Capítulo 13

Strömstad, 1924

Anders tinha acabado de trabalhar no pedestal da estátua quando o capataz o chamou na pedreira. Ele suspirou e franziu o rosto, não gostava que perturbassem sua concentração. Mas claro que precisava obedecer, como sempre. Colocou as ferramentas cuidadosamente na caixa perto do bloco de granito e foi ouvir o que o capataz tinha a dizer.

O homem gordo estava mexendo nervosamente no bigode.

– O que você fez agora, Andersson? – disse ele, meio brincando, meio preocupado.

– Eu? O que foi? – disse Anders, removendo as luvas de trabalho e olhando espantado.

– O escritório central está chamando você. Precisa descer lá. Agora mesmo.

Droga, Anders xingou em silêncio. Havia algo mais que precisava ser mudado na estátua agora, na última hora? Aqueles arquitetos ou “artistas”, ou qualquer droga que escolhessem se chamar, não tinham ideia do que estavam fazendo quando se sentavam em seus estúdios e redesenhavam seus esboços. Depois esperavam que o escultor conseguisse fazer as mudanças na pedra com a mesma facilidade. Eles não entendiam que, desde o começo, tinha planejado a direção dos cortes e marcado os lugares onde tinha de cortar, com base no desenho original. Uma mudança no esboço mudaria todo o seu ponto de partida e, no pior dos casos, a pedra poderia quebrar, o que faria que todo o trabalho tivesse sido em vão.

Mas Anders também sabia que não adiantava protestar. Era o cliente que tomava as decisões. Ele era somente um escravo sem rosto que devia realizar todo o trabalho duro que a pessoa que tinha desenhado a estátua não podia ou não queria fazer.

– Bom, acho que vou ter de descer e ouvir o que querem – disse Anders com um suspiro.

– Pode não ser nada muito importante – disse o capataz, que sabia precisamente o que Anders temia e mostrava um pouco de solidariedade, para variar.

– Bom, não tem por que adiar – respondeu Anders antes de sair.

Um pouco depois, bateu de leve na porta do escritório e entrou. Limpou o melhor que pôde os sapatos, mas percebeu que não fazia muita diferença, já que suas roupas estavam cheias de pó e lascas de granito, e suas mãos e seu rosto também estavam sujos. Mas tinha sido obrigado a descer rapidamente, então teriam de aguentar. Juntou sua coragem e seguiu o homem da recepção até a sala do diretor.

Uma olhada rápida ao redor da sala fez seu coração quase parar. Entendeu imediatamente que a reunião não tinha nada a ver com a estátua. Questões muito mais sérias estavam prestes a ser discutidas.

Havia somente três pessoas na sala. O diretor estava sentado atrás de sua mesa, e todo o seu semblante irradiava um ódio controlado. Num canto, Agnes estava sentada olhando para o chão. E na frente da mesa estava sentado um homem que Anders não conhecia, olhando para ele com uma escancarada curiosidade.

Sem saber como agir, Anders avançou um metro na sala e parou com uma postura quase militar. Não importava o que estava por vir, ele aguentaria como homem. Cedo ou tarde, eles iam terminar nessa situação; só gostaria de poder ter escolhido as circunstâncias.

Procurou os olhos de Agnes, mas ela se recusava a olhar para cima e continuava mirando seus sapatos. Sentiu pena dela. Devia estar achando tudo isso incrivelmente difícil. Mas eles ainda tinham um ao outro e, depois que o pior da tormenta passasse, podiam começar uma vida juntos.

Anders passou a olhar calmamente para o homem atrás da mesa. Esperou o pai de Agnes falar. Demorou bastante tempo até que isso acontecesse, e os ponteiros do relógio pareciam se mover incrivelmente devagar. Quando August Stjernkvist finalmente falou, sua voz tinha um tom frio e metálico.

– Entendo que você e minha filha têm se encontrado secretamente.

– As circunstâncias nos forçaram a isso, sim – respondeu Anders calmamente. – Mas nunca tive nada além de intenções honradas com relação a Agnes – ele continuou, olhando direto para Stjernkvist. Por um segundo, pensou ter visto surpresa no rosto do diretor. Aparentemente, essa não era a resposta que ele esperava.

– Entendo, bem. – Stjernkvist limpou a garganta para ganhar tempo e decidir como lidar com a declaração. Depois sua raiva voltou.

– E como você pretendia fazer isso? Uma garota rica e um escultor pobre. Você é tão estúpido a ponto de acreditar que isso seria possível?

Anders titubeou frente ao tom de desprezo na voz do homem. Ele tinha sido estúpido? Toda a sua certeza tinha começado a perder força antes que a raiva o bombardeasse, e ele percebesse de repente como a ideia parecia absurda quando dita em voz alta. Obviamente, isso nunca seria possível. Ele sentiu o coração se partindo aos poucos em vários pedaços e procurou desesperadamente o olhar de Agnes. Seria o fim? Ele nunca mais a veria? Ela ainda não tinha levantado os olhos.

