5 DE MAIO
A MESA DO SALÃO DE TATUAGENS de Tryggvi está cheia de pequenos frascos de vidro contendo tintas de todas as cores e o jovem pergunta-me se já escolhi uma imagem ou se estou a pensar antes num padrão pessoal ou num símbolo.
O corpo dele está totalmente coberto de tatuagens. Observo o réptil que serpenteia até ao pescoço para depois envolver uma caveira preta. A tinta irriga toda a sua epiderme; a parte superior do braço que maneja a agulha exibe uma rede tripla de arame farpado.
— Há muitas pessoas que vêm cá para esconder uma cicatriz — diz-me o tatuador no espelho.
Quando ele se vira, consigo ver as ferraduras de um cavalo empinado emergindo sob a camisola interior. Curva-se sobre uma pilha de pastas plastificadas, escolhe uma e folheia-a com a ideia de me propor um desenho.
— As asas têm um sucesso enorme entre os homens na casa dos cinquenta — explica ele.
No antebraço que segura a pasta, reparo em quatro espadas que trespassam de través um coração em chamas.
A minha pele tem um total de sete cicatrizes, quatro acima do umbigo, o ponto de origem, e três abaixo. Familiar e reconfortante como um velho conhecido, a asa de um pássaro que cobriria o ombro, digamos, desde a nuca até à clavícula, esconderia duas ou mesmo três. Poderia tornar-se a sombra alada de mim mesmo, meu escudo e minha fortaleza. A plumagem oleosa cobriria como um manto a carne rosa e vulnerável.
O rapaz folheia rapidamente o álbum e aponta finalmente para uma imagem.
— As asas de águia são as mais populares.
Poderia ter acrescentado: que homem nunca sonhou em ser uma daquelas grandes aves de rapina solitárias pairando nas alturas do mundo, por sobre os lagos das montanhas, as ravinas e os pântanos, prontas a lançar-se sobre as presas? Mas limita-se a dizer:
— Esteja à vontade para escolher, temos tempo de sobra.
Atrás da cortina, explica-me ele, um outro cliente espera que ele acabe de lhe tatuar a bandeira nacional, com sombras e relevo.
Baixa a voz.
— Avisei-o de que o mastro da bandeira ficaria curvado se ele engordasse nem que fosse dois quilos, mas não desistiu da ideia.
Como tinha previsto fazer uma visita à minha mãe antes de ela se deitar, impõe-se uma decisão.
— Tinha pensado num berbequim.
Surpreendido com a minha escolha, não me mostra nada e trata imediatamente de procurar a pasta mais adequada.
— É possível que tenhamos um berbequim por aqui algures, com os aparelhos elétricos — diz ele. — É menos complicado do que a moto-quatro que me pediram a semana passada.
— Não ligue — digo eu. — Eu estava a brincar…
Ele fita-me com um ar grave que não deixa adivinhar o seu grau de contrariedade.
Procuro precipitadamente nos meus bolsos e tiro uma folha dobrada. Depois de a ter alisado, entrego-lha. Ele vira-a em todos os sentidos e aproxima-a da luz. Consegui surpreendê-lo. Ele bem queria, mas não é capaz de esconder a perplexidade.
— É uma flor ou…?
— Um nenúfar — digo eu sem mais delongas.
— E de uma só cor?
— Sim, de uma só cor, branco. E sem sombreados.
— E sem nenhuma inscrição?
— Sim, nenhuma inscrição.
Ele arruma as pastas, diz que pode desenhar rapidamente o nenúfar e liga de imediato a máquina.
— E onde é que o quer?
Ele prepara-se para mergulhar a agulha num líquido branco enquanto eu desabotoo a camisa para lhe mostrar o coração.
— Primeiro, vamos ter de depilá-lo — suspira ele e desliga a máquina. — Caso contrário, a sua flor perder-se-ia na escuridão de uma floresta.
O ESTADO, O LOCAL ONDE O LENTO SUICÍDIO
DE TODOS TEM POR NOME «A VIDA»1
O caminho mais curto para o lar de idosos passa pelo cemitério.
Sempre imaginei que o quinto mês do ano seria o último mês da minha vida e que o número cinco figuraria mesmo mais do que uma vez na data da minha morte: 05/05, 15/05, 25/05. Seria o mês do meu aniversário. Os patos, que terão completado o acasalamento, não estarão sozinhos no pântano, haverá também ostraceiros e pilritos escuros. Ouvir-se-á o canto dos pássaros e o mundo estará primaveril e sem noite quando eu cessar de existir. Farei falta ao mundo? Não. O mundo ficará pior sem mim? Também não. Continuará a girar sem mim? Sim. Está melhor agora do que quando eu vi a luz do dia? Não. O que é que eu fiz para melhorar o mundo? Nada.
Ao descer a rua Skothúsvegur, pergunto-me qual será o método mais adequado para pedir emprestada uma espingarda de caça a um vizinho. Empresta-se uma arma de fogo como se empresta uma extensão elétrica? E que animais é que se caçam no princípio de maio? Ninguém vai abater o mensageiro da primavera, a tarambola-dourada. Nem uma pata a chocar um ovo. Posso arrogar-me o direito de abater um gaivotão-real só porque ele perturba o meu sono nas águas-furtadas de um prédio residencial do centro da cidade? E Svanur não iria achar suspeito que eu me tivesse tornado, da noite para o dia, o defensor dos patinhos? E, mais, Svanur sabe que eu não sou caçador. Embora tenha estado de pé no meio de um rio glacial, com as botas que chegam às virilhas, sozinho numa charneca, e sentido o frio a comprimir-se contra o meu corpo com um muro espesso, e seixos no leito sob as palmilhas das botas, e sentido depois o rio a cavar rapidamente o fundo esponjoso enquanto o reluzente cone do redemoinho se oferecia à minha contemplação, a verdade é que nunca disparei um tiro. Voltei da minha última pescaria com duas trutas que cortei em filetes e fritei com o cebolinho que tenho no canteiro da varanda. Svanur sabe também que eu tenho horror à violência desde que tentou arrastar-me para ver o Die Hard 4. Contra quem disparamos no mês de maio, a não ser contra nós? Ou contra um outro homo sapiens? Svanur sabe muito bem que dois mais dois são quatro.
No entanto, ele não é homem de fazer perguntas. Nem de se preocupar com a vida íntima das pessoas. Não é aquele tipo de pessoa que se põe a evocar a lua cheia ou a dissertar sobre as auroras boreais. Ninguém esperaria que ele, de repente, exclamasse: «Olhai, meus irmãos! Não vedes o arco-íris…»2 E também não chamaria a atenção de Aurora, a sua mulher, para as cores do céu, a alvorada com dedos de rosa, não, ele nunca lhe diria: «Ei-la, Aurora, aquela que tem o teu nome.» E Aurora também nunca evocaria o firmamento com o marido. Na casa deles, a repartição de tarefas é bem clara; de manhã, é ela que arranca o filho, ainda adolescente, do quente da cama. Em troca, é ele que vai passear a velha (catorze anos) cadela border collie que já está mais para lá do que para cá. Não, decididamente Svanur não misturaria sentimentos num empréstimo. Entregar-me-ia a espingarda, dizendo «É uma Remington 40-XB modificada, mas com o cano e o fecho do gatilho originais», mesmo que suspeitasse que eu iria dar um tiro nos cornos.
O UMBIGO É UMA CICATRIZ DECORRENTE DA QUEDA
DO CORDÃO UMBILICAL. NO NASCIMENTO, O CORDÃO É FIXADO
NA BASE COM UMA PINÇA CIRÚRGICA E, DE SEGUIDA, CORTADO
PARA ROMPER O LAÇO ENTRE A PROGENITORA E O FILHO.
A CICATRIZ ORIGINAL ESTÁ, PORTANTO, LIGADA À MÃE
Os velhos sentam-se curvados nos bancos do parque, sob o sol frio da primavera, protegidos por mantas de lã, não muito longe de um bando de gansos selvagens, todos aos pares. Exceto um, enroscado em si mesmo, afastado dos outros; não se mexe, apesar de eu ir direito a ele. Tem uma asa torcida para trás, manifestamente fraturada. Um ganso ferido não tem parceiro e, portanto, não conseguirá reproduzir-se. É Deus que me está a enviar uma mensagem. Não que eu acredite nele.
A minha mãe está afundada numa cadeira reclinável, os pés dela não tocam o chão, e as pantufas, demasiado grandes, balouçam no extremo das pernas escanifradas. O corpo mirrou de tal maneira que quase desapareceu; deixou de ser de carne; leve como uma pluma; se o corpo ainda não se desfez, é por causa dos seus ossos de poliestireno expandido e de uns quantos tendões. Dir-se-ia um esqueleto de uma ave exposto durante todo o inverno às intempéries e do qual resta apenas uma carcaça vazia que acabará numa bola de pó com garras. É difícil imaginar que esta criatura tão escanzelada que nem ao ombro me chega tenha sido dotada outrora de formas femininas. Reconheço a saia dos domingos, que se tornou demasiado larga na cintura, demasiado grande para ela; as suas roupas pertencem a uma vida anterior, a um outro fuso horário.
Não tenciono acabar como ela.
O cheiro paira estagnado no ar. Impossível escapar à nuvem de vapor que emana das couves e das almôndegas. O carrinho das refeições, no corredor, está cheio de saladeiras com couve-roxa e doce de ruibarbo meio vazias. Ouvem-se ruídos de louça e as vozes dos empregados, que ora sobem ora descem de tom, para se fazerem ouvir pelos velhos de quem cuidam.
Não há no quarto grande espaço para móveis, bem pelo contrário, mas o harmónio está lá, encostado à parede. Chegou-se a um acordo para que a antiga professora de matemática e organista pudesse ter consigo o instrumento — desde que não voltasse a tocar.
Ao lado da cama, as estantes testemunham o principal foco de interesse da minha mãe: as guerras mundiais e, em particular, a Segunda. Nas prateleiras, lado a lado, encontramos Napoleão Bonaparte e Átila, o Huno, um livro sobre a guerra da Coreia e um outro sobre o Vietname, ensanduichados entre dois grandes volumes em dinamarquês, encadernados a couro: nas lombadas pode-se ler Primeira Guerra Mundial e Segunda Guerra Mundial.
A minha visita não escapa a um ritual imutável, gravado na pedra, cujo primeiro ponto consiste em saber se eu lavei as mãos.
— Lavaste as mãos?
— Sim, lavei.
— Não basta esfregá-las, é preciso mantê-las trinta segundos sob a torneira da água quente.
Ocorre-me de súbito que em tempos estive dentro dela.
Tenho um metro e oitenta e cinco e, da última vez que me pesei — no vestiário de uma piscina —, a balança marcava oitenta e quatro quilos. Será que alguma vez lhe ocorre pensar que este matulão esteve realmente dentro dela? E onde é que eu fui concebido? Sem dúvida na velha cama dupla, de um conjunto de quarto de mogno com as mesas de cabeceira, mas a cama era o móvel mais imponente, um verdadeiro galeão.
A empregada está prestes a sair com a bandeja da comida; a minha mãe não quis sobremesa — bolo de ameixas com chantili.
— Este é o meu filho, Jónas Ebeneser — diz ela.
— Mãe, acho que já nos apresentaste ontem…
A jovem não se lembra. Não estava de serviço na véspera.
— Jónas significa pomba e Ebeneser quer dizer prestimoso. Fui eu que escolhi estes nomes — prossegue a minha mãe.
Ocorre-me que talvez devesse ter pedido ao rapaz do salão de tatuagens que acrescentasse uma pomba ao lado do nenúfar, o que daria duas pombas, o pássaro e eu… ambos com alguns grisalhos de lado.
Espero que a rapariga se eclipse antes que a minha mãe desate a contar como é que eu nasci. Mas ela não parece ter nenhuma pressa; depois de ter arrumado a bandeja, pôs-se agora a tratar das toalhas de banho.
— O teu nascimento foi mais difícil que o do teu irmão — começa a minha mãe. — Por causa do tamanho da cabeça. Era como se tu tivesses dois cornos, duas saliências na testa, como um vitelo.
A rapariga olha para mim. Concluo que está a comparar mãe e filho. Sorrio-lhe. Ela retribui o sorriso.
— Vocês também não tinham o mesmo cheiro, tu e o teu irmão — prossegue a minha mãe. — Tu cheiravas a terra, era um cheiro a frio e a molhado, tinhas as faces frias, e todo o contorno da boca era castanho; e voltavas para casa com arranhões de gato nas mãos, que demoravam algum tempo a curar.
Hesita como quando um ator não está muito certo quanto à próxima deixa.
