De (Histórias ordinárias)
Tudo aconteceu como Amaral premeditara. Fora uma decisão tomada sem pressa, duas semanas antes, tempo que lhe bastou para assegurar ao seu plano todas as condições de êxito. Ninguém, em casa, suspeitou de nada, tal o cuidado com que ele agira, no desenvolver da sua estratégia. É verdade que a mulher estranhou, em algumas ocasiões, o silêncio dele, à mesa, onde já não fazia as reclamações costumeiras.
– Que é que está havendo com você? – perguntava a mulher.
Amaral encolhia os ombros:
– Nada. Estou pensando na vida.
E dissimulava, num alheamento, tomando a sopa, a decisão extrema que tinha em mente, prevista em todos os detalhes, nutrida e amadureci da no correr daquelas duas semanas. E o que parecia resignação era, realmente, tática. Operara-se nele uma grande mudança. Mas isto não constituiu motivo de preocupação mais séria para a família, porque Amaral, passando a pensar tanto na vida, que em outra coisa estaria pensando, senão na família? Que pensasse, pois! E, naqueles longos, inusitados silêncios, a ler os jornais, a evitar as habituais discussões domésticas, ia ele acariciando tranquilamente o seu plano. Esperava apenas o momento oportuno para pô-lo em prática. E esse momento veio uma noite, quando a mulher e os filhos – duas moças e um rapaz – resolveram ir, incorporados, ao cinema do bairro, onde estavam levando um filme mexicano muito bonito, com música de Agustin Lara.
– Você não vem conosco? – perguntou a mulher.
E Amaral:
– O Afonso não vai?
– Vai.
– Então não é preciso eu ir.
– Por quê?
– Eu tenho de terminar um relatório. Só iria se vocês
não tivessem um cavalheiro. Mas o Afonso vai com vocês. Nesse caso eu fico, para terminar o relatório.
– Venha se distrair um pouco, papai – disse uma das filhas.
– Outro dia eu vou – respondeu Amaral. – Hoje não posso. Tenho de ver esse relatório.
Saíram, porque já estavam em cima da hora, e, quando a porta se fechou sobre eles, Amaral se viu sozinho em casa. Levantou-se, foi até o quarto dos fundos, transformado em depósito, desde que a família resolvera, por economia, dispensar a empregada, e de lá voltou com uma pequena mala de papelão, que usava nas suas eventuais viagens ao interior, a serviço do escritório. Na área, pegou o pano de tirar poeira, e com ele limpou cuidadosamente a mala: estava precisando mesmo de uma limpeza. Dirigiu-se ao quarto, abriu a mala em cima da cama, e em seguida o armário, de onde tirou algumas peças de roupa: dois ternos, lenços, cuecas, meias, camisas, e o seu melhor pijama. A mala não cabia mais nada, e bem pouco, aliás, tinha ele a deixar fora dela. Mas sempre arranjou um jeito, antes de fechá-la, dando por finda a arrumação, de lá introduzir os seus velhos chinelos caseiros. Depois, releu mais uma vez a carta que escrevera duas semanas antes:
“Edwiges: Estamos casados há vinte anos. Quando me casei, estava convencido de que a nossa vida haveria de ser um mar de rosas. Nos primeiros tempos, reconheço que foi. Você era boazinha para mim, fazia todas as minhas vontades. Tivemos três filhos. Lembra-se do trabalho que eles nos deram? Eu ganhava muito pouco, naquele tempo. Morávamos numa casinha pobre, em Vila Valqueire. Quando Afonso nasceu, ficamos muito alegres, porque era o nosso primeiro filho varão. Lembra-se do medo que tivemos de ele morrer? Passávamos as noites em claro, ao lado da caminha dele, e ele ardendo em febre, tossindo, de coqueluche. Foram dias difíceis. Eu não tinha dinheiro para pagar médico, me valia de Seu Renato, da farmácia, que me fiava aqueles vidros de xarope. Bom homem, Seu Renato. Por fim, Deus ajudou, e vimos nosso filho crescer, sadio, enchendo a gente de esperança. Lembra-se de quando íamos com ele, e as meninas, passear no Jardim Zoológico? Depois, tudo foi mudando. Moramos em vários bairros, rolando de subúrbio em subúrbio, até que nos instalamos em nossa própria casa, comprada pelo Instituto, aqui na Aldeia Campista. Um dia, quando menos esperamos, nossas filhas estavam moças, e Afonso um rapaz. Começaram as brigas. Se eu ia chamar a atenção de um deles, você logo se virava contra mim. Lembra-se do dia em que peguei Marivalda, no portão, conversando com aquele sargento da Marinha, com quem ela andava namorando? Ainda bem que o namoro não foi adiante e eles não se casaram. Já imaginou o que seria de mim, com