– Agnes e eu nos amamos – ele disse baixinho, ouvindo como parecia um homem condenado oferecendo suas últimas palavras de defesa.

– Conheço minha filha bastante melhor do que você, rapaz. E a conheço muito melhor do que ela acha. Claro, eu a mimei e dei muito mais liberdade do que deveria ter recebido, mas também sei que é uma garota ambiciosa. Nunca teria sacrificado tudo por um futuro com um operário.

As palavras o feriram como fogo, e Anders queria gritar que ele estava errado. Seu pai não estava descrevendo a Agnes que ele conhecia, de jeito nenhum. Ela era boa e doce e, acima de tudo, o amava tão apaixonadamente quanto ele a amava. Claro que estava pronta a fazer os sacrifícios necessários para que fossem capazes de viver juntos. Apenas com a força de vontade, tentou fazê-la levantar a cabeça e contar ao pai como eram as coisas, mas a garota permaneceu silenciosa e desdenhosa. Gradualmente, o chão começou a se abrir embaixo de seus pés. Não só estava a ponto de perder Agnes, entendia também que, dadas as condições, não poderia manter seu emprego.

Stjernkvist falou novamente, e então Anders achou que podia sentir um pouco de dor por trás da raiva.

– Mas as coisas tomaram uma nova luz repentina. Sob circunstâncias normais eu teria feito tudo o que pudesse para impedir que minha filha terminasse com um cortador de pedra. Mas vocês dois já evitaram isso me apresentando um fato consumado.

Espantado, Anders se perguntou do que estava falando.

Stjernkvist viu a expressão de espanto e continuou.

– Ela está esperando um filho, claro. Vocês dois devem ser completos idiotas por não terem pensado nessa eventualidade.

Anders respirou ofegante. Estava inclinado a concordar com o pai de Agnes. Eles tinham sido idiotas. Ele estava tão convencido quanto Agnes de que as precauções que tinham tomado eram suficientes. Agora tudo tinha mudado. Seus sentimentos estavam girando, deixando-o ainda mais confuso. Por um lado, não conseguia evitar uma sensação de felicidade ao pensar que sua amada Agnes estivesse grávida de seu filho; por outro, sentia vergonha diante do pai dela e entendia sua raiva. Ele também teria ficado furioso se alguém tivesse feito aquilo com sua filha. Anders esperou tenso que o diretor continuasse.

Pesaroso, August Stjernkvist disse, ainda se recusando a olhar para a filha.

– Naturalmente só há uma solução. Você vão se casar, e para isso eu chamei o juiz Flemming hoje. Ele vai casá-los imediatamente, e vamos lidar com as formalidades depois.

No seu canto, Agnes levantou a cabeça pela primeira vez. Para espanto de Anders, não viu nenhuma alegria em seus olhos, somente desespero. Seu tom de voz foi de súplica quando falou:

– Papai querido, por favor não me force a isso. Há outras formas de resolver o problema, e você não pode me forçar a casar com ele. Afinal, é apenas um simples... operário.

As palavras caíram como um chicote sobre o rosto de Anders. Ele parecia vê-la pela primeira vez, como se tivesse se metamorfoseado em outra pessoa.

– Agnes? – falou, como se pedisse para ela continuar sendo a garota que amava, apesar de já saber que todos os seus sonhos estavam agora desmoronando ao seu redor.

Ela o ignorou e continuou a apelar desesperadamente ao pai. Mas August nem olhava para a filha. Olhava somente para o juiz e dizia:

– Faça o que tem de fazer.

– Por favor, papai! – Agnes gritou, jogando-se aos pés dele num apelo dramático.

– Silêncio! – disse o pai, mirando-a com olhos frios. – Não seja ridícula. Não pretendo tolerar nenhum ataque histérico de sua parte. Você fez sua cama, agora deite-se nela! – gritou.

A filha se calou imediatamente.Com um olhar agonizante, Agnes levantou-se relutante e deixou o juiz realizar sua tarefa. Foi um casamento estranho, com a noiva parada a alguns metros de distância do noivo. Mas a resposta à pergunta do juiz foi “sim” dos dois, apesar de muita relutância de um lado e muita confusão do outro.

– Então, agora está feito – garantiu August depois do fim da cerimônia. – Claro que você não pode mais trabalhar aqui – completou. Anders simplesmente abaixou a cabeça para confirmar que esperava isso. Seu novo sogro continuou:

– Porém não importa que tenha se comportado mal, não posso deixar minha filha sem dinheiro; devo isso à mãe dela.

Agnes olhava tensa para ele, ainda com uma pequena esperança de que não teria de perder tudo.

– Arrumei uma vaga para você na pedreira em Fjällbacka. Um dos outros escultores pode terminar a estátua. Também paguei o primeiro mês de um quarto e cozinha num dos acampamentos. Depois desse mês você terá de se virar.

Agnes soltou um soluço. Levou a mão à garganta como se estivesse a ponto de engasgar, e Anders se sentiu a bordo de um barco que estava afundando aos poucos. Se ainda tivesse a esperança de construir algum futuro com Agnes, ela havia sido esmagada quando viu o desdém com que ela olhava para seu novo marido.

