O VOO DA FANTASIA

De (Armado cavaleiro o audaz motoqueiro)

Uma coisa que o brasileiro, modéstia à parte, sabe fazer com inigualável paixão e método é, sem dúvida, esta: – gastar dinheiro. Escrito este período, pode o leitor, se quiser cooperar, ou participar, como dizem os padres que hoje participam de tudo, para dar eles próprios o exemplo da participação, pode o leitor, se quiser, escrevê­-lo de outra maneira. Pode escrevê­-lo com outras palavras, que elas conduzirão à mesma verdade, ou seja, à Verdade, visto que a verdade, embora cada homem invente a sua para seu uso particular, é uma só. Se quiserem, poderemos chamar essa verdade única de verdade verdadeira. E a verdade verdadeira, no caso, é esta: o brasileiro é o povo mais perdulário do mundo. Já falamos de sua paixão do gasto; e, se também já nos referimos ao método que ele associa a essa paixão, cumpre esclarecer este ponto, que pode parecer ambíguo, ou contraditório: paixão com método? O método, aqui, equivale ao sentido de ordem surpreendido no conhecido episódio de Antero de Quental – isto é: a ordem convivendo com o delírio. Se o brasileiro tem a paixão do gasto, não há como negar que ele organiza essa paixão com um método delirante de gastar, que nada mais é que o delírio metódico do gasto. Gastar como um modo sistemático de proceder – eis tudo.

Pessoalmente, Alexandre Higino, alto funcionário da CODEVASF em Brasília, constatou a esse respeito um fato muito significativo.

Ele vai contá­-lo aqui para a gente, agora. Depois lhe perguntaremos o que quer dizer aquela sigla. Pode falar, Alexandre Higino!

– Bem, acho melhor eu dizer logo o que significa a sigla, porque, se formos deixar para depois, vou acabar esquecendo. CODEVASF significa Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. O fato que constatei foi o seguinte: – Sempre que viajo com minha mulher, vou comprar a passagem dela (a minha, é lógico, é a CODEVASF que paga) numa agência da VARIG que fica na Quadra 306. É uma agência tranquila, sem aquela loucura turística da agência do Hotel Nacional, onde o infeliz que tiver de comprar com urgência uma passagem vai ter de ficar mais infeliz ainda esperando na fila. Pois bem. Cheguei, um dia, à minha tranquila agência, e quase não pude entrar, de tanta gente que havia lá dentro. Que diabo era aquilo? Afinal, entrei; e, como sou conhecido do pessoal da agência, perguntei a um funcionário que ia passando afobado, com uns papéis na mão: – Meu caro amigo, qual a razão de todo este movimento? Ele simplesmente respondeu: – Então, o senhor não sabe? As tarifas aéreas aumentaram ontem. Toda vez que o preço das tarifas aéreas aumenta, aumenta o movimento de passagens.

É incrível! Mas, como Alexandre Higino, homem sério (inclusive é protestante), não mente, a coisa é realmente assim que se passa. Brasileiro não resiste a aumento de preço de passagem de avião. É aumentar o preço da passagem, e ele inventa logo uma viagem e sai correndo para a agência mais próxima.

Quem – por dever de ofício ou exigência de trabalho – tem a infelicidade de enfrentar com frequência a penosa mão de obra da movimentação de passageiros nos aeroportos até a hora do embarque, sabe que em aeroporto o pau que há é brasileiro viajando com a família inteira, de mamando a caducando, começando no neném e acabando no vovô. É impressionante! Não há inflação que segure brasileiro no chão. Não há inflação que o faça voar menos – pois afinal nunca foi tão fácil voar, a gente podendo pagar a passagem à prestação.

Até a hora do embarque? Foi isso que disse quem aqui está falando depois de Alexandre Higino haver falado? Sim; até a hora do embarque, não a falsa hora de embarque, quando pelo alto­-falante o locutor (às vezes é uma pernóstica locutora, que anuncia os voos com voz de declamadora) convoca a gente para o embarque e, sob esse pretexto, encurrala a gente numa sala que tem mesmo mais de curral que de sala. Não; é até a verdadeira hora do embarque, quando a manada de búfalos dos passageiros sai correndo da sala em direção ao avião, todo o mundo querendo ser o primeiro a entrar, para pegar o melhor lugar.

As crianças, porém, têm sobre os adultos prioridade

de embarque, mesmo nos raros (raríssimos, voos de lugar marcado. Criança só perde essa prioridade para passageiro VIP – ah, sim, very important persons, pessoas importantes que realmente o são, ou que, não o sendo, fazem crer aos outros que o são, embarcando pela sala VIP! (Oficial de gabinete de ministro adora embarque VIP.)