semelhante genro? Aí é que eu ia perder mesmo o resto da minha autoridade de chefe de família, com um sargento da Marinha dentro da minha casa, fardado. Depois, vocês acabaram se convencendo de que aquele namoro não servia. Mas no dia em que peguei Marivalda com o sargento, e mandei que ela entrasse, você e ela quase me deram na cara. Lembra-se? Ela disse que eu não mandava no coração dela, que eu era um chato. E você, em vez de me dar razão, achou que eu tinha humilhado Marivalda, mandando que ela entrasse. Chegou a dizer que, se você fosse o sargento, se sentiria desfeiteada. Só faltou dizer que o sargento devia ter me metido o sabre. E Leia? Leia, também, perdeu completamente o respeito por mim. Só me faz um carinhozinho quando vem me pedir dinheiro. Fora disso, é aquela arrogância que você bem sabe, embora não queira reconhecer. Se ponho na vitrola um disco de Vicente Celestino, meu cantor predileto, ela logo reclama. Diz que eu estou enchendo, com as minhas velharias. E você, que faz? Em vez de me prestigiar, diz que a vitrola é das meninas e que o meu tempo de ouvir música já passou. E eu, para não brigar, deixo Leia me massacrar com esses discos horrorosos de música americana, que ela tem a mania de ouvir com as amigas dela, achando que são legais à beça. Ninguém me tem consideração nesta casa, Edwiges. A começar por você. Viu o que Afonso me fez outro dia? Fui acordá-lo mais cedo, para ele ir tirar a carteira de identidade, e não havia meio de o menino sair da cama. Perdi a paciência, e chamei-o de preguiçoso. E que fez ele? Disse que preguiçoso era eu. Veja você! Esse pilantra me chamar de preguiçoso, a mim, que sou o burro de carga desta casa, que carrego no lombo vocês todos. É a paga que Afonso me dá pelas noites que perdi com ele, quando ele teve coqueluche. Enfim, meus filhos não me tratam como deviam. Apesar disso, se você, Edwiges, se mostrasse mais compreensiva comigo, eu ainda teria um consolo. Mas você tem sido muito ingrata, muito dura, ultimamente. Se passo no bar e tomo umas cervejinhas com os amigos, para esquecer as agruras da vida, quando chego em casa você me chama de pau-d’água, na presença dos nossos filhos. Como poderão eles me respeitar, se você é a primeira a me faltar com o respeito? Pensando bem, sou, hoje, um intruso nesta casa. Para mal dos meus pecados, você ainda traz sua mãe, de vez em quando, para passar temporadas conosco. Não é que eu desgoste de D. Eponina. Mas ela enche, Edwiges. Você sabe: tenho a minha cadeira, para ver televisão. Pois bem. Quando D. Eponina está aqui em casa, ela acha de sentar-se justamente na minha cadeira. Para evitar aborrecimentos, procuro me sentar em outro lugar, mas não há nenhum lugar como a minha cadeira, para ver televisão. Resultado: não tenho podido acompanhar direito as minhas novelas. Já pedi a vocês, várias vezes, para falar com D. Eponina para não se sentar na minha cadeira. E que faz você? Depois do jantar, você é a primeira a dizer a ela para se sentar na minha cadeira, que é de onde a gente vê melhor a televisão. E sua mãe fica lá, se babando, de óculos, vendo os melhores programas, inclusive as novelas que eu acompanho. Já pensei, até, em comprar uma televisão portátil, de umas pequenininhas, e me trancar com ela no quarto, deixando para vocês a da sala. Mas cadê o dinheiro? Todo o dinheiro que eu ganho é pouco para vocês. Você mudou muito, Edwiges. Eu não tenho o direito de abrir a boca nesta casa. Outro dia, discutindo comigo, até um jarro você jogou em cima de mim. Se eu não me tivesse abaixado, ligeiro, tinha levado com o jarro na cara. E tudo isso por quê? Porque eu, de brincadeira, disse que você precisava comer menos, pois estava engordando pra burro. É como eu já lhe disse, Edwiges: não tenho mais lugar nesta casa. Se eu tivesse coragem, me suicidava. Mas como não tenho, tomei a resolução de ir embora. Quando você chegar, não me encontrará mais aqui. Algum dia, talvez, vocês ainda sentirão minha falta. Mas não acredito muito nisso. Vou viver no meu canto. Afonso que durma até a hora que quiser. Quando Leia e Marivalda tiverem de casar, você resolva como melhor lhe parecer. Que façam bom proveito da vitrola. Minha cadeira, D. Eponina pode ficar com ela. E você, Edwiges, trate de arranjar em quem dê suas broncas. Eu não aguento mais. Adeus! – Amaral”.