– Querido, adorado pai, por favor – ela rogou mais uma vez. – Você não pode fazer isso comigo. Eu prefiro me matar a me mudar para um acampamento fedido com esse homem.

Anders fez uma careta ao ouvir suas palavras. Se não fosse pela criança, ele teria virado as costas e partido, mas um homem de verdade cuidava de suas obrigações, não importa a dificuldade das circunstâncias. Isso tinha ficado marcado nele desde criança. Então permaneceu na sala que agora parecia sufocante e pequena, tentando imaginar seu futuro com uma mulher que obviamente o achava repulsivo. Ela seria sua companhia por toda a vida.

– O que está feito está feito – disse August para sua filha. – Esta tarde você vai juntar as coisas que conseguir carregar, depois a carruagem os levará a Fjällbacka. Escolha suas coisas com sabedoria. Provavelmente não terá muito uso para vestidos de festa – acrescentou com rancor, mostrando como sua filha o machucara. Sua alma nunca se recuperaria disso.

Quando a porta se fechou atrás deles, o silêncio era gigantesco. Então Agnes olhou para Anders com tanto ódio que ele precisou se controlar para não recuar. Uma voz interior o mandava fugir enquanto ainda havia tempo, mas seus pés não obedeciam. Parecia que estavam presos ao chão.

Uma premonição de que os tempos não seriam fáceis o fez sentir um arrepio.

***

Morgan viu os policiais chegarem e irem embora. Mas não perdeu tempo pensando o que queriam na casa dos pais. Ele não costumava se preocupar com essas coisas.

Ele se esticou. Agora era o fim de tarde e tinha ficado sentado quase o dia todo em seu computador, como sempre. Sua mãe se preocupava com o que isso acabaria fazendo com suas costas, mas ele não via nenhuma razão para se preocupar com isso antes que algo realmente acontecesse. Claro que suas costas tinham começado a se encurvar, mas não sentia dor. Enquanto o problema fosse somente de aparência, não era nada que seu cérebro registrasse. Para alguém que não era normal, de qualquer forma, não importava se estivesse um pouco encurvado também.

Era um alívio poder se sentar em paz. Agora que a garota tinha morrido, aquele elemento perturbador tinha desaparecido. Ele realmente não gostava dela. De verdade. Ela sempre vinha atrapalhar quando ele estava mais mergulhado em seu trabalho e fingia não ouvir quando ele a mandava embora. As outras crianças tinham medo dele. Contentavam-se em apontar o dedo para suas costas quando ele deixava as paredes de sua casa. Mas ela não. Ficava se intrometendo, exigindo atenção e recusando-se a ter medo quando ele gritava. Às vezes, ficava tão frustrado que gritava com as mãos sobre os ouvidos na esperança de que ela fosse embora. Mas ela só dava risada. Então era realmente ótimo que não voltasse mais. Nunca mais.

A morte o fascinava. Havia algo na finalidade daquilo que mantinha seu cérebro preocupado com a morte em todas as suas formas. Os jogos que ele adorava eram os que tinham muita morte. Sangue e morte.

Ocasionalmente, tinha pensado em tirar a própria vida. Não porque não queria mais viver, mas porque queria ver como era estar morto. No passado, havia revelado suas intenções. Disse abertamente aos pais que estava pensando em se matar. Era só uma questão de compartilhar informações. Mas a reação deles o fez manter esses pensamentos para si. Houve um rebuliço tremendo, seguido por mais visitas ao psicólogo, ao mesmo tempo que eles, ou pelo menos sua mãe, tinham começado a controlá-lo o tempo todo. Morgan não gostava disso.

Não entendia por que todo mundo tinha tanto medo da morte. Todas as emoções incompreensíveis que outras pessoas pareciam possuir se tornavam mais intensas e numerosas assim que a conversa tratava da morte. Ele realmente não conseguia entender. A morte era um estado do ser, assim como a vida. Por que uma coisa seria melhor do que a outra?

Mais do que tudo ele teria gostado de estar presente quando cortassem a garota na autópsia, poder observar. Ver o que as outras pessoas achavam tão aterrorizante. Talvez a resposta fosse encontrada quando eles a abrissem. Talvez a resposta estivesse no rosto das pessoas que a abrissem.

Às vezes, ele sonhava que estava deitado num necrotério. Numa daquelas mesas frias de metal, nada sobre seu corpo nu. Em seus sonhos, via o brilho do metal pouco antes que o patologista fizesse o corte reto em seu tórax.

Mas ele nunca contou a ninguém sobre esses pensamentos. Depois iriam pensar que ele era realmente louco, não somente diferente dos outros, um rótulo com o qual tinha aprendido a viver durante todos aqueles anos.

Morgan voltou ao código na tela do computador. Adorava a calma e o silêncio. Era realmente ótimo que ela tivesse morrido.

Lilian abriu a porta antes que eles tivessem chance de bater. Patrik suspeitava que ela tinha ficado esperando por eles desde que saíram. Na entrada havia um par de sapatos que não estava ali antes, e Patrik pressumiu serem da amiga de Lilian, Eva, que tinha vindo dar apoio moral.

