Strömstad, 1924
No minuto em que seu pai entrou, uma mão gelada pareceu agarrar o coração de Agnes. Algo estava errado. Algo estava muito errado. August parecia ter envelhecido vinte anos desde a última vez que o vira, e ela instantaneamente entendeu que devia estar morrendo. Era a única coisa que poderia ter causado rugas tão profundas no rosto de seu pai em tão pouco tempo.
Ela pôs a mão no peito e se preparou para o que estava a ponto de ouvir. Mas havia algo que não se encaixava. A tristeza que esperava ver nos olhos do pai estava ausente; em vez disso, eles estavam pretos de raiva. Era uma estranha resposta, para dizer o mínimo. Por que ficaria bravo por ela estar morrendo?
Apesar de ser baixo, ele se aproximou com um ar de ameaça do lado da cama onde estava deitada, e Agnes instintivamente fez o máximo para parecer lamentável. Isso sempre havia funcionado melhor nas poucas ocasiões em que seu pai tinha ficado realmente bravo com ela. Mas parecia não estar dando certo dessa vez, e a sensação de inquietação aumentou. Depois pensou em algo. Mas era tão inacreditável e espantoso que instantaneamente o descartou.
Mas o pensamento voltou, sem misericórdia. Depois viu que os lábios de seu pai estavam se movendo numa tentativa de falar, mas ele estava tão bravo que suas cordas vocais eram incapazes de produzir som. Foi quando percebeu, aterrorizada, que a louca especulação era agora uma possibilidade palpável.
Lentamente, ela se afundou ainda mais nas cobertas. Quando a mão de seu pai, de repente, desceu com força sobre seu rosto, e ela sentiu a pontada de uma dor inesperada, seus receios se transformaram em certeza.
– Sua, sua... – gaguejou seu pai, desesperadamente procurando as palavras que estavam tentando sair de seus lábios. – Sua, sua vagabunda! Quem... o quê? – ele continuou gaguejando. De sua posição reclinada, viu como ele engolia em seco repetidamente, como se tentasse evitar que as palavras saíssem. Nunca tinha visto seu robusto e bondoso pai dessa maneira antes, e achou a visão aterrorizante.
Agnes também sentia um espanto incrível em meio ao medo. Como isso podia ter acontecido? Eles tinham tomado as precauções necessárias e sempre paravam a tempo. Nas suas piores fantasias, ela nunca tinha imaginado que poderia terminar encrencada. Claro que já tinha ouvido falar em outras garotas que ficavam grávidas por acidente, mas sempre pensava com desdém que elas não tinham se cuidado. Deixavam o homem ir mais longe do que devia.
E agora aí estava ela. Seus pensamentos voavam febrilmente em busca de uma solução. As coisas sempre tinham funcionado para ela. Claro que essa situação poderia ser resolvida também. Precisava fazer seu pai entender, como sempre tinha conseguido quando se metia em alguma confusão. Claro, nunca tinha sido algo tão sério, mas durante toda a sua vida ele a tinha salvado e facilitado seu caminho. Tinha de fazer o mesmo agora. Ela se sentia cada vez mais calma depois que passou o choque inicial. Naturalmente, a situação poderia ser solucionada. Papai ficaria bravo por um tempo, podia aguentar isso, mas ele a ajudaria a se livrar desse problema. Havia lugares aonde se podia ir fazer algo para resolver isso, era só uma questão de dinheiro e, pelo menos com isso, ela não precisava se preocupar.
Feliz por ter elaborado um plano, abriu a boca para falar e começar a bajular seu pai. Mas suas palavras foram silenciadas antes de poder começar, quando a mão de August novamente acertou seu rosto com um tapa. Agnes olhou para ele incrédula. Nunca imaginara que ele levantaria a mão para ela, e agora tinha lhe dado dois tapas. A injustiça de seu tratamento engendrou uma raiva dentro dela que a fez se sentar na cama e novamente abrir a boca para tentar explicar. Plaf! Um terceiro tapa acertou seu rosto já quente, e Agnes sentiu lágrimas de ódio encherem seus olhos. Por que tratá-la dessa forma? Em resignação, deitou de novo no travesseiro e olhou confusa e brava para seu pai, que pensou conhecer tão bem. Mas o homem diante dela era um estranho.