Dobrou a carta, meteu-a num envelope, e deixou a sobre a cristaleira, em lugar bem visível: encostada num castiçal de cerâmica, que uma longa vela vermelha adornava. Decidido, apanhou a mala, apagando todas as luzes, e, fechada a porta da casa lá estava ele na rua. Foi quando experimentou uma sensação desconhecida: diariamente, ao sair para o trabalho, era num desafogo que pisava a calçada, deixando atrás de si, com a porta que se fechava, o seu pequeno inferno de incompreensões domésticas. Agora, porém, que iria fazê-lo para sempre, em vez do desafogo, sentia um peso a comprimir-lhe o coração. E as pernas, em vez de o levarem, lépidas, calçada afora fraquejavam. Pela primeira vez, não esteve bem certo se devia fugir. Talvez fosse melhor voltar, enquanto havia tempo. Supondo-se, afinal, um homem livre, descobria, de repente, ali na calçada, que era apenas um pobre homem desgarrado, sozinho, carregando uma mala de mão. Como se enganara, ao traçar o seu plano! A vida dele não era tão dele assim. Ele estava ali fora, mas um bom pedaço dela ficara lá dentro – na sala, no banheiro, nos móveis. Já não lhe parecia tão fácil alguém se despregar de um ambiente que sempre fora seu. Cada canto da casa, evocado, de relance, na visão daquele abandono noturno, lhe sugeria agora a ideia de um aconchego, de uma segurança, cuja perda ele não avaliara antes. Como ia ser difícil adaptar-se a outro lugar! E, na lembrança de tantos dos seus bons hábitos caseiros (a espreguiçadeira, o cafezinho na varanda, as manhãs de domingo no pequeno quintal, onde ficava, de calção, a cuidar dos passarinhos e dos tinhorões), tomou-se, por um momento, de um pânico acabrunhador, imaginando-se confinado na estreiteza de um quarto de pensão, com a mala embaixo da cama. E o pior é que não havia meio de passar um táxi, como se tudo conspirasse para o reter ali, pregado à calçada da casa. Mas um homem era um homem. Nada de sentimentalismos! Afinal de contas, tomara uma decisão, escrevera uma carta, despedindo-se, e não podia recuar. Recobrando o seu ânimo desertor, que o assaltara duas semanas antes, desceu em passo firme a rua, levando a mala, em busca da condução salvadora. Não teve de andar muito. Dois quarteirões adiante, viu passar um táxi, fez sinal, num gesto desesperado, e, instalado, por fim, no automóvel, disse ao motorista, batendo a porta:
– Me leve à Central do Brasil.
Enquanto o táxi rodava, o nosso Amaral, distanciando-se da casa, supunha mais facilmente esquecê-la. Mas aquele distanciar automobilístico, se lhe suprimia ilusoriamente o apego da casa, exacerbava o seu sentimento de solidão, que aos poucos o foi envolvendo numa onda de saudade e ternura. Pensando bem, Edwiges era uma grande companheira. Vinte anos de casamento, de vida em comum, não eram vinte dias. Toda uma existência se continha neles, feita de renúncias, de lutas, de sacrifícios, e também de amor e dedicação. Quantas vezes, nos primeiros anos de casados, não haviam falado das bodas de prata, na ânsia prematura e romântica de festejá-las, cercados de filhos, na mesma igreja onde se tinham unido para sempre! Agora, por causa de umas rusgas tolas, estava ele ali, dentro de um táxi, fugindo, quando faltavam apenas cinco anos para o tão sonhado evento. Que não iriam dizer os filhos? Que não iria dizer Edwiges? Ao chegar a grande data, talvez já lhe houvessem nascido os primeiros netos. Haveriam de perguntar pelo avô. Ou não perguntariam? Afinal, não chegariam sequer a conhecê-lo, se ele insistisse em levar adiante, naquela noite, a sua fuga. E sentia uma tristeza antecipada daquelas bodas de prata estragadas com a sua ausência. As irritações de Edwiges quem sabe? deviam resultar da idade: ela estava começando a envelhecer, depois de lhe ter dado, em fidelidade e carinho, os melhores anos da sua vida. Talvez toda a culpa fosse dele. Devia ter mais paciência com