SEDE DE VINGANÇA

De (Armado cavaleiro o audaz motoqueiro)

– Canalha! Mato­-o! Dou­-lhe um tiro na cara!

Não há como deixar de admitir que quem assim se expressava estava irado. Tratava­-se de Archibaldo Lessa Brito, funcionário da Campanha de Folclore, que já não era criança. Conversava com o seu amigo Porciúncula, velho servidor dos Correios e Telégrafos, aposentado, a ponderação em pessoa.

– Que insensatez, Brito – disse Porciúncula. – Tire essa ideia da cabeça.

– Não tiro não. É como já lhe disse: mato­-o! Ele está me humilhando de uma forma insuportável, me esvaziando.

– Mas é seu chefe.

– E daí? Desde quando um chefe tem o direito de humilhar os seus companheiros de trabalho? Ele vem me esvaziando aos poucos, me deixando à margem de tudo. Não me ouve para nada, já não me chama ao gabinete dele, não me pede opinião sobre coisa nenhuma. Passo o dia inteiro dentro de minha sala, sozinho, ouvindo o barulhinho do condicionador de ar. Enquanto isso, ele convoca reuniões sobre reuniões, debate os assuntos da Campanha com todo o mundo, menos comigo. E isso, Porciúncula, é uma sacanagem. Não há outra qualificação: uma sacanagem. Porque, se de alguma coisa eu entendo, é de folclore.

– Sim, você entende de folclore. Entende de folclore, mas não entende da vida.

– Não entendo da vida, como?

– Meu caro Brito, em toda a parte é a mesma coisa, e no serviço público não haveria de ser diferente. Vá engolindo os seus sapos, porque a vida é assim mesmo. Pode estar certo de que o seu chefe também engole os sapos dele. Nos Correios e Telégrafos eu não fiz outra coisa senão engolir sapos. Isso é da vida, Brito.

– Pode ser da vida, Porciúncula, mas eu não aguento mais. E dizer que eu e aquele canalha chegamos a ser bons amigos! Sabe, ultimamente ele até finge que não me vê, para não me cumprimentar. Um canalha! Mas vai me pagar caro, porque estou definitivamente resolvido a matá­-lo. Estou com sede de vingança, entende?

– Está bem, está bem, você está com sede de vingança, vai matá­-lo. Já pensou, porém, nas consequências?

– Consequências?

– Sim. Você o mata, os jornais se ocupam do crime,

publicam sua fotografia, você vira assunto de reportagem policial, nunca mais será o mesmo homem. Já pensou nas manchetes? Sua mulher, sua sogra, seus amigos abrem o jornal, e lá está a manchete: Folclorista abate a tiros superior hierárquico. Ou então: Servidor público mata covardemente seu chefe.

– Covardemente, uma porra!

– Está vendo? Você anda tão perturbado que até já deu para dizer palavrão.

– Sim, porque eu não sou covarde. Posso ser tudo, menos covarde.

– Meu caro Brito, até parece que você nunca leu jornal. Para o jornal, todo crime é covarde. Covarde ou brutal, ou as duas coisas juntas. Nenhum jornal vai noticiar um crime apresentando como herói o criminoso. Afinal, a imprensa tem o dever de defender a sociedade, da qual todo criminoso, por princípio, é considerado inimigo. E não é só isso.

– Não é só isso, como?

–Sim, Você mata seu chefe, vai preso, e já pensou no que irá dizer a seus filhos, a seus netos? Chega o domingo, dia de visitas, vão os seus netos vê­-lo no presídio, e lá vêm as emoções, o choro. Já imaginou quando o seu netinho perguntar: “Vovô, quando é que o senhor vai me levar ao Jardim Zoológico?.

– Pare, Porciúncula, pare. Você está amolecendo meu coração.

– Bem, Brito, estou apenas sendo franco com você. Como seu amigo, não posso deixá­-lo manchar de sangue as mãos, estragar sua vida, pôr a perder a posição que você tem na Campanha de Folclore.

– Eu sou o principal assessor da Campanha.