Lentamente, ela começou a perceber que sua vida poderia estar prestes a mudar para pior.
***
Uma batida cuidadosa na porta fez Niclas olhar para cima. Não esperava nenhum paciente e estava muito ocupado com todos os papéis que tinham se acumulado na sua mesa. Ele franziu a sobrancelha, aborrecido.
– Sim? – Seu tom era desdenhoso, e a pessoa do lado de fora pareceu hesitar. Mas então a maçaneta se moveu, e a porta se abriu lentamente.
– Estou interrompendo?
Sua voz era medrosa, como ele lembrava, e a expressão de desdém desapareceu imediatamente.
– Mãe? – Niclas pulou da cadeira e olhou espantado para a pequena mulher parada hesitante na porta. Ela sempre despertava os instintos protetores dele e, nesse momento, ele só queria correr e abraçá-la. Mas sabia que, com os anos, ela se tornara precavida com essas demonstrações abertas de afeto. Só a deixaria embaraçada, então Niclas se conteve e esperou que ela tomasse a iniciativa.
– Posso entrar? Ou você está ocupado? – Ela olhou para a pilha de papéis na frente dele e fez um movimento para sair.
– Não, claro que não, entre, entre. – Ele sentiu-se um estudante e correu até a mesa para puxar uma cadeira para ela. Ela se sentou com cuidado, na borda da cadeira e olhou ao redor, nervosa. A mãe nunca o tinha visto em seu consultório, então ele compreendeu que parecia estranho vê-lo nesse ambiente. Na verdade, ela quase não o tinha visto em todos esses anos, então só isso já devia parecer estranho. Como se tivesse se metamorfoseado de um garoto de dezessete anos em um adulto num instante. Esse pensamento fez a raiva começar a crescer no peito. Havia tantas coisas que ambos tinham se negado, ele e sua mãe, por causa daquele velho nojento. Graças a Deus Niclas tinha conseguido escapar dele, mas, quando observou a mãe, percebeu que os anos não tinham sido generosos com ela. Viu a mesma expressão atemorizada e submissa em seu rosto que existia quando ele a tinha deixado, agora piorada por todas as novas rugas adquiridas.
Niclas se sentou numa cadeira perto da dela, mas não muito perto, e esperou que a mãe começasse. Ela realmente não sabia o que tinha vindo falar. Depois de um momento de silêncio, disse:
– Sinto muito, muito mesmo pela garota, Niclas. – Foi tudo que falou, e tudo que ele conseguiu fazer foi assentir.
– Não a conheci... mas gostaria de ter conhecido. – Sua voz tremeu um pouco, e ele sentiu as emoções que estavam sob a superfície. Deve ter sido muito difícil para ela vir até aqui. Até onde sabia, ela nunca tinha desobedecido as ordens de seu pai antes.
– Ela era maravilhosa – ele disse e, apesar de ter um nó na garganta, não sentiu nenhuma lágrima se formar. Tinham sido tantas nos últimos dias que achava que todas já tinham sido choradas. – Ela tinha os seus olhos, mas não sei de onde vieram os cabelos ruivos.
– Minha avó tinha os cabelos ruivos mais lindos que já se viu. Deve ter sido dela – sua mãe hesitou antes de falar o nome, mas finalmente conseguiu – que Sara herdou os cabelos ruivos.
Asta olhou para as mãos em seu colo.
– Eu a vi alguma vezes. Ela e o garoto. Também vi sua esposa quando estava caminhando com eles. Mas nunca disse nada. Nós apenas trocamos olhares. Agora eu gostaria de ter falado com a garota pelo menos uma vez. Ela sabia que tinha uma avó aqui?
Niclas assentiu.
– Eu falei muito sobre você. Ela sabia seu nome, e nós também mostramos suas fotos. As poucas que levei comigo quando... – Ele deixou as palavras morrerem. Nenhum dos dois ousou pisar no campo minado que tinha levado ao afastamento entre eles.
