Minha mãe nunca foi a uma reunião de pais e mestres nas escolas em que estudei, no Rio e em São Paulo, não lia meus boletins nem meus trabalhos, o que me deixava perplexo, radicalmente decepcionado, me fazia sentir o mais abandonado dos alunos pela mais desinteressada das mães. Gesto que, por outro lado, me obrigou desde cedo a tentar resolver meus próprios problemas, batendo nas portas de quem eu poderia bater, de coordenadores, diretores, professores e amigos. Deixa eu fazer uma correção: minha mãe nunca foi a uma reunião de pais e mestres nas escolas em que estudei depois de ter ficado viúva aos quarenta e um anos. Tinha mais o que fazer. Confiava no bom senso das escolas e delegava aos cinco filhos a missão de zelarem pela própria educação.
Existem muitas minhas mães. Ela virou outra, depois de viúva. Passou a andar com gente muito mais jovem ao frequentar a faculdade de direito. Passou a sair com amigas desquitadas, viúvas ou solteiras. Passou a sair. A ir a festinhas. A namorar escondida de nós, depois passou a assumir. Era charmosa. Não ficou no balcão da solidão bebendo lágrimas de sal. E trabalhava demais.
Aprendi cedo que minha mãe não era a pessoa ideal para se fazer manha, choramingar por nada, reclamar de bobagem. Minhas tias morriam de pena de nós, que, bebês, ficávamos chorando meia hora sem que ela acudisse. Era a forma que acreditava ideal para educar um filho. Não nos mimou, palmas. Mas criou cinco filhos chorões.
Confesso que eu queria uma mãe sentada numa sala de uma escola vazia e silenciosa, numa noite de segunda-feira, ouvindo dos meus professores os meus problemas educacionais, emocionais e comportamentais. E que me desse duras, indicasse caminhos. Será? Indiretamente, ela foi aliada da minha rebeldia juvenil.
Antes de completar dezoito anos, eu pegava seu carro, um Corcel 1 azul, quase todas as noites. Com amigos, rodava a cidade. Não me lembro de ter alguma vez colocado o banco e os espelhos na posição original, nem de ter esvaziado o cinzeiro. Como se não me importasse. Ou, pior, quisesse ser flagrado. Evidente que de manhã, quando ela o pegava, percebia que a farra do filho menor de idade tinha sido pesada e ilícita. Ela nunca me deu uma dura por causa disso. Nunca me deu uma dura na vida. Já bateu o telefone na minha cara, mas uma bronca?... Só mães italianas descontroladas fazem isso.
Uma manhã, ela me disse algo como:
— Se alguma vez a polícia te parar, não se esqueça de dizer que sua mãe é advogada e que o documento está no porta-luvas, com minha carteira da OAB.
A praticidade era a sua loucura. E a de muitos advogados.
Aconteceu uma vez. Fui parado numa blitz na avenida Pacaembu. Eu estava sozinho, sóbrio, “de menor”. Era a época em que a PM não chamava ninguém de cidadão, nem pedia os documentos, ordenava:
— Desce, desce!
Mas, no meu caso, estavam estranhamente calmos. Não me mandaram descer, mãos na cabeça, encosta aí! Eu que desci. Fui logo dizendo que tinha esquecido a carteira (que eu não tinha), que o carro era da minha mãe, a-de-vo-ga-da, e que os documentos do carro estavam no porta-luvas, com a carteira dela da Ordem, Ordem dos A-de-vo-ga-dos.
As palavras mágicas funcionaram, a senha para que eles não se metessem com alguém sem carteira, mas, com documento da Ordem, a carteirada foi suficiente para me liberarem. Era madrugada, estavam sonados. Estavam no bairro dos filhinhos de papai, estavam acostumados com carteiradas. Já tinham parado filhos de a-de-vo-ga-dos, de-pu-ta-dos, pro-mo-to-res, ju-í-zes, mi-nis-tros, e, antes que se soletrassem as autoridades que poderiam lhes causar problemas, devem ter se arrependido do local da batida policial e decidido fazer uma blitz num bairro mais pobre.
