disse John. “Isto não é a China.”

“Não”, respondeu Roger. “Isto é um país de cinquenta milhões de pessoas que importa quase metade da comida que consome.”

“Podemos ter de apertar os cintos.”

“Um cinto apertado”, disse Roger, “fica ridículo num esqueleto.”

Todas as tentativas científicas para deter o vírus deram em nada e, um ano volvido, todo o mundo está afetado. John é, então, informado pelo seu amigo no governo de que o exército tem ordem para isolar as principais cidades, uma vez que só uma pequena parte da população pode sobreviver comendo legumes e peixe. O governo decidiu, por isso, que a única solução é “diminuir” a população mediante o extermínio de todos os residentes citadinos. A maior parte do livro é então dedicada à viagem de John com a família até à quinta do irmão. Encontram pelo caminho bandos de saqueadores compostos por citadinos como eles, que escaparam das cidades e estão a abrir caminho pelos campos à custa de violações, pilhagens e assassínios. O próprio grupo de John é forçado a roubar e a matar para sobreviver. Por fim, John e a família chegam ao porto de abrigo da quinta do irmão, localizada num vale isolado – e protegido – onde sentem estar em melhor posição para defender o seu território contra quem vier.

Enquanto exemplo real de uma situação limite, embora não tão apocalíptica como a retratada em The Death of Grass, o fungo PR referido antes poderia muito bem levar à extinção dos larícios, dos rododendros e de árvores semelhantes. Embora a “morte dos larícios” dificilmente possa ser considerada uma ameaça existencial, um fungo como este podia propagar-se e tornar-se uma catástrofe global caso sofresse uma mutação e pusesse em risco as colheitas de cereais. Reconhecendo esta possibilidade geral de extinção de espécies de plantas, o governo da Noruega criou em 2008 um cofre de sementes “apocalíptico”, sepultado sob uma montanha no arquipélago gelado de Svalbard, no Ártico, a cerca de um milhar de quilómetros do Pólo Norte. Como referiu o primeiro-ministro norueguês Jens Stoltenberg: “É a Arca de Noé para salvaguardar a diversidade biológica para as futuras gerações.” Enterrado no interior do pergelissolo14 de uma montanha, o cofre foi concebido para resistir a terramotos, a um ataque nuclear e talvez até ao impacto de um asteroide.

A motivação subjacente à criação de um tal cofre reside na industrialização do abastecimento global de alimentos. As grandes empresas que dominam a produção de comida restringem gravemente a diversidade genética ao empregarem somente umas poucas variedades de sementes de plantas, por vezes uma única variedade. Se uma doença atingisse essa variedade, a produção de comida estaria em grandes sarilhos e todo o sistema de abastecimento alimentar poderia entrar em colapso. Daí o cofre Svalbard.

Embora a região ártica pudesse parecer fria o bastante para preservar as sementes, ao que parece as temperaturas aí variam bastante, pelo que o cofre do apocalipse precisa de enormes aparelhos de ar condicionado para o arrefecer a temperaturas abaixo dos zero graus Fahrenheit, de modo a congelar as sementes a uma temperatura que lhes permita sobreviver por um milhar de anos. As próprias sementes estão embaladas em contentores de folha de alumínio e depositadas em prateleiras azuis e cor de laranja no interior das salas de armazenamento. Um total de cerca de quatro milhões e meio de tipos de sementes, das cenouras ao trigo e ao milho, pode ser ali armazenado. Registe-se que as primeiras sementes a serem depositadas, durante a cerimónia de abertura, foram uma coleção de sementes de arroz provenientes de 104 países.

Para a maior parte de nós, penso eu, será uma surpresa saber que existem já quase catorze centenas de bancos de sementes em todo o mundo. Mas muitos deles estão em áreas politicamente instáveis ou estão ameaçados pelo meio ambiente local. Por exemplo, os bancos de sementes no Iraque e no Afeganistão foram arrasados pela guerra, e um existente nas Filipinas foi destruído por um tufão em 2006. Assim, era importante estabelecer uma espécie de banco de sementes de “último recurso” capaz de resistir a praticamente tudo o que a Natureza e os seres humanos pudessem atirar-lhe para cima. Como afirmou Geoff Hawtin, do Global Crop Diversity Trust, que organizou e financiou a operação: “Aquilo que vai para o subterrâneo é uma cópia do material atualmente existente em coleções [espalhadas] pelo mundo.” Embora a Noruega seja o proprietário formal do cofre, qualquer país pode depositar sementes, sem encargos, no cofre do apocalipse e reservar-se o direito de as retirar de novo se tal for necessário.