– É verdade o que eu ouvi? – Ela levantou os olhos e olhou direto para ele pela primeira vez. – Alguém machucou a garota?
Ele tentou responder, mas as palavras ficaram presas na garganta. Havia tantas coisas que queria contar, tantos segredos que pesavam como uma pedra gigante em seu peito. Só queria jogar-se aos pés dela. Mas não podia. Muitos anos tinham se passado.
Então vieram as lágrimas que ele achou que tinham acabado. Elas escorriam pelo seu rosto. Não ousou olhar para sua mãe, mas os instintos dela suplantaram todas as repreensões e proibições e não demorou para Niclas sentir os frágeis braços dela ao redor de seu pescoço. Era tão pequena, e ele, tão grande, mas naquele momento a situação parecia ao contrário.
– Está tudo bem. – Com mãos práticas, ela massageava suas costas, e ele sentia os anos voltarem e se tornou uma criança outra vez. Amparado pelas mãos de sua mãe. Seu hálito quente e a voz amorosa em seu ouvido, as garantias de que tudo ficaria bem. Que os monstros embaixo da cama estavam realmente apenas em sua imaginação e desapareceriam se ele mandasse. Mas dessa vez o monstro estava ali para ficar.
– O papai sabe? – ele perguntou com a boca no ombro dela. Niclas sabia que não devia perguntar, mas não conseguiu evitar. Sentiu que ela ficou rígida imediatamente e se afastou do abraço consolador. A mágica havia sido quebrada, e ela sentou-se novamente parecendo uma velha senhora esgotada e cinzenta, que tinha ficado ao lado do pai quando Niclas mais precisou dela. Seus sentimentos eram tão ambivalentes. Ele gostava tanto dela, mas ainda estava cheio de amargura e desprezo porque ela não o defendeu quando mais precisou.
– Ele não sabe que estou aqui – foi tudo que ela disse, e Niclas viu que, mentalmente, ela já tinha saído pela porta. Mas não podia deixá-la ir ainda. Mesmo que fosse só por um momento, queria que a mãe ficasse ali e sabia como conseguir isso.
– Quer ver fotos das crianças? – perguntou sutilmente, e ela concordou.
Foi até a mesa e abriu a primeira gaveta. Pegou o álbum de fotos e entregou, sem querer olhar. Ainda não estava pronto para isso.
Com reverência, Asta olhou as fotos, sorrindo com tristeza a cada imagem. O que ela tinha perdido de repente se tornou incrivelmente tangível.
– Como são adoráveis – falou com orgulho de avó na voz. Mas estava misturado com tristeza, pois uma das crianças tinha morrido.
– Você usa o sobrenome de sua esposa? – ela perguntou hesitante, colocando o álbum no colo.
– Uso – disse Niclas, os olhos fixos em algum ponto atrás dela. – Não quis manter o nome dele.
Ela simplesmente assentiu, triste.
– Você não precisa voltar a trabalhar? – ela acrescentou desconfortável, olhando para ele sentado atrás de sua mesa.
Niclas mexeu nos papéis à sua frente e engoliu com força as últimas lágrimas.
– Não vi nenhuma alternativa se quisesse sobreviver – disse.
Sua mãe se contentou com essa explicação, mas a preocupação em seus olhos aumentou.
– Só não se esqueça dos que ainda estão aqui – ela disse amorosa, acertando o ponto fraco no peito com incrível precisão.
Mas ele sentia como se fosse duas pessoas. Uma que queria estar em casa com Charlotte e Albin e nunca mais deixá-los, e outra que queria escapar para o trabalho, longe da dor que piorava quando era compartilhada. Acima de tudo, não queria ver sua própria culpa espelhada no rosto de Charlotte. Era por isso que seu instinto de fuga tinha, pelo menos agora, vencido a batalha. Queria contar tudo isso para sua mãe. Queria colocar sua cabeça no colo dela, mesmo sendo adulto, e contar tudo, depois ouvir suas palavras garantindo que tudo ficaria bem. Mas o momento passou e, depois de colocar o álbum na mesa, ela se levantou e caminhou até a porta.
– Mãe?