Então, entre a falsa e a verdadeira hora de embarque, ficam os passageiros encurralados na sala de espera, no calor, no desconforto, num charco de vozes confusas e difusas. Há urna entediada atmosfera de rumores, de arrastada espera e espesso cansaço. Todos falam alguma coisa e não dizem coisa alguma. É como um turvo aquário de sussurros e zumbidos. Através dos vidros vê­-se o lá fora com o avião dentro. Mas, o pior: o alarido da colmeia de crianças. Os adultos ficam sentados ou em pé esperando, e as crianças na sala chorando e chateando. E fala a mamãe:

– Que é isso, filhote? Não chore não.

(É claro que ela jamais dirá: Pare de chorar, que você está incomodando os outros.)

E o filhote:

– Eu quero entrar no avião. Eu quero entrar no avião!

(É claro que o que ele está querendo é o que todas as outras pessoas querem. Com uma diferença: como ele é criança, faz o que todas as crianças do mundo fazem, quando não conseguem uma coisa: começa a chorar, porque ele sabe que não há ninguém, nem mesmo a mamãezoca, que resista à pressão de um berreiro caprichado.)

E vem o papai:

– Olhe aqui o papai.

E vem o vovô:

– Olhe aqui o vovô.

E vem a vovó:

– Olhe aqui a vovó.

E vem a família inteira, que ali está reunida pensando que está em casa, esquecida de que a sala de espera do aeroporto não é o apartamento do papai, e vem a família inteira, que inteira viaja para depois contar aos vizinhos que viajou, que o Amazonas é uma beleza, e que aquele “som” comprado pro Paulinho custa na Zona Franca a metade do que custa na Castrel, tudo isso pra fazer inveja aos vizinhos – enfim: e vem a família inteira, para inteira paparicar o filhote chorão.

Enquanto isso, os outros passageiros, que ali estão descansando das chateações dos filhos que com a graça de Deus ficaram em casa, vão se chateando com os filhos dos outros, pencas deles, espalhados pela sala, perturbando as pessoas que nada têm que ver com eles. Afinal, é preciso ficar bem claro que quem viaja quer sossego, desde que não se trate de pessoas que fazem turismo em grupo. O grupo tem de ser muito agitado e tagarela: faz parte do programa.

Ah, quem viaja quer sossego, é claro! E foi pensando nisso que o meu amigo Rotinildo Vital, que tem uma agência de promoções, imaginou ainda que sem nenhuma originalidade aquilo que ele batizou de Voo da Fantasia, ideia tirada da série de TV A Ilha da Fantasia, coisa que de resto não esconde e que não adiantaria mesmo esconder. Diga­-se, porém, que essa ideia não ocorreu assim tão facilmente a Rotinildo, como se possa imaginar. Vamos dar a palavra ao próprio Rotinildo, para ele nos contar como tudo aconteceu.

Pode falar, Rotinildo!

– Olhe, embora tenham surgido antes do Voo da Fantasia outras ideias, elas tiveram origem numa preocupação minha, absolutamente sincera, em bolar alguma coisa capaz de proteger o passageiro de avião contra chateação de criança. Como todo o mundo sabe, há criança demais viajando de avião. Já cheguei a pensar que é por causa da meia passagem que elas pagam. E explico porque cheguei a admitir isso. Se é verdade que brasileiro – como contou Alexandre Higino – não resiste a aumento de preço de passagem de avião, que ele inventa logo uma viagem e sai correndo para a agência mais próxima, também é verdade que ele não resiste à tentação de pagar um preço especial por uma coisa pela qual ele habitualmente paga um preço comum. Certa vez, num bar, vi um camarada conversando com outro; e, mesmo sem querer, notei que falavam de viagens. Um deles disse assim: Que dizer, então, que criança paga somente a metade do preço de uma passagem de avião? Mas isso é uma maravilha! De agora em diante só vou viajar com meus filhos.

Coisas semelhantes ouvi em outros lugares, de outras pessoas, em outras ocasiões. Tive de passar a admitir que brasileiro só viaja com criança para não perder a pechincha da metade do preço da passagem, vantagem que só a criança leva e que a pessoa que tem crianças deve aproveitar, que ninguém é bobo.

Esta seria, aliás, a segunda vantagem que a criança leva nas viagens aéreas e, por extensão, o adulto, quer dizer, papai e mamãe, pelo menos de acordo com o que pensa o brasileiro. Que sopa, viajar levando as crianças pagando apenas a metade do preço da passagem!

(A primeira vantagem, como já se viu, é a prioridade de embarque, papai, mamãe, vovô, titia aproveitando para embarcar junto com a criança, na frente dos outros passageiros.)

