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Merleau-Ponty e a fenomenologia da corporificação
Merleau-Ponty: vida e trabalhos
Contemporâneo íntimo de Sartre, Maurice Merleau-Ponty nasceu em 1908, em Rochefort-sur-Mer, na França. Sua formação inicial foi seguida da esperada trajetória de um acadêmico: entrou na École Normale Supérieure em 1926, onde estudou com o neokantiano Léon Brunschvicg e também se tornou conhecido de Sartre e de Beauvoir. Em meados dos anos de 1930, após lecionar e realizar pesquisa sob os auspícios de uma bolsa de estudos da Caisse Nationale de la Recherche Scientifique (CNRS), Merleau-Ponty retornou à École Normale para realizar um doutorado. Em 1938, apresentou sua tese preliminar, A estrutura do comportamento, que só foi publicada em 1942. Nesse trabalho Merleau-Ponty desenvolve uma crítica às concepções então predominantes sobre o reflexo condicionado como um fenômeno puramente fisiológico, e também foi altamente crítico das teorias behavioristas em psicologia. A orientação dessas críticas, no sentido de que essas visões quase mecânicas falham em explicar o sentido e a significância de movimentos e atividades incorporados, antecipou suas concepções fenomenológicas mais maduras.
Ao iniciar a Segunda Guerra Mundial, Merleau-Ponty serve na infantaria como tenente. Volta a lecionar após a desmobilização, e começa a realizar a pesquisa que o levou à finalização de Fenomenologia da percepção, publicado em 1945. Ao longo dos anos de 1940, esteve estreitamente vinculado a Sartre, bem como a outras figuras da emergente escola de pensamento existencialista, ajudando-o a fundar e editar o Les temps modernes. Como Sartre, além de assumir posições públicas sobre questões sociais e políticas, tem suas concepções políticas profundamente influenciadas pelo marxismo. Contudo, questões políticas, incitadas pela Guerra da Coreia, criaram uma divergência entre ambos, que se tornou formal em 1953 quando Merleau-Ponty se desligou do Les temps modernes.
Durante esses debates e desacordos politicamente carregados, a carreira de Merleau-Ponty continuava progredindo. Em 1945 começou a lecionar na Universidade de Lyons, onde foi nomeado Professor em 1948, e, em 1952, eleito para a Cátedra de Filosofia no Collège de France, uma posição anteriormente ocupada por Henri Bergson. Suas publicações depois de Fenomenologia da percepção incluem Humanismo e terror (1947), Sentido e não sentido (1948), Aventuras da dialética (1955), Elogio à filosofia e outros ensaios (1960) e A prosa do mundo (1969), o último, um manuscrito inacabado publicado após sua morte prematura em 1961. No momento de sua morte, Merleau-Ponty estava trabalhando também em uma significativa extensão e revisão de sua fenomenologia. Esse manuscrito igualmente inacabado foi publicado sob o título de O visível e o invisível.
Neste capítulo, vamos nos concentrar exclusivamente em Fenomenologia da percepção, e mesmo aqui vamos nos restringir principalmente ao prefácio, à introdução e à parte um do livro (aproximadamente as primeiras 200 páginas). Fenomenologia da percepção constitui um completo repensar do método fenomenológico e da fenomenologia (como veremos abaixo, Merleau-Ponty sustenta que esse repensar é essencial à prática constante da fenomenologia), embora não haja dúvidas de que ele tenha aprendido muito com Husserl, Heidegger e Sartre, e igualmente com Scheler. Talvez a característica mais surpreendente da fenomenologia de Merleau-Ponty, em contraste com a de Husserl, de Heidegger e de Sartre, seja a extensão de seu envolvimento com a pesquisa empírica em curso nas ciências naturais, especialmente na psicologia, fisiologia e linguística. Merleau-Ponty foi profundamente influenciado pela psicologia da Gestalt (nos anos de 1930, ele assistiu às conferências de Aron Gurwitsch sobre o sujeito), especialmente sua ênfase na estrutura holística da experiência.
Psicologia da Gestalt Uma característica proeminente da fenomenologia de Merleau-Ponty é a influência do movimento da Gestalt na psicologia. O movimento, cujas figuras dominantes incluem Max Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka, rejeitou descrições “sensacionistas” da experiência perceptual – ou seja, teorias que concebem a percepção como envolvendo algum tipo de átomos sensórios ou sensações como os elementos fundamentais – em favor de uma teoria que enfatiza a prioridade das formas significativas inerentes à experiência perceptual (“Gestalt” = configuração). Ou seja, os gestaltistas argumentam que a experiência perceptual está organizada em todos significativos, por exemplo, em figura-e-fundo, cuja significância não pode ser entendida como o resultado ou produto da combinação de átomos sensórios simples, menos-que-significantes. Na experiência, o todo é anterior às partes e, portanto, é mais do que sua soma (na verdade, na visão da Gestalt, é somente em termos do todo que podemos delinear, de algum modo, quaisquer partes significantes). |
Contudo, Merleau-Ponty não se curvou servilmente às descobertas empíricas da época. Ao contrário, uma grande parte de sua atenção à pesquisa empírica é dedicada a expor as suposições não examinadas concernentes à natureza da experiência e às frequentes concepções procustianas da percepção, da corporificação e da atividade humana em ação na maneira com que cientistas interpretam seus achados. Essas suposições, tensões e distorções servem para enfatizar a necessidade de investigações fenomenológicas adicionais: do que Merleau-Ponty chama “um retorno aos fenômenos”. Todavia, antes de examinar esse retorno, devemos primeiro voltar brevemente a Husserl.
Sobre a corporificação em Husserl
Temos, em grande parte, evitado até agora o tema do caráter corporificado da experiência. Vimos em A transcendência do ego que Sartre, ao desenvolver uma descrição de ocorrências não reflexivas do “eu”, apela para o corpo como o “preenchimento ilusório” dessas ocorrências. Embora o corpo “sirva como um símbolo visível e tangível do eu”, ao mesmo tempo também “pode consumar a degradação total do eu concreto da reflexão” (TE: 90). Exceto por essas observações breves, e um tanto depreciativas, Sartre é mais ou menos silente sobre a questão da corporificação nesse trabalho inicial. Na época de O ser e o nada, conforme sua atenção à existência humana em suas manifestações “concretas”, a concepção de Sartre sobre o corpo se torna muito mais nuançada e complexa. Uma vez que o para-si é, ao mesmo tempo, sempre um em-si, ou seja, uma vez que a existência humana é sempre uma combinação de facticidade e transcendência, ela é sempre existência corporificada. Qualquer instância particular do ser-para-si se experiencia como um ente corporificado, agindo no e sobre o mundo. (Essa ideia se aplica igualmente a Heidegger e à sua concepção de existência humana como Dasein. Heidegger, entretanto, é em grande medida silente sobre a questão do caráter corporificado da existência do Dasein, aludindo somente de um modo críptico e delegatório à ideia de que “a ‘natureza corporal’ do Dasein esconde por si só toda uma problemática”, que, Heidegger observa, “não será tratada” em Ser e tempo (BT: § 23). De um modo geral, Heidegger nunca se ocupará realmente dessa problemática.) Sartre, portanto, dirá em O ser e o nada que “o ser-para-si deve ser completamente corpo e deve ser completamente consciência” (BN: 404). Ele em seguida acrescenta que o ser-para-si “não pode ser unido a um corpo” (BN: 404). Falar sobre uma união entre a consciência e o corpo envolve uma combinação de duas manifestações do corpo, diferentes e mutuamente exclusivas: meu corpo como experienciado por mim e meu corpo como experienciado por outros.
Em muitos dos trabalhos de Husserl, publicados ao longo de sua vida, a experiência do corpo e o seu papel na experiência de outros tipos de objetos recebe pouca, se alguma, atenção. Na verdade, seus esforços para isolar e descrever a consciência “pura” ou “absoluta” e o ego puro, não empírico, bem como os procedimentos necessários da redução fenomenológica, incitam a imageria de um tipo de campo, ou reino, fantasmático, descorporificado, da consciência. Essa imageria é posteriormente encorajada pelas próprias caracterizações que Husserl faz de suas investigações como sendo conduzidas no espírito de Descartes (e. g., seu trabalho de 1929, intitulado Meditações cartesianas). É Descartes o autor do dualismo cartesiano, que concebe a mente e o corpo como duas substâncias distintas, mutuamente exclusivas, cada qual podendo existir independentemente uma da outra (isso é parte do que significa pensar sobre cada uma delas como substâncias). Na sexta meditação, como parte do argumento central para essa separação entre mente e corpo, Descartes afirma ser capaz de se conceber “clara e distintamente” existindo exclusivamente como uma “coisa pensante”, inteiramente separada de seu corpo (do mesmo modo, é capaz de conceber seu corpo existindo inteiramente separado de sua mente). Embora Descartes sustente também que a mente e o corpo existam de fato em um estado de “união substancial”, unidos e capazes de mutuamente afetar um ao outro, sua separação ontológica permanece uma pedra angular de sua visão geral.
A despeito de suas alusões a Descartes e ao cartesianismo, Husserl não compartilha do dualismo ontológico de Descartes. Na verdade, quando Husserl trata do tema da corporificação e do caráter corporal da experiência, suas conclusões vão diretamente de encontro às afirmações que motivam a concepção de Descartes, ou seja, às afirmações relativas à concebilidade da distinção entre mente e corpo. O tratamento mais altamente desenvolvido de Husserl acerca do corpo aparece no segundo volume de Ideias, que não foram publicados durante sua vida. Atenção a esse trabalho dispersa inteiramente a imagem fantasmática da consciência, que sua caracterização da redução fenomenológica com frequência incita, e serve, além disso, para estabelecer os fundamentos para as investigações futuras de Merleau-Ponty. Merleau-Ponty fez um estudo cuidadoso de Ideias II, quando ainda estava sob sua forma arquival não publicada, e sua influência pode ser percebida em Fenomenologia da percepção. Um breve esboço de algumas das principais teses sobre o corpo, extraídas desse trabalho, ajudará a dar uma imagem mais desenvolvida da fenomenologia husserliana e a preparar o caminho para uma descrição da fenomenologia de Merleau-Ponty acerca da experiência corporificada.
A descrição de Husserl sobre o corpo em Ideias II é orientada em torno de duas afirmações principais:
(a) O corpo é algo que aparece na experiência como um tipo de coisa categoricamente distinto.
(b) O corpo e a autoexperiência corporal desempenham um papel essencial com respeito à possibilidade de formas diferentes de intencionalidade, ou seja, à possibilidade da experiência que é de ou sobre objetos diferentes do próprio corpo.
Como Husserl, vamos explorar primeiro a afirmação (b). A afirmação de que o corpo desempenha um papel essencial com respeito às diferentes formas de intencionalidade deveria ser entendida como uma afirmação constitucional: a constituição na experiência de vários tipos de objetos envolve o corpo. Com “envolve”, Husserl não pretende expressar uma afirmação sobre fisiologia; ele não está fazendo uma afirmação sobre mecanismos causais que estejam em ação no corpo e que possam ser produtivos com respeito às várias formas de experiência. Em vez disso, “envolve” deveria também ser entendido fenomenologicamente. A fim de ter experiências que sejam de ou sobre vários tipos de objetos, eu devo me experienciar como corporificado, como tendo um corpo. (De acordo com as críticas sobre a redução fenomenológica, essa última afirmação pode ser verdadeira ainda que eu não tivesse “de fato” um corpo.)
Os objetos que Husserl tem em mente são objetos materiais, espaçotemporais: coisas ordinárias tais como pedras e árvores, mesas e cadeiras. Assim, sua afirmação é que a fim de termos experiência de ou sobre objetos materiais, espaçotemporais, devemos nos experienciar como corporificados. De um modo mais geral, Husserl afirma: “O Corpo é, em primeiro lugar, o meio de toda percepção; é o órgão da percepção e está necessariamente envolvido em toda percepção” (Ideas II: § 18). Para começar a explicar essa afirmação, devemos começar com uma observação sobre a terminologia, uma vez que o uso de letra maiúscula para “Corpo” registra uma distinção importante. Em alemão, todos os substantivos são grafados com letra maiúscula, mas o uso do “C” maiúsculo, feito pela tradução, indica que a palavra alemã que está sendo traduzida é Leib, enquanto “corpo” com “c” minúsculo traduz Körper. O último termo, etimologicamente relacionado com a palavra inglesa “corpse”, significa o corpo entendido em termos materiais, como um objeto físico de um tipo particular, enquanto Leib especifica o corpo vivo e, no contexto fenomenológico, o corpo experienciado ou o corpo-como-vivido. Como observado em (a), acima, um dos principais pontos de Husserl (e que prossegue em Merleau-Ponty) é que o corpo não é experienciado como apenas mais um objeto material dentre outros, mas sim que é manifesto de uma maneira categoricamente distinta. (No restante desta seção, minhas citações de passagens preservarão essa distinção, mas eu mesmo não a utilizarei.)
