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Husserl e o projeto de fenomenologia pura

Husserl: vida e trabalhos

Edmund Husserl nasceu em 1859, em Prossnitz, onde é agora a República Tcheca. Estudou na Universidade de Leipzig, onde se concentrou principalmente na matemática, obtendo por fim um doutorado no tema. Foi somente nos anos de 1880 que seu interesse se tornou mais exclusivamente filosófico. Nessa época, ele encontrou o psicólogo e filósofo Franz Brentano, cujo trabalho revivia a noção medieval de “intencionalidade”. Assistir às aulas de Brentano em Viena alterou profundamente o curso do desenvolvimento intelectual de Husserl, colocando-o no caminho da fenomenologia. Contudo, seu trabalho no final dos anos de 1880 ainda refletia seus interesses iniciais em matemática e lógica: em 1887, publicou Sobre o conceito de número, que foi seguido por Filosofia da aritmética em 1891. Na virada do século XX, apareceu o primeiro trabalho monumental de Husserl, o seu Investigações lógicas, no qual se descreve como realizando sua “incursão” (LI: 43) na fenomenologia. Investigações lógicas começa com um “Prolegômenos à lógica pura”, que contém um ataque prolongado às concepções empiristas e psicológicas da lógica. Enquanto tal, o trabalho forma uma pedra angular do antinaturalismo de Husserl, que iremos considerar em mais profundidade em breve. O “Prolegômenos” é seguido por seis “investigações”, dedicadas de diversas maneiras a conceitos inter-relacionados tais como significado, intencionalidade, conhecimento e verdade, assim como uma teoria de partes e todos.

Franz Brentano (1838-1917)

As conferências de Brentano nos anos de 1880 exerceram uma enorme influência no desenvolvimento filosófico de Husserl. Ele recordaria mais tarde: “em uma época em que meus interesses filosóficos estavam aumentando e eu estava em dúvida quanto a dirigir minha carreira para a matemática ou a me dedicar totalmente à filosofia, as palestras de Brentano resolveram o assunto” (SW: 342). E: “as palestras de Brentano me deram pela primeira vez a convicção que me encorajou a escolher a filosofia como o trabalho de minha vida” (SW: 343). (A influência de Brentano se estendeu muito além de Husserl: Sigmund Freud e o filósofo austríaco Alexius Meinong também estavam entre seus alunos em Viena.) Em seu A psicologia de um ponto de vista empírico, publicada pela primeira vez em 1874, Brentano caracterizou a mente e a consciência em termos de “fenômenos mentais”, que são distinguidos pela “in- existência intencional” dos objetos a elas relacionados. Husserl rejeitou mais tarde a concepção de Brentano sobre a intencionalidade, argumentando que uma vez que os objetos sobre os quais são a maioria dos estados intencionais “transcendem” esses estados, a ideia de in-existência intencional é incorreta.

Já em Investigações lógicas, Husserl concebeu a fenomenologia como um tipo de disciplina pura, não empírica, que “revela as ‘fontes’ das quais os conceitos e leis ideais básicos da lógica pura ‘fluem’, e às quais eles devem ser remontados” (LI: 249). “A fenomenologia pura representa um campo de pesquisas neutras” (LI: 249), o que significa que ela deve proceder sem a ajuda de quaisquer suposições não examinadas; a fenomenologia deve ser uma forma de investigação “sem pressuposições” (cf. e. g., LI: 263-266). Por volta de 1905, porém, Husserl descreveu sua concepção de fenomenologia como passando por mudanças radicais dramáticas. Nesse momento, Husserl começou a pensar a fenomenologia em termos transcendentais, e enfatizou em um grau ainda maior a ideia da fenomenologia como uma disciplina pura. O significado e a importância dos dois termos-chave “transcendental” e “puro” nos ocuparão consideravelmente durante este capítulo, uma vez que servem para respaldar o que ele via como sua principal inovação metodológica: a “redução fenomenológica” (que é antecipada em Investigações lógicas, mas explicitamente articulada somente após a “virada transcendental” de Husserl). A concepção revisada de Husserl da fenomenologia é evidente em suas conferências de 1907, publicadas como A ideia da fenomenologia, assim como em seu manifesto de 1911, “Filosofia como Ciência Rigorosa”, que contém outro ataque ao naturalismo na filosofia. Em 1913 Husserl publicou o primeiro volume de Ideias relativas à Fenomenologia Pura e à Filosofia Fenomenológica (daqui para frente Ideias). No fim, haveria mais dois volumes, embora nenhum deles tenha sido publicado durante sua vida.

O restante da carreira filosófica de Husserl foi dedicado a desenvolver, refinar e reconceber a fenomenologia transcendental. Husserl repetidamente se caracterizava como um “iniciante” em fenomenologia, e muitos de seus trabalhos refletem isso, não por serem amadorísticos, mas por sua disposição para reabrir a questão sobre justamente o que é a fenomenologia e como ela deve ser praticada. Seu perpétuo repensar a fenomenologia se traduzia também em hesitação e atrasos com respeito à publicação. Após a publicação de Ideias em 1913, apenas esporadicamente outros trabalhos apareceram. Dentre eles estão Lógica formal e transcendental, em 1929, Meditações cartesianas, em 1931, e A crise das ciências europeias, em 1936.

Husserl morreu em 1938. Seus anos finais, logo após se aposentar de uma cátedra de filosofia em Friburgo, foram bastante infelizes. O surgimento dos nazistas na Alemanha significava que Husserl, devido à sua ascendência judia, estava excluído de qualquer tipo de atividade acadêmica oficial. Trazido pela onda do nazismo, encontramos um dos seguidores mais promissores de Husserl, Martin Heidegger, que se juntaria ao partido no início dos anos de 1930 (no começo dos anos de 1940, a dedicatória a Husserl, em Ser e tempo de Heidegger, foi silenciosamente removida, para ser restaurada somente nos anos de 1950). A situação política, no entanto, não foi a única causa da infelicidade de Husserl. Conforme envelhecia, Husserl lamentava tanto a incompletude de suas próprias realizações na fenomenologia como a falta de qualquer sucessor óbvio (Heidegger, dentre outros, tendo claramente falhado em empunhar a bandeira, ou, ao menos, não do modo certo).

Embora Husserl não tenha publicado um grande número de trabalhos nos últimos vinte e cinco anos de sua vida, isso não se deveu à falta de produção. Husserl deixou cerca de 30.000 páginas (estenografadas!) de manuscritos que, lentamente, estão sendo editados e publicados, tanto em seu idioma original, o alemão, como em tradução para o inglês. Esses incluem o segundo e o terceiro volumes de Ideias, assim como Experiência e juízo, um guia para seu Lógica formal e transcendental. Quando combinamos os manuscritos com os trabalhos publicados, a filosofia de Husserl se torna quase inexaminável, algo que, com certeza, não pode ser adequadamente explicado em um capítulo de um trabalho introdutório. Devemos nos concentrar, como Husserl frequentemente o faz, em um pequeno punhado de exemplos. Ao fazer isso espero capturar a “impressão” geral da fenomenologia de Husserl, comunicando, desse modo, seus principais métodos, aspirações e realizações.

Do antinaturalismo à fenomenologia

A partir dessa breve sinopse sobre a vida e os trabalhos de Husserl, podemos extrair dois interesses que, especialmente quando combinados com um terceiro, explicam o caráter particular de sua fenomenologia, em seus métodos e aspirações. Um interesse, presente de um modo ou de outro desde o início da vida acadêmico-intelectual de Husserl, é pelas noções de lógica e matemática. O segundo interesse, que se origina em grande medida da influência de Brentano, é pelas noções de consciência e intencionalidade. Ao longo de sua carreira filosófica, Husserl está interessado em entender a natureza e o status da lógica e da matemática e em explicar nosso entendimento ou compreensão delas. Além disso, quando consideramos nosso terceiro interesse, podemos ter uma ideia melhor sobre como essa explicação parece, ou ao menos sobre como ela não deveria parecer. O terceiro interesse, que emerge no pensamento de Husserl no final do século XIX e se torna um tema-guia em seu Investigações lógicas e trabalhos posteriores, é pelo antinaturalismo: uma rejeição da ideia de que as ciências naturais podem fornecer uma descrição completa ou exaustiva da realidade. Esse não é talvez o melhor modo de colocar a afirmação de Husserl, uma vez que a “realidade” pode ser considerada coextensiva à “natureza”, e certamente as ciências naturais têm orgulho de colocar a última no entendimento. Melhor dito, a oposição de Husserl ao naturalismo equivale à afirmação de que existem verdades e princípios que as ciências naturais pressupõem, mas que elas próprias não podem explicar; nem toda verdade é uma verdade científica natural.

