O sacrifício

No meio do ano de 1971, fomos morar na casa do meu avô Paiva, em Santos, no José Menino, Canal 1. Minha mãe montou um quarto com uma cama de viúva. Trancava-se todas as noites para acender velas e chorar. Nunca a vimos chorando. Trancava-se e preferia sofrer sozinha. À luz de velas. Queria nos preservar, me diria anos depois, repetidas vezes. Não o enterrara ainda. Ninguém o enterrava. Tinha esperança de acordar de um pesadelo, com a volta dele, esperava um milagre, que fosse tudo um jogo de cena da ditadura, e quem sabe ele ainda não estava preso, jogado e esquecido no fundo de uma cela, numa ilha, num hospício, e curavam suas feridas. O ministro garantira. Mas os generais diziam que ele não estava preso. Ela ouviu lá dentro que ele estava preso no andar de cima. Nos inquéritos, ele fugira. Tem oficial garantindo que ele está vivo. Tem jornalista alertando: está morto. Conversou com pitonisas, rezou, apelou. Enterrar seria desistir. A nós, nada dizia. Para nós, ele ainda estava vivo. Cada um dos filhos o enterrou à sua maneira, em épocas diferentes, silenciosamente. Depois de um, dois anos, dois anos e meio... O tempo era o seu atestado de óbito. A demora, a comprovação que faltava.

Aos poucos, minha mãe se desfez das roupas dele. Herdei ternos, camisas e gravatas. Eventualmente ela consultava alguém, para um apoio espiritual. E consultava uma amiga psicóloga carioca, sem marcar hora, como papo de amigas. Foi tudo o que fez pelo luto emocional. A praticidade era sua loucura, e logo se agarrou a ela. Praticidade que hoje não serve para nada.

Em 1974, nos mudamos para São Paulo, para perto do Paraíso, perto da primeira linha de metrô, que era inaugurada naquele ano pelo general Médici. Voltamos para São Paulo, para o marco zero, o ponto de partida.

Numa palestra que deu para duzentas pessoas em 1979, em Londrina, ela disse que ainda não tinha entrado com uma ação contra o governo, pois esperava as pes­soas envolvidas no caso “perderem o medo de falar o que sabem”.

— Não adianta a União dizer que ele fugiu da cadeia, porque ninguém vai acreditar nessa história.

Contou que nem Buzaid acreditava na fuga de Rubens, e que ele afirmou, ainda em 1971, numa reunião com a minha família paterna, um mês depois da prisão do meu pai, na casa dele em São Paulo, que meu pai estava preso no I Exército e machucado, mas que seria liberado em quinze dias. Buzaid garantiu que ela teria o marido de volta. Depois de pressionado pelos militares, Buzaid negou o que disse. Ela disse que Buzaid estava por fora de tudo. Ou mentiu descaradamente, deu injustificadas falsas esperanças, apertou a ferida da minha mãe.

Em 1985, ela disse numa palestra que ouviu de tudo, muitas versões e mentiras, mas que a única coisa que tinha certeza era de que Rubens estava morto, mas uma morte não oficial. Dizia sempre:

— A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça.

Só recentemente, em 2014, o quebra-cabeça foi completado pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro. Nos cinquenta anos do golpe militar, tivemos a conclusão da Comissão Nacional da Verdade, com a morte de dois militares envolvidos diretamente, cujos documentos escondidos em suas casas vieram a público, e testemunhas de pessoas de dentro do DOI, que começaram a falar. Foi quase completado. Está tudo na internet. Até no YouTube. É público. Falta o principal, o corpo.

Para os procuradores do MPFRJ, que passaram anos investigando e montaram um organograma completo e detalhado de todos os envolvidos, o motivo da prisão do meu pai começou com o desfecho do sequestro do embaixador suíço, Giovanni Bucher. Cecília Viveiros de Castro, já doente, deu um depoimento por escrito. Os procuradores juntaram com outros depoimentos de agentes, inclusive torturadores, que os prestaram pessoalmente, e construíram a seguinte narrativa:

13 de janeiro de 1970. Setenta presos políticos foram trocados pela libertação de Bucher e seguiram para o Chile, destino de muitos exilados brasileiros, dentre os quais Helena Bocayuva (filha do ex-líder do PTB na Câmara, Bocayuva Cunha), Luiz Rodolfo Viveiros de Castro e Jane Corona Viveiros de Castro. A mãe de Luiz, Cecília Viveiros de Castro, foi ao Chile visitá-lo e, ao retornar em companhia da irmã de Jane, Marilene Corona Franco, concordou em portar consigo cartas e papéis com conteúdo político, endereçados a amigos e conhecidos do casal.