Para retornar à afirmação mais ampla de Husserl, parece razoavelmente claro que o corpo é o “meio” e o “órgão” da percepção, uma vez que muitas das mais básicas descrições de nossa experiência perceptual envolvem referência à nossa existência corporal. Dizemos, por exemplo, que vemos com nossos olhos, ouvimos com nossos ouvidos, tocamos e sentimos com nossas mãos, e assim por diante, e essas referências, por sua vez, dizem respeito ao corpo de um modo mais geral: olhos e ouvidos estão localizados na cabeça, as mãos, nas extremidades dos braços, e assim por diante. Embora as referências ao corpo nessas descrições básicas pareçam importantes, em que sentido elas se referem ao corpo necessariamente, como Husserl afirma? Afinal, pareceria que poderíamos imaginar uma experiência perceptual, especialmente visual e auditiva, que não fosse de fato mediada pelo corpo, por exemplo, na experiência do sonho, ou, mais drasticamente, nas maquinações do “gênio maligno” de Descartes. Além do mais, a própria prática de Husserl da redução fenomenológica não nos ensina a “colocar entre parênteses” ou “parentesar” nossa existência empírica, que incluiria nossa existência como entes corporificados? Mesmo que permaneçamos dentro da perspectiva da redução fenomenológica, devemos ainda permanecer fiéis aos contornos de nossa experiência como experienciada, e assim, mesmo que coloquemos entre parênteses a existência real de nossos corpos materiais, nossa experiência perceptual ainda se reporta tanto a nossos corpos como aos vários objetos percebidos (e o compromisso com a existência real da última também foi, é claro, suspenso). Além disso, mesmo que cedamos aos cenários mais fantásticos do engano, Husserl afirmaria que uma explicação cuidadosa de nossa experiência perceptual nesses cenários ainda envolve uma referência essencial ao corpo, à medida que essa experiência apresenta objetos materiais, espaçotemporais.
Para ter uma ideia disso, recorde o que Husserl considera como outra dimensão essencial da experiência perceptual de objetos materiais, ou seja, que ela é sempre de natureza perspectiva: eu sempre vejo a pedra de um lado ou de outro, de um ângulo ou de outro, a uma distância particular, e assim por diante. Minha experiência perceptual da pedra é sempre orientada, mesmo quando eu apenas imagino ver a pedra no “olho da minha mente”, e o corpo, Husserl afirma, desempenha um papel essencial aqui como o que ele chama o “ponto-zero da orientação” (Ideas II: § 18). Ou seja, o corpo serve como o ponto de referência que, junto com a localização do objeto, determina o modo pelo qual o objeto será percebido. Eu vejo este lado da pedra porque é o lado que está diante de mim (de meus olhos/face/corpo); ela ocupa este tanto de meu campo visual porque está a uma distância tal ou tal de mim (meus olhos/face/corpo). Na verdade, se considerarmos o caráter métrico de nossa experiência perceptual, ou seja, que coisas são manifestas como “aqui” ou “ali”, como “próximas” ou “distantes”, “acima” e “abaixo”, à “direita” ou à “esquerda” e assim por diante, todas essas locuções pressupõem estarmos localizados e orientados com respeito às coisas que são assim manifestas. Estarmos localizados e orientados, por nossa vez, pressupõe nossa morada corporal no espaço que experienciamos. Se não tivéssemos localização alguma no espaço que percebemos, então as coisas não apareceriam com orientação perspectiva alguma. Ao mesmo tempo, muitas dessas locuções métrico-espaciais não se aplicam adequadamente com respeito à nossa experiência de nossos próprios corpos. Eu não estou perto nem longe de meu próprio corpo, nem meu corpo jamais está em um lugar diferente de onde eu estou; é por isso que Husserl se refere ao corpo como o ponto-zero da orientação.
Maior atenção ao caráter perspectivo, adumbrativo da experiência perceptual implicará o corpo em um grau muito maior. Considere a apresentação visual adumbrativa de uma mesa. Quando vejo a mesa, eu a vejo de um lado, e a partir de um ângulo. Contudo, a mesa é também manifesta para mim como visível de outros ângulos e como tendo outros lados para serem vistos, de modo que se eu virasse minha cabeça, veria a mesa de um ângulo levemente diferente, e se caminhasse para outro lugar na sala, veria o lado dela agora oculto para mim. Incrustada em nossa experiência perceptual, uma rede elaborada de condicionais registra experiências perceptuais possíveis, mas não atualmente reais: se eu virar minha cabeça, então verei o canto da mesa; se eu estender minha mão, então sentirei a superfície da mesa; se eu chegar mais perto, então sentirei o cheiro do óleo de limão que usei para limpá-la ontem. Esses condicionais, que Husserl chama de relações de “motivação”, são essenciais para nossa experiência ser de ou sobre objetos materiais. Esses condicionais se referem essencialmente aos nossos corpos. Sem eles, nossa experiência não apresentaria coisas com nenhum tipo de densidade, como tendo lados e aspectos para serem posteriormente explorados. Contudo, duas coisas deveriam ser observadas aqui. Primeiro, o apelo de Husserl a esses condicionais não pode constituir uma descrição completa ou suficiente da constituição dos objetos materiais, uma vez que é perfeitamente compatível com tais condicionais que “lados ocultos” surjam somente quando realmente me movo para observá-los. Em segundo lugar, essa concepção não é de Merleau-Ponty, uma vez que conceber o caráter “motivado” da percepção como envolvendo, não importa o quão implicitamente, tais condicionais significa conceber a percepção como envolvendo, não importa o quão implicitamente aqui também, algo que tem a forma de juízos. Como veremos, essa concepção é enfaticamente rejeitada por Merleau-Ponty.
O corpo (ou Corpo) não somente desempenha um papel essencial com respeito à constituição de outras categorias de objetos, mas é ele próprio constituído na experiência como um tipo de entidade categoricamente distinto. Essa ideia já está implícita no papel desempenhado pelo corpo na constituição da experiência de outras coisas, por exemplo, no fato do corpo ser manifesto como o ponto-zero de orientação e como o local de motivações cinestésicas em condicionais motivadores/motivados. Mas mesmo essas caracterizações do corpo não são suficientes para capturar completamente seu lugar distintivo na experiência, como indicado pela afirmação provocativa de Husserl de que um “sujeito cujo único sentido fosse o sentido da visão não poderia em absoluto ter um Corpo aparente” (Ideas II: § 37). Embora pudesse ter sensações cinestésicas, e, assim, ver-se como de algum modo conectado ou vinculado a um objeto material, a esse sujeito faltaria, no entanto, sensações cinestésicas. Por exemplo, esse sujeito pode apreender visualmente o movimento de “seu” braço, ao ver que o movimento segue de acordo com seu desejo de que se mova, mas ele não sentiria o movimento de seu braço. Se, ao mover esse braço, ele colidisse abruptamente com um obstáculo, nosso sujeito imaginado poderia também observar isso se acontecesse de ainda estar olhando para esse braço, mas ele não sentiria dor alguma em seu braço, nem qualquer sensação de resistência diante desse obstáculo.
Sem esses tipos de sensações táteis, o sujeito consideraria seu braço, no máximo, como um tipo especial de utensílio, sobre o qual ele tivesse uma forma especial e exclusiva de controle, mas não o consideraria como parte dele próprio. Seu corpo não seria ainda um corpo-vivido: “Obviamente, o Corpo também deve ser visto como qualquer outra coisa, mas ele se torna um Corpo somente ao incorporar sensações táteis, sensações de dor etc. – em suma, pela localização dessas sensações como sensações” (Ideas II: § 37). Falta à experiência visual esse tipo de “localização”. Embora eu veja com meus olhos e, portanto, veja essa localização em meu corpo como conectada à minha experiência de ver (e. g., eu sei que, se eu puser minha mão sobre meus olhos, não serei mais capaz de ver), ainda assim não localizo a experiência em ou sobre meus olhos. A experiência visual me concede um mundo “exterior”, para além dos limites de meu corpo (assim como esses próprios limites, até certo ponto), e embora essa experiência seja orientada com respeito aos meus olhos, ela não é experienciada enquanto acontecendo aí. O sentido do tato, por contraste, é localizado; eu experiencio sensações táteis somente quando coisas entram em contato com meu corpo e experiencio as sensações nos pontos em que sou tocado (nenhum contato assim é requerido para a experiência visual). Um corpo-vivido é um “campo localizado de sensações”, não meramente um conduto causal de sensações, mas o lugar em e sobre o qual essas sensações ocorrem. Dentro do domínio das sensações táteis, Husserl coloca ênfase especial sobre o fenômeno de “duplo tato”, que diz respeito ao fato de o corpo ser algo que toca coisas, ou seja, tem sensações táteis localizadas, e poder ele próprio ser tocado. Se eu coloco minha mão direita sobre meu braço esquerdo, tenho a sensação de ser tocado sobre meu braço esquerdo e sensações de tocar um objeto no interior de minha mão direita.
A “dupla constituição” do corpo-vivido, como algo que toca e é tocado, estabelece sua materialidade e sua distinção categórica com respeito aos objetos materiais em geral. De acordo com Husserl, o corpo não é apenas um objeto material que eu, este ego, tenho; nem é algo ao qual sou agregado e que me leva a ter várias experiências. Em vez disso, o corpo-vivido está completamente entrelaçado com minha existência como um ser consciente, como Husserl deixa claro na seguinte passagem, enfaticamente anticartesiana:
Dizer que esse ego, ou a alma, “tem” um Corpo não significa meramente que exista uma coisa físico-material que, através de seus processos materiais, apresentaria pré-condições reais para “eventos conscientes” ou mesmo, inversamente, que em seus processos ocorram dependências de eventos conscientes dentro de um “fluxo de consciência” [...] A alma e o ego psíquico “têm” um Corpo; existe uma coisa material, de certa natureza, que não é meramente uma coisa material, mas um Corpo, i. e., uma coisa material que, enquanto campo de localização para sensações e indícios de sentimentos, como um complexo de órgãos do sentido, e como parceiro e equivalente fenomênico de todas as percepções das coisas [...] constitui um componente fundamental da dadidade da alma e do ego (Ideas II: § 40).
Muitas dessas ideias-chave na fenomenologia da experiência corporificada, de Husserl, vão parar, mais tarde, em Fenomenologia da percepção, de Merleau-Ponty. As páginas de abertura da parte um, o capítulo 2 (“A Experiência do Corpo e a Psicologia Clássica”) recapitulam em um grau considerável as afirmações de Husserl considerando a distinção categórica do corpo em relação aos objetos materiais em geral. Merleau-Ponty chama atenção para a “presença permanente” do corpo em nossa experiência perceptual, distinguindo-a claramente da “permanência de fato de certos objetos, ou o órgão comparado a um utensílio que está sempre disponível” (PP: 91). A permanência do corpo não é de fato, mas, em troca, absoluta: “O corpo, por conseguinte, não é mais um dentre os objetos externos, que ofereceria somente essa particularidade de estar sempre aí. Se é permanente, é de uma permanência absoluta que serve de fundo para a permanência relativa dos objetos evanescentes, os objetos reais” (PP: 92).
O apelo de Merleau-Ponty ao corpo como o “fundamento” para a aparição de outros objetos ecoa a afirmação de Husserl de que o corpo serve como o “ponto-zero de orientação”, e, assim, permite a possibilidade de ter, de algum modo, uma perspectiva sobre o mundo. Como tal, o corpo não é ele próprio apenas mais um objeto revelado dentro dessa perspectiva. Embora Merleau-Ponty tenha aprendido claramente de Husserl e fosse inspirado por ele, Fenomenologia da percepção não é uma mera apropriação ou duplicação dos insights e descobertas anteriores de Husserl. Quaisquer que sejam os traços da fenomenologia de Husserl a serem encontrados em Fenomenologia da percepção eles estão localizados dentro de uma concepção original e distintiva da fenomenologia. Dessa concepção iremos tratar agora.
