A memória não se acumula sobre outra. A recente não é resgatada antes da milésima. Que não fica esquecida sob o peso das novidades, do presente. O passado interage com o segundo vivido, que já ficou para trás, virou memória recente. Memórias se embaralham.
Então me explica rápido: por que velhos com demência se esquecem das coisas vividas horas antes e se lembram das vividas na infância, décadas antes? Minha mãe, aos oitenta e cinco anos de idade, com Alzheimer, não se lembra do que comeu no café da manhã. Mas vê meu filho, de um ano e pouco, e o reconhece, como pouquíssimas pessoas. Vê sua foto e o reconhece. Tem saudades dele.
“Você se lembra de mim?” é a pergunta que todos lhe fazem. Querem ser reconhecidos. Querem que ela se lembre. Querem que ela se lembre “de mim”. A prova de que tem algo deles dentro dela, uma memória que está lá, mas não consegue ser resgatada, que é da pessoa que quer ser lembrada. Querem a prova de que ainda existe alguma ligação com o mundo, com a vida. Pergunta que deixa o portador de Alzheimer em pânico, ele se sente desafiado, provavelmente tem uma vaga lembrança, e não sabemos se fala a verdade ou se desiste, mas passa a dizer para todos:
— É.
Não diz claro que me lembro, ou apenas sim. Diz: “É”. Que não significa nada. Que não responde a nenhuma pergunta. Que “é” apenas. E quando quer dar um ponto final numa conversa, diz: “Pronto”. Como quem diz “Satisfeito?, me lembrei de você, sem lembrar exatamente quem você é”.
— Você se lembra de mim?
Veroca deu uma resposta ótima para um professor que fez essa pergunta:
— Não é importante, o fundamental não é a lembrança, mas como você interage com ela hoje.
Minha mãe ficou viúva aos quarenta e um anos. Na adolescência, eu não me identificava com colegas que reclamavam do conservadorismo dos pais. Minha mãe tinha amigos “avançados”, escritores, feministas, editores, intelectuais, antropólogos, maconheiros, hippies, sem contar inúmeros políticos cassados, ex-exilados e jornalistas em busca de notícia. Recebia visitas de correspondentes estrangeiros, representantes de organizações de direitos humanos e de outros governos. Eu sei que já disse tudo isso.
Ali estava um ícone da ditadura, prova bem articulada que contestava a versão oficial. Minha mãe viva negava a mentira criada. O entra e sai era tamanho, que ela não tinha tempo para futilidades. Eu tinha, sim, ódio dos militares. Do poder. No entanto, assistir à atuação dela me ensinou a não alimentar revanchismos. Ao invés de se fazer de vítima, ela falava de um contexto maior, entendia a conjuntura do continente, sabia ser parte de uma luta ideológica. Era mais uma Maria (Maria Eunice), cantada por Elis Regina em “O bêbado e a equilibrista” (“choram Marias e Clarisses, no solo do Brasil...”). Nunca se deixou cair no pieguismo, não perdeu o controle diante das câmeras, nem vestiu uma camiseta com o rosto do marido desaparecido. Não culpou esse ou aquele, mas o todo. Não temeu pela vida. Lutou com palavras.
Virgílio Gomes da Silva, o Jonas, foi o primeiro da leva de desaparecimentos políticos que começou a partir de 1969 no Brasil. A última vez que foi visto foi em 29 de setembro, na Operação Bandeirante (Oban) de São Paulo. Entre 1970 e 1971, foram quinze os desaparecidos políticos. Depois, o número saltou para cento e quarenta. A ditadura adotou como prática sistemática execuções e desaparecimentos. Impossível calcular quantos. Se botar na conta aldeias indígenas, tribos dizimadas, que desapareceram na expansão da fronteira agrícola e ocupação da Amazônia promovida pelos militares, esse número vira uma enormidade.