– Então – disse Lilian. – O que ele falou em defesa própria? Podemos terminar aquele relatório para vocês o prenderem?

Patrik respirou fundo.

– Gostaríamos de conversar com seu marido primeiro, antes de continuar. Ainda há algumas coisas que precisam ser esclarecidas.

Por um segundo, ele viu incerteza no rosto dela, mas Lilian recuperou imediatamente sua expressão beligerante.

– Isso está absolutamente fora de questão. Stig está doente. Está no andar de cima descansando e não pode ser perturbado em nenhuma circunstância. – Sua voz soava tensa, com um toque de nervosismo. Patrik conseguiu perceber que Lilian também tinha se esquecido de Stig como uma potencial testemunha. Por isso era até mais importante que pudessem conversar com ele.

– Infelizmente, precisamos falar com ele. Tenho certeza de que poderá nos receber por um ou dois minutos – disse Patrik na voz mais autoritária que podia fazer, tirando a jaqueta ao mesmo tempo para enfatizar sua intenção.

Lilian estava a ponto de abrir a boca para protestar quando Gösta disse num tom de voz mais oficial.

– Se não pudermos falar com Stig, isso poderia ser considerado um caso de obstrução da justiça. Não ficaria nada bem no relatório oficial.

Patrik tinha dúvidas se a declaração de seu colega poderia ser sustentada a longo prazo, mas pareceu ter o efeito desejado em Lilian, que se virou furiosa para as escadas. Quando parecia que ela planejava subir com eles, Gösta colocou uma mão firme em seu ombro.

– A gente encontra o caminho, obrigado.

– Mas... – Seus olhos brilharam, procurando algum protesto válido, mas finalmente desistiu. – Bom, não digam que não avisei. Stig não está bem e, se ele piorar porque vocês vieram fazer um monte de perguntas, então...

Eles deixaram a declaração no ar enquanto subiam. O quarto de hóspedes estava à esquerda e, como Lilian tinha deixado a porta aberta, não foi difícil encontrar o marido. Stig estava instalado confortavelmente na cama, mas estava acordado e tinha virado a cabeça para a porta, esperando. A julgar pela altura da voz de Lilian, que agora falava na cozinha, sem dúvida percebeu que eles estavam subindo. Patrik entrou no quarto antes de Gösta e precisou se forçar para respirar. O homem deitado na cama estava tão frágil e esquelético que seus ossos sob as cobertas pareciam saltados. O rosto estava fundo, e a pele, cinza, tinha um aspecto pouco saudável. Os cabelos tinham ficado prematuramente brancos, deixando-o com aparência bem mais velha. Havia um odor nauseante de doença no quarto, e Patrik precisou suprimir o desejo de respirar somente pela boca.

Sem muita certeza, ele estendeu a mão para Stig e se apresentou. Gösta fez o mesmo e depois olharam ao redor do pequeno quarto procurando um lugar para se sentar. Pareceu muito importuno ficar de pé diante de Stig em seu leito. Ele levantou uma mão cinzenta e apontou para a ponta da cama.

– Infelizmente, isso é tudo que posso oferecer. – Sua voz estava seca e fraca, e Patrik ficou mais uma vez chocado, o homem parecia completamente exausto. Ele parecia doente demais para estar em casa. Deveria estar num hospital. Mas isso não era problema deles e, afinal, havia um médico morando ali.

Patrik e Gösta se sentaram cuidadosamente na ponta da cama. Stig sorriu um pouco quando a cama balançou, e Patrik pediu desculpas apressadamente, com medo de que isso causasse dor. Stig negou com um aceno de mão.

Patrik limpou a garganta.

– Antes de tudo, gostaria de começar oferecendo minhas condolências pela perda de sua neta. – Ele ouviu de novo como sua voz parecia formal, um tom que ele mesmo desprezava.

Stig fechou os olhos e pareceu se forçar a responder. As palavras obviamente mostravam as emoções que ele estava lutando para superar.

– Tecnicamente, Sara não era realmente minha neta – o avô dela, pai de Charlotte, morrera havia oito anos –, mas no meu coração ela sempre foi minha neta. Cuidei dela desde que era um bebê até... – ele fez uma pausa – agora no final. – Voltou a fechar os olhos, mas quando reabriu parecia ter recuperado a compostura.

– Conversamos um pouco com o resto da família – disse Patrik –, para descobrir exatamente o que aconteceu naquela manhã. Eu gostaria de saber se você ouviu algo em especial. Por exemplo, sabe a que horas Sara saiu de casa?

Stig balançou a cabeça.

– Eu tomo pílulas para dormir que são bem fortes e normalmente não acordo antes das dez. E nessa hora ela já tinha... saído. – Ele fechou mais uma vez os olhos.

– Quando perguntamos para sua esposa se ela podia pensar em alguém que quisesse machucar a Sara, ela falou do vizinho de vocês, Kaj Wiberg. Você concorda com essa afirmação?