O “retorno aos fenômenos” de Merleau-Ponty
O prefácio à Fenomenologia da percepção começa com Merleau- Ponty levantando novamente a questão sobre o que é a fenomenologia. Dada sua colocação relativamente tardia na tradição fenomenológica, subsequente não só a Husserl, mas também a Ser e tempo de Heidegger e a O ser e o nada de Sartre, começar com essa questão é dissonante, para dizer o mínimo. Afinal, não deveríamos saber na época de Fenomenologia da percepção o que a fenomenologia é, como é feita e o que pode obter? Certamente, houve desacordos e debates, modificações e divergências, mudanças tanto nos métodos como nas conclusões, mas isso torna a própria ideia de fenomenologia opaca ou, de algum modo, aberta à questão? Como sua discussão subsequente revela, Merleau-Ponty está bem consciente da estranheza de sua questão inicial, e tanto antecipa como saúda seu efeito desconcertante. Ao retornar à questão acerca do que é a fenomenologia, ele espera, consequentemente, iniciar um retorno aos próprios fenômenos, e, assim, redespertar em nós um sentido tanto do tema da fenomenologia como de sua significância. A ideia de “retornar” aos fenômenos, de “redespertar” nossa sensibilidade para eles, permeia o trabalho como um todo. Merleau-Ponty descreve repetidamente seu projeto como uma recuperação e recordação; aqui estão alguns exemplos:
Devemos começar por redespertar a experiência básica do mundo (PP: viii).
Retornar às coisas mesmas é retornar a esse mundo anterior ao conhecimento (PP: ix).
É necessário reencontrar, como anterior às ideias de sujeito e objeto, o fato de minha subjetividade e o objeto em estado nascente, a camada primordial na qual nascem tanto as ideias como as coisas (PP: 219).
Esses imperativos de reencontrar, de redespertar e de retornar estão conectados ao fato de Merleau-Ponty levantar uma vez mais a questão justamente acerca do que é a fenomenologia, uma vez que sua concepção de fenomenologia e seu chamado de “retorno” aos fenômenos estão unidos. A fenomenologia facilita esse retorno e registra os resultados. Na verdade, a ideia de retornar, de ter nossa atenção trazida de volta a algo agora negligenciado, é inerente à própria ideia de fenomenologia e serve como seu impulso fundador, especialmente se considerarmos o procedimento primário de Husserl: a redução fenomenológica. Como Heidegger observa em suas conferências Os problemas básicos da fenomenologia, a “redução” deve sua etimologia à combinação de “re-” (para trás ou de novo) e “ducere” (conduzir), de modo que na execução da redução somos levados de volta a algo indisponível para, ou obscurecido por, uma perspectiva não fenomenológica (cf. BP: 21). Essa ideia também está implícita na discussão de Husserl sobre o tema da fenomenologia como “invisível aos pontos de vista naturalmente orientados”, especialmente quando consideramos o papel desse tema com respeito à possibilidade precisamente desses “pontos de vista naturalmente orientados” (SW: 10). O tema da fenomenologia é algo que precede e torna possíveis pontos de vista a partir dos quais não é mais prontamente visível ou acessível. A fenomenologia esteve completamente envolvida com retornar, redespertar e redescobrir, e, assim, a questão de abertura de Merleau-Ponty pode ser lida como uma aplicação reflexiva sobre esse envolvimento; a prática da fenomenologia exige uma disposição para reabrir a questão acerca da natureza da própria fenomenologia, e, assim, a própria Fenomenologia da percepção começa com essa reabertura.
De acordo com o modo como Merleau-Ponty concebe a fenomenologia, sua tarefa é puramente descritiva, o que significa que a fenomenologia de modo algum se envolve em especulação; nem busca construir explicações de qualquer tipo. Assim, a fenomenologia é radicalmente distinta das ciências naturais. A fenomenologia não só é distinta das ciências naturais como tem um tipo de prioridade com respeito a elas, uma vez que o que busca descrever é nossa experiência perceptual, corporificada, do mundo que torna possíveis as ciências naturais. Como vimos em Husserl, as ciências naturais são uma consequência da atitude natural de forma mais geral, que supõe um mundo objetivo, repleto de uma variedade de entidades materiais e relações causais. O que a atitude natural, assim como as ciências naturais, negligencia são as origens dessa concepção do mundo na experiência, e para Merleau-Ponty a tarefa da fenomenologia é “retornar” a essas origens: descrever nossa experiência perceptual “pré-objetiva” que precede e torna possível uma concepção objetiva do mundo. De acordo com seu sentido da prioridade das relações entre elas, Merleau-Ponty marca a distinção entre a fenomenologia e seu domínio (a experiência perceptual pré-objetiva) e as ciências naturais e seu domínio (o mundo objetivo) como uma distinção entre expressão de primeira e de segunda ordem, respectivamente.
Retornar aos fenômenos, “revelar uma ‘camada primária’ da experiência sensível” (PP: 227), requer a execução da redução fenomenológica, para ser entendida uma vez mais como tendo nossa atenção “conduzida para trás”, às origens perceptuais da nossa concepção do mundo. Para Merleau-Ponty, o que é “posto fora do jogo” ou entre parênteses é a concepção objetiva do mundo: do mundo entendido como um reino de objetos e relações terminado, determinado e já-pronto. A insistência de Merleau-Ponty em recuperar o ponto de vista da experiência consciente não deveria ser entendida como uma recolha à esfera da “consciência pura”, para a experiência tida por um ego puro que serve como a condição de possibilidade da experiência. Uma esfera de pura consciência, com seus processos constituídos pelos sentidos, é tão descritivamente inadequada como a perspectiva sobre a experiência fornecida pelas ciências naturais, que concebem a percepção como o resultado ou produto final de um processo causal mecânico. Para Merleau-Ponty, o sujeito da experiência nunca é, em primeiro lugar, cortado ou separado do mundo, e o mundo dentro do qual ele se encontra não é o mundo completamente determinado e objetivo das ciências naturais, nem um produto de vários processos conscientes subterrâneos, tais como a síntese: “Quando volto a mim, após uma excursão ao reino do senso comum dogmático ou da ciência, encontro não uma fonte de verdade intrínseca, mas um sujeito destinado ao mundo” (PP: xi). Que sejamos, enquanto sujeitos da experiência, “destinados ao mundo” explica por que Merleau-Ponty diz, com relação a Husserl, que “a lição mais importante que a redução nos ensina é a impossibilidade de uma redução completa” (PP: xiv). O retorno à experiência perceptual nunca apaga o caráter mundano de nossa existência, nem cinde os “fios intencionais” que nos ligam ao mundo circundante.
A fenomenologia de Merleau-Ponty prossegue sob o lema “Eu estou aberto ao mundo” (PP: xvii), e a tarefa da fenomenologia é recuperar e preservar esse sentido de abertura, sem falsificá-lo, introduzindo clandestinamente hipóteses explicativas ou uma concepção de coisas formadas no nível de expressão de segunda ordem. Levar a cabo essa tarefa é difícil, precisamente devido ao poder e à penetrabilidade de nossa(s) concepção(ões) de segunda ordem acerca do mundo. Existe uma tentação irresistível de “repassar” as características de nossa concepção de segunda ordem em descrições de experiência perceptual, obscurecendo, desse modo, o papel fundamental da experiência perceptual na formação dessa concepção. Do mesmo modo que, para Husserl, a tendência da atitude natural é focar sobre as coisas experienciadas em vez de na experiência das coisas, para Merleau-Ponty existe uma tendência constante de usar os resultados da experiência para explicar essa experiência. Fazer isso não pode senão distorcer a natureza da experiência, uma vez que envolve usar uma concepção determinada, objetiva, do mundo para caracterizar e explicar a experiência, que é pré-objetiva (mas, por conseguinte, não completamente subjetiva) e, em importantes aspectos a serem explicitados, indeterminada.
Superando preconceitos tradicionais I: o empirismo e a integridade da percepção
Considere a seguinte passagem, de um texto central na tradição empirista clássica:
Pela visão tenho as ideias de luz e cores, com seus vários graus e variações. Pelo tato, eu percebo, por exemplo, o duro e o macio, o calor e o frio, o movimento e a resistência, e todas essas mais ou menos seja quanto a quantidade ou grau. O olfato me fornece odores, o paladar, gostos, e a audição transmite sons para a mente em toda sua variedade de tom e composição. E como várias delas são observadas acompanharem uma à outra, elas vêm a ser marcadas por um nome, e, assim, a serem consideradas como uma coisa. Desse modo, por exemplo, quando se observa certa cor, gosto, cheiro, figura, e consistência ocorrendo juntos, são considerados uma coisa distinta significada pelo nome “maçã”; outras coleções de ideias constituem uma pedra, uma árvore, um livro e coisas sensíveis e similares – que à medida que são prazerosas ou desagradáveis excitam as paixões de amor, ódio, alegria, tristeza, e assim por diante (BERKELEY [1710] 1957: § 1).
Essa passagem, embora breve, incorpora uma teoria muito particular da percepção que, com várias modificações e ajustes, ainda desfruta de alguma aceitação mesmo hoje. Ou seja, a teoria da percepção de Berkeley pode muito facilmente ser “fisicalizada”, o que envolve substituir seu, agora antiquado, relato sobre os vários tipos de “ideias” por uma variedade de estímulos físicos. Recorde, por exemplo, a passagem citada na Introdução, de W.V. Quine, uma figura importante no empirismo do século XX, que caracteriza sua experiência perceptual em termos de raios de luz atingindo suas retinas e moléculas bombardeando seus tímpanos e as pontas de seus dedos. A concepção de Quine sobre a percepção herda as características mais importantes da imagem clássica de Berkeley, embora tornando-a talvez mais cientificamente respeitável.
Essa imagem da percepção, seja no idioma clássico de Berkeley ou no mais moderno de Quine, envolve quatro ideias principais que deveriam ser delineadas e consideradas mais extensamente, à medida que todas essas ideias são aquelas às quais Merleau-Ponty se opõe:
• A percepção envolve a recepção ou o registro de algum tipo de unidades ou átomos sensórios simples, por exemplo, ideias de luz e cor, sensações simples, estímulos retínicos, que são de algum modo menos que as coisas que tipicamente dizemos ver, tais como maçãs, mesas ou cadeiras. Essas unidades sensíveis são qualitativa e quantitativamente independentes uma da outra.
• Cada faculdade ou modalidade sensível serve como um “canal” independente dessas unidades sensíveis – a faculdade da visão registra ideias de luz e cor, a faculdade do tato, ideias de dureza e resistência, e assim por diante – de modo que o que eu vejo não é literalmente a mesma coisa que eu toco.
• A percepção das coisas que tipicamente dizemos ver, ouvir, cheirar, tocar e provar, por exemplo, maçãs, mesas e cadeiras, é uma consequência, produto ou resultado da recepção e combinação das unidades mais básicas da experiência. Nossa percepção de coisas ordinárias diz respeito ao fato de termos “observado” que essas unidades sensíveis “andam juntas” ou “acompanham” uma a outra, e, assim, nós “as consideramos uma coisa distinta”, tal como uma maçã, uma mesa, e assim por diante.
• Qualidades afetivas e emocionais são adições posteriores a, ou continuações da, experiência perceptual propriamente dita, que são “estimuladas pela” experiência perceptual, mas não uma parte dela.
Ora, o primeiro ponto contra essa imagem empirista da percepção é que nossa experiência imediata não envolve uma consciência de quaisquer unidades sensíveis individuais. Considere a experiência visual. Aqui, não temos, em primeiro lugar, sensações puras de luz e cor, mas em vez disso vemos, e dizemos ver, coisas, e nem mesmo vemos coisas isoladas, mas em vez disso as vemos dentro de uma cena e, assim, contra um pano de fundo. Eu vejo, por exemplo, minha xícara de café vermelha e branca, não sensações de vermelho e branco, e vejo a xícara sobre minha mesa, de modo que a superfície da mesa e várias outras coisas sobre a mesa servem como o pano de fundo. Merleau-Ponty afirma que “o ‘algo’ perceptual está sempre em meio a alguma outra coisa, forma sempre parte de um ‘campo’” (PP: 4), e isso ocorre mesmo quando estamos olhando somente para uma mera porção de cor. A descrição mais básica da experiência perceptual mais básica envolve as ideias de figura-e-fundo.
