Diante da tarefa de escolher textos para publicação de uma antologia de contos de Herberto Sales, tivemos como objetivo central selecionar peças que fossem expressões características de seu universo ficcional. Não tivemos em mente privilegiar o critério qualitativo, ou nos atermos aos contos já antologiados pelas leituras críticas, mesmo porque o conjunto da contística de HS é unitário e amplamente bem realizado. Estamos diante de um contista detentor de um mundo ficcional de que seus textos são o seguro mapa delineado.
Movimentando-se bem entre o cenário rural e o cenário urbano, os temas de HS estão firmemente relacionados com o sistema, são manifestações deste sistema, de ordem linguística ou social. Os seus personagens são produtos de um meio contra o qual se insurgem, mas dentro do qual devem ou permanecer ou morrer. Cada conto é o pequeno movimento, a passada adiante que o personagem dá na direção ou de aceitar ou de fazer a sua revolução individual. Cada um deles tem a consciência culpada, quer pela aceitação, quer pela insurgência, são os cúmplices involuntários, os anti-heróis de um quadro que, solitariamente, não poderão modificar – e esta não será a principal culpa destas consciências enclausuradas?
O campo, a cidade, ambos são abrangidos pelos mesmos ditames, praxes sociais, costumes, códigos, repositório de usos, esquemas verbais que não podem ser varados pelos personagens para que atinjam a consciência. Daí a presença do escritor, que irá romper com todos os códigos, fazendo deles emergir o sentido e trazendo à tona a consciência. Códigos rompidos e recriados, devolvendo a integridade perdida ou tornando-a, finalmente, possível.
Para tanto HS dispõe de um estilo bem marcado, que é a um tempo realista e alegórico. Detalhada e pacientemente ele reconstrói a realidade representada, para simultaneamente aleqorizá-la, pois cada um dos seus textos, ao final, quando o que fluía agora está contido no dique do conto, se apresenta como um verdadeiro modelo dos objetos representados. Mesmo o flagrante, com HS, narra, não é crônica, é conto, mesmo porque quando se configura como tal é já uma fábula, conta uma história, da qual uma visão pode ser extraída.
No universo ficcional de HS, expresso em sua contística, um dos repositórios para a urdidura de histórias e para a caracterização de personagens é a do parentesco existente entre a criação literária e a loucura, não a loucura de pedra, mas a que permeia todos os hábitos, costumes: usos e gestos cotidianos. Assim como o escritor é feito de algumas ideias fixas, duas ou três coisas que ele sabe ou vai aprender a respeito da realidade, e à custa deste pequeno nódulo cria e recria o encontrado, acaba por lhe encontrar ou lhe emprestar um significado, seus personagens vivem também de algumas ideias que não lhes saem da cabeça, atingem através delas sua pequena glória, pela perdição, pela morte ou pela redenção. Premiados ou castigados, não importa, percorrem um caminho de aprofundamento de suas naturezas que guarda uma analogia com o caminho percorrido pelo escritor. Nesta valorização da ideia fixa e da loucura e nesta empatia por elas, encontra-se HS na posição em que vislumbramos João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade nas amostras poéticas que se seguem:
como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa
que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.
João Cabral de Melo Neto
Uma faca só lâmina (ou: serventia das ideias fixas)
O doido passeia
pela cidade sua loucura mansa.
É reconhecido seu direito
à loucura. Sua profissão.
Entra e come onde quer. Há níqueis
reservados para ele em toda casa.
Torna-se o doido municipal,
respeitável como o juiz, o coletor,
os negociantes, o vigário.
O doido é sagrado. Mas se endoida
de jogar pedra, ‘vai preso no cubículo
mais tétrico e lodoso da cadeia.
Carlos Drummond de Andrade
Doido. In: –. Menino antigo
Esta analogia entre escritor e personagem, cuja grandeza reside na inclinação em aprofundar ideias e emoções, resulta do elo de simpatia que existe entre o primeiro e o segundo, e provoca o surgimento de tipos envoltos na mentação e na afetividade do seu criador, causando idêntico efeito no leitor, que é levado a se identificar com os personagens, ainda que mantenha o seu senso crítico. O efeito descrito é um efeito insubstituível e compõe, em boa parte, o apelo que a narrativa em geral tem para o leitor. A referida analogia faz ainda aparecer traços líricos na narrativa, pois o que quer que seja representado está envolto num sentimento de empatia entre autor e texto, do ângulo da criação, espraiando-se, concomitantemente, para a reação do leitor.
Colhidos pelo sistema linguístico ou social como numa armadilha, os personagens de HS lutam bravamente para dele escapar, mesmo que seja gravitando infinitamente em torno da impossibilidade de fazê-lo. Esta faceta tem uma consequência formal: os personagens, além de socialmente condicionados, estão condicionados verbal e linguisticamente, aprisionados em clichês, ditos, expressões que lhes moldam o pensamento e não os deixam prosseguir. Assim, inúmeros contos expressam esta gravitação em redor de uma linguagem pré-fabricada, que o autor deverá recriar e fissurar em prol de sua própria libertação, dos seus personagens e dos seus leitores. Esta fissuração da linguagem se faz pela sua lenta degustação, torneando-se repetitivamente alguma expressão esmagadoramente convencional, até que ela possa ser repelida e substituída. Pela repetição do velho, a velha ideologia é recusada, e se recorta o novo e a nova ideologia, que faz distinguir o perfil de um universo novo que começa a surgir.
Este é um recurso tão nítido que leva organicamente a um outro veio da contística de HS, a recorrência ao estoque e à reserva da sabedoria popular e da narrativa oral, que, da mesma forma que aos clichês e expressões herdadas, ele recria, dela retirando uma outra sagesse, altamente criativa e lírica. Desta maneira, ele passa da narrativa lírica do cotidiano à narrativa lírica de cunho popular, equacionando a sabedoria das lendas populares notadamente com o exercício do imaginário, com a luta entre o bem e o mal e com a liberação da energia sexual.