– Lilian disse que Kaj matou a Sara? – Stig olhava para eles cético.

– Bom, não diretamente, mas ela indicou que haveria razões para que seu vizinho pudesse querer o mal da sua família.

Stig deu um longo suspiro.

– Bom, nunca entendi o que se passa entre esses dois. A briga já existia antes da minha chegada, antes de Lennart morrer. Para ser honesto, não sei quem jogou a primeira pedra e ouso dizer que Lilian é tão capaz de manter o fogo aceso quanto Kaj. Tentei ficar fora disso o máximo que pude, mas não é fácil. – Ele balançou a cabeça. – Não, realmente não entendo por que eles fazem essas coisas. Para mim, minha esposa é uma mulher doce e simpática, mas quando se trata de Kaj e da família dele, ela parece ter um desses pontos cegos. Sabe, às vezes acho que ela e Kaj gostam disso tudo. Que vivem para essa batalha. Mas isso parece absurdo. Por que alguém faria isso voluntariamente, com ações na Justiça e tudo? E isso custa dinheiro para nós. Kaj consegue pagar, mas nós não estamos tão bem, somos dois aposentados. Não, por que alguém iria querer ficar brigando dessa forma?

A pergunta era puramente retórica. Stig não estava esperando uma resposta.

– Eles já chegaram a se agredir fisicamente? – Patrik perguntou interessado.

– Deus do céu, não – disse Stig enfático. – Não são tão loucos. – Ele riu.

Patrik e Gösta trocaram um olhar.

– Você ouviu quando Kaj veio aqui mais cedo hoje?

– Sim, foi impossível deixar de ouvir – disse Stig. – Houve uma comoção medonha na cozinha, e ele estava gritando e tudo. Mas Lilian o botou para fora com o rabo entre as pernas. – Ele olhou para Patrik. – Realmente não entendo algumas pessoas. Quero dizer, independentemente dos problemas que tenham um com o outro, era de se esperar que ele mostrasse um pouco de compaixão, considerando o que aconteceu. Com Sara, quero dizer.

Patrik concordou que a compaixão deveria ser a resposta imperante nesses dias, mas, ao contrário de Stig, não colocou toda a culpa em Kaj. Lilian também havia demonstrado uma alarmante falta de respeito pela situação. Ele sentiu uma suspeita crescer dentro de sua mente. Continuou as perguntas, buscando uma confirmação.

– Você viu Lilian depois que Kaj veio aqui? – Segurou a respiração esperando a resposta.

– Claro – respondeu Stig, que estava tentando imaginar por que Patrik perguntaria aquilo. – Ela subiu com uma xícara de chá e me contou como Kaj havia se comportado vergonhosamente.

Agora Patrik estava começando a entender por que Lilian tinha ficado tão desconfortável quando eles disseram que queriam conversar com Stig. Ela havia cometido um erro tático ao se esquecer do marido.

– Você percebeu algo diferente nela? – perguntou Patrik.

– Diferente? O que você quer dizer? Ela parecia estar um pouco brava, mas não é de se estranhar.

– Nada que indicasse que tinha recebido um tapa no rosto?

– Tapa no rosto? Não, claro que não. Quem está fazendo essa acusação? – Stig parecia espantado, e Patrik quase sentiu pena dele.

– Lilian afirma que Kaj a atacou quando esteve aqui. E nos mostrou marcas, inclusive no rosto, para provar.

– Mas ela não tinha nenhuma marca no rosto depois que Kaj esteve aqui. Não entendo... – Stig se mexeu, o que o levou a fazer outra careta de dor.

A expressão de Patrik estava fechada quando olhou para Gösta e indicou que haviam terminado.

– Vamos descer e conversar novamente com sua esposa – ele falou, tentando se levantar com o máximo de cuidado.

– Está bem, mas quem poderia...?

Eles deixaram Stig deitado com um olhar confuso. Patrik suspeitou que ele provavelmente teria uma conversa séria com a esposa depois que os dois fossem embora. Mas primeiro eles é que iam ter uma conversa séria com Lilian.

Ele estava fervendo de raiva quando desceu. Não fazia nem três dias que Sara tinha morrido, e Lilian já estava tentando usar a morte da menina como arma na briguinha com Kaj. Era tão... insensível que ele quase não conseguia acreditar que fosse possível. O que o deixava mais furioso era o fato de ela estar fazendo a polícia perder tempo e recursos quando precisavam focar toda sua energia para encontrar a pessoa que tinha assassinado sua neta. O fato de Lilian não ter pensado nas consequências era tão desprezível e perverso que Patrik quase não podia encontrar palavras para descrever suas ações.

Quando entraram na cozinha, ele percebeu, pela expressão de Lilian, que ela sabia que a batalha estava perdida.

– Conseguimos algumas informações interessantes com Stig – disse Patrik, sombrio. A amiga de Lilian, Eva, olhou para eles curiosa. Claro que ela tinha engolido toda a história de Lilian, mas em poucos minutos também veria a amiga sob uma nova luz.