— Aos onze anos, o meu docinho de mel escreveu uma redação sobre as batatas. Intitulou-a Terra-Mãe. A redação era sobre mim…
— Mãe, não tenho a certeza que isso interesse a… desculpe, como é que se chama?
— Diljá.
— Mãe, duvido que Diljá se interesse por tudo isso que estás para aí a contar…
A rapariga, pelo contrário, parece nutrir um interesse sincero pela história da minha mãe. Abana a cabeça com um ar compreensivo e encosta-se ao caixilho da porta.
— É incrível ver este matulão hoje e pensar até que ponto ele era sensível.
— Mãe…
— Se encontrávamos um pássaro com uma asa partida no jardim, desfazia-se em lágrimas… Era como uma ferida aberta… Sempre triste por ver os homens tão pouco generosos uns com os outros. Ele dizia: «Quando for grande, consolarei o mundo…» Porque o mundo estava a sofrer, porque o mundo precisava que tomassem conta dele… O meu docinho de mel que adorava o crepúsculo… quando as sombras se espalham pelo mundo… ele deitava-se no chão junto à janela e fitava as nuvens e o céu… tão poético… um dia, fechou-se no quarto para fazer um teatro de marionetas… fez as marionetas com jornais húmidos, pintou-as e coseu nelas as roupas, fechava a porta e tapava o buraco da fechadura com papel higiénico… já adolescente, continuava a preocupar-se terrivelmente com o mundo… «Só me caso se me apaixonar», dizia ele… E um dia apaixonou-se por Guðrún, enfermeira-chefe da ala de um hospital, que depois se tornou também parteira e tirou um curso de gestão…
— Mãe…
A falta de ar oprime-me no quarto sobreaquecido. Abeiro-me da janela que dá para o pátio. Uma grinalda luminosa vermelha, que data do Natal passado, pisca sem cessar no peitoril. Na janela, que é proibido abrir por causa das correntes de ar, pendem os cortinados da sala de estar que a minha mãe trouxe da nossa velha casa de Silfurtún — tiveram de cortá-los um pouco porque descaíam no chão. Reconheço o padrão. Daqui, pode-se ver a carrinha mortuária sair em marcha-atrás com a sua carga diária.
— A minha pequena Guðrún Nenúfar foi concebida em plena natureza, em fins de maio. Tem tantas sardas como um ovo de borrelho, é uma grande especialista em oceanografia e tem um namorado que é rapper e masca tabaco e usa um brinco, não um brinco vulgar, um piercing enorme… enorme… com um carrinho de linha, no lóbulo da orelha, um rapaz que é a bondade em pessoa, da aldeia piscatória de Eskifjörður, foi ele que tratou da avó no seu leito de morte…
— Mãe, nós já percebemos…
— Há homens que nunca se recompõem por terem sido rejeitados…
— Não podemos acreditar em tudo o que ela diz — digo eu e abro a janela.
Depois, parece que ela está prestes a contar de novo outra coisa qualquer, mas já não consegue lembrar-se do que queria dizer, e cala-se como um emissor que perdeu o sinal. Desaparece por um momento num outro mundo, num outro tempo, onde tenta reencontrar o caminho em veredas brumosas, encontrar uma estrela que possa guiá-la. É uma pastora que perdeu o rebanho e percorre o quarto com o seu olhar enevoado, os rostos do passado deslizando lentamente na paisagem árida.
A rapariga retira-se silenciosamente e a minha mãe tenta ajustar a prótese auditiva, ligar-se ao meu comprimento de onda, ao campo magnético da terra, à frequência temporal correta. De pé, junto às estantes, relanceio os títulos: Guerra e Paz, de Tolstói, O Adeus às Armas, de Hemingway, A Oeste Nada de Novo, de Erich Maria Remarque, A Noite, de Elie Wiesel, Ao Gás, Senhoras e Senhores!, de Tadeusz Borowski3, A Escolha de Sofia, de William Styron, Sem Destino, de Imre Kertész, O Homem em Busca de Um Sentido, de Viktor Frankl, Se Isto É Um Homem, de Primo Levi. Tiro de uma prateleira uma coleção de poemas de Paul Celan e abro-a em «Fuga da morte» e leio: «… nós bebemos-te de noite, bebemos-te de manhã e depois ao meio-dia, bebemos-te ao entardecer, bebemos, bebemos, bebemos.» Enfio o livro no bolso e pego em A Primeira Guerra Mundial.
— Desde que saíste do ventre da tua mãe, foram travadas neste mundo quinhentas e sessenta e oito guerras — diz a voz que vem da cadeira.
Difícil saber quando é que a minha mãe está realmente presente porque ela é como uma corrente elétrica que vem e vai. Ou talvez devesse dizer, ela é como a chama vacilante de uma vela. Quando penso que vai extinguir-se, reaviva-se inesperadamente.
Depois da saída da empregada, ajudo-a a deitar-se na cama. Seguro-a sob um braço enquanto ela arrasta as pantufas no linóleo verde-claro. Quanto é que ela pesa? Quarenta quilos? Nem seria preciso uma rajada de vento para a deitar por terra, nem uma corrente de ar, bastaria uma leve brisa, um sopro. Afasto duas almofadas bordadas para me sentar na beira da cama. Ela deita-se e o seu corpo afunda-se no colchão. O frasco de perfume que lhe ofereci pelo Natal está na mesa de cabeceira, Eternity Now. A minha mãe adora pôr um pouco de Eternidade atrás da orelha. Segura na minha mão, veias azuis, as costas de uma mão acostumada às penas do mundo, uma vez por semana enverniza as unhas.
Era a minha mãe que me ajudava com a matemática na escola secundária e que não compreendia porque é que aquilo não era canja para toda a gente.
— Nada mais simples do que uma equação — dizia ela.
E explicava-me como calcular uma raiz quadrada sem recorrer a uma calculadora. Dizia: a raiz quadrada de 2 é o número que, multiplicado por si próprio, dá 2. Procuramos portanto uma incógnita x que confirme a equação x ao quadrado igual a 2. Vemos que x se situa entre 1,4 e 1,5 porque 1,4 ao quadrado dá 1,96 e é inferior a 2, mas 1,5 ao quadrado é igual a 2,25, portanto superior a 2. Considerando os números entre 1,40 e 1,49, verificamos que 1,41 ao quadrado dá 1,9881 e é inferior a 2, e que 1,42 ao quadrado é igual a 2,0164, portanto superior a 2. O que prova que a raiz quadrada de 2 se situa entre 1,41 e 1,42.
— Chegaram a um cessar-fogo? — pergunta-me ela da cama.
A minha mãe faz uma mise todas as semanas. O sol primaveril que entra pela janela ilumina os seus cabelos de um tom malva, e o penteado é lindo. Dir-se-ia uma pequena nuvem de plumas à luz do entardecer.
— A Segunda Guerra Mundial fez sessenta milhões de mortos — continua ela.
Falar com a minha mãe equivale a não falar com ninguém. Por mim, tudo bem, basta-me sentir o calor de um outro corpo vivo. Decido que ela me compreenderá e vou direito ao assunto.
— Sou infeliz — digo eu. Ela afaga as costas da minha mão.
— Todos nós temos as nossas batalhas a travar — diz ela, antes de acrescentar: — Napoleão exilou-se de si mesmo. Josefina sentia-se solitária com o casamento, como sucedeu comigo.
No topo das estantes, alinham-se fotografias emolduradas, na maior parte da minha filha, Nenúfar, com diferentes idades. Duas são minhas e duas são de Logi, o meu irmão — o que não poderia ser mais justo. Numa das fotos, tenho quatro anos, estou de pé numa cadeira, um braço em torno do pescoço da minha mãe. Ela veste um pullover azul-claro, e usa um batom vermelho-escuro, um colar de pérolas brancas ao pescoço. Eu tenho o cabelo cortado à escovinha, pareço um ouriço, e o outro braço está engessado, segura-o um lenço. É a minha mais antiga recordação: foi preciso meterem um prego para o braço ficar bom. A minha mãe está de pé junto ao órgão. O que é que estávamos a celebrar? O aniversário dela? Perscruto a imagem e enxergo agora uma árvore de Natal ao fundo. Há quarenta e cinco anos que esta foto foi tirada. O miúdo tem uma expressão genuína e sincera. A outra foto data da minha comunhão. Com os lábios ligeiramente entreabertos, olho com espanto para o fotógrafo, como se um desconhecido me tivesse acordado, como se eu ainda não tivesse compreendido em que mundo tinha nascido. Um mundo feito de teca, com papel pintado com motivos de flores em todas as paredes, só que era um mundo a preto-e-branco, como a televisão.
Faço uma última tentativa:
— Eu não sei quem sou. Não sou nada e não tenho nada.
— O teu pai não viveu a guerra do Irão, nem a guerra do Iraque, nem a do Afeganistão, nem a da Ucrânia, nem a da Síria… nem os protestos contra a central hidroelétrica de Kárahnjúkar, nem contra as obras que duplicaram a largura da autoestrada de Miklubraut…
Estende o braço na direção da mesa de cabeceira e tira um batom vermelho. Pouco depois, ouço-a a lançar-se nas sagas dos reis nórdicos:
— … Hákon, o filho adotivo de Adalsteinn, Haroldo Dente-Azul, Sueno, o da Barba Bifurcada, Canuto, o Grande, Haroldo, o do Belo Cabelo, Érico Machado Sangrento, Olavo Tryggvason… — vai enumerando. Começa a ficar agitada e, não tarda, vai dizer-me que está muito ocupada.
— Estou um bocadinho ocupada, meu docinho de mel.
A hora dos noticiários vem aí e ela apoia-se num cotovelo para ligar o rádio e confrontar-se com a guerra do dia anunciada nas principais notícias, antes de se deitar com as informações de mortes e anúncios de funerais nos ouvidos.
Logo que saio do quarto, ligo para a linha de apoio a animais a fim de os informar de que há um ganso com uma asa partida perto do lar.
— Um macho — digo eu. — Sozinho. Sem companheira.
Depois, tento refrescar a memória: Hemingway não se matou com a sua espingarda de caça preferida?
UM CETICISMO VIRIL E INTRÉPIDO, INTIMAMENTE
LIGADO AO GÉNIO DA GUERRA E DA CONQUISTA4
O rapaz do salão de tatuagens tinha-me prevenido de que a pele iria doer-me durante alguns dias e que era de esperar um tom vermelho, eventualmente acompanhado de comichão e erupções. Se a pele começasse a inchar e eu tivesse febre, precisaria talvez de tomar antibióticos ou, no pior dos casos, de ir às urgências hospitalares. Ou muito me engano ou já comecei a sentir os primeiros sintomas.
Svanur está ocupado a dar lustro ao seu Opel quando volto da visita à minha mãe, a caravana já está pronta no caminho da casa. Calça umas sandálias e veste um blusão polar com o logótipo da empresa de pneus onde trabalhou por um breve período há uns anos. Conhecemo-nos quando ele trabalhava na Steel Legs Ltd. Foi Svanur quem me falou das águas-furtadas que estavam para alugar nesta rua, em frente da casa dele e de Aurora. Apesar disso, não somos íntimos. Neste momento, ele está em convalescença, depois da operação à hérnia discal. Os dois «trabalhadores domésticos», é assim que ele nos chama.
Instalou duas cadeiras dobráveis no passeio como se estivesse à espera de uma visita e faz-me sinal para eu me sentar.
Tenho a sensação de que o meu vizinho me anda a vigiar; quando saí esta manhã, andava a passear a cadela junto aos caixotes de lixo e não tirava os olhos da porta do meu prédio.
As suas visitas multiplicaram-se nos últimos dias; veio pedir-me emprestada uma chave de fendas de um tamanho específico e depois veio devolver-ma e pediu-me que o ajudasse a carregar com o frigorífico que acaba de comprar para a caravana. Antes do mais, porém, farta-se de me falar daquilo que ocupa o seu cérebro inteiro: veículos motorizados e a condição das mulheres no mundo, dois assuntos que ele tenta à viva força combinar. Arrasta uma das cadeiras e convida-me de novo a sentar-me nela; não tenho outra hipótese senão conversar com ele.
— As pessoas não têm cuidado bastante com os seus veículos. — Eis como ele começa. — Nós vivemos numa ilha batida pelo mar e a carroçaria enferruja-se. Não basta substituir o óleo lubrificante do motor e dar lustro ao carro uma vez por ano, é preciso dar-lhe lustro regularmente. Três camadas e, de cada vez, passar com pele de camelo. O que eles usavam nas estações de lavagem é uma porcaria que não presta para nada.
Instala-se na cadeira livre.
— Até há pessoas que conduzem com pneus furados durante anos e que acabam por ter de mudar a roda inteira.
