VERÃO

De (Uma telha de menos)

O fusca vermelho entrou roncando na praça. Um barulho infernal, com aquele cano de descarga aberto. Mas quem estava dentro do carro devia estar achando tudo aquilo muito engraçado: eram quatro rapazes que iam rindo muito.

Rogaciano espiou da janela. Não era possível! Estavam chegando mais cabeludos. Desde o último verão ninguém tinha mais sossego nas férias. Um desgraçado qualquer descobrira que não havia lugar melhor para veranear que a cidadezinha de Rogaciano.

Oh, a santa paz da Praça da Matriz, onde o passado dormia, imperturbado, o seu digno e pesado sono de ferrugem, nos canhões portugueses do monumento histórico, sob os flamboyants em flor!

Era assim desde que Rogaciano se entendia por gente. Mas agora era aquilo que se via: a invasão dos veranistas. Bastou um descobrir, para os outros virem, em bandos. Havia o sol, a praia, a pesca. E os jornais do Rio fazendo propaganda, com os cronistas sociais na badalação. Tinham, até, inventado uma batida especial, de pitanga. E falavam que, de volta da praia, todos iam “pintagar”, de bermudas, na casa dos Melo Gonzaga: grã­-finos veraneando.

E tome automóvel!

Antigamente só havia um carro na cidade: o do prefeito, homem prudente, 40 km por hora. Antes de entrar num cruzamento, parava o carro, descia e ia espiar da esquina, para ver se vinha alguém – uma criança, uma senhora, ou mesmo a carroça do lixo. Afinal, não queria atropelar ninguém – no que fazia muito bem. Rogaciano morria de saudades: tempo bom como aquele, nunca mais. Agora, era chegar o verão, os veranistas enchiam a cidade com os seus carros. Ninguém podia mais andar com segurança nas ruas.

Rogaciano teve uma ideia: construir um muro em volta da cidade, com um portão de entrada. Em cima do portão, um aviso: “É proibida a entrada de veranistas”.

O prefeito sorriu:

– Você está maluco, Rogaciano. Precisamos de progresso. Os veranistas trazem o progresso à cidade. Que venham mais veranistas! Estaremos prontos para recebê­-los. Nunca se falou tanto sobre a nossa cidade como agora. É a promoção, meu caro, a promoção. Os nossos terrenos estão valendo ouro. Tudo por causa da promoção.

Rogaciano ficou calado um minuto.

– Não é mesmo? – insistiu o prefeito.

– Bem... – disse, por fim, Rogaciano. – Não é pelo progresso. Nem por essa história de promoção. Mas admito que o muro ia ficar muito caro. Talvez fosse mais prático mandar abrir umas valas na estrada... Umas valas bem grandes, fundas, para impedir a passagem dos automóveis dos veranistas.

– Você está maluco, Rogaciano – tornou a dizer o prefeito. – Precisamos é de asfalto. O que temos de fazer não é abrir valas, mas asfaltar a estrada. E isto só vai ser possível com a promoção da cidade. Precisamos de promoção. De muita promoção. E a promoção da cidade depende dos veranistas.

Rogaciano recolheu melancolicamente a ideia das valas, depois de haver recolhido a do muro. E saiu andando pela calçada. Os Melo Gonzaga passaram de Mustang – chispando. Iam para a casa deles, na Praia do Sudoeste, “opened até às 5 da matina”, como dizia o colunista do Rio. Sunga e biquíni: tudo praticamente nu.

– É o fim do mundo! – gemeu Rogaciano.

E ficou pensando na caleça da Marquesa de Santos.

Um dia, sabia­-se lá quando, de passagem pela cidade, a grande dama pernoitara com a sua comitiva na casa de azulejos da praça. A vida era então outra coisa: muito mais digna. Rogaciano daria tudo para ter vivido naquele tempo. Lembrou­-se da conversa com o prefeito. Prefeito bom era o outro: o que só cruzava de automóvel uma esquina depois de ir, a pé, ver se vinha alguém. Então, com os olhos nos velhos canhões do monumento, Rogaciano bem que teve vontade de fazê­-los vomitar fogo contra o progresso, os veranistas, a civilização.