– Não entendo por que vocês insistem em incomodar alguém que está doente na cama, mas a polícia claramente não tem consideração por ninguém hoje em dia – Lilian falou numa tentativa fracassada de retomar o controle.

– Você está certa sobre isso – disse Gösta, sentando-se calmamente numa das cadeiras de frente para Lilian e Eva.

Patrik puxou a cadeira ao lado e se sentou também.

– Foi uma boa ideia conversar com Stig, porque ele deu uma declaração impressionante. Talvez você queira nos ajudar, explicando-a.

Lilian não perguntou que declaração seu marido tinha dado. Ficou esperando em um silêncio furioso que eles continuassem. Foi Gösta quem falou em seguida.

– Ele disse que você subiu até o quarto dele depois que Kaj saiu e que não havia nenhum sinal de que alguém tivesse batido em você. Nem você mencionou nada para ele. Pode nos explicar isso?

– Acho que demora um pouco para as marcas ficarem visíveis – Lilian murmurou numa corajosa tentativa de salvar a situação. – E eu não queria preocupá-lo, considerando sua condição. Tenho certeza de que vocês entendem isso.

Eles entenderam mais do que isso. E ela sabia.

Patrik assumiu.

– Espero que você perceba a seriedade de inventar falsas acusações.

– Não inventei nada – disse Lilian, levantando a voz. Num tom mais calmo, ela continuou: – Bom, talvez eu... tenha exagerado um pouco. Mas só porque ele esteve à beira de me atacar. Pude ver isso em seus olhos.

– E as marcas que nos mostrou?

Ela não disse nada, nem precisava. Eles já sabiam que Lilian havia provocado as marcas antes da chegada deles. Pela primeira vez Patrik tinha começado a se perguntar se havia algo realmente errado com essa mulher.

Obstinadamente, ela continuou:

– Mas foi só porque vocês precisavam de um motivo para levá-lo para interrogatório. Aí poderiam procurar em paz por provas de que ele ou Morgan assassinaram Sara. Sei que foi um deles e só queria ajudá-los a encontrar o caminho.

Patrik olhou de forma incrédula. Ou ela era mais obstinada do que qualquer outra pessoa que já tinha conhecido, ou era simplesmente louca. De qualquer forma, eles precisavam parar com essas idiotices.

– No futuro, gostaríamos que você nos deixasse fazer nosso trabalho. E pare de importunar a família Wiberg. Entendido?

Lilian assentiu, mas dava para ver que ela estava furiosa. Durante toda a conversa, a amiga parecia espantada. Ela deu uma desculpa e saiu com Patrik e Gösta. Aquela amizade sem dúvida havia sofrido um abalo.

Eles não discutiram a história de Lilian no caminho de volta à delegacia. A coisa toda era muito deprimente.

Stig sentiu uma pontada de inquietação ali deitado na cama. Tinha certeza de que Lilian ficaria brava, mas não sabia o que poderia ter feito. Ela parecia completamente normal quando subiu até o quarto. Simplesmente não tinha entendido toda essa besteira sobre Kaj atacá-la. Por que ela mentiria sobre algo assim?

Os passos na escada soavam tão furiosos quanto ele tinha temido. Por um instante, quis puxar as cobertas sobre a cabeça e fingir que estava dormindo, mas achou melhor não fazer isso. Claro que não podia ser algo tão importante. Ele simplesmente tinha contado a verdade; Lilian teria de entender. Além disso, a coisa toda devia ter sido um engano.

A expressão no rosto dela dizia mais do que ele queria saber. Evidentemente, Lilian estava furiosa com ele, e Stig literalmente tremeu com aquele olhar. Sempre tinha achado muito desagradável quando ela estava com aquele humor. Não conseguia entender que alguém como sua Lilian, tão adorável e doce, podia se transformar numa pessoa tão desagradável. De repente, ele se perguntou se o que a polícia tinha indicado poderia ser realmente verdade. Ela tinha feito uma acusação contra Kaj? Mas rejeitou a ideia. Só precisavam esclarecer essa confusão e depois tudo ficaria bem.

– Você não podia ter ficado de boca fechada? – Ela se aproximou dele, e o tom duro de sua voz mandou raios de dor pela cabeça dele.

– Mas, minha querida, eu só falei...

– A verdade? É o que você ia dizer? Que você simplesmente falou a verdade? Como a sua honestidade nos faz bem, Stig. Homens honestos e honrados que não se importam se isso coloca sua mulher em apuros. Achei que você estaria do meu lado.

Sentiu a saliva espirrando em seu rosto e quase não conseguiu reconhecer o rosto distorcido gritando sobre dele.

– Mas eu sempre estou do seu lado, Lilian. Só não sabia...

– Não sabia? Preciso explicar tudo para você, seu idiota estúpido?

– Mas você não me disse nada... e a polícia provavelmente só está imaginando todo esse absurdo. Quero dizer, você não inventaria algo assim, não é? – Stig lutava bravamente para encontrar algum tipo de lógica na raiva dirigida contra ele. Só agora percebia a marca no rosto de Lilian que estava começando a ganhar uma cor roxa. Ele franziu o cenho e lançou um olhar inquisidor para a esposa.