Svanur não conversa, monologa: sem olhar para mim, os olhos de algum modo fixos em qualquer coisa para lá de mim, como se o seu interlocutor estivesse ao lado ou por cima de mim.
— E quando pensamos no modo como as mulheres são tratadas no mundo, temos vergonha de ser homens — prossegue ele.
Está sentado com as pernas bem afastadas e os cotovelos sobre os joelhos.
Pelos vistos, Svanur subscreveu alguns canais estrangeiros de televisão e, antes de ontem, viu um documentário sobre a excisão e, ontem à noite, uma reportagem sobre as mulheres e a guerra.
— Tu tens uma filha…
— Sim?
— Sabias que as mulheres fazem noventa por cento das tarefas e possuem apenas um por cento dos bens? E, durante esse tempo todo, o que é que fazem os homens?
Uma vez mais, não espera pela resposta:
— Dedicam-se à preguiça, embebedam-se e fazem a guerra.
As mãos grandes de mecânico ocultam-lhe o rosto e os dedos estão manchados de óleo.
— Sabes quantas mulheres são violadas a cada hora que passa?
— No mundo, queres tu dizer?
— Sim, no mundo.
— Não.
— Dezassete mil e quinhentas.
Calamo-nos os dois.
E ele prossegue:
— E sabes quantas mulheres vão morrer de parto amanhã, terça-feira, 6 de maio?
— Não.
— Cerca de duas mil.
Inspira profundamente.
— E, como se não bastasse morrerem de parto, também as casam à força.
Tira os óculos, cujas lentes, espessas como fundos de garrafas, não são limpas há séculos. Ele diz que tem miopia e estigmatismo. Sem os óculos, os contornos do vulcão do outro lado da baía ficam enevoados. Olha para mim pela primeira vez.
— Nós, que sabemos o que se passa e não fazemos nada, somos os culpados.
Há uma nuvem de pequenos pássaros no jardim, voam do telhado, sob o algeroz, e desaparecem num instante. Levanto-me e ele diz-me que deixou um bolo de chocolate no forno e se eu quero dar um salto até à casa dele.
— Receita de Betty Crocker5 — precisa ele.
E, após um segundo de hesitação:
— Aurora está a fazer dieta sem glúten.
De modo que é Svanur quem cozinha.
Diz que acabou de meter o bolo no forno e que estará pronto daí a um instante. Reflito. Ainda tenho de lhe pedir emprestada a espingarda.
— É bom para um homem ter alguém a quem possa confiar as suas coisas — ouço-o dizer.
Digo-lhe que não demoro.
Ainda tenho de dar um salto até às águas-furtadas para verificar uma coisa.
EU SOU COMO A AGUARELA, DILUO-ME NA ÁGUA6
Pela janela da cozinha, vê-se metade de uma montanha e uma faixa estreita de mar frio e verde esta manhã, a montanha desaparecerá quando o prédio em construção, já de si alto, levar mais um andar.
Ligo o computador e teclo no motor de pesquisa «escritores célebres que se suicidaram». O número de páginas sobre o assunto é impressionante; nunca me teria passado pela cabeça que um grupo tão grande de homens e mulheres famosos tivessem decidido pôr termo à vida. A minha memória não me traiu a propósito do autor de Fiesta e Ter e Não Ter: usou a sua espingarda de caça favorita. Também não preciso de muito tempo para confirmar aquilo de que já suspeitava, a saber, a maior parte dos homens mata-se com uma arma de fogo — obviamente, a percentagem é mais alta nos países em que há mais posse de armas. Faço deslizar a página: um contista matou-se com uma bala de revólver no meio de uma pista de esqui, pintando-a de vermelho, um poeta de trinta anos matou primeiro a jovem amante antes de dar um tiro na cabeça; quando o descobriram, no seu quarto de hotel em Paris, tinha as unhas dos pés pintadas de vermelho e uma cruz tatuada na planta de um pé. São poucos os que se atiraram de uma janela, mas vários fizeram-no de uma ponte, e alguns rios, como o Sena, são mais populares do que outros. Um dos escritores que se afogou no Sena foi Paul Celan, o autor da recolha de poemas que trouxe da biblioteca da minha mãe e que continua no bolso do casaco. O poeta romano Petrónio cortou as veias e, depois, estancou o sangue tanto quanto pôde para adiar a hora da sua morte, enquanto escutava os amigos a lerem poemas sobre a vida. Os soníferos também são um meio usado para se dormir mais tempo que o normal, para a eternidade, poderíamos dizer, como escreveu Pavese num quarto de hotel em Turim.
Reparo com interesse que as mulheres usam outras táticas, recorrem mais ao forno do fogão a gás, ou aos gases dos tubos de escape numa garagem fechada, depois de terem emborcado vários copos de vodka.
Constato também que são sobretudo as mulheres que deixam uma palavra de adeus: «Para o meu amante, que voltou para os braços da mulher»; e, a propósito delas mesmas: «Eu sou como uma aguarela, diluo-me na água.»7 Virginia Woolf escreveu uma carta de amor para o marido, antes de encher os bolsos com pedras e de se afogar no rio Ouse. «Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes», escreveu ela. Outros preferiram encurtar as despedidas, como foi o caso daquele poeta que se atirou de um barco no golfo do México, exclamando: «Adeus a todos!»8
O que me surpreende é que os homens e as mulheres sejam, de um modo geral, bastante mais novos do que eu — a diferença é de uma boa vintena de anos, em média. As idades imediatamente anteriores e posteriores aos trinta são as mais difíceis, um decide pôr termo à vida aos trinta e dois anos, outro, aos trinta e três, ambos romancistas; há também um poeta com trinta e quatro anos; quanto a Maiakovski, atingiu os trinta e seis anos; Pavese, os quarenta e um. E os pintores têm dificuldade em passar dos trinta e sete, não são muitos os que vencem esse obstáculo. Os músicos são ainda mais jovens: Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Kurt Cobain, Amy Winehouse e Jim Morrison tinham todos vinte e sete anos. Eu já passei a idade com que morrem os artistas.
Outras leis se aplicam quando somos pessoas vulgares.
Em breve quarenta e nove anos
Sexo masculino
Divorciado
Heterossexual
Desamparado
Sem vida sexual
Sem qualificações profissionais.
UMA CICATRIZ É UMA FORMAÇÃO DÉRMICA
ANORMAL NO LOCAL EM QUE UMA FERIDA
OU UMA LESÃO SE FECHARAM
De meias no chão de xadrez da cozinha, Svanur põe o avental sobre uma T-shirt onde se pode ler «Shit happens».
Enfia umas luvas de cozinha vermelhas, abre o forno, puxa cautelosamente a grelha e mergulha um termómetro de espeto no bolo.
— Ainda faltam sete minutos — diz ele, antes de deitar as natas numa taça e de ligar a batedeira. Vira-me as costas, concentrado na sua tarefa. Uma vez batidas as natas, passa as varetas por água e mete-as na máquina de lavar louça.
Pergunto-me quando surgirá o bom momento para falar da espingarda.
Enquanto, com uma espátula, retira o creme da taça, Svanur diz-me que detetou em Aurora aquilo a que chama uma certa inquietação de alma.
Continua de costas para mim.
— Nunca se sabe o que pensa uma mulher. Não deixam transparecer nada à superfície e, depois, de repente, tomam uma decisão e anunciam-nos que já não nos amam. Como se, secretamente, tivessem mudado.
Tira o bolo do forno, retira-o da forma, corta uma fatia e examina atentamente a incisão para ficar com a certeza de que está bem cozido. Depois, delicadamente, os dedos grossos segurando a espátula, faz deslizar a fatia para o meu prato.
Está com um ar inquieto e pergunta-me se eu tinha reparado nalguns sinais que apontassem para a decisão de Guðrún me deixar.
Reflito.
— Disse-me que eu repetia tudo o que ela dizia.
Fica estupefacto.
— Repetias como?
— Segundo ela, quando me dizia alguma coisa, eu respondia com as palavras que tinha acabado de usar, por exemplo, transformando uma afirmação numa interrogação.
O rosto de Svanur responde-me com um grande ponto de interrogação.
Explico-me:
— Quando ela me dizia: «Nenúfar telefonou», eu respondia: «Ah sim, Nenúfar telefonou?» A isso chama-se «repetir», dizia ela.
Svanur fita-me como se eu tivesse proposto uma nova hipótese a propósito da distorção do espaço-tempo em torno dos buracos negros. Hesita antes de perguntar:
— Mas há algum problema em repetir?
— Guðrún não achava isso bem.
— Então o que é que tu devias dizer em vez de repetires?
— Não faço ideia.
— Pediste-lhe que não te deixasse?
— Não, não pedi.
Vai buscar um pacote de leite ao frigorífico, enche dois copos e empurra um na minha direção. Por vezes, a minha mãe deixa para mim na mesa de cabeceira um copo de leite e uma fatia do bolo às camadas tipicamente islandês, neste caso castanho, revestido de creme de manteiga, o leite está morno porque ela o manteve no termos destinado ao café — é fácil reconhecer o gosto.
Calamo-nos os dois.
Depois, o meu vizinho retoma o fio à meada.
— Bom, mas tu és um conquistador.
Pergunto-me se terei ouvido mal ou se a palavra terá um significado diferente do que lhe estou a dar. No entanto, Svanur não é do tipo de falar por metáforas. Deverei confessar-lhe que não toco na carne nua de uma mulher — pelo menos de livre e espontânea vontade —, que não tenho nenhuma mulher nos meus braços há oito anos e cinco meses, ou seja, desde que Guðrún e eu deixámos de dormir juntos e que, tirando a minha mãe, a minha ex-mulher e a minha filha — as três Guðrúns ‒, não houve nenhuma mulher na minha vida? No entanto, não há falta de corpos neste mundo e é claro que, uma vez por outra, há corpos que têm o poder de me acicatar e de me lembrar que sou um homem; uma mulher que sai de uma piscina natural de água quente, reluzente do calor, envolta no vapor que sobe no ar, estão quase zero graus no exterior e a lua, em quarto crescente, deslizando por entre as nuvens, entra em cena imediatamente antes da hora de encerramento da piscina. Também é possível que eu tenha — sem querer — roçado um braço nu de uma camisa de mangas curtas, numa fila para pagar em qualquer loja, ou que os cabelos de uma mulher me tenham tocado ao curvar-se para mim; ocorre-me a rapariga que me corta o cabelo, por exemplo. Quando ela me lava a cabeça com champô, de pé atrás de mim, massaja-me as têmporas e diz-me que eu tenho um bom cabelo. Uma vez perguntei-lhe em que é que estava a pensar e ela riu-se, olhando para mim no espelho, e respondeu que estava a pensar num certo homem e numa certa receita. Não, para que eu sinta o meu corpo, terei de dar um tiro nele, de retalhar a minha carne com uma bala de aço. É assim que fazem os homens.
— Não, é que algumas das amigas de Aurora perguntaram se tu andavas numa de engate. Aurora perguntou-me e eu disse-lhe que, para já, não andavas. Também lhe perguntaram se tu já tinhas recuperado do divórcio e ela perguntou-me e eu disse-lhe que não tinhas. Queriam saber se frequentavas cafés ou o teatro e eu respondi que não me parecia. E perguntaram se lias regularmente e eu disse a Aurora que sim, de modo que ela contou-lhes e parece que ficaram todas entusiasmadas com isso e queriam saber que tipo de livros é que lês e eu disse que eram romances e poesia; e também queriam saber se eras de origem islandesa ou estrangeira e eu respondi que de ambas…
Antes de dar por isso, já disparei a pergunta:
— Estava a pensar se poderias emprestar-me uma espingarda. Para o fim de semana. — Se o meu pedido o apanhou desprevenido, Svanur não o revela. Em vez disso, aquiesce, despe o avental e põe-no nas costas da cadeira, como se estivesse à espera de que eu falasse da espingarda. Desaparece na sala de estar e eu oiço-o a vasculhar num armário que estava fechado à chave. Entretanto, examino duas fotos fixadas com ímanes ao frigorífico, uma de Svanur com um blusão polar, o cão ao lado dele, e a outra de Aurora num grupo de mulheres sorridentes. Estão todas vestidas para um passeio no frio e com botas de marcha e metade do grupo está ajoelhado, como se fosse uma foto de uma equipa de futebol. Passado um momento, ele volta com a espingarda, que coloca contra a parede ao lado da esfregona. Acena para as fotos.
— Logo que a caravana esteja em condições, Aurora e eu poderemos encontrar uma faixa de musgo só para nós e escutar o murmúrio do riacho de que mais gostarmos. — Depois, senta-se à minha frente e volta a servir-se do pacote de leite. Oiço-o dizer que suspeita que Aurora começou a ler poesia.
