A MÃE­-D’ÁGUA

De (O lobisomem e outros contos folclóricos)

Lagoa encantada era o nome da fazenda, assim chamada por causa da lagoa que nela havia, muito grande e escura, rodeada de terra alagada: o brejo, com uma esteira de caniços por cima.

No alto do barranco ficava o sobradinho.

Não atalhando a proposta honrada do contador do caso, e que adiante vai, na forma pela qual dele ouvi, com respeito e fé, diga­-se que a fazenda era de propriedade de uns parentes da pessoa que aqui vos fala, neste papel escrito; e que lido não sei se será, algum dia, por alguém. Mas do que ora escrevo não tenho dúvida, pois tudo se passou como foi passado, em fiança de palavra verdadeira, que o contador do caso era homem sério e não mentia.

Entrei no sobradinho, um dia, quando ali já ninguém morava, nem parente nem aderente meu, todos mortos e enterrados, os donos de antes.

Abri as janelas, que eram apenas duas, daquilo que era mais um mirante, embora sobradinho chamado, não sem justa causa; pois tinha a parecença de um, ainda que em ponto pequeno, como de fato era.

Foi como de coisa que eram tampas de caixões velhos se abrindo, se escancarando; e botando pra fora, vindo bem de dentro dos interiores deles, um hálito de mofo.

Medo não tive, mas havia ali qualquer coisa de uns restos de vida ferida, por minhas mãos tocados, na gemedeira das dobradiças, coisa muito agoniada, de dar pena.

E vi o que era de ver, lá fora, dormindo no sopé do barranco, mas estirada até o fundo da mata, com os caniços do brejo rodeando ela: a lagoa.

Parecia um buraco no meio da mata, só que cheio d’água e de um tamanho como nunca houve outro igual. Era como se tivesse chovido muito, mas num lugar somente, ali. A própria mata se misturava com a lagoa, no bordejamento; pois a água entrava por dentro do mato, quase afogando ele. Só deixava de fora as árvores altas, recuadas e em volta, como que corridas da lagoa, no espavorimento dos galhos levantados: braçaria rendida, em mudez e medo.

E no ajuntamento, assim fugidas da lagoa pela beira dela, as árvores fechavam todos os caminhos, menos a estradinha mais longe, que dava uma volta por trás, até chegar ao alto do barranco, no lugar onde ficava o sobradinho.

Quem tivesse pressa, e encurtar caminho quisesse, tinha mesmo de passar por dentro do brejo, com a água dando na barriga da montaria, cavalo ou burro; e fazendo o que devia: dobrando as pernas para trás, na linha da garupa, pra evitar que os pés se molhassem, nos sapatos ou nas botas que calçavam eles.

Foi assim que por ali passei, naquele dia; e não pela estradinha, pra não ser preciso dar a volta, como em antes, noutros tempos, costumavam fazer as pessoas, por questão de segurança, mesmo demorando mais tempo.

E nem por outra forma podia ser, estando a estradinha como estava: fechada de mato, de tanto ficar sem ninguém passar por ela nos últimos anos, que pelo menos mais de cinco já eram contados, desde a morte de meu tio Lucas.

Era este o nome dele, do parente que fora dono da fazenda, por herança do pai, e que da família fora o último a habitar o sobradinho, depois do que ninguém mais morou ali.

Eu vinha com um guia, o velho Joaquim, de apelido Quim, que outro não podia haver melhor que ele para me servir.

Foi ele o dito contador, que tudo me contou, como adiante se verá, e que na vida não tinha sido outra coisa senão o que fora em antes: servidor de pai e filho, da família toda, de mamando a caducando, na Lagoa Encantada, ali somente, e nunca em outro lugar.

Me mostrou da janela, lá bem longe, no meio da lagoa, a moita boiando na água escura.

– É aquela – disse, no seu modo misterioso de dizer as coisas, não importava como: ou sabendo delas por saber direto, testemunhado, ou por ouvir contar.

De uma coisa eu me lembrava, no meu tempo de menino, em casa, coisa essa que eu queria ver mas não vira até aquela data, e que dizia respeito à Lagoa Encantada, onde moraram aqueles meus parentes, donos da fazenda que esse nome tinha.

A dita coisa era o encanto dela, conforme diziam e eu tinha escutado, embora sem entender direito.

E por não ter entendido o escutado, mais encantada me parecera ela, na minha imaginação de menino, de que eu ainda guardava uns restos, apesar de menino já não ser, desde muito.

O encanto era a ilhota que mudava de lugar, nunca estando um dia onde estava antes, na lagoa.