Minha mãe me ensinou algo que não se ensinava nas escolas, em parte alguma: como tratar (bem) uma garota. Regras básicas de etiqueta que, se serviam para os adultos, deveriam servir para a garotada. Ensinamentos sobre como tratar uma mulher nos anos 50 e 60: ter sempre um isqueiro à mão para acender os cigarros, oferecer bebida, andar na calçada do lado mais perto da rua, abrir portas, dar passagem, levantar-se da mesa para cumprimentar, tirar o chapéu, ajudar a sentar puxando a cadeira e, o que nunca me aconteceu, colocar o capote na poça d’água para ela não se sujar ou carregá-la no colo num lamaçal.
Algumas regras são polêmicas. Num bar ou restaurante, você deve deixar a mulher entrar primeiro? Já li de profissionais de etiqueta que o homem deve entrar antes, para checar se o ambiente é suficientemente respeitoso. Ele entra, observa e, a seu critério, deixa a mulher entrar. Minha mãe me ensinou o contrário. Pensa bem, ela tem razão. Primeiro, deixe A MULHER avaliar se o ambiente é “respeitoso”. O que é respeitoso para um homem vale para uma mulher? Ela deve ser protegida pelas convicções dele, para prosseguir o regime tutelar?
Acabei seguindo a regra da minha mãe.
Sempre fui um cara considerado fofo por tudo isso. Não sei se isso me ajudava com as garotas. Na verdade, ser fofo era um entrave. Ser fofo era bom para os pais delas. A garota não queria um sujeito fofo, mas um cara misterioso, interessante, gato demais, que tocava algum instrumento, que fosse solitário, com um cabelo indefinido, uma barba mal aparada e um olhar fulminantemente sensual, tal qual o de um sniper. Fiz sucesso entre amigos dos meus pais, já que, desde moleque, colocava o guardanapo no colo, esperava todos se servirem para comer (outra regra contestada, pois, dizem, especialmente a italianada, que comida quente não deve esfriar), usava o talher certo, não colocava os cotovelos na mesa, esperava todos terminarem para pedir licença e, se aprovada, saía da mesa, deixava os adultos com problemas de adultos, nunca repetia o prato. Não me esquecia de depositar os talheres em paralelo sobre o prato quando terminava. Sim, um fofo completo, bem treinado, que encantava as mães das garotas, não as garotas, que deviam me achar meio esquisito, fofo demais.
Minha mãe me ensinou tudo isso. Reprimia um filho sempre que ele ralasse o cotovelo na mesa. Impunha a maneira correta de comer, cortar carne (com a faca na mão direita, mesmo os destros), sentar-se com a coluna reta.
Quando nos mudamos de volta para São Paulo, em 1974, fui convidado para uma festa numa mansão no Morumbi, de uma garota de quinze anos de uma família que era uma entidade paulistana e fez história — para enumerar apenas um feito, conspirou para a proclamação da República. Era uma honra estar ali. Minha mãe aconselhou:
— Você tem que dançar com a dona da festa, faz parte das regras.
Havia centenas de adolescentes de muitas escolas de São Paulo. Minha turma tinha acabado de estudar Max Weber. Façanha da professora Zilda, do primeiro colegial, que dava textos sobre marxismo na escola da elite. Nos doutrinou rapidinho. Analisávamos na festa os fatos sociais, dividíamos nossas ações fundamentais, estávamos pouco nos lixando para o “Isn’t She Lovely” do Stevie Wonder que rolava na pista. No primeiro colegial, todos da minha turma viraram marxistas, inclusive os filhos de banqueiros. No segundo, existencialistas. No terceiro, nem uma coisa nem outra, a prioridade era o vestibular e a (insípida) iniciação sexual.