– Sei disso. Sei do seu valor, conheço sua vida, suas qualidades humanas. Acalme­-se, tenha um pouco de paciência, que as coisas haverão de se normalizar no seu serviço, no seu ambiente de trabalho.

– Com aquele canalha na chefia isso não vai ser possível, Porciúncula.

– Dê tempo ao tempo, Brito. Você tornar­-se um criminoso é que não é possível.

Archibaldo Lessa Brito calou­-se por um minuto. Um minuto, não; dois. Dois minutos. Tempo suficiente para seus pensamentos tomarem em silêncio outro rumo.

– Está bem, está bem – disse. – Está bem que eu não o mate. Mas, de toda maneira, tenho de lhe dar uma lição.

– Uma lição?

– Sim. Dar­-lhe uma lição. Vou esperá­-lo uma tarde à porta da Campanha de Folclore e descer­-lhe o relho na cara. Na hora de encerramento do expediente, para todos os funcionários verem. Vou descer­-lhe o relho, é isso mesmo que farei. Tenho um relho em casa, que eu trouxe da roça. Vou descer­-lhe o relho na cara, que é para ele tomar vergonha.

– E o revide, Brito?

– Revide?

– Sim, afinal ele pode revidar. Ele é moço, você já está com quase 70 anos, beirando a compulsória; não vá arranjar um meio de morrer de enfarte na rua, debaixo de tapa.

– Esse negócio de idade é besteira.

– Besteira?

– Sim, veja o exemplo de Tito.

– Que Tito?

– Tito, da Iugoslávia.

– Francamente, Brito. Sem querer fazer piada, estou falando é de Brito, e não de Tito.

– Está me gozando, não é?

– Não. Não estou gozando você. O que quero é evitar que leve adiante essa insensata ideia de desforço pessoal, coisa, afinal, de arruaceiro, e não de um homem com a sua posição. Já imaginou, você, um assessor da Campanha de Folclore, agredir a chicote seu chefe, exatamente à porta de sua repartição? É simplesmente uma loucura. Repito o que já lhe disse: você é um homem de quase 70 anos. Tem de se precaver, evitar contrariedades. Como anda sua pressão? Você tem tirado a pressão?

– Mas, Porciúncula, que diabo você quer que eu faça? O homem está me esvaziando. Não me ouve para nada;, me ignora. Eu sei das coisas da Campanha pelos jornais, como uma pessoa qualquer. Estou cansado de ser humilhado. O homem está me esvaziando; aliás, já me esvaziou. Se acha que não devo matá­-lo, que não devo meter­-lhe o relho na cara, que acha finalmente que devo fazer, Porciúncula?

– Só há uma coisa a fazer: a reconciliação.

– Reconciliação?

– Sim, a reconciliação. Se é o primeiro a reconhecer que em certo tempo você e ele chegaram a ser bons amigos, por que não tentar uma reconciliação? Vai ver que ele não está querendo outra coisa.

Despediram­-se. Porciúncula pegou o ônibus de Brás de Pina, foi para casa; Brito ficou ainda algum tempo na cidade. Tomou um cafezinho, comprou jornal, para ter alguma coisa que ler na fila do ônibus de Laranjeiras, quando, por sua vez, fosse para casa. Dois dias depois chamou o amigo ao telefone:

– Porciúncula, tudo resolvido.

– Resolvido?

– Sim, homem. Tudo resolvido. Houve a reconciliação.

Ainda bem que eu tive o bom senso de me abrir com você. Se não fosse você, eu estaria perdido. Você sabe, ele tem defeitos, mas é um bom sujeito. Enfim, todos nós temos defeitos, não é verdade? Todos nós. Eu próprio tenho os meus defeitos. E reconheço que não são poucos.

– Alô, Brito! Quer dizer, então, que tudo se resolveu bem...

– Benzíssimo! Hoje mesmo, pela manhã, tivemos uma reunião, e ele acatou todas as minhas sugestões. Depois fomos almoçar juntos, no Ginástico. Obrigado, Porciúncula, muito obrigado. Se você não sugere a reconciliação, vingativo como sou, a esta hora eu estava atrás das grades.