Cometas da memória

Mais uma vez estávamos no metrô, em 2005, eu, minha mãe, de novo com minha irmã Veroca. Descemos no Trianon-Masp. Era dia de Parada Gay. Não sabíamos a dimensão que aquele evento teria anos depois no Brasil. Eram dezenas de milhares de pessoas na época. Ficamos na calçada da avenida Paulista na altura do prédio da Justiça Federal. A maioria dos militantes e ativistas vai no chão. É festivo, é agregador, é político e, por ser político, lá estávamos nós. Me surpreendeu que minha mãe quisesse ir. Não sabia que a intolerância e a causa LGBT a mobilizavam.

A parada é conduzida por trios elétricos. Alguns patrocinados por boates de todos os gêneros. Percebi que uma dezena de gogo boys do alto de um carro acenava para nós. Olhei ao redor. Era na nossa direção que acenavam. Então reparamos na minha mãe. Ela acenava para os carros alegóricos, com strippers dançando uma música de boate (pancadão). Ela acenava, eles respondiam. Ela chorava. Acenava e chorava, emocionada, enquanto eles mandavam beijos e rebolavam. Foi das poucas vezes que a vi chorar. Minha cabeça não encontra uma explicação razoável para isso. Talvez nem ela conseguisse explicar. É daquelas peças que o Alzheimer apronta e que sempre surpreende. Doença que não apenas afeta a memória, mas embaralha emoções, enaltece desagrados que não existem, muda o humor até do mais calculista dos matemáticos.

Minha mãe formou uma clássica família burguesa do mundo ocidental do pós-guerra. Não tinha amigos gays. Não assumidos. Só anos depois uma amiga sua se tornaria lésbica militante. Minha casa tinha empregada, e a empregada (ou babá) passava mais tempo com os filhos do que ela. No final dos anos 60, enquanto a revolução sexual transformava as mulheres e as relações, ela andava entediada com a carreira de dona de casa, sempre bonita à espera do seu Don Draper. Que não era um publicitário alcoólatra de Mad Men, mas fumava tanto quanto (ou mais). Queria uma mulher sempre bonita à espera, com os filhos na cama, uísque com três pedrinhas de gelo, a janta pronta. Quando, por sorte, Don podia sair, ligava para a minha mãe, Betty, e avisava do jantar de negócios, do compromisso na casa de um amigo, da peça de teatro, do show, do jazz, do restaurante novo, do carteado. Para ela ficar bonita. Ele passaria às oito para pegá-la. E ela ficava bonita. As viagens do casal para fora do Brasil duravam meses. Ficávamos com as vovós. Don tinha orgulho de sua Betty sociável, elegante, com bom gosto, culta, que costurava as próprias roupas e as dele, inclusive ternos, um hobby do qual nunca abriu mão, e que falava francês melhor do que ele.

Meu pai viajava demais. Figura sempre ausente. Minha mãe me educou sozinha. Isso é bom? Ruim? Não sei... Ele chegou a temer que eu ficasse “afeminado”. Me tirou de uma escola construtivista alternativa do bairro, em que estudavam os filhos dos seus amigos, em que me conheciam pelo primeiro nome, apelido, e me matriculou numa escola pública na praça da República, em que me chamavam pelo sobrenome, quando me chamavam, frequentada por uns dois mil alunos com o mesmo uniforme.

Mas a qualidade do ensino público decaía na proporção em que a ditadura se firmava. Não fiquei afeminado nem mimado. Fui mal alfabetizado. Virei um aluno desinteressado. Minha mãe me confessou que ficou furiosa com tal decisão, mas não podia com a teimosia dele. Chegou a me levar nas primeiras vezes. Atravessávamos a rua de mãos dadas. Eu, em pânico, e ela, me acalmando. Chegou a fazer um reforço em história e português ao perceber o ensino defasado, comparado ao das minhas irmãs. Sofri naquela escola. Mimado. O menino da casa. O queridinho da casa.

Desde pequeno, me fascinava o rico mundo das minhas irmãs, o mundo feminino, os detalhes, os aromas, as cores, os penduricalhos. Minha rotina proustiana era envolta por perfumes, delicadezas e mimos. A família acordava com o mesmo toque do despertador. Minhas irmãs estudavam de manhã. Eu estudava de manhã em São Paulo e à tarde no Rio. Como se eu estivesse na coxia de um teatro de revista, assistia ao corre-corre das quatro irmãs matriculadas no rigoroso colégio religioso.