Eu sabia que chegaria o momento de dançar com a pequena aniversariante, que eu não conhecia, nem sei por que me convidara ou se o convite se estendia a toda a escola. Deixei meus amigos, que analisavam os quadros da casa e criticavam o paradoxo da burguesia que colecionava o comunista Portinari, fui até ela, que conversava com umas amigas, e a tirei para dançar. Ela era um pouco mais baixa do que eu, estava de vestido branco, tinha os cabelos castanhos encaracolados, nem sei se estava a fim de dançar, não ficou feliz nem exultante nem eufórica nem entediada nem demonstrou se meu convite fora bem-vindo ou fazia parte de um conjunto de regras obsoletas. Aceitou. Como eu, seguia também uma regra que sua mãe, tradicional como a minha, que deve ter estudado no mesmo colégio tradicional que a minha, ensinou. Se um rapazola a tirar para dançar, não pode recusar.
Fomos para o meio da pista. Poucas pessoas dançavam. Na época, dançávamos com gestos minimalistas. Rebolava-se pouco: os braços dobrados, mãos fechadas, duas para a direita, duas para a esquerda, sem tirar os pés do chão, com os cotovelos erguidos. Era uma música disco, que eu desprezava. Eu preferia rock progressivo. Quando as mãos iam para a direita, o joelho esquerdo dobrava e o direito se esticava. Quando iam para a esquerda, um joelho dobrava e o outro se esticava. Dançava-se assim qualquer música, funk, discoteca, soul. Dançou-se assim por anos. Mas Zeppelin a gente dançava diferente: com os dois pés fixos no chão e os braços balançando, de olhos fechados, rebolávamos viajando, como se surfássemos na pista. Só no punk tudo mudou, o que se estendeu para o pós-punk, dark e new wave. Passamos a chutar, alternando a direita e a esquerda. Chutava-se com o pé direito, socava num jab com a mão direita e alternava. Minha geração até hoje dança assim. Percebe-se em festas e casamentos que nós, tiozinhos, ocupamos as pistas para dançar os clássicos. Se tem swing, herança da era “disco”, é mãozinhas pra lá e pra cá. Se é rock, são chutinhos e soquinhos no ar.
Detalhe importante. Não se olhava para o companheiro, mas para os lados, como se se procurasse a bola em um jogo de tênis. Olhava-se o movimento na pista, o vazio da existência, os garçons, os quadros nas paredes. No punk, olhava-se a injustiça social com ódio, com um olhar de quem, a qualquer momento, esfaquearia alguém, esgoelaria o DJ, quebraria tudo, em revolta contra a ausência do Estado e a implementação do liberalismo individualista podre que atacava as instituições.
Ela dançou comigo sem demonstrar alegria. Dançou protocolarmente, dois pra lá, dois pra cá. Minha vista era um gramado imenso, uma piscina e a cidade de São Paulo, o grande vale entre o rio Pinheiros e os Jardins e os espigões na Paulista. Dois pra lá, dois pra cá. Foi assim até o final. Acabou, ela agradeceu, eu agradeci, cada um foi para o seu canto, a sensação de missão cumprida, e nunca mais nos vimos.
Na volta para casa, minha mãe fez um inquérito. Se dancei com a dona da festa, se agradeci o convite, se me apresentei e me despedi dos donos da casa. Sim, mamãe. Fui fofo. Você se orgulharia de mim. Na época, eu era tão fofo que apareço em fotos amareladas nas festas de família dançando valsas com as minhas tias. Que sobrinho...
Um dia fiz uma descoberta incrível: nunca dancei com a minha mãe. Nunca a abracei de verdade. Nunca rolei com ela fazendo cócegas. Nunca gargalhamos juntos. Nossa relação era como as regras que me ensinava, protocolar. Talvez ela tivesse lido num manual como se relacionar com filhos. Um manual de etiqueta, com um capítulo sobre como abrir as portas, cruzar talheres, tirar a dona da festa para dançar. Até nossas conversas eram secas, diretas, objetivas. Nunca pude lhe pedir conselhos sobre garotas, numa adolescência que chegava sem escalas.