Esse primeiro ponto nada tem de semelhante a uma objeção forte ao empirismo, uma vez que o empirismo afirma estar oferecendo uma teoria da percepção, que fornece os elementos fundamentais da experiência perceptual. É claro que, quando percebemos, esses elementos fundamentais já estão, por assim dizer, constituídos em algo mais complexo (toda a “consideração” da qual fala Berkeley já foi feita); apesar disso, o empirismo afirma que uma análise cuidadosa mostrará que existem esses elementos fundamentais; na verdade, devem existir, dada a separação entre os vários “inputs” sensíveis. Embora esse movimento evite a objeção inicial, já deveria parecer um tanto forçado como uma defesa do empirismo, uma vez que apela a elementos não percebidos da percepção, ou seja, a unidades de percepção às quais não corresponde momento algum da consciência no ato de perceber. Mas mesmo deixando este mundo de lado, a principal afirmação de Merleau-Ponty é que o empirismo não é apenas descritivamente inadequado (embora esse seja um grande problema se estivermos fazendo fenomenologia!), mas, mais fortemente, que suas inadequações descritivas o tornam teoricamente irrecuperável. Ou seja, sua afirmação é que se fôssemos começar com tais elementos fundamentais atomísticos, sensações, ideias ou estímulos tão simples, então nunca poderíamos recuperar a experiência ordinária, uma vez que a última contém características que não são redutíveis aos elementos fundamentais sensíveis do empirismo e, entre eles, quaisquer relações são possíveis. Em outras palavras, se o empirismo estivesse correto sobre os elementos fundamentais da experiência perceptual, então o tipo de experiência perceptual da qual desfrutamos de fato seria impossível.
Para começar a ver isso, considere uma vez mais a alegação de Merleau-Ponty de que mesmo a forma mais simples de experiência visual envolve as noções de figura e fundo. Até mesmo ver uma forma simples ou uma mera porção de cor envolve vê-la contra um pano de fundo do qual ela é separada. Uma vez mais, “o ‘algo’ perceptual está sempre em meio a algo mais, forma sempre parte de um ‘campo’”, como na figura seguinte:
Quando olhamos para essa figura percebemos uma forma particular, um triângulo preto, contra um pano de fundo mais claro. Não experienciamos primeiro um número (quantos?) de sensações independentes – umas mais escuras, outras mais claras – que então se agrupam. Nós não só não experienciamos, como não poderíamos experienciar, a figura desse modo, uma vez que seríamos incapazes de explicar como essas sensações se combinam para constituir essa figura. Para ver isso, considere como as várias características da figura são relacionadas uma à outra: o triângulo preto se sobressai do pano de fundo; o triângulo tem bordas que o delineiam claramente e o separam do que o cerca; as bordas pertencem à forma, não ao pano de fundo, assim como toda a área escura que as bordas contêm. Perceber a figura como um triângulo preto sobre um pano de fundo branco envolve ver o triângulo preto como sobre o pano de fundo, de modo que o branco é visto como passando debaixo do triângulo, assim como vejo a superfície de minha mesa se estendendo sob a xícara de café que repousa sobre ela. (Existem outros modos de ver a figura, por exemplo, como uma superfície branca com um buraco triangular cortado nela, e aqui a relação de figura e fundo muda, mas sem desaparecer. Que coisas possam ser vistas de mais de um modo torna o projeto do empirista ainda mais desafiador.)
O problema para o empirista é o de explicar essas características da figura. Ou seja, o empirista deve explicar como todos os átomos sensórios independentes se agrupam exatamente desse modo. Como, por exemplo, o empirista explica a ideia de toda a área escura convergir? Por que as bordas da figura não são vistas como pertencendo ao branco circundante, em vez de à área mais escura de dentro? Claramente, as bordas são vistas como pertencendo desse modo, mas o que é misterioso na descrição do empirista é como isso ocorre. A noção dos elementos sensíveis mais claros formando um pano de fundo é ainda mais misteriosa, uma vez que ao sentido do pano de fundo como continuando por trás da figura, necessariamente, não poderiam ser aduzidos quaisquer átomos sensórios: esses átomos, subjazendo à figura, seriam imperceptíveis e, assim, não poderiam desempenhar um papel na construção da experiência perceptual. Se olharmos de novo para a passagem de Berkeley, descobriremos que observamos “ideias” ocorrendo juntas e que elas “acompanham” uma à outra, e podemos tentar usar essas noções para explicar nossa percepção da figura. Os elementos escuros da figura foram observados “ocorrendo juntos”, assim como os elementos mais claros, e é por isso que vemos a figura como uma figura preta sobre um pano de fundo mais claro. Mas o que devemos entender dessa fala sobre os elementos “terem sido observados ocorrendo juntos”? Deveria estar claro que esse apelo é circular, uma vez que ter feito essa observação é já ter visto a figura como uma figura mais escura sobre um pano de fundo mais claro, e o empirista nos deve uma explicação acerca de como essa observação ocorre, e, assim, de como esse agrupamento é feito desse modo particular. Igualmente circular são quaisquer apelos por parte do empirista à memória ao explicar o agrupamento de sensações de um modo particular. Dizer, com respeito a uma experiência particular, que o arranjo é devido à memória de coisas tendo sido experienciadas de acordo com esse arranjo, somente empurra mais para trás o problema de explicar a ideia básica de experienciar sensações em um arranjo.
Para evitar a acusação de circularidade, o empirista necessita de um mecanismo que seja sensível a possíveis relações entre átomos sensórios independentes que não pressuponham a consequência do funcionamento do mecanismo. O empiricista pode apelar, por exemplo, a relações de proximidade espacial: todos os átomos sensórios mais escuros estão mais perto um do outro do que quaisquer átomos sensórios mais claros, e, portanto, são agrupados e separados dos mais claros. Esse apelo à proximidade espacial é problemático, e em mais de um sentido. Em primeiro lugar, a afirmação é simplesmente falsa, uma vez que existem pontos no triângulo que estão igualmente tão próximos aos pontos no pano de fundo como a outros pontos no triângulo, quer dizer, ao longo das bordas, que, novamente, pertencem à figura, não ao pano de fundo. Mas mesmo que a afirmação fosse verdadeira, ela seria insuficiente para explicar o funcionamento do mecanismo como o faz, uma vez que existem muitos casos em que coisas são percebidas como separadas uma da outra a despeito da proximidade espacial. Ou seja, partes do que é percebido não se agruparão apesar de estarem espacialmente mais próximas do que estão das partes com as quais estão agrupadas.
Nesse momento o empirista pode tentar outra relação: todos os elementos pretos estão agrupados porque são mais similares um ao outro do que a quaisquer outros átomos sensórios constituindo a percepção da figura. Uma vez mais essa relação é insuficiente para explicar a experiência da figura, e uma vez mais por mais de uma razão. Primeiro, a similaridade é uma relação extremamente vaga, e, portanto, o empirista nos deve algum tipo de “similaridade métrica” a fim de explicar a operação do mecanismo. Além disso, mesmo que concedamos ao empirista sua noção de similaridade, ela parece aberta a contraexemplo. Considere uma segunda figura, relativamente simples:
Aqui, existem elementos escuros e claros constituindo a figura, que uma vez mais repousa sobre um pano de fundo mais claro. Os traços claros da figura são ao menos tão similares ao pano de fundo como o são os traços mais escuros da figura (e certamente muito mais similares com respeito à sombra), e ainda assim são vistos como pertencendo à figura e não ao pano de fundo. Simplesmente por que, então, o mecanismo que agrupa átomos sensórios agrupou- os exatamente desse modo resulta um mistério. Merleau-Ponty diz em um determinado momento que “uma impressão nunca pode por si mesma ser associada a outra impressão” (PP: 17), o que significa que qualquer mecanismo que o empirista possa propor não parecerá senão arbitrário, ou, até o ponto em que o fizer, a explicação cairá na circularidade.
Para Merleau-Ponty, o problema, portanto, reside não nas relações possíveis até aqui consideradas, mas no projeto de tentar reconstruir a experiência perceptual usando os materiais disponíveis na descrição empirista. Isso ocorre porque as várias características da figura estão internamente relacionadas uma à outra, ou seja, as características da figura não podem ser descritas ou explicadas independentemente uma da outra, embora sensações ou átomos sensórios, devido à sua independência, possam estar relacionados apenas externamente um ao outro. A alegação de Merleau-Ponty é que nunca podemos recriar ou explicar relações internas a partir de relações externas. Considere um dos próprios exemplos de Merleau- Ponty, que é mais realístico do que as figuras até aqui apresentadas: ver um retalho de tapete vermelho de lã (cf. PP: 4-5). Essa experiência não pode ser interpretada como a combinação da sensação de vermelho mais a sensação de lanosidade, porque o vermelho que percebemos não seria este vermelho caso não fosse também lanoso (e igualmente para a lanosidade). As características da percepção infundem e influenciam umas às outras, e, assim, não podem ser tratadas como elementos autônomos, estando uma pela outra somente em relações externas. Posto sucintamente, o empirista ignora o que podemos chamar de “integridade da percepção”, que acentua a prioridade do todo sobre as partes, de modo que as partes não são independentes, elementos dados de antemão, mas estão internamente conectadas uma à outra e ao todo que elas constituem: “Quando voltamos aos fenômenos descobrimos, como uma camada básica da experiência, um todo já prenhe de um significado irredutível, não sensações com lacunas entre elas” (PP: 21-22).
Ao ignorar o que estou chamando aqui de integridade da percepção, o empirismo comete dois erros principais sobre a percepção e as qualidades perceptuais. Primeiro, o empirismo tem uma tendência para tratar qualidades perceptuais como elementos da consciência, em vez de como elementos para a consciência, por exemplo, ele trata minha percepção do carpete como uma sensação vermelha que eu tenho. Esse primeiro erro distorce a percepção ao torná-la demasiadamente subjetiva, interpretando-a como uma série de eventos ocorrendo dentro da mente ou da consciência (recorde da fala de Berkeley sobre “ideias de luz e cores”). O segundo erro vai na direção oposta, tratando a percepção em termos demasiadamente objetivos. Esse erro envolve tratar as qualidades percebidas como completamente determinadas e desenvolvidas. Aqui, o empirista está olhando tanto para os objetos percebidos, que são, ao fim e ao cabo, um modo em vez de outro, como para os estímulos dos órgãos sensíveis, que uma vez mais são um modo determinado. Dados esses tipos de determinações, o empirista insiste que a experiência perceptual deve ela própria ser determinada. Em vez disso, Merleau- Ponty argumenta que “devemos reconhecer o indeterminado como um fenômeno positivo” (PP: 6), como essencial à própria ideia de experiência perceptual. Existe um terceiro erro, ao qual o empirista está propenso, que está intimamente relacionado ao seu tratamento da percepção como completamente determinada. Esse erro é o que Merleau-Ponty, seguindo o psicólogo da Gestalt, Wolfgang Köhler, chama de “hipótese da constância”, que advém de pensar sobre a experiência principalmente como envolvendo a recepção de determinados estímulos. A hipótese da constância sustenta que a percepção, como a consequência da recepção de estímulos definidos e determinados, reproduz e varia com esses estímulos. Ou seja, a constância dos estímulos significa a constância da experiência perceptual, e uma mudança nos estímulos significa uma correspondente mudança na experiência perceptual.