– Sim? – ela se virou.
Niclas entregou o álbum de foto para ela.
– Pode levar, temos muito mais fotos.
Asta hesitou, mas depois aceitou, como se fosse uma joia preciosa e frágil. Ela o colocou com cuidado na bolsa.
– É melhor que as esconda bem – ele falou baixinho com um sorriso amargo, mas ela já tinha fechado a porta atrás de si.
Ele olhou para o teto e deu um pequeno chute na parede. Não conseguia entender como aquilo podia ter terminado assim. Por que ele? E por que não se opôs quando ainda era possível?
Os pôsteres na parede o faziam lembrar de quem queria ser. Normalmente os heróis que o cercavam conseguiam motivá-lo a lutar mais, a fazer um esforço maior. Hoje, estavam simplesmente deixando-o louco. Nunca teriam aguentado essa merda. Teriam se recusado imediatamente. Feito o que devia ser feito. Por isso eram quem eram hoje. Por isso eram heróis. Ele mesmo era somente uma merdinha e nunca seria nada. Exatamente como Rune sempre dissera. Não quis acreditar nele quando disse aquilo. Tinha ficado bravo e pensado que, por Deus, ia mostrar a Rune que ele estava errado. Ia mostrar a ele que era um herói e depois Rune se sentiria mal por ter dito aquelas palavras duras. Todas as humilhações. Depois seria ele quem estaria no comando, e Rune teria de implorar de joelhos para conseguir um minuto de seu tempo.
A pior coisa era que no começo até gostava de Rune. Quando sua mãe o conheceu, achou que ele era um cara legal. Dirigia um carrão americano e tinha amigos que andavam de moto, que às vezes o deixavam andar na garupa. Mas depois eles se casaram, e foi quando tudo começou a ficar diferente. De repente, Rune e sua mãe tiveram de mostrar que eram uma família direita, com uma casa, um Volvo e até uma porra de um trailer. Os amigos com motos desapareceram, foram trocados por outros Svensson normais, e havia jantares com outros casais nas noites de sábado. E, claro, precisavam ter um filho. Tinha ouvido Rune falar isso para um dos casais vizinhos chatos. Que precisavam ter um filho dos dois. Naturalmente, ele adorava Sebastian, falou, mas depois acrescentou, com um tom de voz sério, que mesmo assim não era a mesma coisa que ter o próprio filho. Então quando Rune e sua mãe não conseguiram produzir seu próprio filho, Rune descontou no enteado. Sebastian precisou aguentar a frustração de ele e a esposa nunca terem conseguido conceber um filho. E quando a mamãe morreu de câncer há alguns anos, tudo piorou. Agora Rune estava realmente preso a uma criança que não era sua. Estava sempre falando isso, não importava quanto Sebastian tentasse mostrar que era grato por não ter sido enviado a algum lar adotivo quando sua mãe morreu. Rune insistiu em cuidar do garoto como se fosse dele. Mas às vezes Sebastian achava que se essa era a ideia de Rune de como cuidar do próprio filho, então era melhor que ele e a mamãe nunca tivessem conseguido ter um bebê.
Não que Rune batesse nele ou algo assim. Não, um Svensson decente e comum como Rune nunca faria isso. Mas, às vezes, até preferia que batesse. Então Sebastian teria algo mais tangível por que odiá-lo. Em vez disso, só abusava mentalmente – algo que não podia ser percebido em sua aparência física.
Enquanto olhava para o teto, Sebastian percebeu num instante de clareza por que tinha chegado à atual situação. Apesar de tudo, amava o padrasto. Rune era o único pai que conhecera, e a única coisa que Sebastian queria era agradá-lo e ser amado também. E era exatamente por isso que estava na merda. Entendeu isso. Não era estúpido. Mas ser esperto tampouco tinha ajudado. Continuava ali, sem saída.
– Que loucura vocês estão falando? – o rosto de Kaj tornara-se vermelho e parecia que ele ia sair correndo como um touro enlouquecido até a casa da vizinha. Patrik discretamente bloqueou seu caminho e levantou as mãos num gesto de calma.