De noite, com o luar, ele vinha para a janela, que dava para o oitão da igreja construída pelos jesuítas. Silêncio branco, escorrendo pela praça deserta, numa paz doce e antiga. Mas agora era diferente: a praça cheia de Fuscas, moças com calças Lee apertando a bundinha delas, a casa de azulejos (onde a Marquesa de Santos pernoitara com a sua comitiva) transformada em clube. E não havia mais silêncio, com o iê­-iê­-iê das guitarras elétricas. Estava perdido: os cabeludos haviam tomado conta da cidade.

Foi quando lhe ocorreu outra ideia, muito mais prática que a do muro. Afinal, um muro daquele tamanho levava tempo para se construir.

Foi até a pedreira e andou perguntando coisas sobre o detonador. Precisava de um emprestado, para dinamitar o morro de um terreno que comprara no interior, em lugar desabitado: não havia risco na explosão. Era a primeira vez que estava mentindo. Mas até que foi fácil. Difícil foi conseguir o que queria: o detonador. Ia colocar as bananas de dinamite no porão do clube. Quando a festa estivesse bem animada, com as guitarras elétricas tocando, bastava comprimir o detonador: aí é que os cabeludos iam ver o que era festa de arromba.

Mas o Licurgo da pedreira estava prevenido: já lhe haviam dito que Rogaciano não andava bom da bola. Tinham pegado o homem, uma madrugada, espalhando pregos na estrada, para furar pneu de automóvel. Só podia ser coisa de maluco. O prefeito teve de mandar varrer às carreiras a estrada: era prego às pampas. Foram aproveitados no tapume de uma obra da prefeitura, por medida de economia. E com isto não saiu da pedreira o detonador.

Que ideia, Rogaciano! E ele próprio se espantava. Como é que lhe dera na telha aquela ideia de dinamitar o clube? Só se fosse outro clube. Mas aquele, não. A casa de azulejos – relíquia histórica – precisava ficar de pé. A Marquesa de Santos pernoitara ali com a sua comitiva, de passagem pela cidade, no ano remoto de mil oitocentos e não sei quantos. Só mesmo Rogaciano sabia o ano certo.

Mas havia a casa dos Melo Gonzaga, “opened até às 5 da matina”. Só dava cabeludo e grã­-fino. Tudo veranista. E isto bastava para Rogaciano. O seu plano, afinal, podia ser posto em execução: fazer ir pelos ares (sem prejuízo do pernoite histórico da Marquesa de Santos) todos aqueles forasteiros do Rio.

E a coisa seria muito mais simples. Em vez do detonador – pois não ia mesmo poder entrar na casa para fazer a instalação explosiva – bastava jogar pela janela uma banana de dinamite, quando todo mundo estivesse reunido.

A banana de dinamite não era problema: qualquer um comprava. Comprou uma no Armazém Sudoeste, com a mesma desculpa de dinamitar o tal morro do terreno desabitado.

Ficou escondido no mato, esperando. E como entrou gente na casa dos Melo Gonzaga! O conjunto de iê­-iê­-iê estava mandando uma brasa. De repente, começaram a cantar:

Pitanga, pitanquinha,

Vamos todos pitangar.

Rogaciano veio andando pela praia. Ninguém iria vê­-lo naquela escuridão: só havia luz na casa dos Melo Gonzaga. E, mesmo que o vissem, haveriam de pensar que ele era um pescador. Um pescador de camarões. O povo da terra vivia de pescarcamarões. Segurou o camarão, aliás, a banana de dinamite, acendeu o estopim, mirou bem a janela. Viu, na sala, no meio daquela confusão de bermudas e minissaias, um cara de camisa vermelha, com costeletas enormes. “Aquele vai ser o primeiro”, pensou. Deu um pulo para trás, para pegar embalagem, e quando ia mandar pela janela a banana de dinamite, só teve tempo de ouvir um estrondo. O último, aliás, que ouviu em toda a sua vida.

Foi um corre­-corre dos diabos. Saiu cabeludo até pela janela da cozinha. No dia seguinte, encontraram um braço enganchado numa cerca de arame farpado, a uns 30 metros do local da explosão. Foi fácil identificar: pegaram o braço e viram a aliança no dedo da mão pendurada. Leram a inscrição: Edeltrudes. Era a mulher de Rogaciano. D. Edeltrudes botou a boca no mundo. E passou o resto do verão chorando.