Um vírus de plantas como o Chung-Li ataca diretamente o nível mais profundo da cadeia alimentar, começando pelas ervas e destruindo esse primeiro elo vital. Mas um vírus não é a única forma de desfazer o mundo das plantas, pois há outros elos na cadeia entre as ervas e os bens alimentares que acabam no nosso prato. Eis um desses elos que hoje em dia está igualmente no centro de grandes preocupações.

A morte das abelhas

Um dos documentários mais aclamados dos últimos anos foi The Vanishing of the Bees, que contava a história do intrigante desaparecimento de mais de um terço das abelhas da América do Norte e da Europa entre 2006 e 2008. Este desaparecimento, designado “distúrbio do colapso das colónias” (CCD)15, é retratado no filme com base no seguimento do trabalho de apicultores, e vemos como, ao abrirem de manhã as colmeias, verificam que todas as abelhas voaram da capoeira, por assim dizer, literalmente da noite para o dia.

A ideia de que as abelhas estão a desaparecer enraizou-se já na consciência pública e o filme joga com esse medo de muitas formas. Não há dúvida de que a polinização das plantas pelas abelhas, bem como por outros animais, como as borboletas e os pássaros, desempenha um papel crucial na produção de frutos e de sementes. Mais de 80 por cento do quarto de milhão de plantas angiospérmicas do planeta são polinizadas por esses animais. É igualmente indesmentível que as abelhas melíferas, que são as principais polinizadoras de entre as muitas espécies de abelhas, sofreram uma grande mortandade a partir de 2006. Com efeito, o desaparecimento das abelhas melíferas constitui uma imensa redução na complexidade do processo de produção de alimentos, criando um desequilíbrio de complexidade entre a variedade de ferramentas necessárias para polinizar as plantas e as que estão disponíveis, pois sem abelhas melíferas o processo teria de ser levado a cabo por um conjunto muito pequeno de polinizadores.

Estes factos levantam duas grandes questões para o sistema humano de abastecimento de comida: (1) Por que razão estão as abelhas a morrer? E (2) até que ponto é crucial a polinização feita pelas abelhas no esquema global das coisas relacionadas com a produção de alimentos? Bom, vamos ver.

As abelhas têm vida difícil no mundo de hoje. São levadas de um lado para o outro pelos seus criadores para polinizarem frutos e colheitas, começando com as amêndoas na Califórnia, no início da primavera, e terminando com as peras e as maçãs no Oregon, no início do outono. Note-se de passagem que estas são as chamadas abelhas melíferas comerciais, que superam de longe as abelhas selvagens como polinizadoras. Para ficarmos com uma ideia dos danos que seriam causados se estas abelhas deixassem de aparecer pelos campos, tenhamos em consideração que a Califórnia fornece cerca de 80 por cento do abastecimento mundial de amêndoas, que são usadas em produtos diversos, desde os gelados aos cosméticos. Não surpreende, por isso, saber que firmas como a Häagen-Dazs estão a financiar esforços destinados a aumentar a consciência do público quanto à importância das abelhas na agricultura. Para pôr as coisas de forma crua, sem abelhas não há colheitas e sem estas não há produtos alimentares.

Para termos uma ideia do impacto do CCD na economia das abelhas, os cultivadores de amendoeiras pagaram uma renda de cerca de 175 dólares por colmeia em 2009, o que equivaleu a mais do dobro do preço pago quatro anos antes. Por isso, se colocarmos uma colmeia por cada quatro mil metros quadrados de árvores e tivermos cerca de 800 hectares, então, estamos perante um aumento do custo de produção de 200 mil dólares, ou mais, só em custos de polinização. Como afirmou o industrial John Replogle, antigo diretor executivo da Burt’s Bees, uma empresa de cosméticos que fabrica cremes à base de amêndoas: “Se as abelhas estão bem, as amêndoas também.” E esta máxima económica diz somente respeito às amêndoas. Se alargarmos as coisas às maçãs, peras, mirtilos e milhares de milhões de outros frutos e plantas polinizados pelas abelhas, começamos a ter a noção da magnitude do problema se as abelhas desertarem. O que dizem os biólogos e os especialistas de abelhas sobre as causas do CCD?