Mas, há ainda outros privilégios que as crianças desfrutam nas viagens aéreas. São servidas em primeiro lugar. O avião decola, ganha altura, as aeromoças (ou anfitriãs, ou comissárias, como queiram os idiotas que acham que têm de mudar tudo a todo instante) as aeromoças se movimentam e,. quando o desgraçado do passageiro, querendo fazer um (aliás muito justo) relax, imagina que vão trazer o carrinho dos drinques, para ele pegar um uísque, as aeromoças começam a correr de um lado para outro distribuindo o lanchinho das crianças. Que gracinha! E, de minuto em minuto, como se não bastasse o lanchinho prioritário e especial, as mamães tocam aquele botãozinho chato de chamar aeromoça (chato, sobretudo, para as aeromoças) e começam a pedir e a pedir coisas, como se estivessem em casa e as aeromoças (ou comissárias?) fossem suas empregadas domésticas. E lá vêm pedidinhos assim:

– Olhe, meu bem, esquente a papinha dele, tá?

– Será Que você arrlanja um pedaço de papel pra Guga riscar? Quando ele está riscando papel, não chora.

– Olhe, meu bem, quer fazer o favor de trazer um pouco de água quente? É para limpar a calcinha do filhote. Ele derramou o chocolate na calcinha. Um pouco de água quente, por favor, sim? Mas não precisa ser muito quente.

A aeromoça sorri, faz uma gracinha para a criança, a mamãezinha fica toda contente. Mal dá as costas, a aeromoça faz o que a gente sabe: fecha a cara, conquanto vá buscar a água quente. Outro dia, depois de uma cena destas, quando a aeromoça passou por mim em busca da água quente pedida pela madame, não se conteve e desabafou: “Que criança chata!” Quando voltou, porém, já estava sorrindo de novo, que aeromoça tem mesmo de sorrir, que jeito?

Enfim, é isto: as crianças ficam enchendo o saco da gente no avião, e papai e mamãe achando tudo muito engraçado (e as gentis aeromoças fingindo que também estão achando).

Comecei, então, a bolar uma ideia para acabar de uma vez com esse problema: um problema aparentemente sem solução. A primeira ideia que tive consistiria em aumentar o preço das passagens para crianças. Em vez de pagar a metade do preço de uma passagem de adulto, criança pagaria: até dois anos, o dobro do preço, de dois a quatro anos, três vezes mais que o preço comum. Só não levei adiante a ideia porque logo me convenci de sua absoluta inutilidade. Lembrei­-me do depósito compulsório, que durante algum tempo o governo ·exigira para as viagens ao exterior. O objetivo do depósito compulsório era reduzir o número de viagens ao exterior – coisa que brasileiro adora fazer, sobretudo em grupos. Era uma estratégia para forçar a economia de divisas. E de que adiantara? O depósito compulsório, em vez de contribuir para a redução do número de viagens ao exterior, só fez aumentá­-lo. Logo no primeiro mês de vigência do depósito, as viagens duplicaram em relação ao mês anterior: nunca se viu tanto brasileiro sair enturmado do Brasil para gastar dólar lá fora.

Comecei a temer que o aumento do preço das passagens aéreas para crianças, além de não resolver o problema, viesse, em verdade, agravá­-lo: com os preços dobrados e triplicados, aí é que os aviões iam mesmo ficar cheios de crianças. Afinal, eu não podia esquecer o que ocorrera com o depósito compulsório e muito menos podia esquecer a história contada por Alexandre Higino.

Pensei, então, em outra coisa – porque tudo que eu queria era resolver o problema. Estava sinceramente preocupado com o desconforto dos passageiros viajando com tanta criança bagunçando o avião. Os passageiros tinham direito a aspirar maior conforto e maior tranquilidade, pois, afinal, eles pagavam para viajar e não para se chatear.

A outra ideia que me ocorreu seria, talvez, mais eficaz. Vejamos: haveria aviões especialmente destinados a adultos que viajassem acompanhados de crianças. Os outros voos se processariam normalmente, dentro da rotina, apenas com uma diferença: em hipótese alguma transportariam crianças. Esse sistema teria inclusive a vantagem de acabar com aquela patetice familiar de papai (às vezes é vovô) pegar o carrinho da bagagem, e em lugar da bagagem colocar nele o filhinho de papai e sair rodando (e atrapalhando as outras pessoas) com o carrinho pelo hall de embarque do aeroporto. Criança adora essa brincadeira de aeroporto. E, nem bem o papai acaba de despachar a bagagem, o filhote já está reclamando:

– Eu quero dar uma volta de carrinho. Se você não me botar no carrinho, eu choro.

Isto quando o avô, que afinal é avô, e avô é para essas coisas, não toma a iniciativa de convidar o netinho para a brincadeira:

– Venha dar uma volta de carrinho com o vovô.