No dia 19 de janeiro de 1971, Cecília Viveiros de Castro e Marilene Corona Franco embarcaram com destino ao Rio de Janeiro. O voo em que estavam era o primeiro a retornar ao Brasil após o exílio dos presos trocados e por isso havia forte controle da repressão sobre a identidade dos passageiros e sobre seus pertences.

Declaração manuscrita de Cecília Viveiros de Castro, já falecida: “Depois de passar uma temporada com meu filho e minha nora, em Santiago, iniciei a viagem de volta no dia 19 de janeiro de 1971 pelo avião da Varig. Em minha companhia viajava Marilene Corona, irmã da minha nora. A viagem transcorreu normalmente. Durante os dias que passei em Santiago tive a oportunidade de encontrar numerosos brasileiros, amigos ou simples conhecidos de meu filho. Para alguns eu levava correspondências. Já tivera oportunidade de conhecer alguns parentes deles aqui no Rio. Outros eu conheci lá. Logicamente, quando se espalhou a notícia da minha volta ao Brasil, muitos retornaram pedindo-me que trouxesse cartas ou pequenas encomendas. [...] Como algumas manchetes pudessem criar problemas com autoridades brasileiras na revista da bagagem, a princípio recusei. Marta, porém, me pediu muito e convenceu-me dizendo que eu poderia trazer as cartas e recortes por baixo da roupa, e que assim não haveria problemas”.

Não explica quem é Marta. O nome aparece solto no depoimento. Nome ou codinome.

Marilene Corona Franco relatou que não participara do movimento estudantil, mas sua irmã, Jane, que fez Medicina na UERJ, era do movimento. Foi presa no famoso e clandestino congresso da UNE em Ibiúna, em 1969. Casou-se com Luiz Rodolfo Viveiros de Castro, filho de dona Cecília. Luiz Rodolfo exilou-se no Chile em meados de 1970. Jane, no final de 1970, resolveu se juntar a ele.

Estava no Chile o cabo Anselmo, da VPR, e agente duplo, aliciado pelo delegado Fleury (chefe do Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS). Que frequentava as reuniões dos exilados.

O avião aterrissou no aeroporto do Galeão pouco antes da meia-noite do dia 19. Tão logo foi concluída a aterrissagem, os pilotos conduziram a aeronave a uma área reservada, onde três homens à paisana retiraram Cecília e Marilene da aeronave e as levaram à base aérea adjacente ao aeroporto internacional.

A tortura de ambas — objeto de outra investigação — iniciou-se quando, após revista corporal, descobriu-se que tanto Cecília quanto Marilene ocultavam papéis com conteúdo político, remetidos por exilados. Nos papéis encontrados em poder de Marilene, havia a orientação de que um dos pacotes deveria ser entregue a “Rubens, que poderia ser contatado através de um determinado número de telefone”. Marilene não conhecia previamente a identidade do destinatário, nem tampouco era militante de organizações de oposição ao regime. Marilene, então, foi forçada, mediante tortura cometida pessoalmente pelo comandante da 3a Zona Aérea, coronel JOÃO PAULO MOREIRA BURNIER (já falecido), a telefonar para o número indicado no pacote que recebera e dizer a “Rubens” que as cartas do Chile haviam chegado. O oficial portava na ocasião um radiocomunicador e, assim que a mensagem foi transmitida por telefone, começou a gritar, falando: “Já cercou a casa do homem?”, “Ele está em casa, podem invadir”.

Verifica-se, assim, que, a partir do prenome e do número de telefone apreendido em poder de Marilene, militares da Aeronáutica comandados por BURNIER identificaram o destinatário das correspondências e o endereço onde Rubens Paiva residia com sua família.

De acordo com a testemunha Marilene Corona Franco, “o avião estacionou fora do local de desembarque e já na boca da escada havia pessoas em um jipe gritando o nome de ‘Marilene e acompanhante’, o que sugere que os agentes tinham prévio conhecimento de que era a declarante quem trazia consigo as cartas dos brasileiros exilados”.