Em vez da realidade, então, o que as ciências naturais não podem explicar é a “idealidade”: as verdades ideais e princípios da lógica e da matemática. Qualquer tentativa de “naturalizar” essas verdades e princípios tem consequências desastrosas, de acordo com Husserl, resultando, basicamente, na autorrefutação do próprio naturalismo. Ou seja, o naturalismo tenta explicar princípios lógicos inteiramente em termos de psicologia: princípios lógicos são princípios psicológicos; as leis da lógica são leis naturais da psicologia, ou seja, leis que generalizam como entes humanos e talvez outros entes sencientes pensam. O problema com essa explicação é que essas leis naturais são descritivas, semelhantes às leis do movimento dos planetas e de outros corpos celestiais, embora a relação entre lógica e quaisquer processos psicológicos reais seja “normativa”: as leis da lógica governam o pensamento ao prescreverem como entes sencientes deveriam pensar. Ao interpretar as leis lógicas inteiramente em termos psicológicos, o naturalista, de acordo com Husserl, ofusca essa distinção, na verdade, destrói-a inteiramente. O resultado é o “relativismo”: existirão, ao menos em princípio, diferentes leis e princípios lógicos, diferentes leis e princípios acerca da verdade, dependendo do caráter dos processos psicológicos encontrados em qualquer tipo ou população de criaturas. Dizer que alguma coisa é verdadeira ou que uma coisa se segue logicamente de outra significa, na interpretação do naturalista, que esse ou aquele tipo de ente caracteristicamente considera essa coisa ser verdadeira ou geralmente acredita em uma coisa quando acredita na outra.

Considere, agora, inclusive esses tipos de afirmações concernentes às características e comportamento de populações de entes sencientes: quando o naturalista faz essas afirmações, ele tipicamente as sugere como sendo verdadeiras, mas o que isso significa? É óbvio, pensa Husserl, que o naturalista pretende mais do que afirmar que isso é como ele e talvez seus colegas naturalistas por acaso pensam; na verdade, o naturalista não pretende dizer coisa alguma em absoluto sobre seus estados e processos psicológicos. Ao contrário, o naturalista pretende descobrir, e propor, qual é, fundamentalmente, a verdade sobre tais coisas, como estados e processos psicológicos, sem referência a quaisquer de seus próprios estados e processos psicológicos, sejam quais forem, mas isso significa que a própria noção de verdade não pode ser entendida em termos de estados e processos psicológicos. Desse modo, o naturalista, em sua posição oficial, provoca a autorrefutação ao se privar da própria noção de verdade que guia suas aspirações científicas. (Inoficialmente, podemos dizer, o naturalista pode ser considerado, no fim das contas, como que guiado por essa noção de verdade e os argumentos de Husserl são principalmente designados para tornar isso claro para o próprio naturalista.)

Um aspecto do antinaturalismo de Husserl, portanto, é sua rejeição da ideia de que a lógica pode ser entendida psicologicamente. A doutrina comumente conhecida como “psicologismo” é, no fundo, autocontraditória, e, dado que o naturalismo negocia com o psicologismo, ele também cambaleia à beira da absurdidade. O que, porém, essa preocupação com a natureza e status da lógica tem a ver com as noções de consciência e intencionalidade? Ao fim e ao cabo, as últimas duas noções, especialmente a da consciência, parecem ser noções psicológicas, e assim qualquer rejeição do psicologismo com respeito à lógica pareceria irrelevante para se chegar a uma compreensão própria delas. Ao passo que há outros aspectos, relativamente independentes, do antinaturalismo de Husserl, que desempenham um papel em seu modo particular de abordar as noções de consciência e intencionalidade, existe uma conexão entre sua rejeição do psicologismo na lógica e sua concepção acerca de como a consciência e a intencionalidade deveriam ser estudadas. Embora a lógica seja independente do pensar, no sentido de que as leis lógicas possuem uma relação normativa com qualquer processo de pensamento real, ao mesmo tempo, a própria categoria de pensamento está conectada com a ideia de estrutura lógica. Que um processo psicológico particular mereça o nome “pensar”, ou que um estado psicológico particular mereça o nome “pensamento”, indica que possui uma estrutura lógica: o estado ou processo pressupõe “conteúdos ideais” que podem ser logicamente relacionados, inferencialmente, por exemplo, a outros estados e processos com tais conteúdos. À medida que estados e processos psicológicos participam de tais estruturas e conteúdos ideais, ou seja, à medida que atingem o status de pensar e de pensamento, existe, então, por paradoxal que isso soe, uma dimensão não psicológica da psicologia. Em outras palavras, existem aspectos fundamentais definitivos sobre os estados e processos psicológicos que não podem eles próprios ser adequadamente caracterizados em termos psicológicos.

Um exemplo pode ser útil. Suponha que eu tenha o pensamento: “Platão foi o mestre de Aristóteles”. É fácil imaginar outra pessoa tendo simultaneamente o mesmo pensamento, ou seja, um pensamento com o mesmo conteúdo. Embora meu processo de ter esse pensamento, bem como o da outra pessoa, pressuponha processos psicológicos numericamente distintos – ou seja, existe um processo qualquer em curso em minha mente e existe um processo qualquer em curso na mente da outra pessoa – existe ainda uma coisa que pensamos, a saber: que Platão foi o mestre de Aristóteles. O que pensamos, o pensamento particular que ambos temos, substitui vários tipos de relações lógicas com outros (possíveis) pensamentos. Por exemplo, o pensamento “Alguém foi o mestre de Aristóteles” sucede logicamente ao primeiro pensamento, e isso ocorre quer o segundo pensamento ocorra para mim quer ocorra para a outra pessoa; que o segundo pensamento sucede ao primeiro é válido independentemente do que eu ou a outra pessoa (ou qualquer outro) continuemos a pensar depois. Posso, após ter o primeiro pensamento, esquecer tudo sobre Aristóteles e Platão, ocupar-me inteiramente com algo inteiramente diferente, e assim nunca mais chegar à conclusão de que alguém foi o mestre de Aristóteles.

Podemos levar esse exemplo mais longe do seguinte modo. O que venho chamando de conteúdo ideal, no caso do conteúdo “Platão foi o mestre de Aristóteles”, especifica o pensamento particular em questão de um modo que os processos psicológicos particulares envolvidos em meu ato de ter o pensamento não o fazem. O que eu quero dizer aqui é que é ao menos concebível que outra criatura, cuja estrutura material seja radicalmente diferente da minha, pudesse chegar a ter o pensamento “Platão foi o mestre de Aristóteles”, ainda que os vários detalhes empíricos dos processos e estados psicológicos dessa criatura fossem completamente diferentes dos meus. Os fundamentos causais para essa criatura imaginada ter esse pensamento podem diferir dramaticamente dos fundamentos para eu ter esse pensamento, e mesmo assim cada um de nós pode ser considerado estar tendo esse único pensamento idêntico. O que nossos episódios de pensamento têm em comum, portanto, não é uma estrutura causal empírica, mas um conteúdo ideal, que especifica algo essencial sobre o pensamento, algo essencial ao fato de ele ser esse pensamento particular, uma especificação de um modo que todas as características particulares dos estados e processos psicológicos não especificam.

Independentemente das diferenças empíricas entre mim e essa criatura imaginada, é concebível que tenhamos o mesmo pensamento, ou seja, que cada um de nós tenha pensamentos que exibam a mesma intencionalidade: cada um de nossos pensamentos é sobre Platão e Aristóteles (e sobre aquele sendo o mestre desse). Para Husserl, seguindo Brentano, a intencionalidade é “a marca do mental”, e assim podemos considerá-lo como generalizando essas observações sobre o pensamento para a noção da experiência consciente em sua totalidade. Toda experiência consciente, à medida que exibe intencionalidade, tem uma estrutura essencial que é independente dos particulares empíricos de qualquer ente ao qual pertença a experiência. Dada essa independência, a estrutura essencial da experiência não pode ser entendida naturalisticamente, ou seja, em termos dos estados e processos psicológicos empíricos que podem ser causalmente responsáveis por entes tendo essa experiência.

O papel desempenhado por essa noção de estrutura essencial para Husserl indica outro aspecto de seu antinaturalismo. A estrutura essencial da experiência é a estrutura que a experiência tem em virtude da qual ela é experiência, o que para Husserl significa: em virtude da qual a experiência exibe intencionalidade. Como tal, a noção de estrutura essencial desempenha um papel explanatório distintivo que não pode, pensa Husserl, ser assumido pelas ciências naturais. Esse papel pode ser percebido em uma questão levantada por Husserl em seu ensaio-manifesto de 1911, “Filosofia como Ciência Rigorosa”, cuja maior parte consiste em uma polêmica contra o que ele vê como o naturalismo predominante da sua época. A questão que Husserl levanta é: “Como pode a experiência como consciência dar ou contatar um objeto?” (PCP: 87). O apelo de Husserl às noções de “dar” e “contatar” indica que a questão concerne à possibilidade da intencionalidade da experiência: Como a experiência chega a ser de ou sobre objetos? Questões do tipo “como é possível” são questões transcendentais, e Husserl pensa que tais questões estão para além do escopo das ciências naturais. Isso ocorre porque as ciências naturais, não importando quão sofisticadas, ainda operam dentro do que Husserl chama a “atitude natural”: nossa postura ordinária com respeito ao mundo que assume ou pressupõe a dadidade dos objetos. A ciência, em suas tentativas de situar os constituintes mais básicos da realidade e de delinear sua estrutura causal, compartilha de tais pressuposições, exatamente tanto quanto nós em nossa vida cotidiana. De acordo com Husserl, as ciências naturais, e, de um modo geral, a atitude natural, são “ingênuas”. Dizer que as ciências naturais e a atitude natural são ingênuas não significa dizer que exista qualquer coisa de errado com elas. (Husserl não se opõe às ciências naturais, nem à atitude natural, mas somente ao naturalismo, que é, podemos dizer, uma interpretação metafísica da atitude natural.) A acusação de ingenuidade indica somente uma limitação, não um erro, da parte da atitude natural e das ciências naturais; a acusação indica que existem questões que estão, em princípio, para além de seu alcance.