A seguir ao surto de CCD de 2006, os investigadores trabalharam sem descanso para tentar identificar o que levara as abelhas a fugir. No início de 2011, as apostas pareciam inclinar-se para uma explicação que situava o problema nos genes; as fábricas de células que criam as proteínas usadas pelas abelhas para levar a cabo as suas atividades parecem ter deixado de funcionar nas abelhas associadas ao CCD. Dizendo as coisas de forma sucinta, a estrutura celular das abelhas deixou de conseguir fabricar a energia necessária para estas funcionarem. Mas o que originou, antes de mais, essa avaria nas instalações de fabrico de energia celular?

A melhor explicação disponível é que três fatores muito diferentes se combinaram numa tempestade perfeita para interferir com o funcionamento genético das abelhas atingidas. Este triângulo infernal consiste nos passos seguintes.

> Pesticidas: As desvantagens dos pesticidas são bem conhecidas desde pelo menos 1962, ano da publicação do livro esclarecedor de Rachel Carson, Silent Spring, que chamou a atenção para os riscos dos pesticidas químicos, tanto para os seres humanos como para o ambiente. Como todas as ferramentas pouco aprimoradas, os pesticidas têm duas faces. Podem matar mosquitos que transmitem doenças mortais, mas podem igualmente matar formigas e outros insetos úteis. Podem prevenir doenças nos seres humanos, ao destruir alimentos contaminados, mas podem ser igualmente carcinógenos, causando o cancro da mama. Por isso, a sua utilização é sempre uma espada de dois gumes.

Nesta mesma direção, a modificação genética de sementes para reduzir a necessidade de inseticidas conduziu a uma corrida evolucionária às armas entre os agricultores e os insetos, cuja mais recente manifestação é uma população de “superinsetos” que podem resistir ao pesticida geneticamente implantado colocado em estirpes de milho. Uma vez mais, este é um exemplo de sobrecarga de complexidade, na qual o sistema imune dos insetos evoluiu a um nível de complexidade muito maior do que o baixo nível de complexidade das defesas geneticamente concebidas e introduzidas no genoma das plantas.
As abelhas levadas de um lado para outro estão, também, expostas de ano para ano a níveis crescentes de pesticidas. Esta exposição, a par do simples stresse de serem vendedoras ambulantes de polinização, tem um preço para a saúde das abelhas, reduzindo a sua capacidade para resistir a outros elementos patogénicos.

> Vírus: Existem diversos vírus conhecidos por serem prejudiciais para as abelhas. A lista dos que atacam a estrutura genética das abelhas é longa, incluindo algo chamado vírus da paralisia israelita e um fungo parasítico designado Nosema ceranae, os quais surgem regularmente na constituição genética das abelhas infetadas. Uma vez mais, a complexidade levanta a cabeça; à medida que se multiplica a variedade de vírus ameaçadores, a complexidade do sistema imunitário das abelhas é superada pela variedade das ameaças, levando a um fosso que acabará por ter de ser estreitado.

> Ácaros varroa: O fator que pode muito bem ter precipitado o colapso da colónia de abelhas, enfraquecidas pelos fatores precedentes, é o ácaro varroa, que foi acidentalmente introduzido nos Estados Unidos em 1986, quase de certeza devido à importação de abelhas infetadas. Este parasita é um conhecido portador do tipo de vírus ao qual os genes das abelhas são particularmente suscetíveis, e pode muito bem ter sido a gota que fez transbordar o copo, conduzindo ao CCD.

Felizmente, as populações de abelhas parecem estar a crescer novamente. Mas novos problemas de polinização surgem no horizonte, devido ao aumento drástico da produção agrícola nas últimas cinco décadas. Nesse período de tempo, a população humana duplicou. Mas a pequena proporção da produção agrícola que depende da polinização quadruplicou no mesmo período. Esta produção agrícola aumentada de colheitas como cajus, cerejas e amêndoas aconteceu sobretudo mediante o aumento da terra cultivada.