Mas agora eu via, bem ali, mostrada pelo velho Joaquim, a: ilhota; e ela não era como imaginada fora, ainda que razão tivessem os que em antes me haviam falado dela, num ponto. E que era o seguinte: de lugar ela mudava, mas só por via do vento, de conformidade com ele.

Isto era verdade; e o velho Joaquim, também chamado Quim, me explicava agora, mostrando dali da janela, lá no meio da lagoa, a moita boiando, e que outra não era senão a ilhota falada.

Só que ilhota não era, na forma como eu pensava, de terra firme; mas somente uma moita, ainda que mais pra grande do que pra pequena, e por isto considerada ilhota, pelo tamanho que tinha; e rodeada de água sendo, como se ilhota fosse.

O encanto era outro, e a mim me foi contado por Quim, o dito velho Joaquim; que tudo sabia da fazenda, e da razão do nome dela. O qual: como já se disse, era este: Lagoa Encantada.

Isto por via do falado encanto, de que fiquei sabendo, tal como de fato era, só naquele justo dia e exata hora.

Encanto esse que adiante vai contado, da forma pela qual ouvi da boca de Joaquim.

Bem em antes, quando a fazenda nem fazenda ainda era, e nem arrozais havia nela, mas só mato, uma índia donzela, fugida até ali, se deixou morrer afogada, por vontade e de tristeza, nas águas da lagoa.

Mas o corpo ficou boiando: coisa delicada, flor, ou bichinho de Deus. E assim boiando, mas parecia que ali fora deixada, com cuidado, em cima da água, como se numa cama estivesse, em sono adormecida, embora morta estando.

E nos cabelos dela foi­-se enredando o que na água havia: fiapos de ervas, folhas, hastes de plantas, e os pendões desfeitos dos caniços, que o vento trazia do brejo numa esteira de florzinhas miúdas.

E tudo isto, nos cabelos dela se enredando, foi aos poucos se convertendo numa moita, que boiando ficou como antes boiava o corpo.

Então, dentro da moita ela sumiu, feita em hastes e em touceira, morta continuando viva, pois vivia em cada folha, em cada flor da moita, semente se fazendo e em si desabrochada.

E assim, transformada em moita, ia de lugar mudando, boiante e errante, no passeio do vento pela lagoa.

Ilhota não havia, conforme o propalado, ali.

O que havia, embora mudando de lugar como diziam, era a moita, que eu via agora flutuando na água escura, e sabedor ficando da verdade, que a palavra de Joaquim dava por fé.

E ele continuou, pois a história não acabava naquele ponto. O resto dela veio com o tempo, que foi passando, e passou muito, até que não havia mais índio, mas só mato e bicho.

Os meus parentes – os mais antigos – ali chegaram, e donos das terras se fizeram, com a lagoa e tudo. A qual lagoa, por ser já conhecido o encanto, que de boca em boca passara, no alem brado da história da índia, morrida de tristeza e donzela, tomou por causa dele o dito nome de Lagoa Encantada, que também passou a ser o da fazenda.

E de parente em parente, de pai para filho, e de filho para neto, em papel de testamento, veio a ser dono dela meu tio Lucas, de cujo falecido pai o velho Joaquim fora servidor; e servidor continuou a ser da família, na pessoa do descendente.

E deu­-se que meu tio Lucas tinha um filho, que único era e se chamava Augusto.

Não cheguei a conhecer o infeliz, que tão triste fim teve, pois eu morava em outro município, de onde só saí depois de grande; justamente por ocasião daquele dia, o mesmo em que me encontrava ali, na Lagoa Encantada, com o velho Joaquim.

Por ele fiquei sabendo: Augusto era um rapazinho louro, de olho azul.

Na Lagoa Encantada, desde quando para ali tinham vindo meus parentes aqueles, uma notícia corria, e que comprovada fora, muitas vezes.

Em certas noites, estando todos dormindo, quem acordasse podia ouvir – mesmo de lá do sobradinho, que era o lugar mais distante – um gemido muito triste, e que ainda mais triste parecia, naquela hora, de noite.

Vinha bem do rumo da lagoa, o gemido. E de conformidade com a história da índia, que todos conheciam, o gemido só podia ser dela, da pobrezinha.

Uma explicação havia, que era a do mato da moita repuxando os cabelos dela, com a força do vento.

Mas outra explicação também havia, se em vez do gemido se escutasse um canto, que triste não era, mas bonito.

Era em noites especiais, não em uma qualquer: só nas de lua cheia, assim mesmo quando a Lua saía depois das 10 horas; antes, não.