Após o estabelecimento destas características dos contos de HS, considerados em sua totalidade, passaremos a analisar o material escolhido como amostras hábeis para introduzir o leitor no universo ficcional de HS.
De Histórias ordinárias (1966), nas quais, na verdade, HS torna o ordinário, extraordinário, fazendo a mais mínima fulguração do cotidiano digna de atenção e aprofundamento, escolhemos os contos “Os vigilantes”, “O automóvel” e “A carta”. “Os vigilantes” é um momento privilegiado de simpatia pela protagonista e de adentramento da psicologia feminina. Num mundo de qualquer forma regido pelos homens, não pode ser sem satisfação que vemos ir a simpatia do autor e do narrador pela personagem feminina. Ressalte-se a minudência na descrição do cenário da cidade do interior e das forças que nela atuam, sobretudo o desejo, fazendo supor crimes presumivelmente imaginários que, na verdade, são manifestações ou metáforas do próprio desejo. A ambiguidade, herança machadiana, é mantida até o final, pois o que é relevante não é o factual, mas o imaginário, não o crime de Isabela (ou de Capitu ), mas a análise das forças que provocam as acusações. Em “O automóvel” temos a dificultosa vida do modesto funcionário público Raul, que através de um prêmio, um automóvel, é jogado nos braços da ilusão e cada vez mais se enreda nas atribulações que lhe traz o sistema econômico e social, cada vez mais se debate nos clichês linguísticos que expressam este sistema (“ter um teto”), até que, por um outro golpe de sorte, se livra do prêmio, voltando à vida anterior e ao seu possível desafogo. Pela temática e pelo tratamento do tema, “O automóvel” mantém um parentesco com o romance “Os prêmios”, de Julio Cortázar, que viria a ser publicado posteriormente. Em “A carta”, como em outros contos de HS, surge o tema da grande mudança do personagem, o momento da crise em que inventaria o heroísmo e o anti-heroísmo de sua insatisfatória existência. No caso, havendo ele planejado escapar à sua sufocante vida conjugal, não tem forças para agir e anti-heroicamente, como convém a um personagem de classe média, recua. Digamos que Amaral seja um Quincas Berro D’Água sem a heroicidade do personagem de Jorge Amado.
Em Uma telha de menos (1970), que se faz num desfile de personagens que vivem e morrem por uma ideia, metáforas perfeitas para o componente obsessivo que existe não apenas na arte do escritor, mas na arte de viver, destacamos “O morrinho”, “Verão” e “A onça”. Em “O morrinho” a disputa do morrinho é mais que tudo o jogo, a um tempo sério e irresponsável, das relações humanas, em que cada gesto, cada movimento é suficientemente imprevisto para emprestar a estas relações seu caráter simultaneamente lúdico e dramático. “Verão” retrata a perda do paraíso duma pequena cidade pela invasão dos veranistas. A tendência antigregária do homem que sente o seu eu esmagado e invadido pela presença incômoda do outro se manifesta através do protagonista Rogaciano que, ainda que perca sua vida, deve tentar fazer explodir a casa onde se reúnem os invasores. “A onça” traz de volta o tema de “A carta”, quando o protagonista ardiloso, onerado pela sufocação da sua vida conjugal, conquista nossa simpatia pela maquinação da sua fuga e da sua libertação.
De O lobisomem e outros contos folclóricos (1970), no qual o estoque narrativo oral é recriado livremente, escolhemos duas estórias aparentadas, “Flor-do-mato” e “A mãe-d’água”, em que o chamamento do imaginário se confunde com o despertar da sexualidade, tal como nos mostra Bruno Bettelheim em A psicanálise dos contos de fadas. E ainda Mara, na qual se trava a luta entre o bem e o mal, quando a filha do pajé em vez de se apresentar como projeção e continuidade do pai, é o seu oposto, faz-se na presença, não da graça, mas da desgraça, no mundo, trazendo-lhe uma imprevista ferida narcísica.
Em Armado cavaleiro o audaz motoqueiro (1980), obra que representa o ponto de maior virtuosismo na contística de HS, autêntico quadro de horrores da sociedade tecnológica e, familiarista, na qual forças arcaicas convivem com o mais avançado, destacamos “Armado cavaleiro o audaz motoqueiro”, “O estilete”, “Sede de vingança”, “Pistoleiro?”, “Da necessidade imperiosa de telefonar”, “O voo da fantasia”. Em “Armado cavaleiro o audaz motoqueiro” tudo conspira contra a revolução individual e narcísica da quase mítica figura do motoqueiro, pobre herói e anti-herói urbano. Em “O estilete” a opressão do outro provoca a configuração de um insuspeitado mundo secreto a explodir ao primeiro pretexto. “Sede de vingança” expressa as flutuações da epidérmica sensibilidade do homem contemporâneo. “Pistoleiro?” volta-se para um código de honra existente em qualquer ocupação humana, mesmo no crime. “Da necessidade imperiosa de telefonar” é um flash urbano que se transforma, ao final, numa narrativa a respeito dos insuportáveis costumes citadinos. Em “O voo da fantasia”, afim com “O estilete”, a presença do outro esmaga o indivíduo, fazendo-o buscar o escape pela loucura, pelo crime, pela fantasia... ou pela arte.
Aliás esta alternativa da qual nos falou Albert Camus, ou o crime... ou a arte... está bem no centro da contística e do universo ficcional de Herberto Sales.
JUDITH GROSSMANN
22 de maio de 1984