– Podemos nos sentar e conversar sobre isso em paz e silêncio?
A fúria parecia evitar que as palavras fossem registradas no cérebro de Kaj. Patrik e Gösta trocaram um olhar. De repente, não parecia tão inacreditável que ele pudesse ter atacado Lilian. Mas era perigoso pensar dessa forma e, até terem ouvido a versão de Kaj, era melhor não tirar nenhuma conclusão.
Depois que as palavras de Patrik tiveram alguns segundos para penetrar em sua mente, Kaj se virou e entrou em casa. Evidentemente esperava que Patrik e Gösta o seguissem, o que aconteceu depois de tirarem os sapatos. Quando entraram na cozinha, encontraram Kaj olhando para eles, encostado no balcão com os braços beligerantemente cruzados sobre o peito. Soltou uma mão por um momento e apontou para as cadeiras. Obviamente, não estava planejando se sentar.
– O que aquela velha bruxa disse agora? Que eu bati nela? É isso que ela está afirmando? – Seu rosto ficou vermelho de novo, e por um instante Patrik temeu que o homem sofreria um ataque do coração bem na frente deles.
– Recebemos uma queixa de agressão, sim – Gösta disse calmamente, antes de Patrik.
– Ela fez uma ocorrência, aquela puta! – gritou Kaj, e pequenas gotas de suor começaram a aparecer em sua testa.
– Oficialmente, Lilian não fez nenhuma ocorrência, ainda não – acrescentou Patrik. – Queríamos uma chance de conversar calmamente com você primeiro, então poderíamos chegar ao fundo disso tudo. – Olhou para seu bloco e continuou. – Então você realmente foi até a casa de Lilian Florin mais ou menos há uma hora?
Kaj assentiu relutante.
– Só queria ouvir que merda ela quis fazer quando me apontou como suspeito no assassinato daquela criança. Ela já fez um monte de coisas desprezíveis nesses anos todos, mas algo tão... – Mais gotas de suor apareceram, e sua raiva o deixou sem palavras.
– Então você entrou direto na casa dela? – Gösta perguntou. Ele também estava começando a parecer preocupado com a saúde de Kaj.
– Sim, que droga, se eu batesse ela nunca me deixaria entrar. Só queria ter uma chance de pegá-la desprevenida. Perguntar com quem ela achava que estava mexendo, merda. – Uma nota de ansiedade agora surgia na voz de Kaj pela primeira vez.
– E aí, o que aconteceu? – Patrik estava tomando nota enquanto Kaj falava.
– Foi só isso! – Kaj jogou suas mãos para frente. – Eu provavelmente gritei um pouco, admito isso, e ela me mandou sair de sua casa. Como tinha dito o que queria, fui embora.
– Então você não bateu nela?
– Provavelmente queria dar um soco no seu nariz, mas não sou tão estúpido.
– Isso é um não? – perguntou Patrik.
– É um não – respondeu Kaj carrancudo. – Eu não encostei nela e, se a velha afirma que encostei, está mentindo. O que não me surpreenderia nem um pouco. – Agora ele estava começando a soar realmente preocupado.
– Alguém pode corroborar sua história? – perguntou Gösta.
– Não, ninguém. Eu vi Niclas sair de manhã e só fui lá depois que Charlotte saiu com o bebê no carrinho. – Ele limpou o suor com uma mão e a passou na perna da calça.
– Bom, infelizmente é sua palavra contra a dela – disse Patrik. – E Lilian tem marcas no braço.
Kaj estava murchando a cada palavra que Patrik dizia. Sua agressividade inicial tinha sido substituída por resignação. De repente, ele se levantou.
– E o marido dela? Ele estava na casa. Droga, eu esqueci completamente dele. É como um fantasma. Ninguém nunca vê o Stig. Mas ele devia estar na casa. Talvez tenha visto ou ouvido algo.
O pensamento renovou sua coragem, e Patrik olhou para Gösta. Eles não tinham pensado em Stig. Não tinham nem falado com ele sobre a morte de Sara. Kaj estava certo. Stig tinha estado praticamente invisível para a investigação até agora. Tinham esquecido completamente dele.