ela. Melhor esposa não podia haver. E Edwiges, na impressão daquela justiça tardia, convertia-se subitamente em mártir, a acabar-se na obscuridade de um fundo de cozinha, para ajudar o marido a criar os filhos. E o Afonso, como era carinhoso com ela! Pensando bem, o Afonso era um excelente rapaz. Tinha os seus amuos – mas quem é que não os tinha? Com o tempo, o juízo lhe chegaria. Afinal de contas, aos 18 anos, um rapaz o que quer é brincar. Mocidade a gente só tem uma vez. Que Afonso aproveitasse a dele, enquanto era tempo. Depois, chegaria também a vez de ele dar duro. Antes, não; seria uma idiotice. Tudo tinha a sua época própria. E a do trabalho, somente agora iria começar para Afonso. Sim: se insistisse na fuga, como poderia ajudar o filho a encaminhar-se na vida? Coitado! Sozinho, sem o apoio do pai, como iria sofrer! E Marivalda e Leia? Não era possível abandoná-las. Lembrava-se do convite para o cinema: “Venha se distrair um pouco, papai.” Nem todo pai tinha a felicidade de receber um convite assim tão carinhoso de uma filha. Que uma filha, em certos momentos, pudesse perder a paciência com o pai, não era nada de mal. Por que, então, queixar-se de Marivalda e Leia? Era preciso compreendê-las melhor, ser, enfim, para elas, um pai e não um carrasco. E a pobre de D. Eponina, tão cheia de cuidados com ele, a preparar-lhe aquelas balas de mel, cobertas com canela, quando ele tinha gripe? Coitada! Naquela idade, viúva, vivendo de um montepio, que outra distração poderia ter, senão os programas de televisão? E era lógico que teria de sentar-se no melhor lugar. Por que não? Perdido nesses pensamentos, Amaral recompunha no espírito o seu ambiente familiar, que lhe surgia, na emoção da distância, inesperadamente tocado de uma verdade isenta e reveladora. E, já então, na dor funda de o haver abandonado sem motivo, não conteve os soluços.
– O senhor está sentindo alguma coisa? – perguntou-lhe o chofer, olhando inutilmente pelo espelho retrovisor.
– Vamos voltar! – bradou Amaral, soluçando.
E enxugando os olhos:
– Esqueci um troço lá em casa. Vamos voltar. Depressa!
E veio, realmente, depressa. Em pouco tempo estava ele de novo em frente da sua casinha na Aldeia Campista. Desceu do táxi com a mala, pagou atabalhoadamente a corrida.
– O senhor não quer que eu espere? Não vai somente apanhar o objeto que esqueceu? – quis saber o motorista.
– Não. Não. Pode ir – disse Amaral.
Entrou em casa, quase correndo, e, acesa a luz do quarto, esvaziou precipitadamente a mala sobre a cama. Fechando-a em seguida, pegou a carta na cristaleira e, sempre apressado, dirigiu-se aos fundos da casa. Ali, picou em mil pedaços a carta, lançando-a dentro da lixeira. E se Edwiges os descobrisse? O receio foi momentâneo. Lembrou-se do relatório. Diria que o relatório não saíra a seu gosto, e resolvera rasgá-lo. No dia seguinte faria outro, lá mesmo no escritório. Perfeito. Ninguém iria duvidar de tão boa, convincente explicação. Repôs a mala no depósito, voltou ao quarto. Quando pôs o primeiro terno no cabide, ouviu passos e vozes na sala. A mulher e os filhos retornavam do cinema. Assustou-se com a chegada deles. Pegou, rápido, o outro terno, para enfiá-lo no cabide, mas já a mulher surgia à porta do quarto.
– Que é que está fazendo, Amaral? – perguntou ela.
– Estou arrumando o armário.
– A esta hora?
– Sim: Estou arrumando... Sabe?
E a mulher, levando a mão ao coração:
– Puxa! Que susto você me meteu!
– Susto?
– Sim.
– Por quê?
Sei lá! Nem sei em que eu pensei.
Voltou-se para Leia:
– Traz um copo de água para mim, minha filha. Seu pai me meteu um susto horroroso, com essa arrumação de roupa fora de hora.
– Traz um pra mim também, Leia – pediu Amaral, empilhando as camisas. Depois você me conta o filme.
E, pensando no susto da mulher, conveio, sinceramente consolado, que muito maior susto ela tomaria se houvesse lido a carta.