Enquanto meu uniforme era um short azul de brim, uma camiseta com o logo da escola, um par de sapatos pretos, dos mais fajutos, com meias brancas até as canelas, elas tinham que lidar com um vestido de brim pesado, torçal, laço, faixa e uma cruz pendurada. Uma ajudava a outra a guarnecer e amarrar a cintura. Usavam meias, roupas de baixo, sem contar a maquiagem, o encaixe de grampos, brincos, pulseiras e anéis, além de adornos com nomes estranhos, como piranha e tiara. Havia trombadas no corredor. Brigas. Mãos disputavam peças do figurino. Empurra-empurra. Paninhos com água morna e limão limpavam manchas. As quatro transformavam aquela casa numa trincheira sob bombardeio.

De manhã, elas partiam, eu ficava com a minha mãe. Ou melhor, assistia à minha mãe. Ela fazia tudo com calma. Costurava. Ouvia música. Lia. Falava ao telefone. Eu achava minha mãe linda, classuda. Elegante e magra. Italiana morena de olhos claros. Perfumada. Cuidadosa com o cabelo, com a roupa.

À noite, nos reuníamos. Minhas irmãs passavam horas ao telefone com pinças, esmaltes e escovas de cabelo, diante de espelhos. Cada uma examinava com cuidado cada centímetro do próprio corpo. Enquanto eu nem cuidara do joelho ralado na escola, elas pintavam as unhas dos pés e das mãos, raspavam as pernas com a gilete do pai ausente, usavam cremes, pós e batons. Mulheres dão muita importância aos espelhos. Na minha geração, o menino que se olhasse muito no espelho seria “bichona” no futuro. Não tinha espelho em vestiários masculinos. Se tinha, não podíamos olhar que logo vinha um colega nos xingar:

— Bicha!

Cuidar da aparência na fase de moleque era coisa de bicha, afrescalhado, afeminado. E ninguém com suas faculdades mentais em ordem se arriscaria a ganhar essa fama naquela época. Enquanto eu apenas chacoalhava a cabeça ao sair do banho, como um cão vira-lata saindo do mar, elas enrolavam com destreza a toalha na cabeça, antes de usarem o secador. Um laço sofisticado, que nunca entendi como fazer. Lembrava um adorno egípcio. Uma vez, tentei enlaçar a cabeça com uma toalha. Não parava na cabeça. Não entendia por que na cabeça delas parava, e na minha, nada. Dei um nó. Me enrolei todo. Quase morri sufocado. Sem sucesso. Só as mulheres conseguem.

Dividia o banheiro com as irmãs. A sós, passei esmalte nos dedos. Cheirei cremes. Ataquei formigas da pia com uma pinça em cada mão. Grudei presilhas nas minhas orelhas, elásticos no cabelo, piranhas no rabo do gato. Na lixeira, me intrigavam os pacotinhos embrulhados em papel higiênico. Abri alguns deles e observei, maravilhado, o sangue escondido, proibido. Eu sabia que elas não estavam doentes, nem raladas. Ninguém me explicou o significado daquele sangue secreto; pedaço do misterioso mundo feminino. Vi no banheiro um sutiã. Os dedos percorreram o tecido delicado. Examinei a intrincada engenhoca e armação de alças, presilhas, elásticos e um fecho. Que sofisticada obra de engenharia é o sutiã. Fiz dele um estilingue. Depois de me certificar de que a porta estava trancada, experimentei por cima da roupa. Percebi o quanto é inoperante o fecho. Senti as alças apertarem os ombros, o tecido segurar algo que faltava, a armação dificultar os movimentos dos braços. Olhei de novo no espelho e ri. Agora, sim, eu estava comprovadamente embichado. Colégio público é pouco. Escola militar!

Vi durante a vida minha mãe se arrumar, desfilar, ir e vir do espelho, ir e vir do banheiro, testar combinações, se maquiar, se pentear. Tinha um andar elegante. Ensaiava passos de dança pelo quarto. Eu gostava do jeito que ela dançava. Tudo no passado.

Quando meu pai me colocou na escola pública na praça da República, o queridinho da casa de repente virou um anônimo uniformizado, solitário, cercado por crianças que usavam o mesmo terno desconfortável e antiquado. Encontrei uma saída. Minha avó paterna, Cecy, animada, carioca de nascimento, morava em frente à escola, na avenida Ipiranga com a São Luís. Eu fugia da ­escola. Pedia para um pedestre me ajudar a atravessar a avenida e passava a manhã dançando Roberto Carlos com a velhinha de cabelo azul. Conheci os penduricalhos de outra geração, como cintas-ligas e anágua. Brinquei com joias pesadas. Dancei em sapatos altos. Me cobri com um casaco de pele e fingi ser um animal selvagem, atacando a governanta da casa. A visita virou rotina. Dormia no seu colo, que cheirava a talco, até a hora de voltar para casa depois da “aula”.