Infelizmente, criar terra cultivada a partir do habitat natural de polinizadores selvagens, a par da crescente procura de polinizadores, excede de forma drástica o aumento da população das abelhas domésticas, o que, por seu lado, está a criar uma grave tensão na capacidade polinizadora. Por isso, o aumento de procura de colheitas dependentes da polinização, a par destes fatores de redução da capacidade polinizadora, criou o potencial para um problema de uma magnitude sem precedentes. O lado bom da história é que as abelhas estão de volta; o lado mau é que os acontecimentos recentes podem ser um sinal de alerta, dizendo-nos que vamos estar a braços com um verdadeiro problema de polinização muito em breve.

O fungo PR e o desaparecimento das abelhas ilustram de forma vívida a necessidade de uma reserva global de plantas como o cofre do apocalipse para preservar a sua diversidade. Mas, as crises de produtos alimentares não resultam somente de problemas com plantas; podem surgir de muitas maneiras e em muitas escalas temporais. A redução de diversidade devida a doenças e infeções é um dos tipos mais dramáticos de ameaça, desencadeando-se geralmente numa escala temporal média, de alguns meses a cerca de um ano. Podemos argumentar, no entanto, que estes são, no melhor dos casos, exemplos marginais de como crises de fornecimento de alimentos podem resultar de ações humanas. Vamos, por isso, lançar um olhar mais atento à crise alimentar emergente, um olhar cujo foco é mais no curto prazo, e ver que tipos de tempestades parecem estar a avolumar-se no horizonte.

Fome e infortúnio16

Pouco depois das dez da manhã do dia 24 de Abril de 2008, Mary Ann Galviso, uma vendedora de imóveis da comunidade rural de Orosi, na região central da Califórnia, comprou dois sacos de 25 quilos de arroz tailandês de jasmim na filial de São Francisco dos armazéns Costco. A sua compra foi um pequeno contributo para o esvaziar de três paletes cheias de arroz do armazém no período de uma hora, apesar de a loja ter imposto o limite de dois sacos por cliente. O que tornou a história da Sr.a Galviso marginalmente digna de nota foi o facto de ela ter percorrido mais de duzentos e cinquenta quilómetros para fazer a compra, pois a loja local em Orosi tinha ficado sem o tipo de arroz usado habitualmente nas refeições por Mary Ann e pela sua família.

Esta história põe em relevo o comportamento de armazenamento, não só dos compradores particulares, como também dos proprietários de restaurantes asiáticos e indianos, cuja corrida às compras movida pelo pânico forçou, não só a Costco, mas também o Sam’s Club, filial do Walmart, a impor limites à quantidade de arroz que os clientes podiam comprar. Um responsável da Costco afirmou: “Ouvimos falar de casos em que os donos de restaurantes estão a armazenar abastecimentos de arroz para três semanas nas suas caves.”

O racionamento de arroz nos EUA em 2008 aconteceu num momento em que os aumentos de preços de mercadorias provocaram violência por causa dos abastecimentos e dos custos dos bens alimentares. E, de facto, três anos depois, a subida de preços não tinha revertido e contribuiu em muito para o mal-estar social e a violência que levou à deposição dos regimes políticos na Tunísia e no Egito. Para podermos avaliar a magnitude do problema, em fevereiro de 2011, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) anunciou que o seu índice de preços de alimentos, composto por um cabaz de bens essenciais como o trigo, o leite, o azeite e o açúcar, tinha subido 2,2 por cento face ao nível de janeiro e fixou-se no nível mais elevado desde que a organização começou a monitorizar os preços, mais de duas décadas antes. Demos uma rápida vista de olhos à miríade de problemas que conduziram a esta escalada contínua dos preços dos alimentos em todo o mundo.

A prodigiosa subida dos preços dos alimentos nos últimos cinco anos pode ser explicada por fatores que agiram em simultâneo para reduzir o abastecimento de bens alimentares e aumentar exponencialmente a procura. Como todos sabemos com base nos rudimentos da economia, esses dois fatores constituem a combinação perfeita para causar um rombo no orçamento alimentar de qualquer família. Os fatores do lado da oferta que conduzem a um declínio na produção de alimentos incluem os seguintes:

Escassez de água: A extração excessiva de aquíferos subterrâneos em muitos países, incluindo a China, a Índia e os EUA, tem causado nas últimas décadas um aumento artificial da produção de bens alimentares. A Arábia Saudita, por exemplo, foi autossuficiente na colheita de trigo durante mais de vinte anos. Atualmente, a produção de trigo no país está em risco de desaparecer por completo dentro de um par de anos, devido à falta de fontes de água subterrâneas para irrigar as colheitas.