O que a acusação de ingenuidade implica, nesse contexto, é que qualquer tentativa de responder às questões do tipo “como é possível” de Husserl, do ponto de vista das ciências naturais, é completamente circular. Visto que as ciências naturais pressupõem um mundo de objetos, quaisquer respostas que possam fornecer para as questões do tipo “como é possível” de Husserl fazem uso das próprias coisas cuja dadidade deve ser explicada. Em outras palavras, as ciências naturais (e, de um modo geral, a atitude natural) não podem explicar como a consciência procede ao “contatar” objetos, uma vez que qualquer explicação possível oferecida por elas será expressa em termos de objetos, e isso, da perspectiva de Husserl, não é, de modo algum, explicação. Questões transcendentais estão, em princípio, para além do alcance das ciências naturais, e assim o naturalismo, que vê as ciências naturais como a quintessência da investigação, equivale a pouco mais do que uma cegueira deliberada com respeito à ideia de investigação transcendental (cf. IOP: esp. 3-4, 13-21, 29-32).

Podemos encontrar em Husserl uma outra linha de argumento que desafia a viabilidade de uma descrição científica natural da consciência e, desse modo, depõe contra o naturalismo como uma perspectiva filosófica adequada. Esse argumento origina o que Husserl considera ser uma desanalogia entre os tipos de coisas com as quais as ciências naturais se ocupam e os tipos de coisas em que consiste a consciência. Considere primeiro o domínio das ciências naturais. Aqui, temos, dentre outras coisas, o que chamaremos simplesmente de “objetos físicos”. Podemos discernir alguma coisa importante sobre a natureza dos objetos físicos mesmo se nos restringirmos à experiência perceptual ordinária. Uma coisa que é verdadeira sobre objetos físicos (ou ao menos aqueles que são grandes o bastante para vermos) é que eles podem ser vistos por mais de um lado. Se eu seguro uma pedra diante de mim, eu posso girá-la de vários modos, e, assim, a pedra apresenta diferentes lados para o conforto de minha visão. Além disso, não existe modo algum de virar a pedra que me permita vê-la em sua totalidade em qualquer tempo dado, e, na verdade, não está claro o que uma experiência perceptual completa da pedra possa envolver; sempre existem mais ângulos a partir dos quais olhar para a pedra, mais distâncias da pedra às quais eu posso estar, mais variações nas condições de luminosidade, e assim por diante. Implícita na experiência perceptual de objetos físicos está a noção de infinitude ou, talvez, de possibilidade ilimitada (essa é uma ideia para a qual voltaremos mais tarde no capítulo). Se considerarmos a variedade de apresentações possíveis da pedra na experiência perceptual ordinária, podemos discernir uma outra ideia que nos diz algo sobre a natureza dos objetos físicos. Ou seja, existem, podemos dizer, algumas apresentações que são melhores do que outras com respeito ao revelar da pedra em si mesmo. Existem distâncias melhores e piores das quais olhar para a pedra, tipos melhores de luminosidade, e assim por diante. O que torna algumas condições piores é que elas são enganadoras ou inexatas. Sob essas condições, a pedra parece ser somente de um modo ou de outro, embora realmente seja de algum outro modo. Por exemplo, se eu vejo uma pedra cinza esbranquiçada sob uma luz vermelha, ela parecerá mais rosa do que realmente é. O ponto dessas considerações é que, no caso dos objetos físicos, uma distinção entre é e parece está prontamente disponível e é geralmente aplicável.

Husserl argumenta que, quando se trata da consciência, essas características essenciais dos objetos físicos podem não estar presentes (cf. PCP: 103-107). Se mudarmos da pedra que estou percebendo para meu perceber dela, torna-se aparente que não podemos transferir muitas das coisas que notamos sobre a pedra para minha experiência dela. Comecemos com a noção de perspectiva. Embora a pedra se apresente de um lado ou de outro, esse não é o caso com minha percepção dela. A pedra, podemos dizer, aparece em minha experiência dela, mas minha experiência não é apresentada para mim em uma outra aparição. Minha experiência é apenas a apresentação de coisas tais como a pedra, e nada mais. Diferente da pedra, minha experiência não está disponível numa variedade de perspectivas. Não posso “girar” minha experiência do mesmo modo que eu posso girar a pedra, vendo agora de um lado, agora, de outro. Na verdade, minha experiência, diferente da pedra, não tem “lados” em absoluto. Diferente da pedra, que admite infinitas apresentações ou aparições, a aparição é esgotada pelo seu aparecer. Se é assim, então os fenômenos sobre os quais a consciência consiste não admitem a distinção é/parece. Não há para a aparição senão seu aparecer do modo que é; não existe uma maneira pela qual ela possa estar realmente em contraste com o modo pelo qual aparece. Embora a pedra possa parecer pouco nítida, mas de fato ter bordas lisas e distintas, esse não é o caso com minha experiência pouco nítida da pedra (quando recoloco meus óculos, eu tenho uma nova experiência, e não uma nova perspectiva de uma experiência antiga).

O colapso da distinção é/parece, no caso dos fenômenos conscientes, aponta para uma outra desanalogia entre objetos físicos (e, de um modo geral, o mundo natural) e a consciência. Essa outra desanalogia é de natureza “epistemológica”: concerne às diferenças com respeito ao conhecimento e à certeza que estão disponíveis nesses respectivos domínios. Eu disse antes que a pedra era alguma coisa que, como um objeto físico, admitia uma série infinita de apresentações possíveis. Isso significa, dentre outras coisas, que nenhuma experiência apresenta ou apreende a pedra em sua totalidade: há sempre alguma coisa a mais para ver, algum outro modo de vê-la. Para usar a terminologia de Husserl, qualquer experiência perceptual de coisas como a pedra será sempre “inadequada”, o que significa que haverá sempre “lados” que podem ser sugeridos pela experiência, mas que não são parte da experiência no sentido de serem apresentados nessa experiência. Outro modo de colocar isso é dizer que a pedra, e os objetos físicos de um modo geral, transcende minha experiência dela, o que é exatamente como deveria ser. Uma vez que minha experiência da pedra é uma experiência de uma entidade transcendente, que admite a distinção é/parece, então há sempre espaço para erro em minha experiência. É sempre concebível que a experiência futura contrarie minha experiência atual e passada: o que eu considero ser uma pedra pode resultar ser um objeto de cenário em isopor ou, pior, uma ficção de minha imaginação. Para usar mais terminologia husserliana, minha experiência da pedra não é “apodítica”: ela não admite certeza completa.

Mudando da pedra para minha experiência dela, a situação epistemológica muda dramaticamente. Uma vez que minha experiência da pedra não admite a distinção é/parece, ou seja, minha experiência não tem “lados” ocultos do modo como a pedra tem, então se torno a experiência, em lugar da pedra, o “objeto” de minha experiência, eu posso compreendê-la em sua totalidade de um modo tal que eu nunca posso fazê-lo no caso da pedra. Uma experiência cujo “objeto” é um fenômeno, em vez de um objeto físico, é aquela que admite a possibilidade da “adequação”: o fenômeno pode estar completamente presente como o objeto dessa experiência. Diferente da pedra, que é uma entidade transcendente em relação à minha experiência consciente, minha experiência da pedra é imanente à minha experiência consciente e assim, em princípio, não excede minha experiência dela. Além disso, a ausência da distinção é/parece no caso de minha experiência significa que eu posso atingir um nível de certeza ou apoditicidade quando o “objeto” de minha experiência é ele próprio um fenômeno consciente. Mesmo que a pedra somente pareça estar pouco nítida, mas realmente tenha contornos definidos, ou mesmo que não exista realmente, eu posso ainda estar certo de que eu estou tendo neste momento a experiência de uma pedra com contornos pouco nítidos. A existência da pedra está sempre aberta a dúvidas, mesmo que tais dúvidas possam começar a soar um tanto histéricas, mas esse não é o caso com respeito à minha experiência, ou seja, com respeito ao seu conteúdo e qualidades. A fenomenologia, como uma disciplina cujos “objetos” são precisamente fenômenos conscientes, admite um nível de certeza diferente do tipo que é alcançável dentro das ciências naturais.

As ciências naturais procedem pela coleta de dados, propondo hipóteses que explicam os dados, concebendo testes para as hipóteses propostas, e assim por diante. Desse modo, as ciências naturais trabalham indo para além do que é dado na experiência, sempre procurando por leis e princípios que possuam uma relação explanatória com os objetos e processos que são observados. As ciências, portanto, vão tolerar o apelo a objetos, estados e processos que não são observáveis, por exemplo, no domínio da microfísica. Não surpreende, então, que hipóteses científicas sejam sempre propostas como tentativas, abertas à revisão e anuláveis por alternativas. A fenomenologia, em contraste, foca precisamente no que é dado na experiência, abstendo-se inteiramente do método de formular hipóteses e extrair inferências do que é dado para o que se encontra aquém ou além disso. Para Husserl, a fenomenologia deve aderir estritamente ao que ele chama “o princípio de todos os princípios”:

Nenhuma teoria concebível pode nos fazer errar com respeito ao princípio de todos os princípios: que toda intuição nocional originária é uma fonte legítima de cognição, que tudo originalmente (por assim dizer, em sua realidade “pessoal”) oferecido para nós na intuiçãodeve ser aceito simplesmente como se apresenta, mas também somente dentro dos limites nos quais se apresenta (Ideas I: § 24).