— A noite passada, quando passei por ela ao entrar na casa de banho, disse-me que eu estava a eclipsar o horizonte9 dela.
Abana a cabeça.
— Às vezes, sinto que é melhor pensar em Aurora do que tê-la comigo. Mas isso, ela nunca compreenderia.
Tem os cotovelos sobre a mesa, o rosto nas mãos, e fala comigo por entre os dedos.
— Aurora não se apercebe de que os homens têm uma vida interior. Que têm o sentido do belo. Basta uma fuga de óleo do motor no asfalto molhado para que as cores do arco-íris me façam sonhar com outra realidade.
Levanto-me e pego na espingarda. Svanur acompanha-me até aos degraus. Seguro na espingarda sob a axila, o cano para baixo.
Deveria dizer-lhe como é que estão as coisas comigo, que eu não vou envelhecer?
Ele suspeitará disso?
E se eu lhe pedisse que me desse uma única razão para continuar a viver? Pediria só uma, mas poderiam ser duas.
Em jeito de explicação, dir-lhe-ia que me sinto perdido.
E ele responderia: «Percebo o que queres dizer; eu também não sei quem sou.» E depois abraçava-me nos degraus, metade fora da porta, a outra dentro, o corpo enquadrado num halo retangular, mais de cem quilos, a T-shirt de mangas curtas enfiada nas calças à frente, e desenfiada atrás. Dois homens de meia-idade abraçados nos degraus da porta da frente, no dia cinco do quinto mês do ano…
Aurora gritaria: «Quem é? Se é o vendedor de peixe, compra gambas e não peixe seco. Não compres cerveja de alcaçuz. Não te faz bem nenhum.»
Que poderia Svanur dizer que fosse para mim uma revelação?
Procuraria uma citação adequada, de um poeta ou de um filósofo, sobre a morte? Encontraria as palavras necessárias para mudar a situação? Ou diria apenas: «De qualquer modo, morrerás em breve. Disso podes ter a certeza. Se não, volta a falar comigo daqui a trinta anos, quando te agarrarás a cada minuto que passa como um cão a um osso. Como a tua mãe.»
Em vez disso, Svanur diz:
— Já te mostrei a cicatriz?
— A cicatriz? Não, que cicatriz?
— A da hérnia discal.
Num ápice, tira a T-shirt do aperto do cinto à frente e puxa-a nas costas. Há poucas pessoas na rua a meio de um dia de trabalho. Uma grande cicatriz estende-se ao longo da coluna vertebral. Imagino o partido que tiraria dela o rapaz do salão de tatuagens de Tryggvi, com uma moto-quatro ou uma scooter para a neve, mas resisto à tentação de lhe mostrar o meu nenúfar.
— Sabias que — diz ele —, em certos sítios do mundo, as cicatrizes são símbolos que suscitam o respeito dos outros e que uma pessoa que tem uma cicatriz grande, impressionante como esta, é uma pessoa que enfrentou um animal selvagem, venceu os seus medos e sobreviveu?
Atravesso a rua com a espingarda debaixo do braço, subo até ao quarto andar e pouso-a na cama dupla.
A MAIOR PARTE DAS CICATRIZES NA PELE SÃO PLANAS
E DE COR PÁLIDA E RETÊM APENAS UMA PEQUENA PORÇÃO
DA FERIDA QUE CAUSOU A SUA FORMAÇÃO
Acabo de entrar em casa quando o telemóvel toca no meu bolso.
É do lar. Uma mensageira. Pede desculpa e apresenta-se: pertence ao pessoal do lar e está a ajudar a minha mãe a fazer um telefonema. A minha mãe contava com a minha visita hoje, mas eu não apareci. Diz isto num jeito hesitante e cauteloso, como se soubesse que eu estive lá no lar há duas horas, nem tanto, e que raramente a visito menos de três vezes por semana. Passa-lhe o telefone. A minha visita à hora de almoço apagou-se da sua mente. A voz treme-lhe do outro lado da linha.
— Daqui fala Guðrún Stella Jónasdóttir Snæland, posso falar com Jónas?
— Sou eu, mãe.
— És tu, Jónas?
— Sim, foi para o meu número que ligaste, minha querida.
Quer saber porque é que eu nunca a vou ver.
Digo-lhe que a visitei hoje mesmo.
Ela pondera o que acaba de ouvir e eu aguardo pacientemente que a sua memória a conduza pelo caminho certo.
Quando encontra esse caminho, diz que se lembra perfeitamente da minha visita, mas que se esqueceu de perguntar uma coisa. Quer saber se eu tenho uma serra para cortar um ramo que está sempre a bater na janela junto à sua cama e a impede de dormir.
— O teu pai guardava a caixa de ferramentas no nosso quarto. Era um homem em quem se podia confiar, o teu pai, apesar de não ser lá muito divertido.
Ela hesita um instante.
— Não me disseste que ias fazer uma viagem?
— Não.
— Não disseste que ias partir para a guerra?
— Também não.
Hesita de novo.
— Vais cumprir alguma missão especial, meu docinho de mel?
Missão especial. Reflito acerca da expressão. O que poderá ser na mente dela? Salvar o planeta? Descobrir uma nova vacina?
— Não.
Mais um longo silêncio do outro lado da linha. Talvez esteja a perguntar-se porque é que me telefonou.
— Tu não queres viver, meu docinho de mel?
— Não tenho a certeza.
— Pelo menos ainda tens o cabelo todo. Os homens do meu lado não perdem o cabelo.
E, sem mais nem menos, ouço-me dizer:
— Guðrún Nenúfar não é minha filha.
Poderia ter acrescentado que ela não é sangue do meu sangue. Não tenho nenhuma descendência, a nossa linhagem acabará comigo.
Ouço um ruge-ruge do outro lado da linha e vozes longínquas que parecem aproximar-se. O silêncio reina por um largo momento até que ela resolve quebrá-lo.
— O teu pai e eu visitámos um museu de História durante a nossa lua de mel. Na cabeça dele, o romantismo não ia mais longe do que isso. Mas a minha maior surpresa foi ver até que ponto o tecido dos uniformes dos soldados era frágil. Material de muito má qualidade, aquilo não servia para a guerra, só servia para eles se exibirem.
— Eu sei, mãe.
Parece-me que há ainda qualquer coisa que a atormenta.
— Quem é Heidegger? — pergunta ela finalmente.
Eu não fiz um trabalho sobre Heidegger no meu único ano de faculdade? Não era ele que defendia que toda a relação da humanidade com o mundo deveria advir de um sentimento de maravilhamento? Como acontece como uma criança ou um pequeno animal.
— É um filósofo alemão. Porque é que perguntas?
— Porque ele telefonou-me esta manhã e queria falar contigo. Respondi-lhe que tinha ligado para o número errado.
APOLOGIA PRO VITA SUA
(DEFESA DA SUA PRÓPRIA VIDA)
É claro que foi considerada uma série de outras opções. Ocorreu-me, por exemplo, que podia tirar o candeeiro do teto e usar o gancho em que ele está pendurado. Tenho de escolher o local. Elaboro em torno de diversas hipóteses. Espeto um tiro na cabeça na sala de estar ou enforco-me no quarto, na kitchenette ou na casa de banho? Também tenho de escolher a roupa. O que será mais apropriado? Pijama, fato de domingo, meias ou sapatos?
De súbito, lembro-me de que Nenúfar tem uma chave e poderia interromper-me em plena ação. É mesmo típico dela, entrar sem mais nem menos e plantar-se no meio da sala de estar para partilhar as suas últimas descobertas.
— Pai, sabias que os casais de pássaros migradores só aparecem na nossa ilha uma única vez em toda a sua vida e que, portanto, não vão aprender nada com essa experiência?
Ao fim de quanto tempo é que ela começaria a inquietar-se a meu respeito? Ainda por cima, a tarefa de liquidar os meus bens cabe-lhe a ela, só a ela. Penso na cave, cheia de lixo e bricabraque, há muito que devia ter feito uma triagem daquilo e deitado fora o que não prestava. Não deveria poupá-la a esse fardo?
Mal abro a porta da cave, a primeira coisa que me salta aos olhos é o tamborete que concebi e fiz quando Guðrún e eu começámos a viver juntos. Tem um assento ajustável, podemos baixá-lo ou subi-lo. Há também o tobogã e uma tenda cor de laranja que demora metade de um dia a montar, sacos-camas e ténis de marcha. Não vinha aqui desde que me mudei e tenho de contornar as caixas para avançar. Uma delas está marcada com a caligrafia tremida da minha mãe: «Serviço de chá para Jónas.» Numa prateleira há uma casa de bonecas que eu fiz para Nenúfar e, mesmo ao lado, o velho gira-discos. Tinha-me esquecido disto tudo.
Uma caixa de ferramentas bem grande ergue-se mesmo no centro da cave, contendo diversas ferramentas que eu raramente uso: uma seleção de cinzéis de madeira, um martelo de bola, uma série de chaves de fendas Phillips, serras manuais, espátulas de vidraceiro, uma serra de arco, ferramentas de carpinteiro — plaina, esquadro, um compasso, grosas, limas, três réguas. Tenho um martelo de orelhas e chaves de fendas de diversos tipos e tamanhos na caixa de ferramentas mais pequena que guardo debaixo do lava-louça ou no porta-bagagens do carro. Também tem um berbequim, a primeira ferramenta que comprei desde que conheci Guðrún. O apartamento que tínhamos alugado era uma cave, na rua Furumelur, com um chão de linóleo podre, de modo que eu li coisas sobre o assunto e consegui, sozinho, montar um chão de parquete. Depois disso, aprendi a aplicar ladrilhos e papel de parede e a mudar a canalização. Eu pensava em termos de metros, comprimento e largura, 170 por 80 ou 92 por 62. Concordo com a minha mãe quando ela diz que a dor é mais fácil de exprimir em números do que o desejo, mas, seja como for, quando eu penso em beleza, a minha referência é 4 quilos e 252 gramas e 52 centímetros.
Ao fundo, num canto, há uma caixa velha e gasta, cuidadosamente fechada com fita adesiva e com a inscrição DEITAR FORA escrita com um marcador preto. Se bem me lembro, esta é a caixa que já devia ter ido para o lixo na última e penúltima mudança e que, portanto, permaneceu fechada em várias caves. Porque é que ela ainda está aqui? Com um X-ato da minha caixa de ferramentas, rebento com a fita adesiva e levanto as abas da tampa e dou com velhos manuais escolares datando, na sua maior parte, do meu único ano na universidade. Tiro o Para Além do Bem e do Mal, de Nietzsche, e vasculho numa pilha de trabalhos datilografados e glossários escritos à mão. No meio da caixa, está um sobrescrito castanho. Abro-o e tiro um recorte de jornal amarelecido, já com vinte e sete anos: o elogio fúnebre do meu pai. Foi escrito por um amigo dele, que apresenta os sentidos pêsames à viúva. Menciona também os seus dois filhos: Logi, o retrato vivo do pai, que está no último ano do curso de gestão, e Jónas, dotado, como a mãe, para a música, que está no primeiro ano de filosofia. Ocorre-me que, dentro de apenas duas semanas, terei a mesma idade que o meu pai quando perdeu os sentidos nos degraus da casa. Quem sabe se o mesmo defeito genético se encarregará de me levar?
— Olhei pela janela da cozinha, vi que o teu pai cambaleava e pensei que estava bêbedo — dizia a minha mãe. — Quando saí, estava deitado no caminho da casa. Levaram-no e deixaram-me sozinha. — E acrescentava: — Há pessoas que não nos acompanham até ao fim.
Nessa mesma noite, a minha mãe retirou dos cabides todas as camisas do meu pai, penduradas do seu lado do guarda-roupa, e empilhou-as em cima da cama.
— Não queres esperar para fazer isso? — perguntei-lhe. — Pelo menos podias esperar pelo funeral.
Damos a roupa toda e como a minha mãe não queria encontrar ninguém com o casaco do marido, despachou-me com quatro sacos para dar a um município próximo.
Costumava enervar-me quando o meu pai me perguntava como é que eu ia na escola, aliás, eu suspeitava mesmo que ele investigava secretamente o caso. Esta intuição foi confirmada quando vasculhámos nas suas coisas; ele tinha encomendado um livro intitulado Como Fazer Perguntas Inteligentes Acerca de Nietzsche?
Volto a meter o recorte de jornal no sobrescrito e vasculho um pouco mais. Mesmo no fundo, há três velhos cadernos. Abro um deles e reconheço — vagamente — a caligrafia pouco desenvolta. Serão os diários íntimos dos meus vinte anos? Folheio-os; de acordo com as datas, as entradas cobrem três anos — com pausas.