Minha turma passou a ser convidada para muitas festinhas iguais em casas enormes da Cidade Jardim, Morumbi, Alto de Pinheiros, Jardins, de banqueiros, varejistas, industriais, donos de empresas, herdeiros de empresas, capitalistas que combatíamos nas aulas da radical professora e de outro professor marxista, Benauro, este preso num dia de aula, levado ao DOI-Codi e torturado, que nos doutrinava com textos xerocados de Marx e Engels sobre mais-valia. Ao todo, três professores do colégio foram presos naquele ano de 1975, o da grande caçada ao PCB, que deu na morte de Herzog. Vimos dos janelões da escola dois deles serem levados por agentes à paisana. E de nada adiantava serem professores dos filhos do governador do estado (Paulo Egydio Martins) e do prefeito da cidade (Olavo Setúbal), meus colegas.
Minha turma passou a ser convidada porque éramos meninos, garotos, gentis e educados, apesar do determinismo histórico e de estarmos mesmo preocupados com a exploração do homem pelo homem. Se déssemos sorte, éramos beijados por garotas sem preocupações com a luta de classes. Quem se interessasse, podia nos beijar. Nos beijaram garotas ricas, milionárias, com bafinho doce, com aparelho nos dentes, que sabiam beijar, que não sabiam beijar, que tinham pressa, que tinham a boca tensa. Nos levavam para um canto ou quarto escondido, geralmente o escritório do pai burguês, que seria fuzilado no socialismo, nos sentavam no sofá e nos beijavam. Garotas nessa idade eram muito autoritárias, intensas, safadas, curiosas. Não podíamos contestá-las. Volúveis, nos beijavam numa festa, mas, na seguinte, beijavam rapazes de outra escola. Beijamos garotas cuja fortuna daria para pagar a dívida de muitos países. E, apesar de tantas mulheres na minha casa, ninguém me ensinou como lidar com as garotas. Aprendi na marra.
Não tive muitos problemas com a polícia, comparado com amigos meus mais azarados (ou que aprontavam mais, ou que estavam com a droga errada, na quantidade errada, caminhando na hora errada ou de carro na estrada errada).
Em 1976, eu dirigia sem carteira pelo Rio de Janeiro uma moto trail 125 CC, emprestada do amigo Edu, quando um PM me parou na Bartolomeu Mitre, me levou para a delegacia da Humberto de Campos, 315, a 44a DP, e me deixou mofar por uma tarde, arbitrariedade comum, até me permitir telefonar para alguém. Eu não tinha andado mais que cinco quadras (ia ao Bob’s). Liguei para o melhor amigo do meu pai, Fernando Gasparian, pai do Edu, que apareceu de terno e gravata, esbaforido. Conversou algo no pé de orelha com o policial responsável. Fui liberado. Não entendi o que se passou. A moto ficaria mofando no pátio? Que nada. O mesmo PM que me deteve me deu a chave e virou as costas. Era para eu dar a partida e ir embora, o que demorei para entender. Mas, sim, senhor, obedeci. Fui embora dirigindo a mesma moto. Não iria desacatá-lo. Comprei um lanche no Bob’s para o Edu. E nunca contei para a minha mãe a-de-vo-ga-da.
Aos dezoito anos, eu fazia uma viagem longa de busão e trem pela Argentina com um amigo. Acabou o dinheiro. Não tínhamos para a volta. Liguei para a minha mãe, ela deu um jeito. No dia seguinte, tinha uma grana numa loja de câmbio. Ela não me deu uma dura, não me perguntou como pude gastar todo o dinheiro, fazer uma viagem mal planejada. Acabou o dinheiro porque acabou o dinheiro, aprendi a lição e pronto. Minha relação com ela era de uma objetividade abismal. Uma relação ideal, para quem vivia num imbróglio jurídico sem parâmetros e não tinha tempo para uma futilidade chamada afeto. A menos italiana de todas deixava o filho fumar maconha dentro de casa; não na frente dela. E, sempre que eu fumava no quarto e ela chegava, reclamava do cheiro insuportável do incenso patchuli, que minhas irmãs hippies adoravam. Uma vez, não estava fumando e acendi um patchuli. Ela entrou e reclamou do cheiro de maconha que dava para sentir da rua. Não gostou muito de eu me mandar para Campinas para fazer Unicamp, mas não deixou de me financiar (pensão + passe de ônibus + comida do bandejão + cigarros). Roupa, eu tinha herdado do meu pai.