A redução fenomenológica

Nosso exame do antinaturalismo de Husserl revelou vários interesses e aspirações orientadores de sua fenomenologia, a saber:

• discernir e descrever a estrutura essencial da experiência;

• perguntar e responder questões transcendentais sobre a experiência;

• atingir a certeza epistemológica.

Além disso, o antinaturalismo de Husserl subscreve o status e significância que ele atribui à fenomenologia. Ou seja, os argumentos que Husserl apresenta para sustentar seu antinaturalismo são destinados a estabelecer a autonomia e a prioridade da fenomenologia com respeito às ciências naturais. A primeira é estabelecida por seus argumentos a favor da diferença de tipo entre fenômenos conscientes e os objetos e processos estudados pelas ciências naturais. A segunda é estabelecida por seus argumentos concernentes às limitações de princípio das ciências naturais quando trata de questões transcendentais do tipo “como é possível”; o que isso significa é que as ciências naturais (e a atitude natural, de um modo geral) devem pressupor algo que necessita de explicação filosófica. Para Husserl, a fenomenologia é o modo de fornecer essa explicação.

Mas como Husserl procede ao tentar fornecer essa explicação? A resposta para essa questão já está implícita nas afirmações e preocupações que emergiram em nosso exame de seu antinaturalismo. Dissemos antes que a estrutura essencial da experiência não deve ser confundida com a estrutura causal da experiência. É perfeitamente concebível, Husserl sustentaria, que duas criaturas tenham a mesma experiência em termos de “conteúdo ideal” mesmo que o “maquinário” subjacente que produz as respectivas experiências das duas criaturas seja inteiramente diferente. Se quisermos focar nessa estrutura essencial, devemos suspender ou excluir todas as questões e afirmações concernentes ao que quer que possa ser causalmente responsável pela experiência consciente. Ao excluir qualquer consideração sobre as causas da experiência de modo a focar na estrutura essencial da experiência, Husserl está ao mesmo tempo preparando o caminho para perguntar e responder questões transcendentais sobre a possibilidade da experiência. Vimos antes que as ciências naturais, e a atitude natural, de modo geral, não podem responder a questões transcendentais sem incorrer na acusação de circularidade; a postura da atitude natural assume que a consciência fez “contato” com objetos, e assim não pode explicar a possibilidade desse contato. Isso sugere que responder propriamente tais questões exige novamente que suspendamos ou excluamos as pressuposições e compromissos da atitude natural. A fim de nos envolvermos na filosofia transcendental, não devemos assumir que objetos são de fato dados na experiência; em vez disso, devemos consentir que é ao menos concebível que nossa experiência nunca, em absoluto, atinja coisa alguma para além dela mesma.

Questões concernentes às fontes e sucessos da experiência são inteiramente irrelevantes para o tipo de investigação que Husserl quer conduzir. Consequentemente, sua investigação começa excluindo essas questões: “parentesando-as” ou, como Husserl por vezes diz, colocando-as “entre parênteses”. Começar com esse ato de exclusão (ou epochē, que é a palavra grega para “abstenção”) é executar o que Husserl chama a “redução fenomenológico-transcendental”: “transcendental” porque ela torna disponível a possibilidade de perguntar e responder questões do tipo “como é possível” com respeito à intencionalidade da experiência; “fenomenológica” porque a execução da redução dirige a atenção do investigador para os fenômenos conscientes, tornando possível, por meio disso, o discernimento e a descrição de sua estrutura essencial. Husserl às vezes se refere à redução como um tipo de “purificação”, caracterizando-a como um ato de “meditação”. Não devemos nos enganar com esses rótulos e evocar imagens do misticismo New Age, com olhos fechados e pernas cruzadas, nem deveríamos procurar tanques de privação sensível1, isolando-nos fisicamente, desse modo, do mundo circundante. Quaisquer dessas manobras, em sua maioria, privarão o pretenso fenomenólogo de grande parte do material bruto de sua investigação, para a qual o fluxo da experiência deve continuar constante. Em vez de uma alteração no fluxo da experiência, a mudança principal anunciada pela execução da redução é uma mudança na atenção por parte daquele que experiencia. Quando executo a redução, não atento mais aos objetos mundanos de minha experiência, nem me pergunto sobre os fundamentos causais dessa experiência; em vez disso, foco minha atenção na experiência desses objetos mundanos. Presto atenção à apresentação do mundo ao meu redor (e de mim mesmo), em vez do que é apresentado. A redução é, assim, um tipo de reflexão: para Husserl, o domínio da reflexão é “o campo fundamental da fenomenologia” (Ideas I: § 50).

Descrição fenomenológica

A execução da redução é somente o primeiro passo na fenomenologia de Husserl, à medida que prepara o caminho focando a atenção do investigador fenomenológico exclusivamente no “fluxo” de sua experiência. (Temos, na redução fenomenológica, a articulação mais formal e rigorosa da “mudança” esboçada em nosso exercício de abertura na Introdução.) Uma vez que o ponto de vista da redução tenha sido atingido, o investigador pode então começar a responder os tipos de questões que Husserl considera ideais para a fenomenologia responder. Uma vez mais, essas questões dizem respeito às estruturas essenciais da experiência. Que estrutura deve ter a experiência a fim de ser experiência? Como é possível para a experiência consciente “alcançar” ou “contatar” um objeto? Como, em outras palavras, é possível a intencionalidade?

Quero abordar as respostas de Husserl a esses tipos de questões trabalhando cuidadosamente através de um exemplo particular. Estivemos até agora restritos a casos que se centram na experiência visual (ler este livro, olhar para uma pedra), mas eu gostaria de considerar um exemplo centrado na experiência auditiva. O exemplo será desenvolvido ao longo das linhas da própria discussão de Husserl em Sobre a fenomenologia da consciência do tempo interno, muito da qual é dedicada a descrever e dissecar cuidadosamente a experiência de ouvir uma melodia. Seguindo a descrição e análise mais elaborada de Husserl, quero que exploremos a experiência de ouvir uma melodia com vistas a responder às seguintes questões, que podem ser entendidas como exemplificando as questões gerais enumeradas acima:

(a) Que tipo de estrutura a experiência deve ter a fim de ser de ou sobre uma melodia?

(b) Que tipo de estrutura a experiência deve ter a fim de ter o conteúdo ouvir uma melodia?

(c) Como é possível para a experiência consciente ser de ou sobre uma melodia?

Para os nossos propósitos, (a)-(c) podem ser vistas como diferentes formulações da mesma questão.

Antes de prosseguirmos mais adiante, é importante bloquear um determinado modo de responder a esses tipos de questões que Husserl consideraria como inteiramente insatisfatório. Suponha que estivéssemos tentando responder (c) dizendo que, para que a experiência consciente seja de ou sobre uma melodia, devemos estar adequadamente situados com respeito à melodia que está tocando, por exemplo, em uma sala de concerto ou próximo a um rádio transmitindo um concerto. O que essa resposta especifica não é coisa alguma que seja ou necessária ou suficiente para ter esse tipo particular de experiência. É perfeitamente concebível que tenhamos essa experiência sem estarmos adequadamente situados; ou seja, é concebível que tenhamos uma experiência que seja “qualitativamente idêntica” àquela tida por alguém que está sentado na sala de concerto ou próximo ao rádio (por isso, estar adequadamente situado não é necessário); é também perfeitamente concebível que estejamos adequadamente situados e ainda assim falhemos em ter esse tipo de experiência (por isso, estar adequadamente situado não é suficiente). Em suma, essa resposta nos leva para longe da própria experiência, e é principalmente por essa razão que a execução da redução fenomenológica separa essa possibilidade de resposta.

Tendo afastado o que Husserl consideraria como um modo infrutífero de lidar com nossas questões orientadoras, vamos continuar com nosso novo exercício. De modo a focar nossa atenção, vamos nos concentrar em uma melodia particular, que é provavelmente familiar a você, mesmo que você não seja particularmente bem-versado em música clássica: as quatro notas de abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven. A abertura consiste de três oitavas idênticas, seguidas por uma nota mais longa que é um tom e meio mais baixo do que as três de abertura. Para fazer uma primeira, aproximada, tentativa na experiência de ouvir a abertura da Quinta de Beethoven, essa experiência envolve, no mínimo, ouvir todas as quatro notas dessa abertura. Embora isso seja correto, é somente o mero começo de uma descrição dessa experiência particular: as notas não devem ser apenas ouvidas, mas devem ser ouvidas de um modo particular ou em um padrão particular.

Um aspecto desse padrão é que as notas devem ser ouvidas em sucessão. Devemos ouvir a primeira nota no t₁, a segunda nota no t₂, a terceira nota no t₃ e a quarta nota no t₄. Em vez disso, se fôssemos ouvir todas as quatro notas de uma vez, nossa experiência não seria de ou sobre a Quinta de Beethoven, mas de um acorde levemente dissonante. A sucessividade pareceria, portanto, ser um aspecto essencial de nossa experiência a fim de termos esse tipo particular de experiência. (Retornaremos a essa ideia de sucessividade e ao que ela envolve após termos avançado um pouco mais.)

