De (Uma telha de menos)
Coisas de terras; uma cerca que não devia passar por onde passava. O rumo era outro, pela escritura; mas a cerca de Militão acabou entrando nos terrenos de Apolônio, e pegou de viés um morrinho que não era lá grande coisa.
Apolônio chamou dois crioulos e mudou a cerca de lugar, recuando-a para o rumo indicado na escritura: o morrinho inteiro tinha de ficar dentro do seu terreno. Era assim que estava na escritura. .
Mas Militão não se conformava com os limites indicados na escritura de Apolônio. Afinal, em que se louvara o tabelião para escrever o que escrevera? Naturalmente, em informações do próprio Apolônio, pois nenhum tabelião sai do cartório para ir ver na mata onde passa a linha divisória de um terreno. Sobretudo quando o tabelião é o Maçu Fonseca, que tem horror a cobras.
E agora, como ia ser? Com quem ficava o morrinho? Militão, quando soube da bravata de Apolônio com os dois crioulos a tiracolo, mordeu o cigarro de palha. Se fosse outro, pegava quatro crioulos, ia lá no morrinho, e botava de novo a cerca no lugar onde estava antes. Mas Militão era homem de grande prudência. Mandou chamar o agrimensor, e, na forma da lei, requereu medição judicial do terreno.
Saiu mais documento do cartório do que formiga do formigueiro. Mexeram em inventários. Defunto falou. E foram desencavar um formal de partilha, do tempo em que se escrevia fósforo com ph. O agrimensor desenrolou os seus papiros; passou a sua trena em cima de rastro de onça; pegou maleita; tomou quinino; e quando, um dia, saiu de dentro da mata, com a barba pedindo navalha, Apolônio havia perdido, não a metade do seu morrinho, mas o morrinho inteiro.
Então, em vez de voltar para o lugar onde estava antes, a cerca saiu do seu enviesado e disparou ladeira abaixo, numa reta, deixando de fora o morrinho e, naturalmente, Apolônio.
Dois soldados de polícia estiveram presentes – armados. E lá também compareceu o oficial de justiça. Ora, como com autoridade não se brinca, Apolônio perdeu calado o seu morrinho; mas ficou remoendo vingança.
Um dia Militão recebeu o aviso:
– Cuidado com Seu Apolônio.
E dias depois:
– Seu Apolônio está tocaiando o senhor.
E eis o que se deu: Militão, que nunca pensara em matar ninguém, e muito menos em matar Apolônio, pois era homem de grande prudência, embora de pontaria de respeito, botou a “45” na cintura e saiu como quem não quer nada.
A emboscada, segundo o prestimoso informante, era na encruzilhada do Bate-Enxuga, por onde Militão costumava passar. Apolônio devia estar ali, certamente escondido numa moita, como mandam os bons autores; e com ele, naturalmente, estava o seu temível “38” carga-dupla, que só de vista botava gente pra correr.
Engraçado: Apolônio estava de olho na encruzilhada (viu, até, quando um sabiá veio bicar no chão uma pitomba madura), e de repente, quando o Diabo está presente, como dizia a falecida D. Brígida, ouviu aquela voz atrás dele:
– Largue a arma, Apolônio.
Quis se mexer.
– Não se mexa. Largue essa arma, se ainda quer ver a luz do dia.
Apolônio procurou ganhar tempo. E perguntou, de costas como estava, sem se mexer:
– Quem é o valentão?
– Valentão, não; Militão.
– É. A voz não me engana. Pensando bem, nem era preciso perguntar: só podia ser a sua pessoa.
– Vamos! – insistiu o outro homem. – Largue essa arma no chão.
– Já sei: você quer que eu largue a arma pra poder me matar. Por que não me mata logo?
– O meu amigo se engana. Não quero matar ninguém. O que eu quero é que você não me mate. Vamos, largue essa arma no chão.
Apolônio pensou duas vezes. Era bobagem resistir. Podia haver mais gente com Militão, ali atrás. Nada como dar tempo ao tempo. Ninguém perde por esperar.
E largou a arma no chão.
Foi só largar, e o outro apanhar – com mão de gato, enquanto o Diabo lambe o prato, como dizia a falecida D. Brígida.
– Vá andando – disse Militão. – E não olhe para trás. Vamos diretamente para minha casa, onde você não pôs mais os pés, para sentimento meu. Afinal de contas, eu moro perto. Você não vai se cansar. Vamos, vá andando!
E lá se foi Apolônio, que outro jeito não tinha senão ir, fazendo o que a voz mandava.