E o que se dava, nessas ocasiões, era que a índia, encantada em mãe­-d’água, saía de dentro da moita e ia tomar banho na lagoa. E com uma espinha de peixe penteava os cabelos, se mirando no espelho da água. E assim sozinha, só ela e a Lua, começava então a cantar, com vontade de não ficar tão sozinha, mas sozinha ficando, porque ninguém tinha coragem de ir até lá fazer companhia a ela, conforme ela queria.

E o motivo, pois havia um, era que o canto da mãe­-d’água, embora assim bonito, era um canto traiçoeiro. O homem, aquele mais afoito, que pelo canto dela se deixasse atrair, para o fundo da lagoa era levado, de lá nunca mais voltando, nem vivo nem morto.

E disto eram todos sabedores, na fazenda e em tudo quanto era lugar onde houvesse lagoa e mãe­-d’água houvesse, na forma pela qual se conhecia o encanto. Ali havia uma: na Lagoa Encantada, que por esse motivo se chamava assim.

Somente Augusto, o filho de tio Lucas, não sabia do consabido; eu, se sabia, não acreditava na maldade daquele canto tão bonito, que bonito era, como já se disse.

Acordou uma noite ouvindo ele, o canto que vinha da lagoa. Abriu a janela: havia lá fora um charco de lua, de ponta a ponta, e no molhado da lagoa ele viu a moita boiando. O canto estava em toda parte, escorrendo pela noite.

Saiu do seu quarto o rapazinho louro, de olho azul, buscando naquele canto uma companhia, pois tão sozinho ele se sentia na fazenda, em especial naquela noite, como sozinha se sentia a mãe­-d’água no seu banho.

Augusto era assim desde que a mãe dele morrera: muito triste e arredio, com tio Lucas se preocupando com ele, pois outro filho não tinha, sendo aquele só.

E do seu quarto saindo, como dito já ficou, foi Augusto descendo o barranco, descendo, descendo, até chegar embaixo, onde começava o brejo, que lagoa já era.

E ali ficou parado, ouvindo o canto da mãe­-d’água; a qual, mais perto dele estando, estava sozinha no banho dela, saída da moita onde morava.

Mas deu­-se que, ouvindo ranger a porta, tio Lucas acordou. E também ouvindo o canto, chamou pelo filho, logo. E no quarto não o encontrando, correu para a porta, que entreaberta estava. E deu fé do sucedido, que não podia ser outro; pois morando somente os dois no sobradinho, na parte de cima, se alguém saíra, houvera de ser Augusto.

E por ela também saindo, de imediato, tio Lucas viu o vulto do filho lá embaixo, que com o luar tudo se via.

Gritou:

– Augusto!

Mas o grito se perdeu na noite, pois o rapaz, parado em frente ao brejo, lá embaixo, só ouvia o canto da mãe­-d’água.

Porém o grito acordou Joaquim, que comigo ali estava agora, contando tudo, pois habitava o porão, na fazenda morando, na época do acontecido.

Foram então os dois barranco abaixo, no rumo do lugar onde o rapaz estava. Só que quando lá chegaram, bem no lugar, já não encontraram o rapaz.

Em vez dele, viram uma cobra enorme, desenrolada e deslizando, a qual desapareceu logo no brejo.

No mesmo instante soprou uma aragem; e a moita foi levada para longe, conforme acontecia quando havia vento.

Então, tudo ficou em silêncio, pois nada mais se ouvia, ali ou em outro lugar qualquer, na lagoa. E aquilo que devera ser o canto, que da mãe­-d’água tinham escutado, quando no alto do barranco ainda estavam, canto já não era, e se fora, se calara.

Voltar para o sobradinho tio Lucas não quis. E assim, ali ficando, no justo lugar onde tinha visto o filho, esperou que amanhecesse. A madrugada veio encontrar a pessoa dele de olhos vermelhos, da noite passada em claro e de tanto chorar.

Pegou então uma canoa, e por toda a manhã percorreu o brejo, acompanhado de Joaquim, seu fiel servidor, na esperança de encontrar o filho – vivo ou morto.

E ia chamando, enquanto remando ia:

– Augusto! Augusto!

Mas o filho ele não encontrou, sob nenhuma forma, qualquer que fosse, das duas em que o desaparecido estivesse: se ainda vivo ou morto estando.

E dúvida não houve mais: em cobra transformada, no encanto da lagoa, a mãe­-d’água carregara ele.

Tio Lucas foi de muda para a cidade, onde morreu de desgosto. Desde então a fazenda, que Lagoa Encantada se chamava, ficou abandonada.

Depois do triste dia, e passados muitos anos, o primeiro parente a pôr os pés ali fui eu. Assim mesmo para nunca mais voltar.