São eles, os pioneiros: Mário Alves de Souza Vieira, desaparecido a partir de 17 de janeiro de 1970; Jorge Leal Gonçalves Pereira, desaparecido em 20 de outubro de 1970; Celso Gilberto de Oliveira, 30 ou 31 de dezembro de 1970; meu pai, 22 de janeiro de 1971; Antônio Joaquim de Souza Machado e Carlos Alberto Soares de Freitas, ambos em 15 de fevereiro de 1971; Joel Vasconcelos Santos, 15 de março; Stuart Edgar Angel Jones, 14 de maio; Ivan Mota Dias, 15 de maio; Mariano Joaquim da Silva, 31 de maio; Heleny Ferreira Telles Guariba, Walter Ribeiro Novaes e Paulo de Tarso Celestino da Silva, os três em 12 de julho de 1971; Francisco das Chagas Pereira, em 5 de agosto; e Félix Escobar, em outubro de 1971.
O Exército nem abria mais inquéritos sobre os desaparecimentos. Eram um caso banal. A prática, que começou no Brasil, espalhou-se. No Chile, a partir de 1973, foram três mil. Na Argentina, a partir de 1976, quinze mil.
Os familiares dos desaparecidos viviam num limbo civil, além de emocional (temos ou não um pai, uma mãe, um filho, uma filha ou netos vivos?). A burocracia engessava atividades corriqueiras. Não sabíamos nem a data em que deveríamos decretar como o dia da morte. Repare que usei a expressão “desaparecido a partir de”, e não “morto em”. Meu pai foi preso no dia 20 de janeiro. Estava morto na noite do 21 para o 22 de janeiro. Para nós, da família, a data da sua morte é 20 de janeiro. Só recentemente soubemos que ele morreu entre 21 e 22. Não mudaremos o dia em que sua morte faz aniversário.
Eu deveria vingar a morte do meu pai? Comprar um revólver e ir, de um em um, atirar na cabeça? Com dezessete, dezoito, dezenove anos eu não era maluco o suficiente para partir pra guerra. Era da paz. Era um pacifista. Alguns nomes dos torturadores envolvidos já tinham sido divulgados nas declarações oficiais do próprio Tribunal Militar. Bastava consultar o catálogo telefônico do Rio de Janeiro e ir de um em um, sabe quem eu sou?, pá, sabe de quem sou filho? pá, olha pra mim, pá. Mas lutar pela democratização seria uma vingança mais efetiva, e esperar que a Justiça numa nova democracia fizesse a sua parte. O que espero até hoje.
A famosa caixinha da Fiesp, de empresários que financiavam o centro de tortura da Oban, que inspirou os DOI-Codis, era passada pelo Henning Boilesen, da Ultragás, e dizem que ele frequentava as sessões, para assistir a garotos de ponta-cabeça levando choques. Empresários davam dinheiro e equipamentos para ajudar no combate ao “terrorismo”, que atrapalhava os negócios. Boilesen foi justiçado pelo Movimento Revolucionário Tiradentes e a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização que ajudou a destroçá-lo, metralhado numa rua dos Jardins, perto de onde mataram Marighella.
Torturadores, “traidores” e delegados também foram justiçados.
Imagino o cara que foi torturado quase até a morte por um policial e depois o encontra nas ruas. Membros da ALN queriam vingar os amigos e atacar os centros de tortura. Marighella era contra. Dizia que a luta era ampla, contra um sistema, um regime, não contra os agentes da repressão, que era uma luta política, não pessoal. Impedia ações de vingança. Mas, depois da sua morte, a organização perdeu o rumo, executou companheiros, rachou.
Via minha mãe sem rancor, publicamente a favor da Anistia, aliada a movimentos dos direitos humanos, sensata, com um ideal nos punhos, e me dizia que ali estava a atitude correta, a nossa guerra. Ela aos poucos se tornava um ícone da redemocratização. Uma autoridade. Dava entrevistas, recepcionava aliados, frequentava reuniões no Congresso, agregava. Eu, com minha gangue de garotos revoltados e fiéis ao determinismo histórico, passava em frente de restaurantes da burguesia e gritava: “Essa moleza vai acabar!”. Ah, sim, fiz pichações. No campus da Unicamp. Não muito inspiradas: PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, LIBERDADES DEMOCRÁTICAS, ANISTIA AMPLA E RESTRITA. Os jargões reformistas em voga.