Lucila tinha cabelos encaracolados. Era sorridente e mais baixa do que o normal. Desde que a conheci em São Paulo, no primário da escola construtivista do bairro, fiquei apaixonado. Considero essa minha primeira experiência de passione (em latim, “sofrer tardio”). Pensava nela antes de dormir. Antes de sair da cama.

Em 1965, meu pai decidiu que nos mudaríamos para o Rio de Janeiro. Ele fugia do estigma de paulista comunista inimigo da ditadura. Cassado e exilado em 1964, voltou para o Brasil no mesmo ano, clandestinamente, e imaginava ter menos visibilidade e mais oportunidades na Guanabara. Quando me comunicaram, sofri antecipadamente de saudades. Lucila... Como seria a minha vida sem ela? Caminhei infeliz pela casa. Estava infeliz na nova escola. Seria infeliz como um tenor de ópera alemã no Rio de Janeiro. Não me conformava.

Fui corrompido pela oferta de uma enorme festa de despedida. Toda a escola alternativa e parte da religiosa tradicional seriam convidadas. Ninguém da escola pública do Centro, já que não deu tempo para fazer amigos. Lucila então conheceria minha casa. Correria pelo quintal. Brincaríamos. Minha mãe se revelou uma festeira de alta classe. Foi perfeita. Teve palhaço e mágico. Apareceu uma multidão. Garotos da escola com primos, amigos de amigos, primos de amigos. A casa térrea com um grande quintal em que morávamos no Pacaembu parecia uma quermesse. Eu nem sabia que tinha tantos amigos. Era difícil se locomover. Não encontrava a minha paixão. Me lembro de que, num certo momento, fui para a garagem, sufocado, estressado, e lá tinha uma enorme mesa de autorama. E ela apareceu, com aquele cabelo dourado, cacheado como molas. Ficamos conversando. Não fomos ver outro número do palhaço. Passamos alguns minutos (que na memória pareceram o dia inteiro) na garagem. Foi a única vez que demos vazão à nossa paixão de garotos de seis anos de idade. Enfim nos separaram. Ela foi embora sem se despedir. Aflição com a qual convivi por anos.

Se eu não tivesse que me mudar, eu sabia, seríamos o casal mais feliz da cidade.

Em fevereiro, fomos para o Rio.

A reforma da casa alugada no Leblon não estava pronta, reforma que, acredito, ele tocava. Fiquei com meus pais, a Nalu e minha irmã caçula no Hotel Glória. Era uma suíte ampla, com quarto e sala, num lugar paradisíaco, com uma vista das mais lindas. Ele saía para trabalhar, e nós perambulávamos pelo hotel. Foram dois meses de luxo, tomando um café da manhã nababesco, nos deleitando na piscina e correndo pelos corredores.

Fomos enfim morar no Leblon, a três quadras da favela do Pinto. A casa nunca ficou pronta. A obra não se completava, o muro não estava inteiramente erguido, tinha uma montanha de areia de construção no quintal, a alegria dos meus novos amigos, que brincavam nela, faziam túneis e estradas. Aquele monte de areia ficou uns bons anos ali. Meu pai estava sempre ocupado demais com obras para terminar a da própria casa.

Na época, o bairro não tinha o status de hoje. Tinha essa favela e outra na Lagoa, com casas em palafitas. E um conjunto popular inovador que assustava a elite, a Cruzada, o primeiro do gênero — criado por dom Hélder Câmara. Bacana era morar em Copacabana e Ipanema.

Jogávamos futebol na rua. Eventualmente, o jogo era interrompido:

— Olha o carro!

A regra era parar imediatamente. Cada rua tinha um time, com moradores da favela. A maior glória era jogar no campinho de terra da Cruzada. Lá, havia torcida e campeonato organizado, com tabela e troféus.

Minha rotina era de uma paz que nunca mais encontrei. Vivia na ex-capital do país, mas era como se eu estivesse numa vila pacata. Aos oito anos, eu pegava ônibus para ir à escola, Colégio Andrews, em Botafogo. Eu e toda a classe. Já na infância aprendíamos a andar de ônibus. De camiseta de algodão e bermuda azul, eu cruzava a favela. Invejava os amigos que não tinham aula e jogavam bola o dia inteiro.