Deitar fora. Vão para o lixo. Pego noutro caderno que examino rapidamente, parando aqui e acolá. Tanto quanto consigo perceber, está dividido entre descrições de nuvens, do tempo e de mulheres. Desde a primeira página, a citação de O Banquete, de Platão, dá o tom e mostra que eu soube focalizar-me no essencial nos meus estudos de filosofia: «Todos os homens são fecundos, tanto no corpo como na alma, e, quando os nossos corpos atingem uma certa idade, a nossa natureza sente o desejo de se reproduzir.»
Cada entrada começa com a data, seguida de uma descrição do tempo, como faria um velho agricultor: «2 de março. Não há vento, sol, temperatura três graus negativos. 26 de abril. Ventos fortes. Temperatura 4 graus. 12 de maio. Brisa suave de sueste. Temperatura 7 graus.» Intimamente ligadas às anotações meteorológicas, seguem-se entradas em que descrevo diversos tipos de formações de nuvens e em que cogito sobre os corpos celestes. «Altos-cúmulos esculpidos pelo vento.» Quando é que eu deixei de me interessar pelas nuvens? Seguem-se estas linhas: «É considerado verosímil que uma nova lua tenha começado a girar em torno da Terra. No entanto, alguns especialistas consideram mais provável que se trate de um fragmento de um foguetão em órbita em torno da Terra.»
E, entre as estrelas há muito extintas no meio do cosmos, uma lista de compras descreve uma elipse em redor do polo celeste:
«Comprar coalhada de morango e preservativos.»
Não preciso de ler muito para me aperceber de que as descrições de corpos femininos e de relações com mulheres constituem a parte de leão das entradas. Parece que eu me refiro às minhas namoradas pelas iniciais e lhes agradeço por terem ido para a cama comigo. «Obrigado K» figura numa página, «obrigado D» numa outra. A letra por vezes é sublinhada. «Obrigado M.» M aparece duas vezes, tal como K, com alguns meses de intervalo. Terá sido a mesma K? Entre parênteses surgem apreciações. «L (virgem).» Passei vários verões no campo, em casa do meu tio materno, criador de ovelhas, e as minhas comparações inspiram-se no vale do glaciar («A pele de K é tão suave como a lã de uma ovelha»). Dois dias depois, é a vez de S. Dou voltas e mais voltas à cabeça para ver se me lembro. Pela primeira vez na minha vida, as coisas com as raparigas pareciam correr bem e lembro-me de uma mulher que estava a olhar para mim e de eu pensar: «Isto é capaz de funcionar.» Salto algumas entradas. G parece ser a última letra deste alfabeto carnal, será Guðrún? Tenho vinte e dois anos quando agradeço a G por ter ido para a cama comigo. Tanto quanto consigo lembrar-me, foi numa excursão às montanhas; «(G tem uma cicatriz recente devido a uma apendicite, mas abstive-me de falar disso)», escrevi eu entre parênteses.
Folheio o caderno à procura de uma data particular:
«11 de outubro de 1986.
Fui de bicicleta da faculdade para casa. A caminho de Silfurtún, vi Reagan e Gorbatchev nos degraus da casa Höfði. Ambos com sobretudos, um deles impermeável e o outro com uma gola de pele. Havia também três gansos selvagens no relvado. À noite, vi-os na televisão, a preto-e-branco como areia e glaciar.»
Escrevi depois e sublinhei as palavras: «Eu estive lá.»
No dia seguinte, na mesma página:
«12 de outubro.
O meu pai morreu.
O mundo já não é o mesmo.»
Prolongo a minha vida por três dias e peço emprestado a Svanur o reboque para esvaziar a cave.
Faço três viagens ao apartamento, uma com o tamborete, a outra com o gira-discos e a última com a caixa que tem a inscrição DEITAR FORA.
QUANTO MAIS ALTO VOAMOS,
MAIS PEQUENOS PARECEMOS AOS OLHOS
DAQUELES QUE NÃO SABEM VOAR10
Dou uma espreitadela ao frigorífico: há dois ovos numa embalagem onde se pode ler «das nossas mais qualificadas galinhas». Num armário da cozinha, há uma embalagem de massa, são espirais. Não têm tendência a engrossar quando são cozidas? Que quantidade preciso de cozer? No peitoril da janela, há salsa que me tenho esforçado por manter viva, mas a maior parte mirrou. Mexo os ovos, corto os caules de salsa menos amarelecidos e deito-os em cima dos ovos.
Enquanto as espirais cozem, pesquiso as últimas páginas quadriculadas do meu diário íntimo.
Uma entrada distingue-se pela sua extensão, três páginas de texto ininterrupto. Parece que estou a descrever um passeio à montanha e acrescentei um título sublinhado, como se se tratasse de um conto: «Subindo os degraus do templo da iniciação.» A data indica um 7 de junho e eu não estava sozinho porque, logo no início do texto, pode-se ler:
«G também quis vir.
Depois do ensaio do coro, pedi emprestado o Subaru da minha mãe (tubo de escape avariado). Ando com ideias de subir esta montanha há muito tempo (há mais tempo que G). Fui para a cama com quatro raparigas do coro e estou com o moral em baixo. A maestrina do coro (uma amiga da minha mãe) chamou-me à parte para me dizer que a tensão criada pelos namoricos prejudicava a minha voz.
Parece que estou a expiar o erro cometido ao convidar uma quinta rapariga para um passeio de carro seguido de uma caminhada pela montanha.
«G levava um polo amarelo de gola alta e uns ténis brancos.»
E, uma vez mais, descrevo pormenorizadamente a lista das compras.
«A meio do caminho, parámos numa loja e comprei sanduíches com salada de gambas, duas colas e duas barras de chocolate Prince Polo.
No carro, a caminho da cratera, disse a G que o meu pai tinha morrido este inverno e que eu deixara a faculdade para tomar conta da companhia da família, a Steel Legs Ltd. Disse-lhe que vivia em casa da minha mãe e que tinha um irmão mais velho. Também lhe disse que tinha a intenção de ser pai um dia. (Porque é que disse isso? Senti que tinha de o dizer.) Falei-lhe de certas coisas do passado e de outras mais recentes, que explicam o meu pensamento e os meus sentimentos hoje em dia.»
Vem depois uma frase sublinhada duas vezes: «Falei e G não disse nada.»
Seguem-se cinco linhas tão garatujadas que se tornaram totalmente ilegíveis, até que a montanha reaparece.
«G pareceu cética quando viu a montanha erguer-se diante de nós, a montanha e todos aqueles rochedos. Eu fui à frente e ela seguia as minhas pisadas de tal forma que eu sentia a respiração dela na minha nuca. Havia nevoeiro e era difícil localizar o cume. Esperámos que o nevoeiro se dissipasse e eu aproveitei o tempo para lhe mostrar a parte leste do glaciar. Foi no caminho de volta que fizemos amor. Tinha chovido e o musgo estava molhado e só nos despimos o estritamente necessário. Foi um pouco mais complicado para ela porque trazia umas calças de um tecido grosso. Ouvi os arrulhos dos lagópodes-brancos e pus-me a pensar: “O que é que um pássaro vê? O que é que pensa?” E, depois, inopinadamente, apareceu uma ovelha mesmo ao nosso lado, a olhar para nós. Disse a G que fechasse os olhos.
E perguntei-me: “O que vê, o que pensa uma ovelha?” Quando nos vestimos, G disse: “Imagina se tivesse havido uma erupção mesmo abaixo de nós.”
Para voltarmos para o carro, metemos por um atalho que era uma área de nidificação de andorinhas-do-ártico. Milhares de andorinhas-do-ártico.
Um coro de mil vozes.
Foi aí que vomitei a minha sanduíche de salada de gambas.
Como me sentia fraco, G propôs que fosse ela a conduzir até à cidade e eu deitei-me no banco de trás. G falava e eu não dizia nada. Falou-me da mãe dela, dos seus estudos de enfermeira e da dificuldade em encontrar a veia certa para espetar a agulha da seringa. A certa altura, parou e explicou-me que havia lagópodes-brancos no meio do caminho.»
E, aqui, a narrativa interrompe-se. Estou de novo no sopé da montanha. Pelo menos é o que está escrito com todas as letras: «Desci das alturas.»
Viro a página e a entrada seguinte data de um mês mais tarde, aquando de uma visita à casa de G.
«7 de junho
Voltei a estar com G em casa da mãe dela. Vi-a toda nua pela primeira vez (e não apenas bocadinhos). Como era impossível fechar a porta à chave, tive de arrastar a cómoda para a bloquear. Quando estava prestes a ir-me embora, ela disse-me que estava grávida.
Perguntei como é que isso era possível e ela respondeu que os preservativos não eram cem por cento seguros.»
Ainda era uma promessa de adulto e, de repente, eis que vou ser pai. Vivia em casa da minha mãe e dormia na cama de solteiro com gavetas que tinha sido uma prenda da comunhão. O relato daquilo que a minha carne fizera sem que eu fosse tido nem achado termina com duas linhas na página seguinte:
«Uma criança foi concebida na montanha com uma ovelha por testemunha.
A poucos metros de uma cratera adormecida.»
De um dia para o outro, Guðrún tricotou-me uma camisola e eu pensei, bom, agora já somos um casal. Estende-o para mim, passado e dobrado, e afirma: «Condiz com os teus olhos.» Depois, começa a tricotar roupa em ponto canelado para o bebé. Em casa dela, à noite, sentados no sofá, comemos pipocas e vemos televisão na companhia da mãe dela. Eu tinha passado quatro verões na quinta do meu tio e sabia o que esperava Guðrún porque tinha experiência de partos, tinha arrancado cordeiros todos ainda peganhentos dos ventres das suas mães. Lembro-me em particular de ter ajudado no parto de um cordeiro macho, já com corninhos, difícil fazer passar a cabeça, parece que estou a ouvir a ovelha a balir.
Oito meses e uns dias depois do passeio à montanha, no dia suplementar de um ano bissexto, Guðrún Nenúfar nasceu, duas semanas antes do prazo previsto e com unhas moles. Como seria de esperar, o bebé estava atravessado no útero e não conseguiram endireitá-lo, de modo que foi preciso fazer uma cesariana. Fiquei aterrado quando a parteira se abeirou de mim com o bebé, ensinou-me a formar uma concha com os braços em torno do pequeno corpo, eu segurava numa vida nas minhas mãos, a coisa mais frágil do mundo e pensei: «Ela vai sobreviver-me.»
Passo as últimas páginas do caderno até dar com esta frase:
«29 de fevereiro. Ela sobreviver-me-á. As pálpebras dela são asas transparentes de uma borboleta.»
Depois, tive de dar um salto ao trabalho para tratar de uma encomenda a seguir ao almoço. Porque é que fiz isso? Porque um tipo me ligou a dizer que vinha buscar a encomenda à uma e meia.
Eu fui o primeiro do meu grupo de amigos a dar o nó, o que significava ter relações sexuais regulares em casa, ter acesso ao corpo de uma mulher todas as noites. Depressa me acostumei. De início, após o parto, Guðrún quis definir as partes do corpo dela a que eu tinha acesso; eu não podia abraçar o ventre dela, nem aproximar-me da cicatriz da cesariana, «põe a tua mão aqui», dizia ela, «não, assim não, mantém a mão imóvel e não mexas — não respires sequer — no meu ventre». Eu tentava agarrar-me aos ombros dela ou deixar que as minhas mãos pousassem na sua caixa torácica, mesmo abaixo dos seios, mas às vezes esquecia-me das interdições, e, tateando o meu caminho, procurando um trilho a seguir ao longo da sua carne nua, as mãos deslizavam até ao ventre.
— O que é que estás a fazer? — dizia ela.
— Nada.
— Então deixa a minha barriga em paz.
Vinte e seis anos passados, a minha mulher diz-me: «Nenúfar não é tua filha. Pareceu-me que agora era a altura certa para to dizer, visto que estamos a divorciar-nos.» E acrescenta: «Nunca tinha conhecido um rapaz que falasse de sofrimento e de morte no primeiro encontro. Quando tu disseste “todos nós morremos”, senti que era um bom ponto de partida para uma vida em comum. Foi então que decidi que Nenúfar seria tua filha.»
As últimas palavras que escrevi no meu diário não têm data:
«Eu sou carne.»
Depois disto, nunca mais mantive um registo da minha vida.
Por carne, entendo tudo o que está abaixo da cabeça — considerando que a carne é o princípio e o fim de tudo o que mais conta para mim na vida: eu nasci e o coração e os pulmões deram início a uma atividade permanente, um bebé nasceu e eu assumi a responsabilidade de ele ser carne da minha carne, e, dentro em pouco, o meu corpo deixará de funcionar. Até parece que estou a ouvir a minha mãe numa das suas preleções sobre a ordem do mundo: «Sabes, Jónas, a grande história começou muito tempo antes do nosso nascimento.»