Considere o seguinte exemplo. Suponha que eu esteja olhando para uma sala de aula cheia de alunos. Objetivamente, a sala tem, digamos, dezoito alunos. Suponha, além disso, que eu esteja posicionado de tal modo que possa ver toda a sala de uma só vez. De acordo com a hipótese da constância, minha experiência visual consiste igualmente de dezoito alunos; afinal, existem dezoito alunos, e todos os dezoito alunos são reproduzidos ou representados em minhas imagens retínicas. Mas esse não necessita ser o caso. Se, por exemplo, eu estiver focando em um aluno, o resto de meu campo visual estará desfocado e indeterminado, de modo que outros alunos formariam somente um pano de fundo indistinto. Embora eu esteja visualmente consciente de alguns alunos, até mesmo de “muitos”, é um erro dizer que deve existir um número determinado em meu campo visual. Ou considere uma variação do exemplo. Eu entro na sala de aula e quero saber se uma aluna em particular está presente. Uma vez mais, eu apreendi a sala inteira de uma só vez, mas levei alguns segundos para registrar que a aluna em questão está, na verdade, na sala. Durante esse tempo minhas imagens retínicas não mudam, e, portanto, alguém olhando para as imagens poderia ver a aluna que estou procurando refletida junto com todos os outros alunos o tempo todo; ainda assim eu não vejo a aluna até registrar que ela está lá, e até que isso se dê soa forçado, para dizer o mínimo, insistir, devido à constância das imagens retínicas, que a aluna estava presente em meu campo visual o tempo todo. Se a aluna estava presente em meu campo visual o tempo todo, como podemos compreender o fato de eu ter de encontrá-la, de eu ter registrado sua presença somente em um momento particular de minha experiência de perceber a sala? Ao mesmo tempo, não é o caso que antes de meu registro da presença da aluna ela estivesse completamente ausente de minha experiência visual. A aluna estava tanto oculta como, num sentido, lá para ser vista; antes que eu a notasse, sua presença estava latente em meu campo visual, e, assim, registrar sua presença é um desenvolvimento possível de minha experiência visual.
Há uma consideração final concernente à integridade da percepção: o empirismo, ao interpretar a percepção como recepção dos estímulos e posse das sensações, trata a experiência perceptual como envolvendo “canais” independentes. Ou seja, na descrição empirista, cada modalidade ou faculdade perceptual fornece seu próprio fluxo separado de informação, e produz sua própria reserva de sensações na mente. Berkeley, por exemplo, está disposto a seguir essa ideia até sua conclusão lógica e afirmar que não vemos literalmente as mesmas coisas que tocamos, ouvimos, cheiramos e provamos, de modo que uma afirmação tal como “eu ouço o pássaro laranja cantando e vejo suas frágeis penas” é respaldada por um processo complexo de combinar e correlacionar ideias ou sensações que ocorrem independentemente. Com base nas descobertas da psicologia da Gestalt, e consistente com sua ideia de que a experiência perceptual envolve “um todo já prenhe de um significado irredutível”, Merleau-Ponty vê as relações internas no coração da integridade da percepção como abarcando as diferentes faculdades ou modalidades perceptuais. Considere novamente o exemplo de ver o tapete vermelho de lã. A lanosidade que eu percebo visualmente é manifesta como lanosa em parte devido ao meu sentido tátil. Eu vejo o tapete como lanoso devido ao modo como tapetes de lã são sentidos ao tocarem minha pele. O tapete vermelho de lã, ao parecer lanoso, parece macio e convidativo ao meu toque, mesmo quando o estou olhando à distância. Outro exemplo que Merleau-Ponty oferece é o modo como a chama de uma vela parece para uma criança antes e depois de ela ter sido queimada por ela. O calor e a dor sentidos no último caso influenciam a experiência visual, de modo que a chama parece quente e dolorosa, e, por conseguinte, diferente do que era antes (cf. PP: 52). (Podemos ver nessas ideias uma continuação da concepção de Husserl sobre o caráter horizontal da experiência, uma vez que o horizonte de qualquer experiência perceptual particular envolverá outras modalidades igualmente perceptuais. Quando vejo a cadeira, parte do horizonte da experiência é que eu posso estender minha mão ao longo do braço dela.) O exemplo da vela mostra que a integridade da percepção se estende para além das faculdades perceptuais reconhecidas pelo empirismo. Não somente as modalidades de ver, ouvir, tocar, cheirar e provar se influenciam mutuamente, mas também são influenciadas por respostas afetivas, emocionais, às coisas. A chama da vela, que parece dolorosa para a criança queimada, também parece igualmente assustadora. A chama assume uma aparência ameaçadora, perigosa, que é parte da experiência visual imediata da criança, como oposta, digamos, a uma conexão ou inferência meramente associativa.
Superando preconceitos tradicionais II: o intelectualismo e o papel do juízo
A descrição empirista da percepção, como recepção de estímulos e posse de sensações, converte a experiência em algo completamente passivo e inerte: uma série de eventos que surgem de um modo causal, quase mecânico. Pouco admira, então, que o que ela aceita como os componentes da experiência perceptual sejam insuficientes para capturar a percepção tal como é vivida. Na verdade, o empirismo parece negligenciar inteiramente o fato de que a experiência perceptual é vivida por alguém que percebe. A experiência perceptual não é meramente o registro passivo dos estímulos, uma reprodução fiel do ambiente circundante, mas uma atividade, como é indicado, por exemplo, pelos vários termos ativos que usamos em conexão com a percepção. Mesmo que restrinjamos nossa atenção à experiência visual, descobriremos, por exemplo, noções ativas tais como olhar, observar, examinar, procurar, notar, encontrar, atentar, investigar, focar, relancear, espiar, espreitar, encarar e olhar de esguelha. O segundo dos dois “preconceitos tradicionais”, que Merleau-Ponty chama de “intelectualismo”, tem a virtude de enfatizar o papel do sujeito que percebe no ato de percepção, e sua concepção de percepção, como a consecução de um sujeito ativo, não é inteiramente indiferente a Merleau-Ponty. Ao mesmo tempo, como indica o fato de ele designar o intelectualismo como um “preconceito”, a descrição que o intelectualismo faz da percepção permanece problemática.
Podemos ter uma ideia dos compromissos centrais do intelectualismo se considerarmos uma famosa máxima de Kant, uma das principais fontes desse preconceito tradicional, concernente à ideia de que a percepção envolve tanto a faculdade de receptividade (pela qual a mente é passivamente provida com o que Kant chama “intuições”) como a da espontaneidade (pela qual a mente aplica ativamente conceitos ao que ela recebe passivamente). A máxima diz o seguinte: “Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas” (KANT, [1781] 1965: 93). A experiência, que não é cega, envolve, portanto, tanto uma dimensão passiva ou receptiva como uma ativa. A dimensão receptiva assegura que a experiência seja conectada com o mundo empírico, acolhendo o mundo “exterior”, e a dimensão conceitual, ativa, assegura que a experiência possa ser uma fonte de conhecimento, uma consecução obtida, frequentemente, com muito esforço. Dado que a percepção envolve a combinação de intuições e conceitos, a figura da percepção que emerge da famosa máxima de Kant é que a experiência perceptual envolve, central e necessariamente, a noção de juízo: toda experiência perceptual envolve juízo, e, portanto, perceber alguma coisa consiste em fazer um juízo a respeito dessa coisa. A experiência perceptual, como envolvendo centralmente juízo, envolve, portanto, centralmente o sujeito que faz o juízo, tornando, desse modo, a experiência perceptual inteiramente ativa.
Já vimos uma descrição fenomenológica da percepção que diverge da afirmação de que os juízos desempenham um papel central na experiência perceptual. Em sua descrição das origens do nada, Sartre insistia que nossa experiência perceptual sempre envolve um elemento negativo e que essas experiências são, fundamentalmente, “pré-judicativas”. Quando percebo a ausência de Pierre no café, eu compreendo isso sem formar o juízo de que Pierre está ausente. Mesmo a simples experiência de perceber uma figura contra um pano de fundo, como envolvendo um campo dividido em figura e não figura (ou pano de fundo e não pano de fundo), inclui negatividade, mas sem necessariamente haver qualquer julgamento da parte daquele que percebe. A formação de um juízo é uma ocupação secundária, de acordo com Sartre: o juízo é construído sobre a experiência perceptual, em vez de ser constitutivo dela.
Merleau-Ponty compartilha a concepção de Sartre de que o juízo é secundário com respeito à experiência perceptual, e concorda, portanto, que falsifica o caráter da experiência perceptual ver o juízo como um traço onipresente. Considere o caso da ilusão de Müller-Lyer:
Mesmo após termos determinado que as linhas contidas pelas setas sejam na verdade iguais, e, assim, ao vê-las julgarmos que são iguais, ainda vemos as linhas como não sendo iguais. Se percepção e juízo fossem equivalentes, então as linhas pareceriam iguais tão logo tivéssemos sido informados sobre a ilusão. Que a ilusão permanece, indica, em efeito, uma distinção entre ver e julgar. Podemos também ver essa distinção emergindo muito claramente no caso de ver um cubo esquemático, tal como:
Aqui, sabemos, e, portanto, julgamos que essa figura seja realmente apenas nove linhas no papel, um desenho bidimensional. Ao mesmo tempo, é extremamente difícil, na verdade, ver a figura como meramente uma reunião bidimensional de linhas. A figura aparece imediata e involuntariamente como um cubo tridimensional, não importando quais juízos, na verdade juízos verdadeiros, possamos ter formado. O ver pareceria ser pré-judicativo.
Ilusões perceptuais persistentes não são o único domínio em que a distinção entre perceber e julgar é evidente; casos de ilusão persistente somente ajudam a ressaltar a distinção de uma maneira especialmente vívida. De acordo com Merleau-Ponty, a distinção é em geral bastante aplicável: a “primeira camada” da experiência perceptual que a fenomenologia busca isolar e descrever, em conformidade com seu status pré-objetivo, é inteiramente pré-judicativa. A indeterminação e incompletude que são constitutivas da experiência perceptual indicam o papel secundário do juízo. Quando vasculho a sala de aula procurando por uma aluna em particular, posso, finalmente, julgar explicitamente que ela esteja de fato presente, mas esse é somente um momento em minha experiência perceptual; antes do juízo, eu estava vendo a sala de aula e os alunos, mas faltava à minha experiência visual o tipo de determinação registrada pelo juízo resultante. A aluna que eu procurava estava lá-para-ser-vista e ainda assim não completamente presente em meu campo visual. Ao insistir na primazia do juízo, o intelectualista elimina esses tipos de tensões e indeterminações no ato da percepção, tornando, desse modo, a experiência perceptual mais imóvel e estática do que ela realmente é e deve ser. O intelectualismo é, portanto, uma reação exagerada ao modelo sem vida e mecânico oferecido pelo empirista. Como Merleau-Ponty observa, nenhuma das duas concepções pode acomodar o caráter vital da experiência perceptual tal como é vivida:
No primeiro caso [empirismo] a consciência é muito pobre, e no segundo caso [intelectualismo], muito rica para que qualquer fenômeno possa incitá-la. O empirismo não vê que temos necessidade de saber o que procuramos, do contrário, não o procuraríamos, e o intelectualismo não vê que temos necessidade de ignorar o que procuramos, do contrário, uma vez mais, não o procuraríamos. Eles estão de acordo quanto a não compreenderem a consciência no ato de aprender nem atribuírem a devida importância a essa ignorância circunscrita, essa intenção ainda “vazia”, mas já determinada, que é a própria atenção (PP: 28).
Embora o intelectualismo se apresente como, e em alguns aspectos seja, um antídoto ao empirismo, corrigindo os erros e distorções presentes na concepção empirista de percepção, parte do problema com a posição intelectualista é que ela tem muito em comum com a concepção empirista que ela alega rejeitar. Considere novamente a máxima de Kant. Que a experiência perceptual envolva, como um de seus dois componentes, o que Kant chama “intuições” indica que o intelectualista retém e se fundamenta no modelo empirista de percepção. Como Merleau-Ponty observa: “O juízo é, com frequência, introduzido como o que falta à sensação para tornar a percepção possível” (PP: 32). O problema aqui é que a introdução do juízo, como complementando o que falta à sensação, ainda mostra um compromisso com as sensações enquanto um ingrediente ou componente da experiência perceptual: “A percepção se torna uma ‘interpretação’ dos sinais que nossos sentidos fornecem de acordo com os estímulos corporais, uma ‘hipótese’ que a mente desenvolve para ‘explicar suas impressões para si própria’” (PP: 33). Ao somente complementar a concepção empirista da percepção, em vez de abandoná-la completamente, o intelectualismo herda, portanto, os mesmos problemas e deficiências inerentes à concepção que ele busca suplantar.