Ouvir uma nota depois da outra, em vez de todas de uma só vez, não é suficiente, porém, para termos uma experiência com o conteúdo “ouvir a abertura da Quinta de Beethoven”. Enquanto ouvimos cada nota sucessiva, nossa experiência da(s) nota(s) precedente(s) deve, em um sentido, cessar: se continuarmos a ouvir as notas anteriores, então a sucessão será equivalente não a uma melodia, mas a um grupamento de sons lentamente construído, um acima do outro, semelhante ao efeito de manter para baixo o pedal mais à direita do piano, enquanto tocamos as notas. É crucial, portanto, que, com a experiência do soar de cada nota sucessiva na abertura, a experiência do soar da nota precedente deva cessar. Contudo (e aqui as coisas ficam um pouco mais escorregadias), a experiência das notas anteriores não deve ser apagada inteiramente. Se, com a experiência de cada nota sucessiva, a experiência das notas anteriores fosse esquecida (e nenhuma experiência com respeito às próximas notas fosse de modo algum esperada), então nossa experiência não “equivaleria” a uma melodia. Seria uma experiência de uma nota, e depois a experiência de outra nota, e depois a experiência de ainda uma nota, e então uma experiência de outra nota depois dessa. Mesmo essa caracterização é de certo modo enganadora, uma vez que do ponto de vista de alguém que a experiencia, as notas não seriam sequer experienciadas como “uma, e então outra” ou como “uma depois da outra”. Até onde podemos compreender, a experiência seria uma versão ainda mais radical da condição sofrida pelo principal personagem no filme Memento2: uma nota soaria, somente para ser imediatamente esquecida.

Para “equivaler” a uma melodia, a experiência de cada nota deve de algum modo ser lembrada enquanto as outras notas são experienciadas. “Lembrada” não é muito adequado aqui, e por várias razões. Primeiro, lembrar tem conotações de chamar algo à mente: reproduzindo uma experiência anterior em nossa memória para posterior inspeção e contemplação. Mas essa não é uma caracterização justa do que acontece no caso de ouvir uma melodia. Se lembrássemos as notas anteriores com o soar de cada nota, então a experiência seria de novo um grupamento construído, e assim as notas anteriormente experienciadas “estariam no caminho” daquela sendo experienciada como atualmente soando. Uma segunda conotação de lembrar também indica sua impropriedade aqui. Lembrar é, com frequência, ativo, algo que fazemos deliberadamente, como quando tentamos lembrar onde deixamos um item particular ou recordar de um feriado recentemente desfrutado. Normalmente, quando ouvimos uma melodia, não temos tal relação para com as notas que estão soando; não fazemos esforço algum para recordar as notas anteriores ou trazê-las à mente de algum modo em particular. Em vez de lembrar, Husserl prefere usar um termo que soa um pouco mais técnico: “retenção”. À medida que cada nota é experienciada como “soando agora”, as notas anteriores são retidas. Isso significa que elas ainda são experienciadas em um sentido, não como continuando a soar, mas como tendo recém-soado, ou seja, elas são experienciadas como evanescendo no passado. (Em suas conferências sobre a consciência do tempo, Husserl usa uma bela imagem para caracterizar a estrutura retencional da experiência: a “apreensão do agora é, por assim dizer, a cabeça presa à cauda do cometa de retenções relacionadas aos pontos-do-agora, anteriores, do movimento” (PCIT: § 11).)

Cada nota é ouvida em um momento diferente, de modo que é experienciada como nesse momento soando em um “agora” diferente: no t₁, a primeira nota é experienciada como soando nesse momento; no t₂, a segunda nota é experienciada; e assim por diante. Enquanto cada nota é ouvida, a cada novo “agora”, os pontos-do- agora da experiência são retidos como tendo sido experienciados (e como tendo sido experienciados nessa ordem). Além disso, enquanto ouvimos cada nota, as notas ainda não ouvidas, mas que estão ainda por vir, são também, em um sentido, parte da experiência. Elas são parte do que está sendo experienciado nesse momento, não no sentido de soarem nesse momento junto com a nota presentemente experienciada, mas como esperadas. O termo de Husserl para isso é “protensão”. Podemos obter uma compreensão da dimensão protensional da experiência ao considerarmos um caso no qual a quarta nota é tocada incorretamente, dois tons abaixo, digamos, ou somente um. Experienciamos um choque momentâneo nesse caso; sentimos nossa experiência ser interrompida. Podemos rir ou expressar desaprovação, dependendo de nosso interesse em a execução soar como planejado, ou podemos apenas notar silentemente, para nós mesmos, que a nota errada soou. O que isso tudo indica é que, com o soar das primeiras notas, já estávamos preparados para a quarta nota soar de um modo particular, e que a expectativa já estava latente em nossa experiência nas primeiras três notas.

Para um trecho da experiência auditiva de alguém ser de ou sobre a Quinta Sinfonia de Beethoven, vários elementos estruturais complexos são pressupostos. Não é apenas uma questão de ouvir uma nota, e depois outra nota e assim por diante. Deve haver, em acréscimo, uma rede de relações retencionais e protensionais mantendo os elementos da experiência juntos. Na verdade, essas relações constituem esses momentos como esses momentos particulares; a experiência de ouvir, por exemplo, a segunda nota isolada é muito diferente de ouvi-la dentro da melodia maior. No último caso, a experiência das outras notas é parte da experiência dessa nota enquanto soando nesse momento, embora isso não seja assim no caso em que a única nota é tocada com nada ao redor dela. Que qualquer momento da experiência pressupõe mais do que aquilo que está sendo experienciado enquanto presente nesse momento indica a estrutura “horizontal” da experiência. Como uma nota na melodia é experienciada como soando nesse momento, as notas recém-experienciadas e as ainda-a-serem-experienciadas são parte do horizonte desse momento da experiência; o momento presente da experiência “aponta para” essas outras notas enquanto retidas ou esperadas.

Esses momentos da experiência, com seus respectivos horizontes, “equivalem” a uma melodia. Quando a última nota soa, não dizemos apenas que ouvimos algumas notas, mas que ouvimos uma melodia particular, tal como a abertura familiar da Quinta Sinfonia de Beethoven: a melodia guia ou governa a experiência das notas particulares. Enquanto experienciamos cada nota passando, retendo-as enquanto prosseguimos e esperando outras notas, os momentos da experiência são reunidos, seus respectivos horizontes se fundem através do que Husserl chama “síntese”. Através da síntese, os vários momentos da experiência são unidos como sendo de ou sobre, nesse caso, uma melodia.

Vamos parar para fazer uma avaliação. Nosso exame do exemplo de ouvir as notas de abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven revelou um número talvez surpreendente de estruturas e relações estruturais – retenção, protensão, horizonte e síntese – que fornecem ao menos preliminarmente repostas às nossas questões orientadoras. Lembre que essas questões diziam respeito às condições de possibilidade de um tipo particular de experiência. Como pode a experiência ser de ou sobre uma melodia? Que tipo de estrutura deve a experiência ter a fim de ser de ou sobre uma melodia? De acordo com Husserl, a experiência deve ao menos ter uma estrutura retencional-protensional, sintético-horizontal. Sem esse tipo de estrutura jamais poderíamos experienciar uma melodia, não importando quantas melodias estivessem por acaso tocando perto daqui. Essas estruturas são estruturas essenciais, afirma Husserl, uma vez que imaginar sua ausência é negar a possibilidade desse tipo de experiência. (Em breve, falaremos mais sobre o papel da imaginação em Husserl.)

Embora não possamos fazer justiça aqui, existe uma outra característica estrutural crucial da experiência que merece menção à medida que serve para respaldar todas as outras mencionadas até aqui. Ao construirmos nossa caracterização da experiência da abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven e das estruturas e relações que a experiência envolve, começamos com a mera ideia de “sucessão”: a experiência de cada nota seguindo a da precedente no tempo. Em muitos lugares Husserl afirma que o tempo é a estrutura mais fundamental da experiência consciente: os momentos da experiência são mais fundamentalmente momentos temporais. Enquanto experienciamos a melodia, ouvindo cada nota uma por uma, o tempo está “escorrendo”, e nossas experiências são indelevelmente indexadas como ocorrendo em seus momentos particulares no tempo. Mesmo que a melodia comece a tocar do fim para o começo, de volta à primeira nota novamente, isso não produzirá uma recorrência do que designamos como t₁. Ao contrário, um novo momento no tempo, um novo “agora”, ocorre, o qual tem um conteúdo qualitativamente similar sob muitos aspectos ao conteúdo do t₁. Os vários momentos do tempo são completamente “sintetizados” como substituindo uma ordem imutável que é irreversível e irrefreável: nossa experiência consciente está sempre “fluindo”; o tempo está sempre “escorrendo”. Mesmo uma experiência de tudo cessando de se mover, um mundo “congelado no tempo”, como é com frequência colocado, tem sua própria duração, de modo que um momento de experienciar esse mundo congelado é seguido por outro, e depois por outro, e assim por diante.