AS FERIDAS FECHAM-SE A DIFERENTES
VELOCIDADES E AS CICATRIZES
FORMAM-SE POR CAMADAS, ALGUMAS
MAIS PROFUNDAS DO QUE OUTRAS
São duas e um quarto da manhã e alguém está a bater à minha porta do terceiro andar, baixinho, primeiro, mas depois com mais força.
É Svanur, esbaforido, olha por cima do meu ombro. A porta da rua está normalmente fechada à chave, mas ele diz-me que aproveitou a chegada de um vizinho que vinha de uma noitada e entrou atrás dele. Não conseguia dormir, deu uma olhadela para a minha janela e julgou distinguir algum movimento por detrás dos estores — alguém a andar de um lado para o outro — e concluiu que eu também estava acordado. Quer convidar-me para dar uma volta com a cadela, que está à espera junto à caravana.
Chama-lhe a sua rapariga.
Posso dizer-lhe que, a esta hora da noite, os meus planos são outros?
Inopinadamente, passa por mim e só para na sala de estar. Olha à sua volta, perscruta o espaço de um jeito rápido e metódico. Será mais um dos aspetos da sua função de vigilante? Será que ele me anda a vigiar, de facto?
O seu olhar fixa-se no tamborete no meio da sala e depois detém-se no candeeiro de teto que eu pus na mesinha; de qualquer modo, o cenário é menos eloquente do que se ele me tivesse encontrado com o candeeiro e um cinto na mão.
Fecho o computador aberto na página dedicada aos métodos suicidas dos escritores.
O conteúdo da caixa está numa pilha em cima da mesa de jantar.
— Estás a fazer arrumações? — pergunta ele.
— Sim, ando a ver se me desembaraço de alguns papéis velhos.
Num ápice, desaparece na casa de banho. Ouço-o a abrir e a fechar armários e, quando volta, espreita para o quarto. A espingarda ainda está na cama dupla. Acaba por abrir o armário do corredor onde eu guardo os casacos. Aí termina a inspeção.
— Quero compreender melhor Aurora — diz o meu vizinho com um suspiro.
HOMEM E ANIMAL
Svanur segura no cão pela trela enquanto descemos na direção do porto. O ar está tão parado e não se vê vivalma, tirando um jovem pai com um carrinho de bebé. Eu saía à noite com Guðrún Nenúfar quando ela tinha cólicas, para que a mãe pudesse dormir?
Svanur quebra o silêncio:
— Custa-me muito aguentar esta luz.
Baixa-se para apanhar o cocó do cão.
— São fáceis de reconhecer, os tipos que não trazem saco e que acham que vão escapar impunes.
Paramos no molhe, a meio caminho entre os barcos de pesca da baleia e aqueles que levam os turistas para as verem, um céu imenso por cima das nossas cabeças.
— É belo, não é? — diz Svanur.
Não digo nada. O magnífico céu primaveril com três faixas horizontais cor de laranja não chega para provocar em mim nenhum entusiasmo; vi o mesmo céu o ano passado e há dois anos. Posso prolongar a minha existência ou acabar com ela, o céu não é para aqui chamado.
— Somos tão pequenos — diz ele enquanto afaga o animal.
Depois, retifica:
— O homem é tão pequeno.
Caminhamos na direção do farol e Svanur conta-me que, no dia anterior, fez a mesma caminhada e viu uma foca. E a foca também o viu a ele. Olharam-se olhos nos olhos, homem e animal. Ainda pensou em tirar uma foto à foca com o telemóvel, mas decidiu não o fazer porque disse para si mesmo: um homem e um animal, não há mais nada a dizer, não há nenhum sentido mais profundo. Depois, quando chegou a casa, leu na Internet um artigo a propósito de uma foca que teria aprendido a servir-se de uma chave de fendas.
— O facto de, sem ter feito nada para isso, ter deparado com esse artigo foi uma coincidência? — pergunta ele, olhando para lá de mim, para a imensidão verde do oceano.
Calamo-nos.
A cadela ladra porque quer ir nadar naquelas águas cheias de algas, mas Svanur puxa pela trela. Uma andorinha-do-ártico rodopia por cima das nossas cabeças e espanto-a com a mão. Começou a época da nidificação.
— Sabias — acrescenta ele, ainda de olhos fixos no mar — que os homens são os únicos animais que choram para exprimirem sentimentos como a alegria ou a tristeza?
Respondo que sim, mas isso não é devido à estimulação das glândulas lacrimais?
— Ao contrário dos animais — prossegue o meu vizinho —, nós sabemos que a vida tem um fim. Que deixaremos de existir.
Procura um caixote do lixo, mas não há nenhum à vista, de modo que terá de levar o saco preso nas pontas dos dedos durante todo o caminho de volta.
Quando estou prestes a despedir-me, sinto que ainda há qualquer coisa que lhe oprime a mente. Demora-se à porta da caravana.
— Também precisas de cartuchos? — pergunta.
— Sim.
— Era o que eu pensava.
Hesita.
— Infelizmente, gastei todas as munições na caça ao lagópode o ano passado.
Olha para lá de mim, ao contrário do cão, que me fixa.
— Para ser franco, nunca usei uma arma de fogo — digo eu ao meu vizinho.
— Era o que eu pensava. Que não sabias usar uma espingarda.
Ele tem razão, eu não sei usar uma espingarda. Ainda acabo por dar um tiro em alguém.
Depois, pergunta-me se pode visitar-me uma vez por outra.
— Posso passar lá por tua casa uma vez por outra?
Digo-lhe que vou estar ocupado nos próximos dias, mas, antes que me dê conta disso, já acrescentei:
— Estou prestes a partir. Vou fazer uma viagem.
A ideia atinge-me como um raio: vou desaparecer. Assim, não terei de me preocupar com a eventualidade de Nenúfar encontrar o meu corpo. Como uma ave que vem dos céus num rodopio vertiginoso e paira horizontalmente alguns metros até que mergulha, e, em mergulhando, perece. Um último bater de asas antes de atingir o alvo, uma fenda larga na rocha, e, mais tarde, os ossos embranquecidos servirão de ponto de referência ao viajante.
No entanto, reflito um pouco mais e excluo a eventualidade de não ser encontrado; Nenúfar passaria por certo toda a vida a procurar-me, e, no fim, o sofrimento seria mais forte do que a vida. Ao passo que, se fizer uma viagem ao estrangeiro, Nenúfar e a minha mãe receber-me-ão num caixão todo bonito.
«O teu pai partiu para a sua mais longa viagem», tinha-me dito a minha mãe.
Eu vinha de um exame e ela estava à porta da casa à minha espera.
«Partiu para onde?», perguntei, reparando que a sua pasta castanha estava no canteiro dos amores-perfeitos.
Levei a pasta para o meu quarto, abri-a e alinhei as faturas na minha secretária. No dia seguinte, anunciei à minha mãe que ia deixar os estudos e começar a trabalhar na Steel Legs Ltd, Pai e Filho. A procura de estruturas de aço mantivera-se francamente constante ao longo do tempo.
«Não te preocupes», disse à minha mãe.
— Os melhores momentos da minha vida — ouço Svanur a dizer — são quando estou completamente só na natureza selvagem, dentro de um saco-cama com a minha espingarda, à espera que os pássaros acordem. Em absoluto silêncio, os olhos fixos na crosta de neve. É como estar dentro de um útero. Um tipo sente-se seguro. Um tipo não precisa de nascer. Não precisa de sair do saco-cama. Não precisa de partir.
O que é que eu respondi a Svanur?
Repeti o que ele disse: «Não, não precisa de partir.» Foi a última frase que eu lhe disse. A última palavra terá sido portanto: partir.
E O VERBO SE FEZ CARNE
E HABITOU ENTRE NÓS11
Telefono a Nenúfar e combinamos encontrar-nos. Ela sugere uma pastelaria que tem duas mesas e cadeiras.
Da última vez que falei com ela, queria saber se eu separava o meu lixo e se tinha arranjado um caixote azul para os papéis. Quanto a mim, pedi-lhe notícias de Sigtryggur e ela replicou: «Queres dizer, o Tristan?» Antes de acrescentar: «Acabou.»
A minha filha não precisa de um pai, precisa de um namorado. A minha função tornou-se obsoleta.
Traz a parka azul com capuz debruada a pele que lhe dei no Natal e oferece-me um largo sorriso. Lembro-me de quando o dentista lhe pôs o aparelho e ela chorou todo um fim de semana. Despe a parka e pendura-a nas costas da cadeira.
A minha filha é especialista em biologia marinha e consagrou a sua tese de mestrado aos efeitos nocivos do plástico na flora e na fauna marinhas e, em particular, na produção de esperma no homem.
«Compostos perfluorados», diz ela, e eu aceno que sim.
É graças a ela que eu tenho uma quantidade de conhecimentos sobre a acidificação e a desoxigenação dos oceanos decorrentes das mudanças climáticas.
Lembro-me de que, ainda muito pequena, tinha um interesse apaixonado pela água corrente, de modo que abria todas as torneiras. Punha-se junto ao lavatório, o queixo mesmo na beirinha, ou então subia para uma cadeira e ficava ali a ver a água a correr.
«A água corre», disse ela quando tinha dois anos.
Traz no pulso o relógio da avó, sob montes de braceletes. Encontram-se todas as semanas, as duas Guðrúns; avó e neta conversam sobre as preocupações quanto à guerra e ao futuro do mundo.
A minha filha pede um chocolate quente e um bolo dinamarquês, e eu, um café e um bolo chamado «casamento feliz».
— Sabias — diz ela — que, no ano passado, em todo o mundo, foram gastas quarenta mil milhões de coroas em armas e equipamentos militares?
Bebe da chávena e limpa o creme no lábio superior.
— É preciso calcular — prossegue — os danos causados por aqueles que tiram proveito da guerra e obrigá-los a pagarem por isso. Assim, compreenderiam que a guerra custa muito mais caro do que a paz. Seja como for, a única linguagem que eles entendem é a do dinheiro.
Quando fala, a minha filha expressa-se com todo o seu corpo. Depois, de repente, cala-se.
— Foste ver a avó? — pergunto.
— Sim, e ela concorda comigo.
— Não duvido.
Rimo-nos.
Que espécie de pai fui eu?
Nunca fui mau para a minha filha, nunca me zanguei com ela; respondia às suas perguntas, levava-a aos treinos de futebol e observava-a atentamente no seu posto de guarda-redes, com as pernas magras, as luvas demasiado grandes, as meias verdes, mergulhando sem medo para apanhar a bola.
Resposta: fui um pai médio.
Nota de 7,5 em 10.
Pergunto-me se lhe devo dizer que vou partir para a minha mais longa viagem.
— O que foi, pai? — diz ela. — Estás a olhar para mim de uma maneira tão estranha…
— Nada.
— Tens a certeza?
— Absoluta.
Pergunto-me: «Será que ela sabe? A mãe disse-lhe?»
Ela olha-me atentamente.
— Tens a certeza de que está tudo bem?
— Sim, está tudo bem.
— Tens tido notícias da mãe?
— Não, nada.
— Mas vocês estão bem?
— Sim, está tudo bem.
Perscruta o meu rosto.
— E não estás triste?
— Não, não estou triste.
Pergunto-me se ela me perdoará. Ou se ficará furiosa comigo, ou mesmo se me odiará. Dará o meu nome ao seu filho? E este terá sardas como a mãe, será um solitário ou um explorador?
— Pai, tu estás doente?
— Doente? Não, não. Nem pensar.
Ela acaba o seu bolo, junta as migalhas e coloca-as no prato.
— E não te sentes só?
— Não, não.
Há qualquer coisa que a oprime, que tem de deitar cá para fora.
— É que esta noite tive um sonho.
Hesita.
— Sonhei que estava a dar à luz. Um rapaz. Grande…
— Estou a ver.
— Tinha uma cabeça muito grande.
Devo dizer-lhe que não sei rigorosamente nada sobre a interpretação de sonhos?
Ela respira fundo.
— O problema é que o bebé eras tu.
— O quê?
— O bebé do sonho. Eu estava a dar à luz o meu próprio pai.
Tento reagir o melhor possível.
— Significará algum projeto novo? — diz ela, e prossegue: — Eu fiz pesquisas sobre o assunto e é assim: dar à luz pode significar um renascimento da pessoa ou um ponto de partido novo, mas também que uma parte do seu eu foi negligenciada. E o tamanho da cabeça significa que essa parte negligenciada precisa de cuidados e de uma atenção particular.
