O ESTILETE

De (Armado cavaleiro o audaz motoqueiro)

Chamava­-se José Mario, e queria comprar um estilete. Havia de ter para isso os seus motivos, mas deles fazia segredo. De resto, era um homem que falava pouco, conquanto falasse muito consigo mesmo. E vá a gente imaginar o que vive falando consigo mesmo um homem que com os outros fala pouco, ainda que não esteja em causa um estilete. No caso de José Mário, porém, estava. Queria comprar um estilete.

– Um estilete? – perguntou­-lhe o caixeiro da casa de ferragens, como na dúvida do que ouvira.

– Sim, um estilete. Um estilete de uns trinta centímetros de comprimento, de aço.

– Desculpe, cavalheiro, mas não temos esse tipo de artigo. Talvez o senhor o encontre numa cutelaria, quem sabe? É bom ver em Almeida & Fernandes, aqui perto, na Rua Larga. Creio que é no número 62. 62 ou 66, uma coisa assim.

Saiu José Mário em busca da cutelaria, incerto da _­-­-numeração, mas absolutamente certo de que queria era um estilete, e não um alfinete. Sorriu, na espetadela de uma lembrança: a brincadeira que no colégio fizera com um colega (já lá se iam mais de vinte anos), cravando­-lhe no bumbum um alfinete.

– Mas, um estilete de trinta centímetros? – estranhou o caixeiro da cutelaria Almeida & Fernandes, que, embora isto não tenha nenhuma importância para a história, era português, e careca. – Posso saber para que fim o senhor quer um estilete desse tamanho?

José Mário sacudiu em silêncio a cabeça, numa sumária negativa. Afinal ele falava pouco. Queria comprar um estilete com trinta centímetros de comprimento. A cutelaria não o tinha? Então, pronto. Assunto encerrado. Ora, já se viu caixeiro mais bisbilhoteiro?

Foi a mais quatro ou cinco casas, inutilmente. Na última delas, porém, o caixeiro lhe fez uma sugestão realmente providencial:

– Um estilete desse tamanho, só de encomenda. Por que o senhor não manda fazer um estilete do tamanho que está querendo?

– Mas, de encomenda...

– Sim, de encomenda. Do contrário o senhor não estará servido. Conheço bem o ramo de cutelaria, conheço todas as casas do ramo no Rio de Janeiro, inclusive porque já fui pracista, e posso lhe garantir: o senhor não vai encontrar em parte alguma um estilete de trinta centímetros de comprimento. Só mesmo de encomenda.

– Sim... sim... de encomenda. Compreendo. Mas, onde diabo vou encomendar o estilete? – perguntou José Mário.

Era fácil, e o caixeiro lhe deu todas as indicações. Sim, claro que era fácil; só que era longe. Teve de comprar o Guia Rex, para, orientado por ele, chegar ao cabo de duas horas de labirinto à metalúrgica da Avenida Suburbana, a cuja porta estacionou o carro Dodge Dart, quase morto de sede de gasolina.

Uma semana depois refazia o itinerário suburbano, para pegar a encomenda. O estilete de aço reluziu em suas mãos maravilhadas. Conferiu­-o com a escala que o caixeiro lhe trouxe com escrupulosa solicitude: trinta centímetros de comprimento, descontado o cabo de plástico torneado. Ótimo!

Isso foi numa terça­-feira. Na quinta­-feira, pegou no Galeão o boeing das 16:30 para Brasília, seu horário preferido. Era o voo que saía direto do Rio de Janeiro, sem o varejo da escala em Belo Horizonte. Sentou­-se num dos últimos bancos, pôs entre as pernas a maleta executiva. Não estava cheio o avião. Que bom! Brasileiro era o povo que viajava mais de avião no mundo. Um milagre, não estar lotado aquele voo. O avião decolou, ganhou altura, desfraldando uma esteira de roncos.

Sentou­-se no banco da frente – exatamente à sua frente – um sólido homem cabeludo, munido de um sortido equipamento facial: barba, bigode e óculos.

José Mário observava­-o. Sorriu, quando o homem reclinou a cadeira. Ah, o homem era daquele tipo de passageiro que, quando está num avião, evidentemente sabe que está num avião, mas pensa que está em casa. José Mário conhecia bastante esse tipo de passageiro que de resto quase o deixava louco de raiva, em suas frequentes viagens de avião. Não foram poucas vezes que cadeira reclinada de passageiro impedira José Mário de ler o jornal no avião. E o problema da mesa do lanche? Num voo de Brasília para São Paulo, simplesmente não pudera tomar o lanche: a cadeira reclinada do passageiro da frente o deixara todo o tempo em estado de sacrifício, a mesa comprimindo­-lhe o estômago. Podia ter reclamado, recorrendo à intervenção disciplinar da comissária, como já vira mais de uma pessoa fazer, em situação semelhante. Mas, não reclamara: aguentara tudo calado, sob um silêncio estoico. Afinal ele não gostava de falar.

José Mário observava o sólido homem sentado à sua frente, a cadeira solidamente reclinada. Abriu a maleta executiva, pegou o estilete, fechou de novo a maleta. Nas proximidades os bancos estavam vazios. As comissárias estavam lá nos fundos arrumando o carrinho dos drinks. Com toda a força, enfiou no lombo da cadeira reclinada o estilete – huumm!

Um grito mal ferido dilacerou o ronco do avião.

– Me acertaram! – gemia o passageiro da frente, com a mão apalpando as costas.

De pé, num desafio de espadachim alucinado, José Mário só fazia dizer:

– Recline a poltrona, filho da puta! Vamos, recline, recline a poltrona agora, filho da puta! Isto é para você nunca mais reclinar poltrona em avião, ouviu, seu filho da puta?

José Mário foi contido pelo comandante do boeing, que o levou para a cabine, de onde só saiu depois do pouso do avião, para ser entregue às autoridades policiais do aeroporto. Do aeroporto foi para a delegacia, e o outro passageiro para o hospital.

Não houve maiores problemas. Ferimento leve, advogado, que é bom, entrou em cena, tudo se esclareceu com o aval de uma junta médica: acesso de loucura. José Mário foi para casa com a recomendação de que passasse uns dias num sanatório, mais para descansar do que para outra coisa: não se impressionasse.

O estilete foi apreendido pela polícia.

José Mário, que de resto não gostava de falar, nunca mais falou sobre o assunto.