No mesmo sentido, escreveu Cecília Viveiros de Castro: “Continuando o meu relato, quando descemos do avião, eu e Marilene fomos levadas [...] por três homens em traje esporte que [...] diziam: ‘Não é nada, não se preocupem, vocês nos acompanhem, é assunto de rotina’. Descemos diante de uma porta onde vi escrito: ‘DAC — Polícia’, e daí em diante não tive mais dúvida: estávamos presas. Esta primeira fase de nossas aventuras, ou desventuras, melhor dizendo, não foi das piores, se compararmos com o que veio depois”.

A declarante [Marilene Corona Franco] e dona Cecília permaneceram no Galeão até a manhã do dia seguinte [20 de janeiro]. Ficaram sentadas em uma sala. Chegaram a ser ameaçadas de serem postas para caminhar em uma espécie de chapa quente no chão. Dona Cecília também foi obrigada a despir-se e sentiu-se mal e humilhada. [...] Após ser ameaçada por algumas mulheres fardadas, a declarante confessou que trazia consigo as cartas. O nome da declarante e de dona Cecília foi retirado da lista de passageiros, de modo que o esposo de Cecília acreditou que elas não tivessem embarcado.

De acordo com Cecília Viveiros de Castro, em seu depoimento manuscrito: “Com a entrada de um tal ‘dr. Alberto’ de que eu tenho horror de me lembrar até agora, iniciou-se, para mim, uma sessão de humilhação que nem sei descrever. Fui tratada como uma pessoa sem moral, comparada a mulheres que ele citou e de que nunca ouvi falar [...]. O pior é que eu tentava responder quando ele me perguntava alguma coisa, mas ele não deixava, me interrompia, gritava, ofendia meu filho, dizia que se ele o pegasse de novo, eu ia ver o que ele faria. Garantiu que não somente eu ficaria presa, mas toda a minha família seria detida, pelo menos quarenta dias, inclusive minha filha de treze anos. Segundo este ‘dr. Alberto’, meu marido e eu perderíamos o emprego, nunca mais eu teria passaporte”.

Segundo a testemunha Marilene Corona Franco, na manhã seguinte, um oficial fardado, mais velho, apareceu e perguntou para a declarante se ela conhecia Rubens Paiva. Nesse momento, dona Cecília não estava com a declarante.

Minutos mais tarde, a casa foi invadida por seis agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), ainda não totalmente identificados, fortemente armados. Sem esboçar nenhuma resistência, a vítima foi escoltada ao comando da 3ª Zona Aérea, situado na avenida General Justo — Centro, conduzindo seu próprio veículo. Lá, no terceiro andar, Cecília e Marilene testemunharam o interrogatório e início das torturas infligidas ao ex-parlamentar.

De acordo com Marilene Corona Franco: “Logo depois, foi chamada e confrontada com Rubens Paiva, que não conhecia. Antes de ambos serem postos frente a frente, ouviu gritos e ameaças e uma voz dizendo ‘Não sei de Jane nem de Luiz Rodolfo’. Lembra-se que Rubens Paiva era um homem gordo e naquela ocasião estava com o rosto muito vermelho, como se estivesse muito nervoso ou mesmo levado alguns tapas na face. Ele suava muito e dizia: ‘Nunca vi essa mulher’. A declarante também afirmava nunca ter visto a vítima”.

No final da tarde de 20 de janeiro de 1971, os três detidos foram transferidos ao quartel do 1º Batalhão de Polícia do Exército onde, desde o ano anterior, também funcionava o DOI do I Exército.

Cecília Viveiros de Castro narrou o que se passou da seguinte forma: “Enquanto estivemos neste prédio na Aeronáutica [...] ouvíamos gritos de um cidadão que estava sendo ‘interrogado’. Era a primeira vez que constatava a existência dos horrores das torturas tão negadas pelos comunicados do governo. Não sabia o que ia me acontecer, e foi com indiferença de quem já não pode esperar nada de bom que fui levada para outro carro. Senti que os meus acompanhantes estavam aflitos por chegar a outro lugar e se consultavam sobre a procissão, se já tinha acabado etc. Fui colocada num carro e Marilene em outro. Ouvi as ordens a respeito de nossa bagagem que iria também para o mesmo lugar. Fizeram entrar no mesmo carro e sentar ao meu lado um homem grande, gordo, alourado, de olhos claros, suado e amarrado com as mãos atrás das costas que reconheci, espantada, ser o dr. Rubens Paiva, pai de três meninas, minhas alunas no Colégio Sion e companheiras das minhas filhas. Era ele que tinha estado apanhando. Ouvi as conversas em que o ameaçavam de mais ‘ameixas’ se não se mantivesse quieto. O dr. Rubens parecia sofrer muito e pedia para afrouxarem os nós que prendiam seus pulsos. Ouvi e ele também devia estar ouvindo as instruções dadas pelo rádio, do Tigre ao Elefante, Aranha etc. sobre como deviam agir na casa em que estavam ‘uma senhora e quatro crianças na Delfim Moreira’; elas devem permanecer lá, o telefone está controlado; quem está dentro não sai, quem está fora pode entrar mas entra e é grampeado’. Isso foi repetido pelo menos umas três vezes até o outro animal (Elefante, Aranha etc.) gravar bem. Depois que tive quebrada a incomunicabilidade da minha prisão, entendi que o que ouvíamos se referia à casa e à família de Rubens Paiva”.