– Vamos conversar com ele também – disse Patrik. – Depois veremos o que acontece. Mas se ele não acrescentar nada, as coisas não vão ficar boas para você se Lilian decidir registrar a ocorrência...
Ele não precisava explicar seu raciocínio. Kaj estava bem consciente das possíveis consequências.
Charlotte caminhava sem destino pela cidade. Albin dormia tranquilamente em seu carrinho. Desde que parou de tomar os sedativos, quase não tinha conseguido olhar para ele. Mas sabia o que tinha de fazer. Ela o trocava, vestia e alimentava, mas mecanicamente, sem qualquer sentimento. E se acontecesse de novo? Imagine se algo acontecesse com ele também. Ela nem sabia como conseguiria viver sem Sara. Colocou um pé na frente do outro, forçando-se a avançar. Mas na verdade só queria se enfiar num buraquinho no meio da rua e nunca mais sair. Não podia fazer isso, nem podia se afundar na bruma dos medicamentos de novo. Porque, apesar de tudo, Albin ainda estava ali. Apesar de não conseguir olhar para ele, sentia em todos os nervos de seu corpo que ainda tinha um filho que estava muito vivo. E para o bem dele, ela tinha de continuar respirando. Mas era muito difícil.
E também havia Niclas, que tinha voltado ao trabalho. Apenas três dias depois de sua filha ter sido assassinada, ele já estava de volta ao consultório, tratando de resfriados e pequenos machucados. Talvez até estivesse conversando casualmente com os pacientes, flertando com as enfermeiras e desfrutando do papel de médico poderoso. Charlotte sabia que estava sendo injusta. Sabia que Niclas sofria tanto quanto ela. Só desejava que pudessem compartilhar a dor, em vez de tentarem separadamente encontrar uma razão para continuar respirando por mais um minuto e o seguinte e o seguinte. Não era o que ela queria, mas não conseguia deixar de sentir raiva e desdém porque ele a havia abandonado agora, quando mais precisava dele. Por outro lado, talvez não devesse esperar outra coisa. Quando pôde contar com ele? Quando Niclas foi algo mais do que uma criançona que contava com ela para resolver todas as deprimentes tarefas que faziam parte da vida diária da maioria das pessoas? Mas não da dele. Ele devia ter o direito de brincar por toda a vida. Fazer somente o que era divertido e agradável. Charlotte ficou surpresa por ele ter terminado a faculdade de Medicina. Ela nunca acreditou que o marido aguentaria passar por todos os estágios obrigatórios e os exaustivos turnos de trabalho. Mas as recompensas potenciais tinham, provavelmente, sido tentadoras o suficiente para mantê-lo motivado. Queria ser respeitado pelos outros. Uma pessoa feliz e bem-sucedida. Pelo menos aparentemente.
A única razão pela qual tinha ficado com ele era porque ocasionalmente via aquele outro homem. O que era vulnerável e conseguia mostrar o que estava sentindo. O que ousava revelar seu eu verdadeiro e não precisava manter seu charme ao máximo o tempo todo. Eram essas visões que a fizeram se apaixonar por Niclas, apesar de isso agora parecer ter acontecido há muito tempo. Nos últimos anos, essas ocasiões pareciam acontecer com cada vez menos frequência, e ela não sabia mais quem ele era ou o que queria. Às vezes, em seus momentos de fraqueza, tinha se perguntado se ele, na verdade, queria ter uma família. Para ser brutalmente honesta consigo mesma, acreditava que se tivesse a escolha, ele teria preferido uma vida sem obrigações familiares. Mas devia estar gostando um pouco disso ou não teria ficado tanto tempo. Durante os recentes dias negros, ela tinha esperado, em seus momentos egoísmo, que pelo menos isso pudesse aproximá-la de Niclas. Mas estava errada. Agora eles estavam mais distantes do que antes.