Nada disso aconteceria, porque o embarque de passageiros acompanhados de criança se faria por uma entrada especial, talvez pelos fundos. O importante era que passageiro acompanhado de criança não se misturaria com os outros passageiros, nem no interior do avião, nem no interior do aeroporto, Assim, quando o avião decolasse com a meninada, a meninada podia chutar o banco da frente, empurrar o encosto do banco da frente, chorar, gritar, espernear, que tudo estaria em família, quer dizer: numa vasta família coletiva de mamãezinhas e paizinhos, avozinhos e titias, todo o mundo viajando muito feliz e sorridente na companhia das criancinhas que de uma forma ou de outra eles haviam ajudado a pôr no mundo. Enquanto isso, nos outros aviões, viajariam tranquilos os demais passageiros.

Reconheço que a ideia era boa; pelo menos poderia resolver o problema do conforto dos passageiros de avião. Tornou­-se, porém, inviável, porque exigiria um número excessivo de aviões, e as companhias não dispunham de tantos aviões para isso.

Então, bolei a ideia definitiva isto é: o Voo da Fantasia,

O Voo da Fantasia teria a vantagem de livrar os passageiros, não apenas da incômoda companhia das crianças, mas também da presença não menos incômoda de outro tipo de incômoda criança que anda por aí: o turista que viaja em grupo, falando alto e morrendo de rir. Assim como os hotéis internacionais de grande categoria não aceitam hóspedes enturmados no turismo em grupo, o turismo em grupo também não teria vez entre os passageiros do Voo da Fantasia.

Em suma: em todos os aviões chamados de carreira continuariam a viajar, na bagunça que sempre viajaram, adultos acompanhados de crianças, ou melhor: crianças acompanhadas de adultos, chateando adultos que não viajavam acompanhados de crianças. Isto, de um lado, representaria a realidade da viagem aérea; do outro lado seria o sonho, tornado realidade no Voo da Fantasia.

O Voo da Fantasia começaria por ter os lugares marcados; e, em cada jogo lateral de três poltronas, somente duas seriam ocupadas: a da janela e a do corredor, ficando a do meio livre para o passageiro nela colocar o casaco, a capa, ou o que ele quisesse: isso era problema dele. Outra coisa: as poltronas não seriam reclináveis (passageiro que quisesse reclinar poltrona que ficasse em casa, na poltroninha dele). A música seria instrumental: a gente já ouve Chico Bem­-Bem demais por aí para ter de ouvi­-lo também no avião. Além de instrumental, a música do Voo da Fantasia seria daquele gênero de música suave e neutra que a gente, embora não se incomodando com ela, vai ouvindo­-a sem ser por ela incomodado.

É claro que as passagens para o Voo da Fantasia seriam mais caras, coisa, aliás, que os brasileiros iam adorar. A razão do preço mais caro seria óbvia: o custo total das poltronas do meio, que não seriam ocupadas, como já disse, o custo total dessas poltronas seria acrescentado, por poltrona, ao preço da passagem. Afinal, era só o que faltava: haver no Voo da Fantasia passageiro sentado na poltrona do meio incomodando os passageiros laterais e, ao mesmo tempo, sendo incomodado por eles.

O Voo da Fantasia teria sala especial de embarque, com recepcionistas entre 18 e 20 anos, em ponto de bala para miss, desdobrando­-se em gentilezas com os passageiros, até a hora do embarque. Quando os passageiros, conduzidos sempre em grupo pelo aeroporto, dessem entrada na sala especial de embarque, as recepcionistas, num risonho comitê de recepção, erguendo copos com drinques ornamentais, diriam, saudando os passageiros: – Sejam bem­-vindos ao Voo da Fantasia! (Afinal, a ideia como já disse, foi tirada do filme A Ilha da Fantasia.) Na sala especial de embarque, até a hora do voo, outros drinks seriam servidos aos passageiros – drinks que eles sorviam em absoluto estado de tranquilidade, sem nenhuma criança por perto chateando. Em suma: seria o começo de um sonho que se prolongaria durante a viagem, com o avião voando numa grande, mansa e ordenada paz – inclusive porque seria terminantemente proibido passageiro ficar em pé no corredor do avião jogando conversa fora.

Pois é: foi assim que imaginei o Voo da Fantasia. Imaginei­-o assim, fazendo dele o voo ideal, o voo com que todos nós, no íntimo, sonhamos.

– Mas, Rotinildo, e nenhuma companhia de aviação quis comprar sua ideia, essa ideia realmente sensacional que você teve? – perguntou Alexandre Higino, que também estava presente na ocasião.

Resposta de Rotinildo:

– Só faltaram me botar no hospício.