Eis senão quando

Certo dia, pus-me a folhear o meu Guillaume Apollinaire, salteadamente, displicentemente, para matar saudades, mais de mim mesmo do que do poeta... Eis senão quando, descobri de novo aqueles belos versos:

“Notre Histoire est noble et tragique

Comme le masque d’un tyran.”

Inspirando-me, então, por assonância, escrevi:

“Minha vida é trágica e ridícula

Como uma fita mexicana.”

E, como viesse à baila o cinema mexicano, continuei o poema em espanhol, do que só se salvaram estes versos:

“Llenas estan mis praderas

De tristes lunas y vacas.”

Digo que só se salvaram porque meu amigo José Lewgoy, o Anjo, gostou muito e muito e repetia e repetia:

“Imagine-se um friso com luas e vacas com luas e vacas, com luas e vacas!”

Estava ele visivelmente embriagado, embora não beba. ­Aliás isto de fazer poesia mural seria entrar nos domínios do sapo Diego de Rivera... Objetei-lhe então modestamente que a única coisa de definitivo que se havia dito sobre a vaca estava em Jules Renard; depois de dar os nomes, características e costumes dos diversos bichos de sua chácara, diz ele: “Chama-se vaca, simplesmente. E é o nome que lhe assenta melhor.”

Em todo caso, aqui vai a minha contribuição para a vaca:

“Tão lenta e serena e bela e majestosa vai passando a vaca

Que, se fora na manhã dos tempos, de rosas a coroaria

A vaca natural e simples como a primeira canção

A vaca, se cantasse,

Que cantaria?

Nada de óperas, que ela não é dessas, não!

Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,

Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!

Cantaria o cheiro dos trevos machucados.

O voo decorativo dos quero-queros,

Ou, quando muito,

A longa, misteriosa vibração dos alambrados...

Mas nada de superaviões, tratores, êmbolos

E outros troques mecânicos!”

Aliás, o que é que há contra a vaca? Como uma prova da sinceridade e falta de malícia dos poetas modernos, que se negam a reconhecer qualquer distinção convencional entre coisas “poéticas” e “não poéticas”, eis aqui um poeminha que, por volta de 1930, nenhum jornal, nenhuma revista de Porto Alegre quis publicar e que agora insiro de contrabando no meio desta prosa:

“Ora, Maria, o meu mundo é de

temperaturas,

tensões

fulgurações.

Eu nada tenho a ver com os sentimentos humanos!

Por que que tu não és uma vaca, Maria?

Por quê?

Ficaria tudo muito mais simples e verdadeiro...”