O curioso caso do membro fantasma
A crítica de Merleau-Ponty aos “preconceitos tradicionais” que caracterizam muitas concepções predominantes (na época e hoje) da percepção, tanto na filosofia como na psicologia, assim como sua insistência no que venho chamando de integridade da percepção, dá acesso a um arranjo mais amplo dos fenômenos a serem descritos. Em particular, o que ambos os preconceitos tradicionais ocultam é uma apreciação adequada do caráter corporificado da experiência perceptual: a integridade da percepção é caracterizada pela integridade da autoexperiência corporal e fundada sobre ela, o que não é reconhecido pelo empirismo nem pelo intelectualismo. Vimos que a descrição empirista da percepção a trata como o ponto final de um processo causal, mecânico (a recepção dos estímulos, a presença das sensações diante da mente), enquanto o intelectualista trata a percepção como uma espécie de juízo. No caso do empirista, o próprio corpo é tratado como um mecanismo, ou talvez um conjunto de mecanismos, causalmente conectados ao mundo circundante através do “bombardeio” de raios de luz e moléculas, servindo, desse modo, como um canal de sensações. A descrição intelectualista da percepção, vinculada como é ao ato mental do juízo, trata o sujeito percipiente como corporificado somente acidental ou contingentemente, com todo o trabalho organizatório e esquematizador da experiência perceptual ocorrendo dentro dos limites da consciência. Podemos mostrar que os dois preconceitos, em última instância, compartilham igualmente tanto de uma imagem da percepção como envolvendo estímulos ou sensações enquanto um ingrediente-chave, como de uma concepção de corpo enquanto uma entidade meramente material entre outras, desempenhando somente um papel causal na produção da experiência perceptual. A diferença entre eles reside em determinar se, para haver experiência perceptual, algo mais é necessário além do funcionamento de tais mecanismos causais. Já vimos como a fenomenologia de Husserl, acerca da experiência corporificada, abre uma perspectiva a partir da qual os defeitos dessa concepção subjacente do corpo podem ser identificados, e Merleau-Ponty continua nessa via, aprofundando e desenvolvendo os insights de Husserl. Consequentemente, “o retorno aos fenômenos”, de Merleau-Ponty, que começa como uma descrição da integridade da percepção, rapidamente se transforma em uma fenomenologia do corpo e da autoexperiência corporal.
O que um leitor ainda não acostumado à Fenomenologia da percepção pode achar chocante sobre essa transformação é a quantidade de atenção que Merleau-Ponty dedica à consideração dos casos patológicos. A parte um, que é dedicada ao corpo, abre com uma discussão sobre o fenômeno do membro fantasma (junto com a anosognosia, na qual o membro ainda está presente, mas é “ignorado” pelo paciente), e continua após isso com uma análise ainda mais longa sobre um caso particular: o de um homem referido como Schneider, veterano da Primeira Guerra Mundial, com danos cerebrais, que tem dificuldade de realizar vários tipos de movimentos. Quero examinar com mais detalhe essas discussões, mas é importante primeiro tratar da questão geral de por que Merleau-Ponty foca nesses casos, dado seu desejo de “retornar” aos fenômenos da experiência vivida. Afinal, a maioria de nós não participou dessas patologias, e, portanto, elas não pareceriam ser um ponto de partida produtivo para compreender a experiência corporificada “normal”, não patológica. Todavia, essa aparência é equívoca, e por três razões ao menos:
a) Casos patológicos receberam atenção considerável de teóricos e pesquisadores em psicologia, fisiologia e filosofia. Esses casos têm servido, portanto, como o domínio no qual modelos teóricos explanatórios, de subjetividade corporificada, têm sido desenvolvidos, e que são indicados para serem aplicáveis de forma mais geral, ou seja, igualmente a casos não patológicos. O modo como pesquisadores e teóricos lidam com casos patológicos revela suas concepções de experiência corporal ordinária não patológica, e, portanto, seu tratamento desses casos é um bom objeto de observação no desenvolvimento de uma crítica de suas concepções.
b) Mesmo deixando de lado o que pesquisadores e teóricos sugeriram para explicar casos patológicos, considerar tais casos nos diz algo importante sobre a experiência não patológica. Ao chegarmos a uma descrição adequada sobre a patologia em questão, aprendemos, consequentemente, algo sobre o modo de experiência não patológico correspondente. Por exemplo, se dissermos que o estado do membro fantasma pressupõe que um paciente continue a experienciar a presença de um membro que foi amputado ou destruído, isso levanta a questão de exatamente o que significa experienciar a presença de um membro.
c) Em um determinado ponto, em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty diz que “nada é mais difícil do que saber precisamente o que vemos” (PP: 58), o que indica a dificuldade de efetuar o retorno desejado aos fenômenos. Uma fenomenologia propriamente dita da experiência ordinária é difícil porque a experiência ordinária é transparente para nós; negligenciamos nossa própria experiência das coisas, dirigindo nossa atenção, em troca, para as coisas às quais a experiência nos permite acessar. Casos patológicos, ao fornecerem um claro contraste com formas não patológicas de experiência, ajudam a delineá-las, tornando-as mais vívidas e explícitas. Ao induzir em nós o pensamento “Bem, minha experiência não é como essa”, casos patológicos nos impõem, e nos ajudam a responder, a questão acerca de como é nossa experiência.
Com essas considerações em mente, vamos focar mais atentamente no tratamento que Merleau-Ponty dispensa ao fenômeno do membro fantasma (pelo bem da clareza, omitirei suas observações sobre o caso análogo de anosognosia). Como mencionado em (ii) acima, a caracterização mais neutra do fenômeno do membro fantasma é pressupor que um paciente continue a experienciar a presença de um membro que foi amputado. Pacientes sofrendo do estado do membro fantasma relatarão, por exemplo, sentir dores e outras sensações no membro perdido; além disso, de vez em quando, pacientes ainda agirão de modo a pressupor a presença continuada do membro, por exemplo, ao saírem da cama ou ao começarem a caminhar, para então caírem ao chão. Merleau-Ponty foca principalmente em teorias que tentam descrever ou explicar o fenômeno do membro fantasma. De acordo com sua equiparação entre empirismo e intelectualismo, ele considera duas formas dominantes de explicação: explicações fisiológicas (mais de acordo com o empirismo) e explicações psicológicas (talvez mais intimamente aliadas ao intelectualismo). Embora haja méritos em cada forma de explicação, suas inadequações e antagonismos mútuos revelam que nenhuma delas é suficiente.
Talvez a forma mais direta de explicação seja o modelo fisiológico, que explica o problema do estado do membro fantasma principalmente em termos da continuação de impulsos nervosos do coto remanescente após a amputação. Esses impulsos imitam aqueles normalmente recebidos do membro, e, assim, o paciente continua a sentir várias coisas como se fossem no membro perdido. Existe, com certeza, apoio empírico para essa forma de explicação. Por exemplo, seccionar os nervos que ligam o coto ao cérebro descontinuará efetivamente o fenômeno do membro fantasma. Ao mesmo tempo, existem problemas que surgem se considerarmos que a explicação fisiológica seja completa. Por exemplo, o estado do membro fantasma com frequência persistirá mesmo quando o coto tenha sido anestesiado. Além disso, o fenômeno do membro fantasma tende a ser sofrido por pacientes somente intermitentemente, em vez de continuamente, e as ocasiões em que os pacientes são acometidos por crises desse problema estão com frequência conectadas a características particulares das circunstâncias dos pacientes: o membro perdido será sentido quando as circunstâncias de sua perda forem recordadas, ou quando alguém conectado àquelas circunstâncias for encontrado. O papel desempenhado por tais características sugere uma forma psicológica de explicação à medida que essas características servem para lembrar o paciente de seu membro agora perdido. Na verdade, é tentador descrever o estado do membro fantasma principalmente em termos psicológicos, de modo que o paciente tenha esquecido a perda do membro, que não lembre, ou não queira lembrar, que o membro não mais existe. Nos casos do estado do membro fantasma, o paciente “recusa” sua mutilação, reprime seu conhecimento da ausência desse membro, como pode ser visto quando o paciente continua a tentar se erguer e caminhar sem a ajuda de muletas ou outras formas de apoio. Embora essas observações deem respaldo ao modelo psicológico, esse tem dificuldades para acomodar o fato de que o seccionamento dos nervos encerra a experiência do membro fantasma do paciente.
Dado que cada forma de explicação desfruta de algum apoio observacional e experimental, é tentador buscar uma explicação que de algum modo combine os dois. Merleau-Ponty afirma que essa compatibilização é difícil de ser conseguida, uma vez que, em cada caso, a própria forma de explicação se coloca contra a outra, tornando improvável a possibilidade de uma combinação bem-sucedida. Ou seja, o modelo fisiológico, em última instância, interpreta o fenômeno do membro fantasma como a representação continuada do membro perdido, ocasionada pela recepção de impulsos nervosos, e o modelo psicológico interpreta o fenômeno como envolvendo a ausência, por meio da repressão, de uma representação da verdadeira condição do paciente. Em um caso, Merleau-Ponty observa, temos a representação de uma ausência, e, no outro, a ausência de uma representação, e, portanto, não está claro como combinar uma presença ausente com uma ausência presente (cf. PP: 80).
O problema subjacente é que ambas as formas de explicação, fisiológica e psicológica, descrevem o estado do membro fantasma, e, desse modo, a experiência continuada de um membro perdido, como envolvendo centralmente a noção de representação, seja presente ou ausente. O paciente continua, seja através da recepção dos impulsos nervosos apropriados, seja através do mecanismo de repressão, a representar para si a perna perdida e, assim, a representar para si seu corpo intacto, como era antes da perda do membro. Portanto, suas sensações continuadas de dor e seus esforços comoventes para se envolver em atividades se tornaram agora mais inadequadas, se não impossíveis. O que é problemático aqui é que isso sugere que mesmo no caso normal, em que não há o estado do membro fantasma, a autoexperiência e o conhecimento corporais são de natureza representacional. Mas se atentarmos para os modos pelos quais executamos vários movimentos corporais, descobriremos que isso não ocorre. Por exemplo, quando, querendo uma xícara de café, eu me levanto de minha mesa e me dirijo à cozinha, eu raramente, se alguma vez, penso muito no que minhas pernas estão fazendo. Eu simplesmente me levanto da cadeira e começo a caminhar, sem prestar, de modo algum, muita atenção aos movimentos de minhas pernas. Na verdade, à medida que penso sobre isso e tento figurar os movimentos exatos de minhas pernas, descubro que isso é muito difícil de fazer. Não posso dizer com certeza exatamente como se parece a série de movimentos que começam comigo levantando da cadeira e terminam comigo lá embaixo na cozinha. Portanto, parece implausível, para dizer o mínimo, afirmar que minha execução desses movimentos pressupõe que eu tenha uma representação deles.
Merleau-Ponty diz que “o braço fantasma não é uma representação do braço, mas a presença ambivalente de um braço” (PP: 88). O membro fantasma, em outras palavras, implica um tipo de confronto ou conflito entre dois níveis de autoexperiência corporal: o que Merleau-Ponty chama o “corpo habitual” e o “corpo neste momento” (cf. PP: 82). O paciente sofrendo do estado do membro fantasma continua a contar com o membro perdido, supondo sua presença, do mesmo modo impensado que fazem todos aqueles de nós que têm todos os membros. A confiança continuada do paciente testemunha o caráter profundamente arraigado de suas ações e rotinas habituais: o repertório de atividades corporais que o paciente poderia fluentemente executar antes da perda. Esses hábitos profundamente arraigados conflitam, porém, com a configuração atual do corpo do paciente; os hábitos não “combinam” mais com o que o paciente é presentemente capaz de fazer. Portanto, o paciente cai ao se levantar da cama ou ao começar a caminhar, não em decorrência da presença ou ausência de uma representação, mas porque a forma do corpo habitual do paciente ainda não se conformou aos fatos da situação. (Esses tipos de confrontos são experienciados em uma escala menor sem o tipo de trauma envolvido em perder um membro: pense sobre como é estar na situação de alguém que passou horas andando de skate, ou como poderia ser passar pela porta após ter usado um chapéu especialmente alto, por um tempo considerável. É necessário um tempo para nos “atualizarmos” à atual configuração do nosso corpo, de modo que continuaremos a nos sentir levemente elevados, mesmo que os skates tenham sido removidos, ou a abaixar a cabeça, mesmo que o chapéu tenha sido retirado.)
Em vez de uma combinação de fatores fisiológicos e psicológicos, a descrição de Merleau-Ponty sobre o estado do membro fantasma opera no nível anterior a esses tipos de divisões e dicotomias: a autoexperiência corporal é uma dimensão de meu “ser-no-mundo”, que resiste à decomposição em componentes fisiológicos e psicológicos. O ser-no- mundo, em troca, serve como o fundamento para essas distinções categóricas: “O ente humano, considerado como um ente concreto, não é uma psique unida a um organismo, mas o movimento para trás e para frente da existência que num momento se permite assumir a forma corporal e em outros se move em direção a atos pessoais” (PP: 88).