Só queria ver em que ia dar tudo aquilo.
Quando chegou em frente à casa de Militão, ouviu de novo a voz, no comando:
– Entre. A casa é sua.
Entrou.
– Sente.
Sentou-se.
Sentando-se, teve afinal de ficar de frente para Militão. E uma coisa ele viu, logo: a sua arma enfiada na cartucheira do desafeto, que naquele justo momento recolocou no coldre a pistola que vinha apontando contra ele desde que o surpreendera de costas, na tocaia.
– Mariana! – chamou Militão. – Traga uma xícara de café, aqui para seu Apolônio. Eu também aceito uma.
– E entrou direto no assunto:
Sabe, Apolônio? Nunca pensei que você tivesse a intenção de me tirar a vida por causa de um morrinho à toa.
– O morrinho é meu – respondeu Apolônio.
– Bem... – continuou Militão, tomando assento num tamborete. – Pra lhe dizer a verdade, não faço questão do morrinho. Podia, até, lhe dar ele de presente. Mas não do jeito como você quis: mudando a minha cerca de lugar, sem eu saber.
– O morrinho é meu – tornou a dizer Apolônio. – Ninguém precisa me dar ele de presente, porque ele é meu.
– Está bem. Você diz que o morrinho é seu. Mas eu lhe pergunto: e a lei, Apolônio, e a lei?
– O morrinho é meu.
– Vamos conversar em boa paz, Apolônio. Você viu, desde o princípio, que eu não quis briga. Agi dentro da lei. Requeri medição judicial do terreno. O engenheiro é homem de estudo, sabe o que faz. Se você não tivesse mexido na minha cerca, metade do morrinho ficava dentro do seu terreno, como aliás estava. Mas você foi mexer na minha cerca, e o resultado é que acabou perdendo o que já estava sendo da sua pessoa. Isto é: a metade do morrinho.
– O morrinho é meu – insistiu Apolônio.
Aí, entrou Mariana com a bandejinha de café:
– Já está adoçado.
Apolônio voltou-se para Militão:
– Não posso aceitar o seu café.
– Espero que você não me faça essa desfeita – respondeu o dono da casa. O café é oferecido de bom gosto.
E virando-se para a moça, porque Mariana, é bom que se diga, era uma moça:
– Deixe a bandeja aí em cima e pode ir.
– O morrinho é meu – repetiu Apolônio.
E Militão:
– Vamos deixar o morrinho de lado e tomar o café, enquanto está quente.
Então aconteceu o seguinte: vendo na bandeja as xícaras que a moça arrumara em cima de um paninho bordado, Apolônio lembrou-se, de repente, que se alguém faz uma desfeita, o Diabo está à espreita, como dizia a falecida D. Brígida.
E pegou uma xícara.
Mas preveniu:
– Espero que o senhor não tenha envenenado o café que me oferece.
Militão pegou a outra xícara:
– Tome o seu café descansado, homem de Deus. Mas uma coisa eu lhe digo: só não recebo como ofensa o que acaba de me dizer porque quero ser seu amigo.
Apolônio tomou em silêncio o café:
– Espero que o senhor não diga nada à moça. Não é do meu feitio ofender mulher.
Militão sorriu:
– Só uma pessoa podia se ofender com a sua desconfiança: eu, que sou o dono da casa. Mas não estou ofendido. Se gostou do café, quando quiser tomar outro é só bater na porta. A casa é sua.
– Não agradeço o seu oferecimento – disse Apolônio. – O senhor tomou o meu morrinho. Fique com a sua casa, que do senhor eu só quero uma coisa: o meu morrinho.
– Está bem, Apolônio – respondeu Militão. – Vejo que você ainda guarda mágoa de mim. Mas sei que isto vai passar. Uma coisa me diz, cá dentro, que algum dia, quando você pensar melhor, ainda há de ser meu amigo. Mas fica o dito por dito: a casa é sua. Pode aparecer quando quiser. E agora, se é da sua vontade, pode ir.
Apolônio não esperava por outra coisa. Levantou-se, e, num rompante, foi saindo.
– Espere um pouco – atalhou Militão. – Tome a sua arma.
Apolônio pegou a arma e enfiou no coldre.
– Só quero que o senhor me dê de retorno o meu morrinho – disse.
E, sem despedir-se, saiu pisando firme.
Mas ia com uma ideia mais firme debaixo do chapéu.
Mal tinha andado uns dez metros, voltou-se, rápido, e sacou a arma. Mas antes de apertar o gatilho caiu fulminado. Militão fora mais rápido do que ele.