– Que marca é essa que você tem no rosto, Lilian? Não tinha isso quando subiu para me ver. Está dizendo que o que a polícia insinuou é verdade? Você inventou a história de que Kaj bateu em você quando esteve aqui? – Sua voz mostrava incredulidade, mas viu os ombros de Lilian caírem e não precisou de confirmação.

– Por que diabos você faria algo tão estúpido? – Agora os papéis tinham se invertido. A voz de Stig estava dura, e Lilian se afundou na ponta da cama, enterrando o rosto entre as mãos.

– Não sei, Stig. Posso ver agora que foi estúpido, mas queria que começassem a investigar Kaj e a família dele de forma séria. Tenho certeza de que estão envolvidos de alguma forma na morte de Sara. Não falei sempre que aquele homem não tem escrúpulos? E aquele Morgan estranho, se enfiando nos arbustos e me espiando. Por que a polícia não faz algo?

Seu corpo estava tremendo com os soluços, e Stig juntou seu último bocado de ar para se sentar na cama apesar da dor e colocar os braços ao redor da esposa. Ele acariciou as costas dela, reconfortando-a, mas seus olhos estavam inquietos e pensativos.

Quando Patrik chegou em casa, Erica estava sentada sozinha no escuro, pensando. Kristina tinha levado Maja para dar um passeio, e Charlotte já tinha ido para casa. O que Charlotte havia contado a deixou preocupada.

Quando Erica ouviu Patrik abrir a porta da frente, levantou-se e foi encontrá-lo.

– Por que você está sentada aqui no escuro? – Ele deixou as sacolas de compras no balcão da cozinha e começou a acender as lâmpadas. O brilho a cegou por um segundo antes de seus olhos se acostumarem com a claridade. Depois, sentou-se pesadamente na mesa da cozinha e ficou olhando o marido arrumar as compras.

– Como a casa está agradável – ele disse, feliz, olhando ao redor. – É muito bom que minha mãe possa vir e ajudar de vez em quando – ele continuou, sem perceber que Erica parecia querer matá-lo com o olhar.

– Ah, sim, é uma delícia – ela falou, ácida. – Deve ser maravilhoso chegar em casa, e tudo estar limpo e bem organizado, para variar.

– Com certeza! – respondeu Patrik, ainda sem perceber que estava cavando sua própria sepultura a cada segundo.

– Então talvez você devesse pensar em ficar em casa no futuro, assim as coisas poderiam estar mais organizadas por aqui! – gritou Erica.

Patrik se assustou com o súbito aumento de volume na voz dela. Virou-se com um olhar espantado.

– O que foi que eu falei agora?

Erica levantou-se da cadeira e saiu da cozinha. Às vezes, ele era tão estúpido. Se não conseguia entender, ela não tinha energia para explicar.

Sentou-se na escuridão da sala e olhou pela janela. O clima do lado de fora refletia precisamente como ela se sentia por dentro. Cinza, tempestuoso, cruel e frio. Períodos aparentemente calmos com fortes tempestades ocasionais. Lágrimas começaram a correr por seu rosto. Patrik veio se sentar ao lado dela no sofá.

– Desculpe por ser tão tonto. Não deve ser fácil aguentar a minha mãe aqui em casa, não é?

Ela podia sentir o lábio inferior tremendo. Estava tão cansada de chorar. Sentia que não tinha feito outra coisa nos últimos meses. Só gostaria de ter estado mais preparada para como tudo seria. O contraste era tão grande se considerasse a alegria que sempre acreditou que sentiria quando tivesse um bebê. Nos piores momentos, quase chegou a odiar Patrik por não se sentir como ela. A sua parte racional ficava aliviada porque alguém precisava fazer a família funcionar. Mas desejava que, só por um momento, ele pudesse se colocar na mesma posição e entender como ela se sentia.

Como se pudesse ler seus pensamentos, ele falou:

– Gostaria de trocar de lugar com você, de verdade. Mas não posso, então você precisa parar de ser tão forte e me contar o que está acontecendo. Talvez devesse falar com outra pessoa, um profissional. As pessoas na creche poderiam nos ajudar.

Erica balançou a cabeça. A depressão iria passar com o tempo. Tinha de passar. Além disso, havia mulheres que estavam muito piores do que ela.

– Charlotte passou por aqui hoje – ela comentou.

– Como ela está? – perguntou Patrik, com a voz baixa.

– Melhor, acho. – Ela fez uma pausa. – Vocês estão fazendo avanços?

Patrik se encostou no sofá e olhou para o teto. Ele soltou um suspiro profundo e disse:

– Infelizmente, não. Mal sabemos por onde começar. E, além disso, a doida da mãe da Charlotte parece estar mais interessada em encontrar mais munição para sua briga com o vizinho do que em nos ajudar na investigação. Ela não facilita nosso trabalho.

– Como assim? – Erica perguntou interessada.

Patrik fez um breve resumo dos eventos do dia.