Nessa escola reencontrei meu melhor amigo, Edu Gasparian, outro paulista exilado. Estudamos na mesma classe. Ele já estava enturmado, o que me ajudou. Ele também tinha irmãs, tinha diálogo com garotas. Ficamos amigos de Roberta e Isabel, duas morenas amadas por toda a escola.

Nas aulas, dividíamos a mesa com elas. Eu com Roberta, ele com Isabel, conhecida como Isaboa. Ou o contrário. Passávamos os recreios com elas, para a inveja coletiva. Nas aulas de música, tocávamos triângulo, elas, coco. Ou o contrário. Ficávamos juntos, fora do ritmo, tocando outra música, mais engraçada, nossa.

Havia um obstáculo para o desenvolvimento de paixões ali. As duas eram maiores do que nós. Bem maiores. Se não me engano, Roberta era a mais alta de todas. Para um moleque, isso é um entrave, especialmente aos oito anos. Apesar de toda a escola achar que namorávamos as duas, era pura amizade.

Não me esquecia de Lucila e seus cachos malucos.

Eu circulava pelo bairro de bicicleta. Cruzava favelas. Pegava atalhos dentro delas. Muitos garotos eu conhecia de lá, jogava bola com eles, na praia, nas quadras. Muitas vezes, parava para cumprimentar e papear com amigos. Nunca fui assaltado. Nunca sofri qualquer tipo de violência. Psicopatia social não estava em nossos dicionários. Pulávamos o muro do Clube Paissandu para jogar bola (ninguém era sócio). Depois, dividíamos o ­milk-shake com os que não tinham dinheiro. Enfiávamos vários canudinhos num mesmo copo e contávamos até três. Sorte daqueles que, com bons pulmões, conseguissem sugar mais rápido o sorvete batido.

A vida no Rio, diferente de São Paulo, era na rua e na praia. Empinando pipa e jogando bolas de gude nos canteiros de terra do Leblon. No domingo, lotávamos uma Kombi para ir ao Maracanã, assistir ao Flamengo, time sediado no Leblon. Fio Maravilha era nosso ídolo. Os pais se revezavam. O meu nos levou certa vez. Lembro que, quando subíamos o viaduto para entrar no túnel Rebouças, um moleque arrancou a bandeira do Flamengo que eu segurava. Gritamos:

— Para o carro, para o carro!

Ele parou. Descemos uns cinco moleques atrás do ladrãozinho. Em segundos, o alcançamos e resgatamos nossa bandeira. Trocamos uma infinidade de palavrões, voltamos para o carro como heróis. Meu pai ficou mais branco do que uma bandeira do Santos — o seu time, desconfio, já que era da cidade. E surpreso: seu filho já estava mais carioca do que muitos cariocas.

Num dia de semana, a praia amanheceu apinhada. Toda a favela correu para lá. Estavam chamuscados. Crianças carregavam pertences. Na água, bonecas com fuligem. A favela do Pinto tinha pegado fogo. Foram os militares, diziam. Viram helicópteros do Exército sobrevoando a favela na noite da tragédia. O tumulto durou uns dias. Certa manhã, tomávamos café e um grupo de moleques invadiu a nossa casa. Não falaram nada. Foram até a geladeira, comeram com as mãos o que encontraram. Nem nos levantamos da mesa. Eram meus vizinhos da favela do Pinto, remanejados para o outro lado da cidade.

A área abandonada do Leblon foi aterrada em tempo recorde. Em meses, subiram prédios de até dezessete andares. Os apartamentos foram comprados na maioria por militares, que receberam empréstimos descontados diretamente da folha de pagamento (soldos). O condomínio, que se estendia por grandes quadras, com uma praça no meio, recebeu o apelido de Selva de Pedra, em homenagem à novela da Globo. A especulação imobiliária expulsou o democrático futebol de rua. Enviaram os pobres para os guetos. E o convívio pacífico virou passado e ilusão.

Toda a molecada do bairro fazia uma conexão no Central-Gávea. No ginásio, com dez, onze anos, descíamos depois da escola para assistir a filmes de arte. Educação sexual formal naquele tempo era uma piada, quando havia. O que aprendíamos estava nos livros de medicina legal, no catecismo do Zéfiro, vendido clandestinamente nas bancas, e nos filmes proibidos para menores.