Noesis e noema: constituição

As características estruturais observadas em nosso exemplo, de um modo geral, prevalecem. Elas são essenciais não apenas com respeito à audição de melodias, mas desempenham um papel fundamental nas várias modalidades de experiência. Na verdade, discernimos essas estruturas já em nosso exercício de abertura na Introdução, embora sem ainda nos beneficiarmos da terminologia técnica de Husserl. Considere, de novo, a experiência visual dos objetos materiais, por exemplo, as páginas deste livro, a pedra discutida acima, e assim por diante. Assim como a melodia não é ouvida “de uma só vez”, mas, em vez disso, nota por nota, de um modo que “equivale” a uma melodia, nenhum objeto material é visto de uma só vez. Quando estendo a pedra diante de mim, vejo somente um lado dela. À medida que a giro lentamente, enquanto mantenho meu olhar fixo, novos lados aparecem e os lados vistos anteriormente desaparecem. Para usar a terminologia de Husserl, a pedra é apresentada via “adumbrações” (o mesmo vale, a seu próprio modo, para a melodia: nós a ouvimos, nota por nota, embora soe estranho chamar as notas sonoras “lados” da melodia). A apresentação adumbrativa de objetos na experiência visual é inescapável, mesmo na imaginação. Quando apenas me imagino olhando para uma pedra, ela já é apresentada em minha imaginação via adumbrações: eu sempre vejo a pedra, mesmo no olho de minha mente, de um ângulo particular e de uma distância particular. “Não é um acidente do próprio sentido peculiar da coisa física nem uma contingência de ‘nossa constituição humana’, que ‘nossa’ percepção possa chegar às próprias coisas físicas somente através de meras adumbrações delas” (Ideas I: § 42). Adumbrações, devemos enfatizar, não são unidades isoladas de experiência. Como foi o caso com a melodia, os lados que não são mais vistos ou ainda estão para ser vistos são ainda parte da experiência presente do lado que eu posso ver. Que a pedra tem lados-para-serem-vistos contribui para o horizonte da experiência do lado diante de mim. À medida que a pedra vira, há uma mudança constante em minha experiência visual, e há, todavia, igualmente um tipo de unidade à medida que todos os lados apresentados são de uma pedra: aqui, uma vez mais, podemos ver o trabalho da síntese, mantendo unidos os diferentes momentos da experiência.

Noema

O noema de um processo mental (o que Husserl também chama o “sentido” ou “significado” do processo mental) é aquilo em virtude do que o processo é dirigido a um objeto, independentemente de se objetos existem ou não (meus pensamentos sobre Papai Noel são sobre alguma coisa (i. e., Papai Noel) tanto quanto meus pensamentos sobre Winston Churchill). O noema, portanto, deve ser claramente distinguido do próprio objeto. A qualquer objeto dado corresponde uma miríade de noemata, dependendo somente de como o objeto é significado, e podem também existir noemata que dirigem a consciência para objetos não existentes (tais como Papai Noel). Essa clara distinção é essencial para a eficácia da redução fenomenológica, por meio da qual podemos analisar “estruturas noemáticas” isoladas de quaisquer questões concernentes à existência real de objetos para os quais essas estruturas dirijam a consciência. Para leitores abordando a fenomenologia da perspectiva da filosofia analítica, a concepção de Husserl acerca do noema, com sua clara distinção entre o sentido ou significado de um processo mental e o objeto significado, é similar à famosa distinção de Frege entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung). Para Frege, duas expressões podem diferir em sentido, enquanto tendo o mesmo referente, como em seu exemplo da “estrela da manhã” e da “estrela da noite”, no qual ambos se referem ao planeta Vênus.

Em Meditações cartesianas Husserl chama a unificação dos momentos adumbrativos da experiência de síntese de “identificação”: todas as várias apresentações adumbrativas são unidas como apresentações de uma pedra, de uma melodia, e assim por diante. O processo de sintetizar os vários momentos da experiência Husserl chama “noesis”. A pedra, no primeiro caso, a melodia, no segundo, são, como unidades sintéticas, os significados dessas respectivas regiões da experiência. Husserl, por vezes, refere-se a esse significado como a “forma de apreensão” governando os momentos sucessivos da experiência de construir a experiência da melodia. Outro termo que ele usa é “noema”. O tipo de trabalho que temos feito com respeito a nossos vários exemplos, explorando o processo de síntese e sua contrapartida horizontal, é, portanto, o que Husserl chama “análise noético-noemática”. O recurso à noesis e ao noema indica a complexidade estrutural da experiência, envolvendo o processo de experienciar (noesis) e o conteúdo experienciado (noema). (Existe também um terceiro elemento, o sujeito que experiencia, mas vamos pospor a discussão disso.) Junto aos conceitos de noesis e noema, emerge um terceiro, que nos provê outro insight com respeito às nossas questões orientadoras. Uma passagem de Meditações cartesianas será útil aqui (por cogitatum, na primeira sentença, Husserl significa o conteúdo presente da experiência, e. g., o lado da pedra que é neste momento apresentada a mim em minha experiência perceptual; o que é “não intuitivamente cointencionado” são todos os outros lados que podem ser experienciados, mas estão neste momento ocultos para mim):

[a] explicação fenomenológica torna claro o que está incluído e somente não intuitivamente cointencionado no sentido do cogitatum (por exemplo, o “outro lado”), ao tornar presente na fantasia as percepções potenciais que tornariam o invisível visível [...] Portanto, o fenomenólogo pode, por si mesmo, tornar compreensível para si como, dentro da imanência da vida consciente [...], qualquer coisa como unidades fixas e permanentes podem se tornar intencionadas e, em particular, como esse trabalho maravilhoso de “constituir” objetos idênticos é feito no caso de cada categoria de objetos – isso quer dizer: como, no caso de cada categoria, a vida consciente constitutiva deve parecer, com respeito às variantes noéticas e noemáticas correlativas pertencentes ao mesmo objeto (CM: § 20).

Observe, em particular, a ênfase na passagem sobre “como”, uma vez que indica uma resposta às nossas questões transcendentais do tipo “como é possível”. O processo de síntese e a noção correlativa de horizonte juntos fornecem a resposta a nossas questões. A experiência consciente atinge ou contata objetos ao “constituí-los” dentro do fluxo da própria experiência. A discussão de Husserl sobre a análise noético-noemática, portanto, culmina na noção de “constituição”, mas o que exatamente significa falar de objetos sendo constituídos no fluxo da experiência? Uma compreensão adequada desse conceito requer que fiquemos precisamente dentro da perspectiva da redução fenomenológica. Em particular, devemos ser cuidadosos para evitar pensar que essa noção de constituição se aplica a objetos mundanos reais. A pedra que eu seguro em minha mão não é feita de adumbrações; ao contrário, é composta de moléculas, que, uma a uma, são compostas de átomos, e assim por diante. A noção de constituição se aplica ao aparecer da pedra em minha experiência perceptual: a aparição da pedra é, e deve ser, por meio de apresentações adumbrativas unidas pela síntese de identificação. Somente desse modo minha experiência perceptual pode ser de ou sobre uma pedra; somente desse modo minha experiência pode “intencionar” uma pedra; somente desse modo minha experiência pode ter o conteúdo, ou significar, “pedra”. A constituição se aplica, portanto, ao nível do sentido, ou seja, ela se aplica ao modo como minha experiência adquire o tipo de sentido que ela adquire, ao ser, por exemplo, sobre objetos duradouros.

A fenomenologia revela a natureza sistemática dos objetos no nível da aparência ou experiência: objetos são constituídos como sistemas de apresentações adumbrativas. As adumbrações formam um sistema no sentido de que elas não são arranjadas ao acaso. Se vejo, neste momento, um lado da pedra, ao virá-la, lentamente, outros lados se revelarão, de um modo ordenado e suavemente contínuo (desde que eu não pisque). Se viro a pedra lentamente, não vejo o lado da frente e então, imediatamente, o lado de trás, seguido imediatamente uma vez mais pelo lado de baixo, seguido imediatamente pela apresentação do lado da frente de, digamos, minha xícara de café. Se minha experiência fosse assim, então nunca atingiria, ou seria sobre, objetos; na melhor das hipóteses, seria um jogo caótico de imagens, inteiramente carente de qualquer sentido de estabilidade ou previsibilidade. Não haveria, nas palavras de Husserl, “unidades fixas e permanentes”.