Marilene Corona Franco acrescentou que: “Algum tempo depois, disseram para a depoente que ela iria para casa. Colocaram-na em um Fusca acompanhada de três agentes. Depois soube que Rubens Paiva estava em outro automóvel, jogado junto aos pés de dona Cecília. Ela ficou muito surpresa ao vê-lo, pois não tinha ideia de que ele havia sido preso, nem que ele tivesse qualquer envolvimento com a resistência política”.

Segundo Cecília Viveiros de Castro, “quando chegamos ao chamado ‘aparelhão’ na Barão de Mesquita e o carro parou, colocaram uma toalha me cobrindo o rosto e o paletó na cabeça do dr. Rubens, e nos fizeram descer. Eu estava aterrorizada, já conhecia de fama o DOI das prisões de meu filho, e com dificuldades para respirar devido ao capuz preto que me colocaram. Não sei quanto tempo ali fiquei; sei que nesta mesma tarde fui fotografada e fichada e estivemos muito tempo em pé. Como não aguentasse ficar sem me apoiar na parede, acabaram me colocando numa cadeira. Eu ouvia os gritos do Rubens Paiva sendo interrogado e de vez em quando passava alguém e batia no meu ouvido ou puxava meu cabelo ou falava bem perto: ‘Vá se preparando! Está ouvindo? Está chegando a sua vez...’. Parecia um pesadelo, os gritos: ‘Eu não aguento mais’; ‘Eu não sei de nada’, ‘Não façam isto’ do torturado, e música de vitrola com o máximo de som e de vez em quando os xingamentos e expressões vulgares que me diziam ao ouvido. Não sei como aguentei”.

Marilene Corona Franco declarou ao MPF que: “Em seguida, a declarante, dona Cecília e Rubens Paiva foram colocados encapuzados de frente para uma parede, no andar térreo. Em um determinado momento, alguém passou e deu um soco em Rubens Paiva. Dona Cecília disse: ‘Vocês vão matar este homem’, e eles responderam: ‘Aqui é uma guerra’, dando a entender que a morte de um preso não seria considerada algo criminoso. Pouco tempo depois, dona Cecília desfaleceu, pois estava muito tempo em pé e sem dormir ou se alimentar. Colocaram-na sentada em uma cadeira. Em seguida, quando a declarante ainda estava em pé e de frente para a parede, começou a ouvir gritos de Rubens Paiva sendo torturado em um salão do lado. Reconheceu que era Rubens Paiva porque os interrogadores indagavam sobre Jane e Rodolfo. Achou que era um salão porque os gritos ecoavam de forma muito forte. Tais gritos eram de certa forma abafados por um rádio colocado em alto volume. Lembra-se perfeitamente que tocavam a música ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos, e também ‘Apesar de você’, de Chico Buarque. Rubens Paiva dizia não saber quem eram Luiz Rodolfo e Jane, nem do que estavam falando. Ouviu gritos de dor. Enquanto estava havendo a tortura, a declarante foi levada para o andar de cima, onde foi posta em uma cela individual. A partir desse momento, perdeu contato com Rubens Paiva e dona Cecília”.

Ainda de acordo com a testemunha: “[Cecília] foi depois colocada em uma cela ao lado daquela onde foi colocado Rubens Paiva. Dona Cecília lhe disse depois que Paiva pedia seus remédios e também água. Ele também falava, com uma voz muito enfraquecida: ‘Meu nome é Rubens Beyrodt Paiva’. Durante a madrugada, não deixaram a declarante dormir, pois periodicamente passava um soldado, iluminava o interior da solitária e exigia que o preso falasse o seu nome. Dona Cecília também lhe disse que durante a madrugada houve muito movimento na cela onde estava Rubens Paiva. Dona Cecília ouviu inclusive dizerem que ele precisaria ser hospitalizado”.