Sem perceber, Charlotte tinha caminhado até o Acampamento de Fjällbacka e agora estava parada na frente da casa de Erica. A visita de sua amiga no dia anterior fora muito importante, mas Charlotte ainda tinha dúvidas. Ela passara toda a sua vida tentando ocupar o mínimo de espaço possível, nunca exigindo nada para si, nunca causando nenhum problema. Entendia como sua dor afetava as outras pessoas e não tinha certeza se queria ser um peso para Erica. Ao mesmo tempo, realmente precisava ver um rosto amigo. Queria conversar com alguém que não se afastasse ou, como no caso de sua mãe, aproveitasse a oportunidade para dizer o que ela deveria ter feito.
Albin tinha começado a se contorcer, e ela cuidadosamente o tirou do carrinho. Ainda sonolento, ele olhou ao redor e ficou bravo quando Charlotte bateu na porta diante deles. Uma mulher de meia-idade que ela não conhecia abriu a porta.
– Olá? – disse Charlotte com incerteza, mas depois percebeu que devia ser a mãe de Patrik. Uma vaga lembrança de alguma época distante antes da morte de Sara flutuou até a superfície e a fez lembrar de que Erica tinha mencionado uma visita de sua sogra.
– Olá, está procurando a Erica? – perguntou a mãe de Patrik. Sem esperar uma resposta, ela deixou Charlotte entrar.
– Ela está acordada? – perguntou Charlotte.
– Está sim, está dando de mamar para a Maja. Eu parei de contar quantas vezes ela já fez isso hoje. Bom, acho que não entendo os costumes modernos. No meu tempo, as crianças eram alimentadas a cada quatro horas e nunca mais do que isso, e essa geração certamente não tem nada do que reclamar. – A mãe de Patrik continuou falando, e Charlotte a seguiu nervosa. Depois de ser tratada com todo cuidado por vários dias, parecia estranho ouvir alguém falar num tom de voz normal. Depois, viu que a sogra de Erica talvez tenha percebido quem ela era e a normalidade desapareceu, tanto de sua voz quanto de seus movimentos. Ela colocou a mão na boca e disse:
– Perdoe-me, não percebi quem era você.
Charlotte não sabia o que responder. Sua única reação foi abraçar Albin.
– Eu realmente peço desculpas... – A sogra de Erica parecia dançar, indo de uma perna para a outra, e aparentava querer estar em qualquer outro lugar, menos na presença de Charlotte.
Era assim que ia ser a partir de agora?, pensou Charlotte. As pessoas se afastando como se ela tivesse a peste, sussurrando e apontando para suas costas e dizendo: “Lá vai a mulher cuja filha foi assassinada”, mas sem ousar olhá-la nos olhos. Talvez fosse por nervosismo, porque não tinha ideia do que falar ou talvez fosse algum tipo de medo irracional de que tragédias fossem contagiosas e pudessem se espalhar por sua própria vida se se aproximassem muito.
– Charlotte? – Erica chamou da sala, e a velha ficou obviamente aliviada por ter uma desculpa para sair. Devagar e um pouco hesitante, Charlotte foi ver Erica, que estava sentada na poltrona dando o peito a Maja. A cena pareceu tanto familiar quanto estranhamente remota. Quantas vezes nos últimos dois meses ela viera e encontrara a mesma cena? Mas esse pensamento também fazia aparecer a imagem de Sara. A última vez que estivera ali, Sara tinha vindo junto. De um ponto de vista puramente intelectual, sabia que tinha sido no último domingo, mas ainda não conseguia entender aquilo direito. Conseguia ver como Sara pulara no sofá branco, com seus longos cabelos ruivos voando pelo rosto. Lembrava-se de ter dado uma bronca nela. Falado firme para que parasse. Tudo parecia tão pequeno agora. Que mal ela poderia causar se pulasse um pouco nas almofadas? O pensamento a deixou tonta, e Erica precisou se levantar para ajudá-la a se sentar na poltrona mais próxima. Maja reclamou quando o peito de Erica foi retirado repentinamente de sua boca, mas Erica ignorou os protestos da filha e a colocou no berço.
Com os braços de Erica ao seu redor, Charlotte ousou fazer a pergunta que permanecera em seu subconsciente desde que a polícia chegou com a notícia da morte de Sara na segunda. Ela perguntou:
– Por que eles não localizaram o Niclas?