Hesito.
— Descobriste o significado do sonho?
A respiração opressa trai a sua inquietação.
— Nalguns casos, um nascimento pode representar a morte.
— Estou a ver.
— Não necessariamente a morte física, mas antes o fim de qualquer coisa e o princípio de outra.
Acaba a sua taça de chocolate e calamo-nos os dois. Depois, ela vira-se para mim.
— E tu, pai, tu nunca sonhas?
— Não, de facto nunca sonho.
— O filho de uma organista nem sequer sonha com música para órgão?
Sorrio.
— Não, nem mesmo com música para órgão.
Acaba de vestir a parka com um ar subitamente preocupado.
— Estava a esquecer-me de uma coisa — diz ela enquanto arranja o elástico que lhe prende os cabelos. — As dobradiças da porta do armário da minha cozinha foram-se abaixo e a porta caiu e partiu um ladrilho do chão. Não podes ir dar uma vista de olhos àquilo?
Nenúfar alugou um pequeno apartamento com uma amiga. Antes de elas se mudarem para lá, passei à lixa o mobiliário da cozinha, envernizei-o e mudei os puxadores. Também tirei a velha banheira e instalei um duche e coloquei ladrilhos à volta deste.
— Claro, não há problema, eu dou um jeito àquilo.
Eu faço tudo o que as três Guðrúns da minha vida me pedem. Monto prateleiras e coloco espelhos, mudo os móveis para onde quer que quiserem. Já ladrilhei sete casas de banho e instalei armários e outro mobiliário de cinco cozinhas, sei pôr um chão de parquete e também já me aconteceu ter de rebentar com vidros duplos com um martelo de forja. No entanto, eu não sou do tipo de destruir, sou mais do género de arranjar e reparar aquilo que não funciona. Se alguém me pergunta porque é que eu faço o que faço, respondo que foi porque uma mulher mo pediu.
Puxo a minha filha para mim e envolvo-a num abraço apertado.
Era minha intenção dizer-lhe uma coisa, mas acabo por dizer outra:
— Sabias que o homem é o único animal que chora?
Ela sorri de orelha a orelha.
— Não, não sabia. Pensava que era o único animal que ria.
Mal chego a casa, procuro nas estantes o livro da interpretação dos sonhos. Guðrún não o levou para o seu apartamento porque o encontro na mesma prateleira onde está o manual de manutenção dos móveis de teca.
Procuro a palavra órgão.
Sonhar que se está a ouvir bela música de órgão é um sinal de potência sexual e de virilidade, defende o livro.
«Pai, não deves acreditar em tudo o que te vem à cabeça», dissera Nenúfar ao despedir-se.
UM BILHETE PARA A LUA, SÓ DE IDA
O silêncio cai sobre o bairro. Só se ouve um pássaro.
Para onde é que eu quero ir — essa é a questão.
Procuro na Internet um destino adequado, concentrando-me nas latitudes onde há zonas de guerra. À primeira vista, sessenta e três países e regiões correspondem a este critério. De que país falava Svanur a propósito daquele documentário sobre as mulheres e a guerra?
Acabo por escolher um país que foi notícia de primeira página por causa das batalhas que aí foram travadas, mas que os holofotes dos media abandonaram há alguns meses devido à assinatura de um cessar-fogo. No entanto, a situação é considerada precária e não é seguro que o cessar-fogo se mantenha. Parece-me o local ideal, posso ser abatido numa esquina qualquer ou pisar uma mina. Parece que estou a ouvir a voz de Svanur: «Se fosses mulher, a primeira coisa que te acontecia era seres violado.»
Será uma viagem só de ida. Encontro na Internet um hotel numa pequena cidade devastada que reconheço das notícias. Lembro-me de que os hotéis são locais apreciados para ir desta para melhor. As fotos online datam manifestamente de antes da guerra, e, numa delas, podemos ver que, em tempos idos, o hotel se situava numa pequena praça cheia de flores, e que, nos campos em volta, a criação de abelhas e a produção de mel subiam em flecha. O hotel não fica longe da praia e, de acordo com a página na Internet, a cidade era um destino turístico popular, conhecido pelos seus sítios arqueológicos e banhos de lama. Há uma referência a banhos termais no hotel e a um mural de mosaicos antigos.
Escrevo uma carta de adeus enquanto escuto One Way Ticket to the Moon no meu gira-discos.
A quem dirigi-la? À minha filha e à minha mãe, às homónimas Guðrún N. e Guðrún S.?
Ponho-me a pensar no que Svanur me disse no nosso passeio: «As pessoas depressa se esquecem de nós. Até que vem uma altura em que já ninguém se lembra.»
Nenúfar tem uma pele imaculada, mas não gosta dos seus joelhos. Devo dizer-lhe que não dê importância a isso? Os homens não ligam aos joelhos, não pensam nas mulheres em partes, mas na sua totalidade. Será mesmo assim? Penso nos meus próprios diários íntimos.
A minha mãe já tomou as suas decisões quanto à vegetação que quer na campa. Quer um arbusto baixo, um salgueiro-anão. Devo especificar, no que me diz respeito: nada de pompas, caixão sem pegas, apenas uma caixa, das mais baratas, madeira em bruto?
Começo um primeiro esboço: «Eis portanto que parti.» Porquê «portanto»? Corrijo.
Acrescento: «Não voltarei.» Risco, substituo por «Já não existo.» Devo falar da primavera? Onde é que posso metê-la? Vem-me de súbito o desejo de inserir na carta a expressão «lá para o fim». Posso dizer: «Lá para o fim da próxima semana já não serei deste mundo»? Ou: «Lá para o fim da próxima semana o mundo girará sem mim»? Que dizem as previsões meteorológicas para este mundo sem mim? Tempo ameno e chuvoso nos próximos dias. Escrevo: «Lá para o fim da próxima semana, a chuva cessará.» Nenúfar compreenderá o que eu quero dizer.
Risco tudo.
Recomeço:
«Não creio que nenhum pai verdadeiro se sinta mais orgulhoso do que eu.» Corto «verdadeiro», fica só pai.
Arranco a página e recomeço.
«Vendi a Steel Legs Ltd a Eiríkur Guðmundsson (sim, o tipo que gere a Steel Frame Ltd., especializada em bancadas centrais para cozinhas), ele transferirá em junho o último pagamento para a tua conta.
Um beijo do pai.»
DEUS SALVA AQUELE QUE SOFRE
COM O SOFRIMENTO
Preparo a bagagem de um defunto. A mala está quase vazia, não levo creme solar nem lâminas de barbear, nem camisas para mudar, nem sandálias, nem fato de banho ou calções, nenhuma máquina fotográfica, nenhum telemóvel. Ninguém poderá entrar em contacto comigo.
Depois, arrumo um pouco o apartamento.
Estendo o edredão sobre a cama dupla, alisando-o ligeiramente, depois cubro-o com a colcha e puxo os cantos de ambos os lados para que ela fique bem direita. Deveria também aspirar? Abro o guarda-roupa. Aquele pullover, dobrado ao fundo da prateleira, é mesmo o que Guðrún tricotou para mim?
Ajusto também a pilha de livros na mesa de cabeceira. O que é que a Bíblia faz aqui? O marcador ainda está no Livro de Job. Depois de Guðrún e eu termos deixado de partilhar as nossas noites — ela, confinada a um lado da cama, enfiada num edredão com o seu livro, e eu, do outro lado, com o meu —, li três livros que nenhuma das pessoas que conheço leu até ao fim: a Bíblia, o Corão e os Vedas. Demorei três meses a ler a Bíblia — um total de 1829 páginas —, mas menos a ler os outros. A minha preferência vai para o hino ao amor de São Paulo e as mensagens de paz do Corão. Porque aquele que mata um homem, mata toda a humanidade, aquele que salva uma vida humana, salva toda a humanidade. E, nos Vedas, gostei do Puruxa das mil cabeças, dos mil olhos e dos mil pés, que, com os seus braços, conseguia abarcar o mundo inteiro.
Guðrún só pediu uma vez que lhe lesse qualquer coisa. Por essa altura, já tinha o seu próprio edredão e construíra uma barreira de almofadas entre nós, como uma fortificação entre as margens sul e norte do leito conjugal.
— O que é que queres que te leia? — perguntei.
— A passagem onde vais.
Eu estava no Livro de Job, de modo que li o que nele se diz de Job, o íntegro e o justo, o piedoso e o escrupuloso, que foi preso e torturado pelas cordas da aflição.
— Nu saí do ventre da minha mãe e nu lá tornarei.
— Obrigada — disse ela baixinho, e pareceu-me detetar um tremor na sua voz.
Depois, ouvi-a murmurar «Eu sabia», enquanto sacudia as almofadas entre nós, antes de me virar as costas. Olho para o seu belo ombro arredondado sob a camisa de noite. Se eu estivesse a ler o Cântico dos Cânticos e fosse na passagem que diz que «os teus seios são como uvas», talvez ainda fosse um homem casado.
Passado um bocado, ela vai à casa de banho e, quando volta, diz-me:
— A torneira está a pingar.
No dia seguinte, há uma mensagem na mesa da cozinha: «Fundiu-se uma lâmpada do corredor.» É esta a natureza do nosso compromisso: eu transmito-lhe sofrimento, ela atribui-me tarefas.
EU PODERIA PROCLAMAR O MUNDO ATÉ À NOITE,
HÁ EM TODO O LADO ALGUMA COISA12
Lavei o prato, sequei-o e pu-lo no armário e, de seguida, lavo o escorredor e penduro o pano da cozinha.
Abro todas as janelas.
Fecho todas as janelas.
Como já fiz a cama, estendo-me no sofá durante duas horas e esforço-me por não pensar em nada. Há alguma coisa na vida, pergunto-me, que possa ainda surpreender-me? A maldade humana? Não, o meu conhecimento nesse domínio é total. A bondade humana? Não, conheci um número suficiente de pessoas boas para acreditar nela. A infinita beleza dos cumes das montanhas, os múltiplos estratos de uma paisagem, montanhas atrás de montanhas, todos os matizes de azul sobre um fundo azul? Infindáveis praias de areia negra e cintilantes glaciares a leste, os contornos de sonhos milenares evoluindo lentamente, como sob uma placa de acrílico? Eu conheço tudo isso. Haverá ainda alguma coisa que eu deseje experimentar? Não me ocorre nada. Tive nos meus braços um recém-nascido, vermelho e viscoso, abati uma árvore de Natal num bosque em dezembro, ensinei uma criança a andar de bicicleta, mudei um pneu, sozinho, à noite, numa estrada de montanha, sob uma tempestade de neve, entrancei os cabelos da minha filha, percorri no meu carro um vale poluído, cheio de fábricas, algures no estrangeiro, andei aos esses na última carruagem de um pequeno comboio, cozi batatas num camping-gás num deserto de areia negra como carvão, engalfinhei-me com a verdade sob sombras, ora vastas ora curtas, e sei que o homem tanto ri como chora, sofre e ama, possui um polegar e escreve poemas, e sei ainda que um homem sabe que é mortal.
O que é que me falta fazer? Escutar o chilreio do rouxinol? Comer uma rola?
Enquanto o táxi espera defronte do prédio, volto para trás nos degraus da porta para ir buscar algumas ferramentas. Impossível saber que condições me esperam, posso muito bem precisar de pendurar um gancho no teto. Pego também numa extensão e num transformador e é aí que me dou conta de que o melhor é levar a caixa de ferramentas pequena, a que tem um berbequim recarregável. Antes de fechar a porta, vou buscar a foto de Nenúfar que tenho na mesa de cabeceira. Tem cinco anos, uma trança muito fina e as gengivas inchadas porque acaba de perder os dentes da frente. A foto foi tirada num acampamento perto de uma laguna glaciar e ela estende cinco dedos na direção do céu, ao fundo vê-se um icebergue verde-azulado. Ao passar pelos caixotes do lixo, ocorre-me de súbito que alguém poderá ir vasculhar no lixo e tirar os meus diários íntimos e ler as minhas confissões, apologia pro vita sua. Tive o cuidado de assinalar que os cadernos pertencem a Jónas Ebeneser Snæland. Porque é que usei o apelido da minha mãe para definir a minha identidade? Faço um rolo com os cadernos e enfio-o no bolso do casaco.
Irão para o primeiro caixote do lixo que encontrar no estrangeiro.
Já está, estou de partida.
Para um encontro comigo mesmo.
E o meu último dia.
Digo adeus a tudo.
Os açafrões-da-primavera estão em flor.
Não deixo nada atrás de mim.
Passo da luz perpétua às trevas.