Carnaval de 1978. Fiz uma viagem improvisada com amigos e amigas do antigo colégio. Pegamos um ônibus em São Paulo até Eunápolis, Bahia; dois dias de viagem. Depois, um coletivo até Porto Seguro. Atravessamos então um rio com uma balsa e fomos a pé, pela areia, umas três horas de caminhada, até uma vila que não tinha estrada, luz ou água encanada, Arraial d’Ajuda. Sonhávamos em passar o Carnaval na Bahia para curar tanto niilismo e desânimo, fruto do vazio existencial. Mas, naquela vila, que compreendia uma quadra e casinhas de pau a pique ao redor de um gramado, uma igreja, naquele fim de mundo, não tinha Carnaval. Tinha umas bandeirolas penduradas do último São João.
Dormimos na praia em Arraial, perto da bica d’água. No dia seguinte, subimos a ladeira de terra, interagimos, compramos comida. Foi quando as garotas locais passaram a se interessar por nós, garotos de fora. Esquentamos o contato até a noite, para a hora do forró. Numa cabana, tocava forró ao vivo. Nada de vitrola. Havia outros estudantes e estrangeiros. A minha menina já tinha me escolhido, e eu, correspondido. A minha menina era uma das mais lindas que já vi. Era morena do sol, cabelos lisos, assanhada, de minissaia, cheirosa, vibrante. Ela dançava girando, me pegando, me acariciando o pescoço, sorrindo. Tinha tanto tesão nela, tanta malícia, que eu não sabia se conseguiria um dia largá-la, voltar para a estrada, a luz elétrica, a minha vida. Ela esbarrava de propósito as coxas nas minhas, encostava até o limite do permitido e do possível seu ventre no meu, passava a mão em mim. Ou era a menina mais encantada e apaixonada da terra, ou eu nunca tinha tido contato com a sedução em estado puro. E a pinga descia, descia, descia. Passamos a noite agarrados nos beijando debaixo de uma árvore. Me deu uma tontura demoníaca. Nunca tinha bebido tanto na vida.
No dia seguinte, acordei sozinho de ressaca no gramado. Encontrei meus amigos, que levantavam acampamento para marchar até Trancoso, para onde se ia a pé, pela praia, muito tempo caminhando, também sem luz elétrica, nada. Três decidiram ficar em Arraial. Eu fui um deles. Nos deixaram uma barraca.
Encontrei a minha menina à tarde na praia. Almocei na casa de alguém. À noite, mais forró, mais pinga. Ela me falou algo que eu não esperava:
— Com você estou descobrindo uma coisa que não conhecia, o sexo.
Eu não disse que comigo ocorria o mesmo. Me coloquei no altar de um homem muito experiente, um homem da cidade, onde as coisas de fato acontecem, e que tem muito a ensinar, a desbravar: um bandeirante! Foi na segunda noite que transamos em silêncio, em segredo. Ela não era virgem. Então como estava conhecendo o sexo comigo? Talvez quisesse dizer que comigo conhecia o tesão. Ou, pior, que comigo foi consentido. Ou que eu era a sua escolha, que ela enfim tinha feito sexo com alguém que ela queria. O amor de Carnaval foi verdadeiro. O tesão, nem se fala. Tinha muito mais carinho do que sexo em si. Éramos dois adolescentes em terras inóspitas, as primeiras avistadas pelos europeus em 1500. Um europeu e uma nativa. Uma pataxó!
No ônibus de volta a Eunápolis, senti uma ardência na uretra. No banheiro da rodoviária, vi pus saindo dela: DST! Não era possível! Corri para uma farmácia lotada de surfistas, mochileiros e hippies, a única farmácia decente em quilômetros. Por sorte, um farmacêutico me atendeu com cuidado e privacidade. Me deu um antibiótico. Você vai urinar vermelho nos primeiros dias. Procure um médico depois.