“Eu posso” e “Eu penso”: a intencionalidade motora
Considere, e tente executar, os seguintes exercícios:
• Diga, seja em voz alta ou para você mesmo, como suas pernas estão, neste momento, dispostas.
• Estenda sua mão direita para baixo e coce seu tornozelo direito.
• Finja que você é um soldado em posição de sentido e faça uma saudação militar formal.
• Trace um oito no ar com seu dedo indicador direito.
Provavelmente, todos esses devem ser exercícios relativamente fáceis de executar, requerendo pouco, quando muito, em termos de esforço ou deliberação. Em particular, a execução desses exercícios geralmente requer pouco em termos de observação. Posso dizer, e então digo, que minhas pernas estão cruzadas neste exato momento, sem ter de confirmar isso por meio de uma inspeção visual delas. Para coçar meu tornozelo não necessito encontrar minha mão nem meu tornozelo; eu simplesmente estendo minha mão para baixo e coço o lugar desejado. Embora eu nunca tenha prestado serviço militar, quando era menino brinquei com “jogos militares” e assisti a filmes e programas de televisão o bastante para executar os movimentos requisitados mais ou menos automaticamente. Similarmente, nenhuma dificuldade se apresenta ao levar a cabo o exercício de traçar; eu posso usualmente dizer que tracei um oito mesmo se mantiver meus olhos o tempo inteiro fechados. Esses exercícios novamente sugerem que nossa relação com nosso próprio corpo, em primeiro lugar, não diz respeito a representações: “O movimento não é pensamento sobre movimento, e espaço corporal não é espaço pensado ou representado” (PP: 137). Não necessito figurar para mim mesmo os movimentos antes de começar a fazê-los, e não encontro figuração alguma ocorrendo no ato de fazê-los.
Agora considere Schneider, o caso patológico ao qual Merleau-Ponty dedica considerável atenção na parte um de Fenomenologia da percepção. Schneider é um veterano da Primeira Guerra Mundial que foi severamente ferido na cabeça por um estilhaço, resultando em danos cerebrais permanentes. Schneider, apesar da severidade do dano que sofreu, é ainda capaz de levar uma vida relativamente normal em muitos aspectos. Ele consegue se envolver em muitas atividades rotineiras e é empregado em uma fábrica de carteiras, onde desempenha suas atividades competentemente, embora um pouco mais lentamente que os outros trabalhadores. O dano para o cérebro de Schneider não se manifesta muito, contanto que as ações em questão sejam executadas de um modo reflexivo, rotineiro. Por exemplo, se Schneider sente necessidade de assoar seu nariz, ele pode estender o braço para pegar seu lenço no bolso de sua camisa e trazê-lo ao seu nariz; se um mosquito pousa em sua perna, ele pode espantá-lo enquanto continua sua conversação. Merleau-Ponty, seguindo os pesquisadores que estudaram Schneider por um longo período, chama a classe de ações que Schneider é competentemente capaz de executar de “greifen”, que é o alemão para “segurar”. Contudo, existe outro amplo âmbito de ações que Schneider pode executar somente com grande dificuldade, quando consegue. Ele tem enorme dificuldade de descrever a disposição de seus membros ou a posição de seu corpo. Se solicitado a tocar seu nariz ou a apontar para um lugar particular de sua perna, Schneider não pode responder com nenhum tipo de prontidão: ele deve primeiro localizar sua mão e guiá-la visualmente para o lugar ao qual foi solicitado a tocar. Merleau-Ponty denomina a segunda classe de ações “zeigen”, que é o alemão para “apontar”. Ele também se refere a ações-de-zeigen como movimentos “abstratos”, e ações-de-greifen como movimentos “concretos”.
Gelb e Goldstein As discussões de Merleau-Ponty sobre Schneider e outros casos patológicos em Fenomenologia da percepção dependem em grande medida da pesquisa, no início do século XX, do psicólogo da Gestalt Adhémar Gelb e do neurologista Kurt Goldstein. Como Gelb e Goldstein observam, a Primeira Grande Guerra “chamou a atenção da ciência para um grande número de casos em que homens jovens e saudáveis, devido a danos cerebrais, foram subitamente transformados em um tipo de pacientes encontrados muito raramente em tempos de paz” (ELLIS, 1938: 315). Ao estudarem esses pacientes, a proposta de Gelb e Goldstein era a de “determinar o que estava contido na consciência deles” (ELLIS, 1938: 315). Pacientes como Schneider foram submetidos a vários testes e exercícios para delinear os contornos de suas incapacidades e para entender mais claramente como era sua experiência. Por exemplo, no caso de Schneider, foi descoberto que a identificação das palavras e outras figuras mostradas em uma tela dependia de sua habilidade para traçar as figuras, seja com seu dedo ou movendo sua cabeça. Quando tais movimentos eram impedidos, a identificação se tornava impossível. Parte do que Gelb e Goldstein queriam entender era justamente como era a experiência visual de Schneider: “Que o paciente ‘veja’ não pode ser posto em dúvida, mas essa afirmação não diz senão que ele tem algum tipo de impressões visuais; nada nos diz com relação ao caráter fenomênico dessas impressões” (ELLIS, 1938: 318). Baseado em seus experimentos, eles diagnosticaram Schneider como sofrendo do que chamam “cegueira figural”, que denota uma “incapacidade de captar apresentações puramente visuais” (ELLIS, 1938: 316). Apresentações visuais somente poderiam ser captadas indiretamente, por meio do procedimento de traçar e outras formas de inferência. (Gelb e Goldstein se referem a Schneider como “adivinhando” o que objetos do dia a dia são. Por exemplo, ao ver pontos pretos em uma superfície branca, supunha serem dados.) |
De acordo com sua estratégia geral, Merleau-Ponty considera tanto a tentativa empirista como a intelectualista de dar sentido às deficiências de Schneider. A descrição empirista de Schneider tenta explicar suas inabilidades causalmente, situando o mecanismo ou a função fisiológica danificados, por exemplo, apelando para o dano de seu sistema visual. Porque a visão de Schneider é debilitada, sua habilidade para executar ações-de-zeigen está igualmente debilitada; ele ainda é capaz de executar ações-de-greifen porque seu sistema tátil, seu sentido do tato, foi deixado intacto. Essa proposta está aberta a objeção. Por exemplo, pessoas “normais” podem executar movimentos abstratos com seus olhos fechados. Posso, mediante solicitação, tocar meu joelho ou a parte inferior do meu pé sem ter de olhar. A isso o empirista pode responder que essas habilidades ainda dependem de uma acumulação de movimentos visualmente guiados, ao que pode ser então respondido que pessoas cegas de nascença também podem executar movimentos abstratos. O empirista pode acomodar essa observação pressupondo na cegueira congênita habilidades cinestésicas mais altamente desenvolvidas. Não existe término claro para esse ir e vir, e Merleau-Ponty não supõe que exista alguma objeção final, decisiva, a qualquer explicação empirista.
O problema com a abordagem empirista é mais profundo do que sua escolha do sistema visual de Schneider como a causa de suas dificuldades em se envolver em ações-de-zeigen (Merleau-Ponty é igualmente crítico sobre explicações que recorram ao dano das habilidades táteis de Schneider). Testes, assim como o próprio testemunho de Schneider sobre sua condição, mostram claramente que ele sofreu dano no seu sentido da visão, assim como em seu sentido do tato, e ninguém pode duvidar de que toda sua debilitação surge do dano forjado pelo estilhaço. Suas dificuldades, portanto, têm uma origem fisiológica, mas o problema consiste em como esse dano fisiológico é concebido com respeito a suas capacidades perceptuais. Ou seja, o problema consiste em tentar explicar os problemas de Schneider por apelo a qualquer tipo de debilitação perceptual (visão versus tato, por exemplo), porque fazer isso envolve conceber as modalidades sensíveis como “sistemas” independentes cujas respectivas contribuições causais podem ser isoladas uma da outra. Entretanto, se as modalidades sensíveis não são isoláveis, o que, como vimos, a integridade da percepção indica, então não pode haver considerações decisivas em favor de uma hipótese explicativa em detrimento de outra. O dano anatômico e fisiológico que Schneider sofreu não pode ser prontamente traduzido em hipóteses concernentes à organização de suas capacidades perceptuais e de seu efeito sobre sua execução de vários tipos de ações corporais. Todas essas hipóteses são “interpretações igualmente prováveis porque ‘representações visuais’, ‘movimento abstrato’ e ‘sentido de tato potencial’ são somente nomes diferentes para um e mesmo fenômeno central” (PP: 118). Portanto, não temos realmente, de modo algum, hipóteses concorrentes, o que indica, para Merleau-Ponty, “a falha do método indutivo ou do pensamento causal no domínio da psicologia” (PP: 118).
Em vez de proceder como o empirismo, por meio do rastreamento do dano fisiológico efetivo de Schneider à dependência de suas dificuldades no dano a uma modalidade perceptual, o intelectualismo se concentra sobre as debilitações de Schneider, entendidas como limitações em sua subjetividade. De acordo com o intelectualismo, Schneider não é mais um sujeito genuíno. Sua habilidade para continuar a executar ações-de-greifen mostra simplesmente que ele ainda tem a capacidade para ações reflexas, que são puramente de natureza mecânica, destituídas de qualquer intencionalidade genuína. Que Schneider tenha dificuldade para executar ações-de-zeigen mostra que falta a ele uma compreensão das relações espaciais objetivas. Segundo o modo como Merleau-Ponty formula a posição intelectualista: “Se o paciente não é mais capaz de apontar para alguma parte de seu corpo que é tocada, é porque ele não é mais um sujeito diante de um mundo objetivo, e não pode mais assumir uma ‘atitude categorial’” (PP: 121).
De acordo com o intelectualismo, as ações-de-greifen de Schneider, não sendo senão reflexos incondicionados, são passíveis de explicações inteiramente causais, fisiológicas, enquanto as dificuldades de Schneider com respeito às ações-de-zeigen requerem um esquema explicativo inteiramente diferente. Merleau-Ponty acha essa dicotomia estranha, uma vez que em muitos casos os movimentos “concretos” e “abstratos” são fisiologicamente indistinguíveis. O mosquito picando a perna de Schneider não pareceria diferente da extremidade da régua do médico pressionando o mesmo ponto, e ainda assim Schneider é capaz de dar facilmente um tapa no mosquito, embora hesite em atender ao pedido do médico para que toque o lugar marcado pela ponta da régua. Se o intelectualista estivesse certo de que as ações-de-greifen são meros reflexos, passíveis de uma explicação inteiramente fisiológica, então o mesmo deveria ser verdadeiro para a maioria das ações-de-zeigen. Uma vez que isso não ocorre, o intelectualista está errado em descartar ações concretas como mero reflexo. Tais ações constituem, em troca, um modo diferente de relação com objetos, conforme a atitude objetiva defendida pelo intelectualista, mas são, entretanto, intencionais: o tapa de Schneider é dirigido ao mosquito, não é um impulso antigo, fisiologicamente indiscernível; seu estender o braço é dirigido ao seu lenço, e assim por diante.
Existe uma outra crítica, mais profunda, que mostra que o intelectualista caracterizou mal não só as ações-de-greifen, mas também as ações-de-zeigen. Schneider é, ao fim e ao cabo, capaz de executar o último tipo de ações em muitos casos, e o modo como ele faz isso pareceria atender às exigências de uma descrição intelectualista. Ou seja, Schneider executa esses movimentos por meio de observação, inferência, deliberação e esforço. Schneider tem de encontrar sua mão e guiá-la à sua perna ou ao seu nariz; ele tem de olhar e ver, e, portanto, julgar como seu corpo está posicionado antes de relatar ao médico. Sua relação com seu corpo se assemelha mais à relação que podemos ter com um objeto, que é precisamente como o intelectualismo concebe essa relação. Para o intelectualista, um sujeito completamente competente se relaciona com seu próprio corpo por meio de uma compreensão das relações espaciais objetivas, que ele pode aplicar tanto às partes de seu corpo como a qualquer outra coisa que ocupe uma posição no espaço objetivo. Mas como nossos exercícios, no começo desta seção, indicam, nossa execução não patológica dessas ações não é mediada por uma compreensão dessas relações espaciais objetivas. Para executar essas ações, não necessitamos medir nossos corpos, aplicando noções métricas objetivas e calculando os resultados; não necessitamos, de modo algum, situar nossos corpos, e, portanto, quaisquer apelos à observação e inferência são inadequados. Se o intelectualismo fosse verdadeiro, seríamos mais parecidos com Schneider; que não o somos mostra que o intelectualismo fundamentalmente se equivocou com relação à natureza da autoexperiência corporal.