O QUE É AGORA ACABA AGORA13
Adormeço no avião. Sonho que uma ovelha está a lamber-me a orelha e acordo sobressaltado mesmo antes da aterragem.
O avião mergulha no meio das nuvens.
Deslizo.
Deslizo.
Deslizo rumo à terra perto do mar salgado.
Consigo distinguir uma planície, campos, florestas sem fim e lagos petrificados como espelhos na paisagem. A sombra da asa de aço estende-se sobre um campo no limiar de uma floresta. A pista corre para os meus braços a toda a velocidade; aterrei. Uma árvore agita a folhagem perto das janelas. Os meus olhos procuram a linha do horizonte, a costura entre a floresta e o céu. É para aí que eu vou e não mais longe.
Dou-me uma semana para fazer o trabalho.
EU SOU UMA FLORESTA CHEIA DE TREVAS
E DE GRANDES ÁRVORES ESCURAS
MAS QUEM NÃO TEME AS MINHAS TREVAS
ENCONTRARÁ SOB OS MEUS CIPRESTES
CAMINHOS FLORIDOS DE ROSAS14
À saída, um homem de blusão ergue uma folha com dois nomes escritos com marcador vermelho: Sr. Jónas, por cima, e, por baixo, um nome de mulher. Somos os dois únicos passageiros que o hotel mandou buscar e partilhamos o banco de trás do táxi. A mulher vai sentada atrás do motorista, tem óculos de sol apesar do céu nublado. O carro é velho e está coberto de poeira, o cabedal dos assentos está rasgado, sinto as molas nas costas, o cinto de segurança está puído.
«Casados» é a primeira palavra que o taxista pronuncia ao virar-se para nós, olhando primeiro para mim em busca de confirmação, e depois para a mulher, e é nesse momento que eu compreendo que é uma pergunta. A mulher abana a cabeça e diz qualquer coisa ao motorista na língua deles. Veste um tailleur azul, um lenço em volta do pescoço, e curva-se um pouco, as mãos apoiadas nas costas do assento da frente, como se estivesse a posar no estúdio de um fotógrafo. Nunca viajei para tão longe do meu país, a ponto de não entender uma palavra aqui, outra acolá, nunca tão longe a ponto de não compreender o que me diz o rapaz do café que me traz uma cerveja, e reciprocamente.
O Hotel Silêncio fica junto à costa, a uma hora de carro do aeroporto, mas o motorista explica que as estradas ainda estão em péssimas condições e que, portanto, temos de seguir um percurso tortuoso pela cidade, o que dá mais meia hora de trajeto. «Uma parte do percurso nem sequer está no mapa», diz ele. Há algumas colinas ao longe, mas, tirando isso, tudo é plano.
A primeira coisa em que reparo é na poeira cinzenta que cobre tudo, como cinzas depois de uma erupção vulcânica. Excetuando a faixa vermelha que se estira pelo céu vespertino, é como se estivéssemos num filme a preto-e-branco.
O taxista confirma a minha impressão.
— O pior é a poeira — diz ele. — Respirar a poeira. Estamos à espera de chuva. Claro que, nessa altura, tudo se transformará em lama. E, com a chuva, vem também a humidade.
Reparo que ele ajusta o espelho retrovisor sempre que se dirige a nós, quer ver-nos aos dois. Conduz com a mão direita e a esquerda repousa, imóvel, na coxa; quando quer mostrar alguma coisa, larga por completo o volante e o carro serpenteia estrada fora.
Descubro um fragmento da velha muralha da cidade.
— Em tempos, havia ruínas da época romana. Agora, não passam de ruínas como quaisquer outras — ouço-o dizer. — Vamos precisar de cinquenta anos para reconstruir o país. Os nossos emigrantes não voltarão enquanto se mantiver toda esta confusão. Já não temos turistas. Já ninguém fala de nós nos noticiários. Já ninguém se lembra de nós. Deixámos de existir.
O hotel, diz ele, esteve fechado durante meses, e, portanto, é muito significativo que, na mesma semana, já tenha levado três clientes, nós dois incluídos, salienta ele, erguendo três dedos, o que faz com que o carro lhe fuja.
Não vejo um único edifício intacto à nossa passagem. O motorista aponta e enumera: o Parlamento foi destruído, tal como o Museu, a sede da televisão é um monte de escombros, os arquivos nacionais e todos os manuscritos que lá havia foram reduzidos a nada, o Museu de Arte Moderna feito em pó. Ali havia uma escola, ali, uma biblioteca, ali, a universidade, aqui havia uma padaria, aqui, um cinema, prossegue ele.
Por todo o lado, devastação.
As bombas esventraram blocos de habitação altos e, nas janelas das fachadas ainda de pé, faltam muitos vidros. Digo-me: «Vocês têm casas em ruínas que vão continuar a desfazer-se em pó, nós temos rochas que se racham, lançando uma torrente de lava em fusão.»
Avançamos sinuosa e lentamente pela cidade, as poucas pessoas que vemos nas ruas têm um aspeto pálido e fatigado. Nalguns sítios, há máquinas a trabalhar nas ruínas. Aqui e ali, sinais da prosperidade de que gozavam as pessoas antes da guerra. Paramos num cruzamento, mesmo ao lado de um prédio de dois andares sem fachada, como uma casa de bonecas. Apesar da espessa camada de poeira que tudo cobre, distingo a certa altura no chão um tapete com um padrão comum nesta região e aquilo que resta de um piano. Não consigo tirar os olhos de uma poltrona bem funda e do seu descanso para os pés, obra de um designer famoso. Ao lado da poltrona, um candeeiro e uma estante derrubados. Reparo que, no quarto, a cama está feita, alguém a cobriu com uma colcha branca imediatamente antes de sair de casa, talvez para ir à padaria comprar brioches, só que levou um tiro a meio do caminho. Mas o que mais me chama a atenção é um vaso amarelo, intacto, numa prateleira da sala de estar. A carcaça de uma carrinha junca o chão da garagem e um triciclo vermelho jaz no caminho que conduz à casa.
Há lixo por todo o lado e, ou muito me engano, ou os canos de esgoto foram desenterrados. O motorista pede desculpa porque a janela do meu lado não sobe. Para além do cheiro acre que vem de fora e dos fortes eflúvios da eau de toilette Fahrenheit do taxista, deteto o vago odor suave e floral da passageira, completamente diferente do de Guðrún. Como é que se chamava o perfume dela? Com uma gota de Pluton atrás da orelha, Guðrún não se tornava mais uma estrela entre as estrelas? Sempre em silêncio, a mulher fita a estrada entre os assentos da frente.
— Promotores imobiliários — diz o motorista, apontado com a cabeça para algumas gigantescas escavadoras. — Depois dos bombardeamentos aéreos, vieram as forças de manutenção da paz. E, depois, vieram os empreiteiros com as máquinas.
Larga o volante para ajustar uma vez mais o retrovisor. Agora sou eu o visado.
O homem quer saber o que é que eu vim fazer ao seu país.
— Férias — digo eu.
Ele e a mulher viram-se para mim. Reparo que trocam um olhar no espelho. O homem diz à mulher qualquer coisa que eu não compreendo, depois fitam-me de novo e aquiescem. Eu também os observo.
Ele reformula a pergunta e questiona se eu vim numa missão especial, como o homem que levou ao hotel no princípio da semana?
Repito que estou de férias e ele para com o interrogatório.
Afastamo-nos da cidade e avançamos agora por uma estrada rural, sinuosa, no meio de uma zona arborizada. Reparo que os troncos das árvores são cinzentos, como se uma grande parte das árvores da floresta nunca tivesse tido nem folhas nem flores.
Passada a floresta, surge um campo e o motorista deixa de carregar no acelerador e, erguendo a mão do volante para apontar, faz com que o carro ande aos ziguezagues.
— Valas comuns, campas anónimas — diz ele. — Numa dessas campas, jaz um poeta célebre que escreveu um poema sobre uma floresta desolada.
A mulher diz-lhe qualquer coisa e parece-me que o motorista, que abana a cabeça, fica um bocado constrangido.
A mulher dirige-se a mim pela primeira vez.
— Aqui, enterraram filhos, maridos e pais — diz ela. — Em muitos sítios, pais e filhos jazem lado a lado, por vezes mesmo três gerações de homens da mesma família. Aqui, a guerra foi travada entre casas, entre vizinhos que tinham filhos na mesma escola, entre camaradas de trabalho, entre membros do mesmo clube de xadrez, entre o avançado e o guarda-redes da mesma equipa. De um lado, estava o médico de família — despacha ela num tom inexpressivo —, do outro, o canalizador e o professor de canto; antigos membros do coro tornaram-se inimigos, o barítono, de um lado, o baixo e o tenor, do outro.
Cala-se e olha pela janela do seu lado.
Pergunto-me o que o taxista terá feito para sobreviver.
Porque é que ele não está enterrado no campo adjacente à floresta? Era carrasco ou vítima? Será responsável por algumas daquelas campas recentes onde jazem pais e filhos? Silencioso, agora parece concentrar toda a atenção na condução.
Pouco depois, quebra o silêncio mudando de assunto e diz que, antes da guerra, transportou grandes estrelas ao spa hotel, como ele lhe chama.
— Especialmente porque queriam repousar e melhorar a sua saúde.
Reflete por um instante.
— Como o Mick, por exemplo. O que tem piada é que, durante a viagem, passaram na rádio «I can’t get no satisfaction». Mas ele não acompanhou a música. Era o Mick, Mick Jagger. — Retoma o fio à meada depois de um breve silêncio. — Se não era ele, era alguém muito parecido com ele. Com um olho castanho e o outro azul.
— Não terá sido antes David Bowie? — pergunto.
Fitam-me os dois de novo e o homem reflete um pouco.
— Sim, agora que o diz… É muito capaz de ter sido o David Bowie.
Agora que se lembra melhor, o taxista acha que a canção que ele e o seu cliente ouviram na rádio é capaz de ter sido «There´s a starman waiting in the sky».
— Mas era mais pequeno do que eu esperava — prossegue.
No entanto, isso não foi surpresa para ele porque levou ao hotel bastantes celebridades e sempre ouviu dizer que as pessoas célebres são mais pequenas do que a gente imagina.
— As pessoas ou são mais altas ou mais baixas do que a gente espera — acrescenta ele.
Lembra-se de que, enquanto observava Mick Jagger ou David Bowie no retrovisor, ele mexia os seus lábios grossos para acompanhar a melodia.
— Lábios grossos? Parece-me mais Jagger — digo eu.
Ele faz que sim com a cabeça.
— Sim, tenho a certeza de que foi um dos dois.
A mulher sorri. Está a sorrir para mim?
Cai o crepúsculo quando entramos na cidade sob um céu ensanguentado. As ruas são estreitas e calcetadas e o carro avança lentamente. O meu olhar fixa-se numa dessas ruas, um pouco por todo o lado há largos buracos que desnudam a rede de esgotos, como carne esfolada.
No momento em que o taxista tira as malas do porta-bagagens, reparo que a manga esquerda do seu casaco, que repousava inerte sobre a coxa, está vazia.
Ele ergue o coto.
— Uma mina terrestre — diz, e acrescenta que até teve sorte porque só perdeu a audição do ouvido direito e metade de um braço. — O que faz toda a diferença é que fiquei com o cotovelo.
Depois, afasta o cabelo com a mão e mostra-me uma meia orelha e uma cicatriz que vai do olho à têmpora.
— O retrovisor ajuda-me a ouvir o que dizem os passageiros. Olho para o espelho e ouço.
E eu penso: «Eu ouço e vejo.»
Quando entro no Hotel Silêncio com a minha caixa de ferramentas, ouço-o dizer atrás de mim:
— As pessoas pensam que os ataques aéreos são a solução para tudo.
Mas está a falar mais consigo mesmo do que comigo.
1 Citação de Nietzsche, Assim Falava Zaratustra.
2 Citação de Nietzsche, Assim Falava Zaratustra.
3 Cremos que só houve uma tradução desta obra em Portugal, de José Saramago para a Estampa, em 1977. Usámos o título com que foi publicado em Portugal. (N. do T.)
4 Citação de Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal.
5 Personagem ficcional que dá o nome a uma cadeia americana de produtos alimentares e receitas. (N. do T.)
6 Citação de Anne Sexton.
7 Citação de Anne Sexton.
8 Referência a Hart Crane.
9 Citação de Jónas Þorbjarnarson, Hvar endar maður?.
10 Citação de Nietzsche, Aurora.
11 João 1:1.
12 Citação de Jónas Þorbjarnarson, Hvar endar maður?.
13 Citação de Jónas Þorbjarnarson, Hvar endar maður?.
14 Citação de Nietzsche, Assim Falava Zaratustra. (N. da T.)