De volta em São Paulo, comentei com a minha mãe que precisava de um médico. Pegara uma doença na Bahia de algum banheiro de estrada, alguma privada. Ela me levou ao seu clínico. Falei o mesmo, diante da minha mãe, que peguei algo na Bahia, de algum banheiro de estrada, alguma privada. Ele me levou a uma salinha anexa e me examinou. Eu estava curado pelo antibiótico de Eunápolis. Mandou que eu tomasse cuidado da próxima vez e me ensinou a colocar uma camisinha. Minha mãe pagou a consulta e não fez perguntas. Não sei se acreditou. Nem me mandou tomar cuidado da próxima vez. Nunca me mandou nada. Respeitava a minha privacidade como poucas mães respeitavam. O que não sei se é um elogio. Nunca mencionou um contraceptivo chamado camisinha. Quando minha irmã Babiu ficou menstruada, foi minha irmã Eliana quem a levou ao ginecologista.
Aprendi quase tudo sozinho. Fui para a Unicamp. Virei um duro feliz, que morava em repúblicas mistas sem TV, telefone ou carro. Morava em edículas, em quartos pequenos e úmidos, em casas com rato, problemas na fiação, encanamento, telhado. Andava de carona, a pé. Livros eram o maior luxo. Os que não encontrava na estante da minha mãe, eu comprava em sebos. Jornais, eu lia os de um centro acadêmico. E nunca senti falta de conforto.
Uma vez apenas dinheiro fez falta, no comecinho de 1979. Eu ia para o terceiro ano da Unicamp. Minha namorada de dezoito anos engravidou. Eu morava em Campinas, e ela, em São Paulo. Eu tinha dezenove anos, vivia da mesada apertada da mãe, dava aulas particulares de física e matemática, trabalhava nas férias para um tio, numa empresa de exportação e contêineres, tocava em barzinhos e shows universitários, e não tinha nenhum bem, nada de posses, nada de nada.
O elemento Marcelo Paiva, universitário, morador de uma república estudantil em Campinas, na rua Carolina Florença, afirma ser namorado da ex-colega de escola, não presente ao plantão, moradora da Cidade Jardim, São Paulo, capital. Por paixão, afirma o declarante, ela engravidou. Bobearam, contou. Num fim de semana na praia, na casa de amigos, a lua estava demais, a paixão era demais, tesão transbordando, rolou, escapou, afirma o declarante supraqualificado. A família dela é muito conservadora. Ele pesquisou, queria o melhor para a namorada, descobriu que havia tipos diferentes de aborto, queria o mais seguro, caríssimo, o de sucção, ele não teria dinheiro para pagar, mas tranquilizava a namorada. Corria contra o tempo. Pediu para a pessoa mais improvável, mas que ele sabia que era com quem mais podia contar. Pediu para a sua mãe, Eunice Paiva, moradora do Jardim Paulista, São Paulo, capital; explicou o propósito do empréstimo. Ela nem pensou duas vezes. Não deu lição de moral, uma dura, não reagiu emocionalmente, usou a razão, como sempre. Desta vez, afirma o declarante, gostou de ver que a mãe, apesar de origem italiana, raciocinou como o filósofo grego de nome Aristóteles. Deu o dinheiro, apoio, e ainda exigiu o melhor. Avisaram a família da namorada que iam viajar. Foram à clínica no Itaim, indicada pelo ginecologista da mãe. O garoto ficou apavorado quando a namorada entrou com a enfermeira. Esperou horas num sofá. Levou-a para a casa da mãe dele. O meliante não dormiu, preocupado, segurando a mãozinha dela. A moça passa bem, apesar do trauma. A mãe nunca mais tocou no assunto. O flagrante não foi realizado.
Minha mãe era assim: não me deu uma dura por engravidar a namorada, me deu uma força para resolver o problema. Minha mãe não era minha amiga. Não saíamos juntos. Não bebíamos ou fumávamos juntos. Eu não falava para ela do que vi e vivi. Era minha mãe. E, na urgência... Não sei se tratava as minhas irmãs com o mesmo padrão moral. Acho que não. Minha mãe era machista. Topava as maluquices e irresponsabilidades do filho homem. Não as das meninas.
No fim de 1979, sofri um acidente. Quando acordei na UTI, eu estava paralisado do pescoço para baixo. Ela ficou do meu lado.
Mas aí é outro livro.