Minhas irmãs, sim, militaram no movimento estudantil. A Veroca chegou a ser líder da tendência majoritária, Refazenda. Com o tempo, fiquei mais à margem. A ditadura ruía. O movimento sindical se organizara. Novos partidos políticos surgiram. Achei que o movimento estudantil se tornava uma tolice, não se renovava, ficava isolado.
Os estudantes universitários do final dos anos 70 organizaram shows na USP, Milton Nascimento, Gilberto Gil. Quando entrei na USP, em 1982, o movimento enfraquecera. A esquerda perdeu as eleições da ECA para um grupo anarquista, Os Picaretas. Teve um show punk na recepção, com Cólera e Ratos do Porão. Numa festa chamada Gato Morto. Meus novos colegas me levavam a shows punks do Sesc e da PUC, à boate punk Napalm, depois Carbono 14. Eu namorava a garçonete do Carbono, que foi para o Rose. Aliás, frequentei tudo isso porque ela me levou, me ensinou, me aliciou. Eu bebia no Madame Satã, consolidava a amizade com as bandas punks, as de Brasília, não perdia um show do IRA!, bebia com Renato Russo, que era amigo dela, enxugávamos uma merda de uma garrafa de um uísque brasileiro numa noite, escrevia letras de música e poemas em jornais universitários. Escrevi em fanzines punks, como o SPALT.
Na verdade, não contribuí efetivamente com quase nada para a queda da ditadura. Minha mãe e minhas irmãs, sim. Apenas escrevi expondo meu desencanto. Que poderia ser contra a ditadura, contra o capitalismo, contra a existência. Descontei. Desabafei.
No mais, a morte de Boilesen na manhã de 15 de abril de 1971, na alameda Casa Branca, não serviu para nada. Não apressou o fim da ditadura. Talvez tenha até a endurecido mais. Mas vai falar isso para quem foi torturado graças a ele... A luta armada não apressou o fim da ditadura. Um amigo me propôs matar os que mataram o meu pai. Era de Crato, no Ceará. Dizia ter ligações com cangaceiros, justiceiros. Bastava eu dar os nomes. Bastava eu apontar. Meu amigo diletante, poeta-jornalista, bebum dos bons, insistia. Mando matar. Nem aventei a possibilidade. A redemocratização será a morte deles. Uma denúncia da Justiça, um julgamento posterior e a condenação legítima, elas virão.
Não vieram.
A luta pela Anistia começou em 1977, 78, 79. Em 7 de novembro de 1978, minha mãe participou de uma mesa no Tuca, teatro da PUC-SP, sobre “Mortos e Desaparecidos”, com a Clarice Herzog. Em 27 de junho de 1979, foi à outra mesa-redonda, agora no auditório do Tuquinha, do Comitê Brasileiro de Anistia, seção de São Paulo.
A “operação Anistia”, que começou na posse do Figueiredo para abafar os movimentos sociais e propor uma Lei de Anistia que anistiasse os torturadores, recebeu retoques finais em 1979: a aprovação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. O CDDPH passou a atuar em violações presentes de direitos humanos, tentando eliminar novos abusos, que implicaria “esquecer o passado” com o arquivamento de processos sobre tortura e desaparecimentos, dentre eles o caso do meu pai. A reação dos familiares foi imediata. Saiu nos jornais:
Eunice Paiva, que já se considera viúva de Rubens Paiva, baseada na Lei de Anistia, pediu declaração de “morte presumida” do marido e classificou a decisão do CDDPH como uma confissão pública de coautoria do governo atual nos crimes cometidos contra presos políticos pela repressão. Ela ainda disse que o esquecimento proposto pelo ministro da Justiça, e aceito pela maioria submissa do CDDPH, nada mais é do que condescendência criminosa, proposta por motivos óbvios e que, um dia, também serão apurados.
Não foram.