Existem distintas noções de constituição “no caso de cada categoria de objetos”, no sentido de que diferentes tipos de objetos serão diferentemente constituídos. A constituição na experiência de melodias, por exemplo, é diferente da constituição de objetos materiais (a última, por exemplo, envolve adumbrações visuais e, com frequência, olfativas, embora ouvir melodias não envolva qualquer uma delas). Existe também o que Husserl por vezes chama uma noção “mais prenhe” de constituição, e isso concerne à distinção, na experiência, entre objetos reais e irreais. Podemos começar a ter uma noção dessa distinção retornando à ideia de objetos entendidos no nível fenomenológico como sistemas de apresentações adumbrativas reais e possíveis. Se considerarmos a extensão de tais sistemas, podemos começar a reconhecer que não existem quaisquer limites facilmente delineados. Quando considero a apresentação adumbrativa da pedra em minha mão, parece não haver fim para os modos possíveis pelos quais ela pode se apresentar em minha experiência. Apenas considere as diferentes distâncias das quais a pedra pode ser vista, ou os diferentes ângulos; cada um deles é infinitamente divisível. Podemos também multiplicar indefinidamente os tempos possíveis nos quais a pedra pode ser vista, a variedade de condições de luminosidade, e assim por diante, de modo que existe uma distinta falta de finalidade com respeito à nossa experiência mesmo de um objeto tão mundano como uma pedra. Uma consequência disso é que sempre que eu considero que minha experiência perceptual presente é de uma pedra real, eu me comprometo precisamente com essas possibilidades incontáveis da experiência. Quando eu vejo a pedra de um lado e postulo que o que estou vendo é uma pedra real, isso significa, dentre outras coisas, que a pedra pode ser vista a partir de outros pontos de vista: que ela tem outros lados, presentemente ocultos, para serem vistos. Essas possibilidades abarcam diferentes modalidades da experiência. Uma pedra real é aquela que pode ser tocada, arranhada, cheirada e mesmo provada. Vários caminhos, dentre essas possibilidades, podem ser traçados, vindicando continuamente meu compromisso: à medida que cada vez mais apresentações possíveis são “realizadas”, eu posso me sentir mais confiante sobre ter considerado a pedra real. Ao mesmo tempo, o curso de minha experiência pode não seguir como esperado. Ao estender minha mão para tocar na pedra que considerei real, as possibilidades horizontais podem não ser realizadas. Onde eu esperava a sensação de resistência, o que pensei ser uma pedra responde ao meu toque com maleabilidade esponjosa. Em consequência de uma experiência assim, eu me encontro compelido a retirar minha declaração confiante sobre a realidade da pedra. Minha experiência foi, em vez disso, de uma imitação engenhosa, um pedaço de espuma habilidosamente entalhada e colorida, de modo a ser virtualmente indistinguível, ao menos visualmente, de uma pedra genuína. (Quando, a partir desse momento, eu volto meu olhar em direção à pedra de espuma, há um sentido muito distinto no qual ela agora parecerá diferente. O horizonte de possibilidades mudou daí para a frente.) A experiência também pode dar errado de modos mais extremos. A pedra diante de mim pode terminar não tendo sequer lados ocultos para serem vistos. Em vez de uma pedra real, o que vejo não é senão um engenhoso holograma ou mesmo uma alucinação momentânea. A experiência alucinatória, e mesmo experiências deliberadamente imaginadas, constituem o que podemos chamar sistemas “degenerados” de experiências possíveis. No caso de objetos que se mostram irreais (imaginados, alucinados), as possibilidades infinitas fornecidas pelos objetos reais se interrompem abruptamente, negando, por conseguinte, todas as experiências anteriores deles. Husserl se refere a isso dramaticamente como a “explosão” do noema (cf. Ideas I: § 138).

A constituição do ego

As noções de noesis e noema, de Husserl, constituem dois elementos estruturais fundamentais da experiência. Toda experiência consciente que tem conteúdo intencional consiste em um par noético/noemático correlacionado. Existe, entretanto, um terceiro elemento fundamental da experiência: aquele a quem pertence a experiência, o que Husserl refere como o “ego”.

Mesmo no começo da fenomenologia de Husserl, identificado dentro da execução da redução, o ego é manifesto como um elemento constitutivo da experiência, mas um cuidado considerável é requerido, pensa Husserl, para caracterizar propriamente a aparição do ego. Ou seja, a redução fenomenológica não tem como objetivo ser uma mera redução psicológica, focando a atenção na minha experiência onde “minha” se refere a um ente humano de carne e osso (a fenomenologia, para Husserl, não uma questão de introspecção). A execução da redução se aplica igualmente ao sujeito da experiência tal como o faz aos objetos. Quando suspendo quaisquer questões concernentes à relação entre experiência consciente e mundo circundante, essa suspensão se estende completamente às questões concernentes àquele que experiencia. Coloquei entre parênteses a suposição ou pressuposição de que sou um ente humano mundano, materialmente real, do mesmo modo que suponho que minha experiência esteja acontecendo dentro de um mundo materialmente real. (E ao suspender qualquer compromisso com minha materialidade, não me concebo também, consequentemente, como um ser imaterial. A despeito de sua admiração geral por Descartes, Husserl o critica por falhar em fazer a “virada transcendental” ao tratar do ego revelado pelo cogito como “um pequeno retalho do mundo” (CM: § 10).)

Embora minha existência como um ente empiricamente real esteja entre parênteses, a execução da redução não torna sem sujeito o fluxo da experiência. A experiência reduzida é ainda muito possuída, mas somente pelo que Husserl chama o ego “puro” ou “transcendental”, o sujeito da experiência considerado somente como um sujeito da experiência. Esse ego é sempre indicado pelo fluxo constante da experiência; o fluxo da experiência sempre se refere, embora implicitamente, a um sujeito que experiencia, mesmo que as características desse sujeito sejam exauridas pelo mero fato de ter esse fluxo particular de experiência. Devemos ser cuidadosos aqui para não interpretar mal a fala de Husserl sobre a revelação do ego puro dentro da execução da redução. O ego puro ou transcendental não é um segundo eu ou sujeito além da minha subjetividade mundana, como se essa subjetividade mundana fosse de algum modo habitada pelo ego puro da maneira que uma mão habita uma luva. Ao contrário, o ego puro é exatamente o mesmo sujeito, mas considerado abstraído de todas as características que contribuem para minha existência real empírica. O ego puro, podemos dizer, é o que é deixado como dado ou manifesto na experiência, mesmo que todas as minhas crenças sobre minha existência empiricamente real fossem falsas. Mesmo nesse caso extremo, minha experiência ainda carregaria consigo um sentido de posse, um sentido de ser “possuída” por um sujeito. É esse sentido puro ou abstrato de possuir que Husserl pretende explorar dentro de sua fenomenologia.

Assim como objetos são “constituídos” dentro do fluxo da experiência, o mesmo se dá com o ego. À medida que a experiência continua, movendo-se em direções particulares, tendo seus conteúdos mudando de diversos modos, o ego é construído precisamente como o sujeito dessa experiência. Se, por exemplo, eu tenho agora a experiência de ver uma pedra diante de mim, então de agora em diante permanece verdadeiro sobre mim que eu tive essa experiência; a identidade do ego ou “eu” inclui o ter dessa experiência particular nesse tempo particular. Desse modo, a identidade, ou conteúdo, do ego aumenta com a passagem do tempo. O ego, então, “não é um polo de identidade vazio, não mais do que qualquer objeto” (CM: § 32), mas um sujeito da experiência, continuamente autoconstitutivo. Essa autoconstituição é passiva (como é geralmente o caso com a história sempre acumuladora da experiência perceptual) e ativa, uma vez que a história do ego inclui os vários atos, tais como juízos, decisões e compromissos. Ou seja, a história do ego incluirá a declaração de abandono das convicções, a tomada e cancelamento de decisões, e assim por diante: o ego “se constitui como substrato idêntico das propriedades-do-ego, ele se constitui também como um ego pessoal ‘fixo e permanente’” (CM: § 32). Essas atividades autoconstitutivas mostram, fundamentalmente, o que Husserl chama “um estilo permanente” da parte do ego. Nada disso, porém, seria entendido como emprestando ao ego qualquer tipo de substancialidade, como se ele fosse uma outra entidade ou substância além do fluxo da experiência. Essa concepção substancial do ego desprezaria os requisitos da redução, que se abstém de quaisquer compromissos concernentes à constituição da realidade. Um ego substantivo é aquele para o qual teríamos que encontrar um lugar: uma locação particular em um tempo objetivo, e talvez um espaço objetivo. Esses são temas sobre os quais a fenomenologia de Husserl deve permanecer firmemente neutra.

Uma segunda redução

A fenomenologia de Husserl é completamente orientada pela ideia de “essência”. Vimos isso no modo pelo qual Husserl investiga a experiência consciente e no tipo de questões que ele levanta sobre ela. Sua fenomenologia busca delinear a estrutura essencial da experiência, em vez de sua estrutura empírica. Ao longo deste capítulo, porém (seguindo Husserl), procedemos por meio de exemplos particulares, refletindo atentamente sobre nossa experiência perceptual de coisas tais como pedras e melodias, de modo a fundamentalmente discernir sua “constituição” na experiência. Seria demasiadamente precipitado, para dizer o mínimo, extrair de nossa consideração desses exemplos quaisquer conclusões sobre a estrutura essencial da experiência. Como podemos estar certos de que não situamos simplesmente uma característica idiossincrática e variável da experiência, confundindo-a com uma estrutura ineliminável? Como podemos saber, por exemplo, que o que se aplica a ver uma pedra se aplica a ver qualquer objeto material? Não poderia ser possível que alguns objetos materiais não fossem dados adumbrativamente na percepção? Não poderia existir uma criatura que pudesse compreender uma melodia inteira de uma só vez? O próprio Husserl, sem dúvida, sente a força dessas questões, distinguindo, como faz, entre dois estágios de investigação fenomenológica (cf. e. g., CM: § 13). O primeiro estágio envolve a investigação do campo da experiência aberto pela redução fenomenológica. Nesse momento, o fenomenólogo está, antes de tudo, ocupado com descrever atentamente o fluxo dessa experiência, observando suas características e situando estruturas promissoras. Existe, porém, um segundo estágio – o que Husserl refere como “a crítica da experiência transcendental” (CM: § 13) – e é nesse segundo estágio que afirmações concernentes às essências podem ser completamente adjudicadas.