O mesmo fato foi presenciado pelo ex-preso político Edson de Medeiros, que aguardava no térreo do prédio sua transferência para um quartel no bairro do Leblon. Ouvida pelo MPF, a testemunha relatou que: “No dia 20 de janeiro [...]), o declarante foi colocado em uma cela no andar térreo, dotada apenas de grades, o que lhe permitia ver o que se passava no corredor do prédio. Como era feriado o movimento não era muito grande no pelotão. Recorda-se então que na parte da tarde ouviu gritos de um homem sendo torturado. Lembra-se perfeitamente de que os agentes colocaram uma música do Roberto Carlos — ‘Jesus Cristo’ — em alto volume, possivelmente com o objetivo de abafar os gritos. Algum tempo depois viu de sua cela passarem dois recrutas puxando pelos pés um homem forte e gordo, com mais de cem quilos. Esse homem foi colocado na cela ao lado e gemia muito. Chamou também a atenção do depoente o fato de que ele não aparentava ser um estudante, pois já era um homem de meia-idade. [...] Algumas horas depois, o depoente ainda viu alguns agentes retirarem da cela um corpo inerte e totalmente coberto. [...] Percebeu também que os agentes davam uma importância muito grande àquele preso. Foi a última vez que viu esta pessoa”.

Minha mãe nunca perdoou a incrível falha de segurança, o amadorismo, a imprudência: vir do Chile com uma carta escondida, no avião mais queimado do país, com o telefone do marido escrito no envelope; prepotência e descuido das organizações de esquerda, que colocaram duas famílias com crianças no fogo cruzado, os Viveiros de Castro e os Paiva.

Mas como culpar alguém se, naqueles tempos, por mais cuidado que tomassem, o mundo caía em cima, a repressão aparecia pelo esgoto, pelo telhado, infestava como uma praga que trazia a peste na saliva? Os militantes eram jovens. Eram idealistas. Largaram suas profissões e famílias por um ideal romântico. Queriam fazer algo pela liberdade. E eram dos poucos que tinham coragem de enfrentar um regime desgraçado, estúpido, dos gorilas. Como culpá-los?

O mundo estava de ponta-cabeça. Os direitos civis, anulados. A violência era uma política de Estado. Pelo documentário 70, em que se entrevistam alguns dos setenta presos que foram trocados pelo embaixador suíço, percebe-se que não se podem julgar atos do passado pelo olhar de agora. Os setenta estavam destroçados. Foram torturados seguidamente, as garotas, estupradas, passaram calor em celas abafadas, ou frio, molhadas e sem roupa. Antes de embarcarem, ficaram horas presos sob o sol em camburões sufocantes no Galeão, a última tortura, uma lembrança de viagem, como os judeus em trens para a morte. Nem sabiam o que seria feito deles. Subiram as escadas do avião uns ajudando os outros. Os que não conseguiam caminhar eram carregados. Quando embarcaram, nem sabiam para onde iam. O piloto informou, a certa altura, que sobrevoavam os Andes.

Chile. Alguns desceram as escadas do 707 da Varig sem sapatos. Outros, sem camisa. Mancando. Surpresos, foram recepcionados como heróis. O aeroporto estava lotado de gente. Faixas e cartazes davam as boas-vindas. Autoridades do governo Allende os cumprimentavam de um em um. Deram entrevistas a correspondentes estrangeiros e agências internacionais de notícia. Com rupturas, cicatrizes de bala e tortura.

Tinha de tudo: guerrilheiros, freis, estudantes que foram pegos panfletando, moças que nunca deram um tiro na vida, gente que sabia que a opção da luta armada era uma roubada, mas não sabia o que fazer da vida. Dois desses se mataram anos depois, frei Tito, que se enforcou numa árvore na França, e Dora (Maria Auxiliadora Lara Barcelos), que se jogou debaixo de um trem em Berlim. Ambos destroçados pela tortura.

Ficaram pelo Chile sem dinheiro, passando fome. Eram tratados como “os setenta” que vieram ajudar a revolução de Allende. Mas veio o golpe do Chile, em 1973. Foram cassados pelo novo governo Pinochet. Passaram a ser “os setenta terroristas brasileiros”. Muitos foram presos. Muitos voltaram a se exilar em embaixadas.

Difícil exigir um rigor no protocolo de segurança para uma massa de garotos destruídos, que precisaram se reerguer do nada. Eles tinham apenas feridas, dores, orgulho, talvez arrependimentos, e seus ideais.