Erosão dos solos e desaparecimento de terrenos agrícolas: Os peritos calculam que um terço das terras férteis do mundo esteja a perder a camada superior arável mais depressa do que pode ser reposta por meio de processos naturais. No noroeste da China e no oeste da Mongólia está a formar-se uma imensa camada de areia que fará parecer minúsculas, por comparação, as dust bowls que varreram os EUA durante a Grande Depressão. Uma camada de areia idêntica está também a crescer na África central. Portanto, nessas regiões, as colheitas de cereais estão a diminuir e os agricultores terão de acabar por abandonar as terras e ir viver para as cidades.

Mau tempo e fenómenos climatéricos: O aquecimento global não é um mito e o aumento das temperaturas veio para ficar. Estima-se que por cada grau Celsius de aumento das temperaturas acima do ideal para a época de plantio se dá um declínio de dez por cento na produção de cereais. Fotografias de campos de trigo queimados na Rússia, durante o Verão de 2010, dão uma ilustração drramática do impacto que as mudanças do clima estão a provocar na redução drástica das colheitas.

Aumento dos preços do petróleo: Há um segundo “choque petrolífero” a ter lugar a par daquele que constatamos na bomba de gasolina quando vamos atestar o depósito. Trata-se da subida drástica do preço dos óleos alimentares, como o óleo de palma, o óleo de soja, o óleo de milho e muitos outros óleos vegetais. E há também o forte impacto causado na rede de abastecimento de alimentos pelo aumento do preço dos óleos minerais, uma vez que o óleo entra em todos os aspetos da rede alimentar. Como reza o ditado: “O solo é a maneira que a natureza tem de transformar o óleo em comida.”

Estes são somente alguns fatores, todos eles contribuindo para o declínio no abastecimento global de alimentos. Existe, infelizmente, uma lista complementar igualmente “deprimente” do lado da procura.

Crescimento populacional: A população mundial está a crescer a uma taxa de mais de duzentas mil pessoas por dia. Não é necessário ser um génio para saber que a maior parte dessas pessoas está a entrar na sala de refeições nas partes do mundo mais pobres e subnutridas. Por conseguinte, enquanto o número de bocas para alimentar continua a crescer, não existe pura e simplesmente comida disponível para as encher.

Abundância crescente: Mais de três mil milhões de pessoas estão a mudar as preferências alimentares, passando de regimes de subsistência a um maior consumo de carne, ovos, leite e produtos dependentes dos cereais. São, por exemplo, necessários cerca de oito quilos de cereais para produzir tão-só um quilo de carne. E é necessária uma quantidade onze vezes maior de combustíveis fósseis para produzir uma caloria de proteína animal do que a necessária para produzir uma caloria de proteína vegetal. Por outras palavras, em vez de comer cereais diretamente, metade da população mundial está a comer cereais “transformados”, sob a forma de produtos ricos em proteínas, mas também ricos em conteúdo de cereais, como carne de vaca e de aves.

O Nobel da Economia Amartya Sen ilustra a perversidade deste fenómeno ao imaginar um país com muitas pessoas pobres que subitamente sofre uma expansão económica. Parte então do princípio de que somente metade da população partilha desta riqueza recém-descoberta. A metade rica gasta a sua riqueza em comida de qualidade mais elevada e preço também mais alto, o que causa um aumento de preços dos alimentos. A metade pobre da população enfrenta agora preços mais altos mas sem ordenados aumentados e por isso passa fome. E não se trata de uma fantasia, pois Sen segue a pista de um processo destes que aconteceu de facto durante a fome de Bengala de 1943.

Cereais para combustível: Uma fração substancial de cereais, especialmente de milho, está agora a ser desviada da cadeia alimentar para a produção de etanol para automóveis. Nos EUA, isto corresponde a praticamente um terço do total das colheitas de cereais. O principal motivo desta utilização reside em políticas mal orientadas instituídas em 2006, que concediam subsídios governamentais a agricultores que convertessem cereais em combustível.