Embora no primeiro estágio o investigador fenomenológico desempenhe, acima de tudo, o papel de um observador com respeito à sua própria experiência, no segundo estágio ele intervém mais ativamente. Ou seja, o investigador “varia livremente” sua experiência, usando sua imaginação para introduzir séries de mudanças no curso de sua experiência. Husserl chama esse método de variação livre de “redução eidética”, do grego eidos, que significa “ideia” ou “forma”. Essa segunda redução é um tipo de destilação, removendo quaisquer das características arbitrárias ou contingentes da experiência, de modo a isolar a forma ou estrutura necessária da experiência. O investigador pode, desse modo, delinear as categorias essenciais da experiência, por exemplo, a percepção, a memória, o desejo, e assim por diante.

Para termos uma ideia de como a redução eidética deve funcionar, vamos começar, como Husserl faz, com um exemplo particular, retornando, uma vez mais, à experiência perceptual de uma pedra. A pedra é dada na experiência como tendo uma forma, uma cor, uma textura particulares, e assim por diante. A pedra se anuncia precisamente como uma coisa particular, com suas várias características já determinadas como realmente sendo de um modo ou de outro. A redução eidética procede tratando todas essas realidades como meras possibilidades. O investigador varia livremente a cor da pedra, imaginando-a azul, verde, magenta, amarela, e assim por diante, e similarmente com respeito à forma, à textura, ao tamanho e a outras características. Uma vez que essas variações são livremente imagináveis, todas elas se mostram como possibilidades em relação a objetos da experiência perceptual: objetos materiais podem variar com respeito a tamanho, forma, cor, textura, e assim por diante. Contudo, haverá limites nessas variações introduzidas na experiência perceptual, transições onde a experiência se romperá inteiramente. Tais transições podem ocorrer quando o investigador tenta suprimir completamente a forma ou imaginar a pedra possuindo duas cores cobrindo a mesma área ao mesmo tempo. Os pontos em que a experiência se rompe são a chave para delinear a estrutura essencial, uma vez que marcam a passagem da possibilidade para a impossibilidade, e assim fixam os parâmetros necessários sobre a experiência.

O investigador pode introduzir variações não apenas com respeito aos objetos da experiência, mas também com respeito ao sujeito. Ou seja, o investigador pode variar livremente sua própria constituição particular em termos da história particular de sua experiência, dos tipos de associações, crenças, preferências e aversões, e assim por diante. Aplicado a esse domínio, o método da variação livre está destinado a permitir a separação entre o que são somente as características idiossincráticas da experiência do investigador, como simplesmente ocorre que ele experiencie coisas, e o que é necessário a fim de que seja, de algum modo, um sujeito de experiência. Dessa forma, os resultados atingidos pelo investigador são aplicáveis universalmente, e não apenas com respeito à sua própria experiência. Aqui, podemos ver muito claramente a distância entre a concepção de Husserl da fenomenologia e o tipo de psicologismo que ele ataca. Embora o naturalista pudesse somente ver as leis do pensamento como se aplicando a tipos particulares de entes e variando do mesmo modo que variam as características empíricas dos entes sob investigação, sejam quais forem as leis que redução eidética produza, elas se aplicam universal e necessariamente, independentemente da constituição empírica dos entes cujo pensamento está sob consideração.

Idealismo transcendental

Husserl concebe a fenomenologia como uma investigação transcendental, cuja questão orientadora é a de como é possível para a consciência atingir ou contatar um objeto. Com frequência, essa questão é entendida como uma questão de “transcendência”, ou seja, uma questão concernente a como a consciência consegue ganhar acesso a, e conhecimento de, objetos situados “fora” de seus limites. Em alguns de seus escritos, tais como Meditações cartesianas, Husserl argumenta que a fenomenologia, considerada cuidadosamente como um todo, revela ser falsa a questão concernente à possibilidade de transcender a esfera da consciência. Ou seja, se considerarmos os dois pontos de vista possíveis dos quais a questão pode ser levantada, veremos que não existe questão sobre a transcendência que valha a pena ser perguntada. Do ponto de vista da atitude natural, a questão de como eu, David Cerbone, saio da minha esfera de consciência a fim de alcançar o mundo “exterior” é sem sentido. À medida que me entendo como mais um ente humano, já me concebi como em meio a um domínio de objetos e de outros entes sencientes cuja existência independente eu assumo como real. No entanto, se adoto o ponto de vista da atitude transcendental, ou seja, o ponto de vista da redução fenomenológica, não existe novamente questão genuína alguma sobre a transcendência. Desse ponto de vista, objetos realmente existentes são constituídos imanentemente. Com a execução da redução eidética, o ponto de vista da subjetividade transcendental compreende todo sentido possível, e, portanto, não existe, estritamente falando, coisa alguma “fora” do domínio da subjetividade transcendental. Husserl, então, pensa que a fenomenologia estabelece, fundamentalmente, a verdade do idealismo transcendental. Todavia, ele não vê seu idealismo como equivalente à modalidade kantiana original. Por exemplo, Husserl rejeita a ideia de Kant de uma coisa-em-si-mesma como algo para além dos limites do sentido.

A fenomenologia após Husserl

Por razões que deveriam estar evidentes a esse ponto, Husserl chama sua fenomenologia de fenomenologia “pura” ou “transcendental”. O qualificador “pura” indica o papel da redução fenomenológica como o primeiro passo indispensável no isolamento do fluxo da experiência consciente; a pureza desse fluxo é uma função da suspensão de quaisquer questões com respeito à relação entre a experiência e o mundo circundante, incluindo, como vimos, até mesmo questões concernentes à identidade do sujeito entendido como uma criatura de carne e osso.

Os mais famosos praticantes da fenomenologia após Husserl (Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty) são, com frequência, coletivamente referidos como fenomenólogos “existenciais”, como opostos a puros ou transcendentais. A alteração no modificador indica mudanças muito mais profundas em suas respectivas concepções de fenomenologia. A despeito das muitas diferenças dentre suas respectivas concepções, o compartilhamento do qualificador “existencial” indica uma suspeição partilhada concernente à legitimidade da redução fenomenológica, ao menos como entendida por Husserl. Talvez, diz essa suspeição, algo dê errado quando tentamos isolar a experiência dessa maneira, para atentar a ela sem ao mesmo tempo atentar para o modo como essa experiência está, de uma forma mais geral, situada; talvez necessitemos considerar a questão sobre aquele que experiencia no sentido de um sujeito “concreto” da experiência, em vez de algo abstrato e anônimo. Heidegger, por exemplo, invectiva contra a tentativa de purificação, de Husserl, reclamando que ela entende mal e depois negligencia precisamente o que é mais crucial para a fenomenologia, o que Husserl chama a “atitude natural”, que a redução suspende. Heidegger alega que “a maneira natural de o ente humano experienciar [...] não pode ser chamada uma atitude” (HCT: 113), indicando que essa “maneira natural” não é algo que adotamos ou suspendemos livremente. De acordo com Heidegger, “a maneira natural de o ente humano experienciar” não é, em absoluto, um conjunto de suposições ou pressuposições.

Em sua crítica, Sartre foca na concepção de Husserl acerca do ego ou eu, questionando a validade de suas descrições fenomenológicas, nas quais o ego ou eu aparece dentro da experiência consciente. Em vez disso, Sartre pretende demonstrar “que o ego não está formal nem materialmente na consciência: está fora, no mundo. É um ente do mundo, como o ego de outro” (TE: 31). E no prefácio a seu Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty, revisitando a fenomenologia de Husserl, observa que “a lição mais importante que a redução nos ensina é a impossibilidade de uma redução completa” (PP: xiv). Que existamos não como “mentes absolutas”, mas ao contrário como entes mundanos incorporados, elimina o tipo de purificação que Husserl exige. Se devemos ser fiéis à nossa experiência, a fenomenologia deve atender ao seu caráter situado e incorporado, em contato com, e atuando em, um mundo circundante.

Sumário dos pontos-chave

• As leis e princípios da lógica não podem ser entendidos como leis psicológicas, mas são “leis do pensamento” em um sentido não psicológico, ideal.

• A consciência consiste de “fenômenos”, que não podem ser entendidos pela analogia com objetos materiais.

• Para isolar os fenômenos, a consciência deve ser “purificada” colocando entre parênteses quaisquer considerações concernentes às fontes e sucessos da experiência consciente.

• A descrição fenomenológica diz respeito às estruturas noéticas e noemáticas, em virtude das quais a experiência é intencional.

• A fenomenologia revela como significados ou sentidos são constituídos na experiência.

• Mesmo quando eu parenteso qualquer compromisso com minha existência enquanto um ente mundano, meu “ego puro” permanece como uma característica essencial da consciência.

• A redução eidética usa o método da “variação livre” a fim de ordenar os aspectos essenciais e não essenciais da consciência.

1. Em inglês, sensory deprivation tanks (tanques de privação sensível), denominação original de isolation tanks (tanques de isolamento). Um tanque de isolamento é um tanque sem luz e à prova de som dentro do qual pessoas flutuam em água salgada à temperatura do corpo. Foram utilizados pela primeira vez por John C. Lilly em 1954 a fim de testar os efeitos da privação sensível. Tais tanques são agora utilizados para meditação e relaxamento e na medicina alternativa [N.T.].

2. Exibido no Brasil, em 2000, sob o título Amnésia [N.T.].