Instalado na rua Jardim Botânico, na rota dos ônibus que vinham de Botafogo, o Cinema Floresta, inaugurado em 1922, que em 1960 mudou o nome para Jussara, educou uma geração. Não sabíamos a diferença entre Nouvelle Vague e Cinema Novo. Nem que aquelas imagens causavam uma revolução na linguagem. Não guardávamos os nomes dos diretores. Lotávamos a sala, garotos das escolas da região, pois o porteiro não pedia carteirinha e queríamos ver mulheres nuas. Não era pornografia, era arte. Talvez o hábito tenha formado uma geração de cinéfilos. Muitos sonharam com Norma Bengell nua em pelo correndo na direção da câmera, numa praia deserta, como se suplicasse pelo nosso carinho — cena inesquecível, o primeiro nu frontal do cinema brasileiro, de Os cafajestes. Tônia Carrero, Norma, Joana Fomm, Odete Lara, Leila Diniz foram nossas primeiras musas. Admirávamos os filmes italianos com aquelas mulheres com curvas, decotes, lábios grossos. Os franceses, com suas lindas atrizes, despudoradas, que não se intimidavam diante das câmeras e ainda por cima ganhavam prêmios. Sonhávamos com as personagens volumosas e pálidas de Fellini.

As incongruências do regime se ampliaram. Ele endurecia e censurava, empastelava e prendia, proibia peças e livros, mas não a pornochanchada, na carona da revolução sexual.

Na TV, Lucélia Santos botava nossas mães para chorar no dramalhão Escrava Isaura. Na sala do cinema cheio de baratas, nos apertávamos para vê-la nua em Já não se faz amor como antigamente. Os nomes provocavam a imaginação: Eu dou o que ela gosta ou o clássico A ilha das cangaceiras virgens.

Quando passei para o ginasial do Colégio Andrews, mudamos de prédio: Praia de Botafogo. Um prédio tombado, antigo, bonito. Recepcionamos novas turmas e conheci Carla, loirinha enigmática, linda como a vista do Pão de Açúcar pela janela da sala de artes. Era do meu tamanho, e nutri por ela uma paixão secreta. Quando ela passava, eu tinha taquicardia. O acanhamento era na mesma proporção da minha admiração. Nunca ouviu a minha voz. Puro amor platônico.

A maioria de nós compreendia o que significava amor platônico e já vivera o seu, idealizara uma garota e sofrera por causa de uma timidez revoltante, comum na idade, apesar de a maioria não ter ideia de quem foi Platão, nem de que seu amor foi definido bem depois. Carla despertava amor platônico em parte do Colégio Andrews. Seu pai, Carlinhos Niemeyer, era quem fazia o Canal 100, telejornal que revolucionou a linguagem, exibido antes dos filmes e que terminava com imagens em câmera lenta de lances do último clássico de futebol, sob uma trilha sonora que sabíamos de cor. Queríamos Carla, queríamos conviver com sua família, sermos convidados para ver os jogos de perto e termos em mãos aquela loirinha linda e seu acervo.

A ditadura apertou. A família do Edu se exilou em Londres. Ele me mandava cartas perguntando de futebol e de Carla. Eu mentia. Dizia que estávamos namorando. Que ficávamos na casa dela nos pegando, aos onze anos de idade. Meu pai foi preso e morto naquele ano. Me fechei. Meu olhar ficou triste, como o de nenhum outro moleque. Muitos passaram a me evitar. Eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do país, eles aprendiam com alguns pais e professores, liam na imprensa, viam nos telejornais. Meu pai era membro “do Terror”! Em 1971, eu ficava muito tempo sozinho no banco da escola. Aos poucos amigos, eu tentava explicar que meu pai não era bandido. A maioria não tinha ideia do que se passava. A censura e o milagre brasileiro cegavam.

No meio do ano, minha família foi obrigada a sair do Rio. Na festa de São João, comuniquei a mudança. Muitos vieram se despedir. Eu estava numa barraquinha comprando doces quando Carla se aproximou. Fiquei encantado. Ela disse o meu nome, Marrrcelo, com aquele sotaque carioca delicioso. Me beijou.

— Você vai embora, Marrrcelo?

— Vou — eu disse.

— E não volta mais?

— Não sei.

— Por causa do seu pai?

— Por causa de um monte de coisas.

— Vai pra onde?

— Vou morar em Santos, a família do meu pai é de lá.

— E você volta?

— Não sei.

Mais um caso de amor que a ditadura me fez deixar para trás.

Àquela altura, não sabíamos se meu pai estava vivo ou morto. Eu poderia voltar ao Rio. Não fazia sentido largar tudo para trás. Mas não voltei. Àquela altura, meses depois da prisão, minha mãe sabia que meu pai estava morto. Mas eu não.