A somar a estes componentes do aumento dos preços dos bens alimentares, temos a injeção maciça de dólares americanos no sistema financeiro mundial para combater a crise financeira em curso. Uma vez que os bens de consumo têm quase todos o preço em dólares, a inundação de dólares no sistema financeiro mundial contribui para um grande aumento nos preços dos bens de consumo em todo o mundo, desde o óleo alimentar ao trigo e ao toucinho congelado. À medida que a cotação do dólar sobe face a outras moedas, os possuidores dessas moedas são forçados a pagar mais pelos bens de consumo e, assim, também pelo cabaz alimentar. Em resumo, a “flexibilização” quantitativa imposta pela Reserva Federal dos EUA tornou-se uma “privação” quantitativa nas mesas de boa parte do mundo. Assim sendo, qual é a solução? Haverá uma?

A “solução” óbvia para a crise alimentar, tal como está, seria atacar na origem os desequilíbrios entre oferta e procura. Isto envolveria os seguintes tipos de ações:

Gestão eficiente da água e dos solos agrícolas: A utilização abusiva das fontes aquíferas e dos solos agrícolas tem de parar. O alargamento das áreas suburbanas e a destruição de solos férteis para construir estradas e parques de estacionamento, especialmente na China e na Índia, têm de ser restringidos. Além disso, a água disponível tem de ser usada de uma forma muito mais eficiente, o que exigirá tecnologias inovadoras, tecnologias essas que atualmente não existem: a reciclagem de água, por exemplo, ou o recurso a colheitas que requeiram menos água.

População mundial: É necessário acelerar de forma drástica a tendência para famílias mais pequenas. Isto exigirá, entre outras coisas, o providenciar de ajuda e aconselhamento no planeamento familiar às populações mais pobres do mundo, que têm as taxas de natalidade mais elevadas.

Clima: As emissões de carbono têm de ser reduzidas em 80 por cento na próxima década, de maneira a evitar acontecimentos climáticos catastróficos, especialmente inundações, furacões, secas e ocorrências semelhantes cuja probabilidade parece aumentar devido ao aquecimento global. Estes acontecimentos destruiriam grande parte das terras agrícolas atualmente existentes.

Mudança de políticas governamentais: As políticas governamentais erradas de atribuição de subsídios à produção de etanol têm de ser abandonadas o mais depressa possível. As colheitas de cereais são muito mais úteis para encher estômagos vazios do que para abastecer depósitos de gasolina. Uma maior regulamentação por parte dos governos da produção multinacional de alimentos seria igualmente muito útil para ajudar a estabilizar a produção de bens alimentares, pois encorajaria menos eficiência e mais resiliência nos processos de produção, forçando, por exemplo, a utilização de uma maior variedade de tipos de sementes na produção de cereais.

Tudo somado

O mundo enfrenta atualmente uma confluência de escassez crescente de três bens essenciais para a continuidade da vida humana neste planeta: água, energia e alimentos. Estes três elementos combinam-se e formam algo muito maior do que a soma das partes, um desastre global no horizonte, pelo ano 2030. Por essa altura, a procura de água aumentará em 30 por cento, enquanto a procura de energia e alimentos irá disparar em 50 por cento. Tudo isto será o resultado de um aumento global da população para cerca de oito milhares de milhões de pessoas, o que colocará uma tremenda pressão sobre o nosso sistema de produção de bens alimentares altamente industrializado.

É importante notar que o lado do triângulo relativo à escassez de comida não está a ser tão orientado por considerações do lado da oferta como o está a ser pelo lado da procura. Felizmente, embora o aumento da população seja um grande fator no estimular desta procura, a taxa de crescimento da população mundial parece estar a abrandar, e se os padrões atuais de libertação das mulheres se mantiverem, poderemos esperar um abrandamento ainda maior. Naturalmente, há sempre surpresas, pelo que não há garantias sobre a continuidade de nenhuma destas tendências. E, na verdade, quase de certeza que não se vão manter se o mundo não conseguir encarar o problema mais difícil, ou seja, o aumento crescente do fosso entre os países mais ricos e os países mais pobres da economia global.

14. ‘Permafrost’, no original, é a camada do solo ártico permanentemente gelada. (N. do T.)

15. A sigla CCD é o acrónimo de colony colapse disorder. (N. do T.)

16. Fam(in)e and (Mis)fortune, no original. O uso de parênteses visa criar um duplo sentido, transformando as palavras “fome” e “infortúnio” em “fama” e “riqueza”. Este jogo de palavras perde-se na tradução. (N. do T.)