Uma atenção mais cuidadosa ao repertório de Schneider ajuda a revelar o que é problemático ou está faltando no seu caso e, correlativamente, como é a corporificação não patológica. Como vimos, a debilitação de Schneider revela uma distinção entre ações-de-greifen e de zeigen. Schneider é capaz somente de executar as últimas com considerável esforço, embora entes humanos normalmente corporificados sejam capazes de executar ambos mais ou menos igualmente bem. Para Schneider, executar ações-de-zeigen requer ou a adoção de uma atitude completamente objetiva com relação a seu corpo, situando-o e guiando-o como um objeto externo, ou o esforço para tornar a ação tão concreta quanto possível, engajando desse modo sua habilidade continuada para executar ações-de-greifen. Se Schneider for solicitado a fazer uma saudação militar, por exemplo, ele não pode fazer isso sem tornar a situação tão “semelhante à de um soldado” quanto possível, adotando completamente a postura e atitude do soldado em serviço. Ele não pode responder à solicitação casualmente, encenando ou fingindo; ele pode saudar somente se conseguir ser um soldado naquele momento. O que está faltando no caso de Schneider é o que Merleau-Ponty refere como poder de “projeção”, uma habilidade de confrontar sua situação presente não apenas em termos de realidades, mas também em termos de possibilidades. O que falta a Schneider é um tipo de “espaço livre” no qual ele pudesse se projetar imaginativamente através de seus movimentos corporais, e por isso ele não pode “transcender” sua situação do modo que movimentos abstratos requerem.
Ao mesmo tempo, essa capacidade projetiva, quando presente, não é primeiramente uma capacidade cognitiva, uma categoria do pensamento, como o intelectualista a considera, mas algo “entre” movimento e pensamento:
O que lhe falta [Schneider] não é a motricidade nem o pensamento, e somos levados a reconhecer entre o movimento, como um processo de terceira pessoa, e o pensamento, como representação do movimento, uma antecipação ou uma apropriação do resultado assegurado pelo próprio corpo como força motora, um “projeto motor”... uma “intencionalidade motora” (PP: 110).
Para Merleau-Ponty, a intencionalidade motora é o fenômeno básico, que é manifesto em casos não patológicos em movimentos tanto concretos como abstratos (“para a pessoa normal, cada movimento é, indissoluvelmente, movimento e consciência de movimento” (PP: 110)). Movimentos concretos não são puramente reflexivos e mecânicos, mas inteligentemente situados e dirigidos, e movimentos abstratos não são puramente representacionais e objetivos, mas em troca utilizam e envolvem o mesmo conjunto de habilidades motoras.
Com respeito aos movimentos tanto concretos como abstratos, nossas habilidades corporais superam nossas capacidades representacionais. Não posso relatar melhor o ângulo, a direção e a velocidade precisos de meu braço se movendo quando atendo à solicitação de tocar meu pé direito do que quando estendo minha mão em direção a ele, sem pensar, para ajustar minha meia. Quando tento representar de antemão os movimentos a serem executados (ou, pior, durante sua execução) isso com muita frequência impede a realização satisfatória; eu “me atrapalho” quando paro para pensar sobre o que estou fazendo, e posso com frequência executar a ação correta se, em vez de pensar sobre ela, simplesmente começo o movimento do modo usual e deixo meu corpo assumir o controle. Se me pedissem, por exemplo, para descrever os movimentos de minha mão enquanto escrevo a palavra “fenomenologia” sobre uma folha de papel ou a digito no teclado (algo que eu fiz muitas e muitas vezes!), muito pouco vem à mente que valha a pena relatar. Posso tentar figurar a configuração das teclas, lembrar que dedo tecla cada letra e como, e assim por diante, mas todas essas representações são evocadas somente com muito esforço e sem muito em termos de confiança. Dê-me uma caneta ou me coloque diante do teclado, porém, e eu posso mostrar como é feito sem qualquer hesitação ou deliberação. Se observo minhas mãos por um tempo longo o bastante, posso ser capaz de decompor, analisar, e, portanto, representar, ao fim e ao cabo, todos os vários movimentos envolvidos em meu escrever ou digitar “fenomenologia”, mas essa seria uma realização secundária em vez de uma revelação do que tinha guiado minhas ações desde o começo. Uma vez mais, “movimento não é pensamento sobre movimento”, ao que Merleau-Ponty acrescenta:
e espaço corporal não é espaço pensado ou representado [...] No gesto da mão que se eleva em direção a um objeto está contida uma referência ao objeto não como objeto representado, mas como essa coisa muito determinada em direção à qual nós nos projetamos, próxima da qual estamos por antecipação, que perseguimos (PP: 137-138).
Quando me preparo para teclar, minhas mãos e dedos “encontram” seus lugares sobre o teclado sem que eu tenha que olhar. Posso, ocasionalmente, ter de ajustar minhas mãos ou corrigir sua posição, mas em geral teclo sem, de modo algum, observar meus dedos.
Quando aprendi a teclar pela primeira vez, eu tinha de pensar sobre o que estava fazendo – descobrir as teclas centrais, lembrar do arranjo do teclado, e assim por diante –, mas à medida que me tornei mais experiente em teclar, a necessidade de qualquer pensamento assim diminuiu:
Um movimento é aprendido quando nosso corpo o compreendeu, quer dizer, quando o incorporou a seu “mundo”, e movermos nosso corpo é nos dirigirmos a coisas por meio dele; é deixá-lo responder ao chamado delas, que se exerce sobre ele sem representação alguma. A motricidade, portanto, não é como uma criada da consciência, que transporta o corpo ao ponto no espaço do qual formamos, de antemão, uma representação (PP: 139).
Quando se trata de movimento, a incorporação muscular, corporal, em vez do armazenamento de representações, constitui-se em genuína compreensão. Não importa quão bem eu possa recitar a série de movimentos envolvidos em um complicado passo de dança, em uma manobra atlética difícil, ou em uma técnica elaborada de arte, se eu não puder executar essas ações, então não as dominei (ainda); ainda não sou competente. E quando eu atinjo o domínio, a habilidade para recitar a série se torna supérflua, e mesmo prejudicial, uma vez que ser genuinamente hábil envolve ser flexível com respeito às particularidades de uma situação. Ser hábil envolve a habilidade de fazer ajustes, de responder ao “chamado” das coisas em toda sua especificidade, embora de um modo corporal em vez de cognitivo: “A aquisição de um hábito é na verdade a compreensão de uma significância, mas é a compreensão motora de uma significância motora” (PP: 143).
Merleau-Ponty afirma, provocativamente, que “a consciência é, em primeiro lugar, não uma questão de ‘Eu penso que’, mas de ‘Eu posso’” (PP: 137), que aponta para o papel fundamental da intencionalidade motora com respeito a todas as formas de intencionalidade: “A consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo” (PP: 138-139). Descartes concebeu a consciência primeiramente em termos de pensamento (“Eu penso, logo existo”), que ele entendeu como a mente tendo dentro de si mesma um estoque de ideias ou representações, todas as quais poderiam ser consideradas independentemente do fato de a mente ser relacionada a um corpo, ou na verdade de qualquer envolvimento com o mundo. Desse modo, “Eu penso que” é tanto independente de, como anterior a, qualquer sentido de “Eu posso”, entendido em termos de qualquer habilidade para sermos bem-sucedidos no mundo. As afirmações de Merleau-Ponty concernentes à intencionalidade motora, como muitas das de Husserl concernentes à dimensão corporal da experiência perceptual, podem ser entendidas como direcionadas a esse tipo de concepção cartesiana da mente e da experiência. Conforme Merleau-Ponty, o mundo é manifesto na experiência de acordo com nossa estrutura e habilidades corporais. Coisas são manifestas como perto ou longe, aqui ou ali, ao alcance ou fora do alcance, acima ou abaixo, disponíveis ou indisponíveis, usáveis ou inutilizáveis, convidativas ou repulsivas, e assim por diante, em relação aos nossos modos de habitar o mundo, e esse habitar é sempre de natureza corporal. As coisas não são encontradas primeiramente em termos de um olhar isolado, como se nossa principal relação com o mundo fosse a de olhar. Ao contrário, coisas são manifestas, arranjadas diante e em volta de nós, em relação a nossas habilidades corporais, aos nossos muitos modos de lidar com as coisas que encontramos. Uso a palavra “lidar” aqui tanto literal como figurativamente, como quando eu lido com a caneta, com a xícara de café, com o martelo, com o volante do automóvel, e assim por diante, com minhas mãos (literal) e quando eu “lido” com coisas ou situações, colocando as coisas em ordem, controlando-as e otimizando meu acesso perceptual (figurativo). Esse último tipo de lidar, mais figurativo, envolve uma miríade de habilidades corporais. Ao olharmos para as coisas, de diversos modos, nós as aproximamos ou nos aproximamos delas, ou caso contrário aumentamos nossa distância, dependendo da coisa (compare olhar para uma moeda com olhar para a fachada de um edifício), a fim de obter a melhor visão:
Se aproximo o objeto de mim ou se o faço girar entre meus dedos para “vê-lo melhor”, é porque cada atitude de meu corpo é para mim, imediatamente, a possibilidade de uma certa exibição, e porque cada exibição é, para mim, o que é numa certa situação cinestésica; em outros termos, porque meu corpo está permanentemente posicionado diante das coisas a fim de percebê-las e, inversamente, porque as aparências são sempre envolvidas por mim numa certa atitude corporal. Se conheço a relação das aparências com a situação cinestésica, não é em virtude de alguma lei ou em termos de alguma fórmula, mas porque tenho um corpo e estou, por meio deste corpo, em posse de um mundo (PP: 303).
Ser consciente, ser corporificado, estar em “posse de um mundo” não são três noções separadas ou separáveis para Merleau-Ponty, mas são três aspectos sobrepostos, interconectados, internamente relacionados de nossa existência. O “retorno aos fenômenos” revela essa unidade sobreposta e interconectada de consciência, corporificação e o mundo manifesto através de nossa experiência corporificada. Merleau-Ponty chama essa unidade de “arco intencional”, que caracteriza cada aspecto de nossa experiência:
Vamos dizer, portanto [...] que a vida da consciência – a vida cognitiva, a vida do desejo ou a vida perceptual – é subtendida por um “arco intencional” que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso ambiente humano, nossa situação física, ideológica e moral, ou, mais precisamente, que faz com que estejamos situados em relação a todos esses aspectos. É esse arco intencional que faz a unidade dos sentidos, a dos sentidos e da inteligência, a da sensibilidade e da motricidade (PP: 136).
Sumário dos pontos-chave
• A despeito da imageria fantasmática provocada pela discussão acerca da “pura consciência”, Husserl oferece uma fenomenologia ricamente urdida sobre a corporificação em Ideias II.
• O corpo (ou Corpo) é manifesto na experiência como um tipo categoricamente distinto de coisa e como essencial à possibilidade de outros tipos de intencionalidade, ou seja, a experiência perceptual de objetos espaçotemporais.
• Para Merleau-Ponty, a fenomenologia se ocupa com a experiência primária, pré-objetiva, enquanto oposta à concepção secundária, objetiva, do mundo articulado e explorado pelas ciências naturais.
• A experiência perceptual envolve, primeiramente, um todo significativo, “um ‘algo’ perceptual [...] em meio a alguma outra coisa”, que não pode ser entendido como construído fora de algumas unidades experienciais mais básicas.
• A experiência perceptual, devido a sua indeterminação e incompletude essenciais, não pode ser entendida somente pelo modelo do juízo.
• A intencionalidade da atividade corporal não pode ser entendida seja em termos de reflexos fisiológicos, seja em termos de pensamentos representacionais ou juízos.
• A atividade corporal é em troca caracterizada pela “intencionalidade motora”: um envolvimento pré-reflexivo com coisas e situações específicas.