– Você realmente acha que alguém na família de Sara poderia ter algo a ver com a morte dela? – perguntou Erica.

– Não, parece difícil acreditar nisso – comentou Patrik. – Todos possuem álibis plausíveis para onde estavam naquela manhã.

– Têm? – perguntou Erica num estranho tom de voz. Patrik estava a ponto de perguntar o que ela queria dizer com aquilo quando os dois ouviram a porta da frente se abrir e Kristina entrar com Maja nos braços.

– Não sei o que você fez com essa criança – dizia, brava. – Ela veio gritando o caminho de volta todo no carrinho e se recusa a se acalmar. Isso é o que acontece quando você a pega sempre que ela chora um pouquinho. Acaba ficando mimada. Você e sua irmã nunca choraram tanto...

Patrik interrompeu a conversa e foi cuidar de Maja. Erica sabia, pelo choro, que a filha tinha fome e, com um suspiro, sentou-se na poltrona, abriu o sutiã de amamentação e tirou o enchimento. Estava na hora, de novo...

Assim que ela entrou em casa, Monica sentiu que algo estava errado. A raiva de Kaj fluía até ela como ondas de som pelo ar, e imediatamente ela se sentiu mais exausta. O que acontecera dessa vez? Já estava cansada do temperamento dele há muito tempo, mas não conseguia se lembrar se já havia sido diferente. Estavam juntos desde a juventude, e talvez naquela época suas mudanças de humor parecessem excitantes e atraentes. Ela não conseguia mais se lembrar. Não que isso importasse; a vida tinha tomado seu curso. Ela ficou grávida, eles se casaram, Morgan nasceu, e um dia seguiu o outro. A vida sexual deles estava morta fazia anos; havia tempos ela dormia em seu próprio quarto. Talvez a vida fosse mais do que isso, mas ela tinha se acostumado a como eram as coisas. Claro que de vez em quando pensava em se divorciar. Numa ocasião, há quase vinte anos, tinha até feito uma mala em segredo e estava pronta para pegar Morgan e partir. Mas então decidiu fazer o jantar para Kaj primeiro, passar algumas camisas e ligar a máquina de lavar para não deixar um monte de roupas sujas. Quando percebeu, estava desfazendo as malas.

Monica foi até a cozinha. Sabia que encontraria Kaj ali porque era onde ele sempre se sentava quando estava bravo com alguma coisa. Talvez porque podia ficar de olho na razão usual de sua agitação. Ele tinha puxado a cortina de lado e estava olhando para a casa vizinha.

– Oi – disse Monica, mas não recebeu nenhum cumprimento civilizado em resposta. Em vez disso, ele imediatamente começou a vociferar um discurso cheio de ódio.

– Você sabe o que aquela vadia fez hoje? – Não esperou por uma resposta, nem Monica tinha a intenção de falar qualquer coisa. – Chamou a polícia e afirmou que eu a ataquei! Mostrou algumas bostas de marcas que ela fez em si mesma e disse que eu tinha batido nela. Ela está completamente maluca!

Quando Monica foi até a cozinha, estava determinada a não se envolver na última briga de Kaj, mas isso era muito pior do que ela esperava. Contra sua vontade, sentiu a raiva crescer em seu peito. Mas primeiro precisava aliviar seus medos.

– E você tem certeza de que não a atacou, Kaj? Você tem uma tendência a perder as estribeiras...

Kaj olhou para ela como se a mulher tivesse ficado louca.

– Que merda você está falando? Realmente acha que sou um maldito estúpido para entregar tudo de bandeja assim? Adoraria dar um soco no nariz dela, mas acha que não sei o que ela faria? Claro, eu fui até lá e falei um monte, mas não encostei nela!

Monica podia ver que ele estava falando a verdade e não conseguiu evitar lançar um olhar rancoroso para a casa ao lado. Se Lilian pudesse deixá-los em paz!

– Então, o que aconteceu? Os policiais acreditaram nas mentiras dela?

– Não, graças a Deus. Descobriram que ela estava mentindo. Foram falar com Stig, e acho que ele destruiu a farsa toda. Mas foi por pouco.

Ela se sentou de frente para o marido na mesa da cozinha. Seu rosto estava vermelho, e ele batia os dedos com raiva na mesa.

– Não deveríamos jogar a toalha e nos mudar? Não podemos continuar assim. – Era um apelo que ela já tinha feito várias vezes antes, mas sempre via a mesma determinação nos olhos dele.

– Fora de questão, já falei isso. Ela nunca vai me expulsar da minha casa. Eu me recuso a dar essa satisfação.

Ele deu um soco na mesa para enfatizar suas palavras, mas não era necessário. Monica já tinha ouvido aquilo antes. Ela sabia que era inútil. E, para ser honesta, tampouco queria deixar Lilian ganhar. Não depois do que aquela mulher tinha dito sobre Morgan.

Pensar no filho a fez mudar de assunto.

– Você deu uma olhada no Morgan hoje?

Com relutância, Kaj parou de olhar para a casa dos Florin e murmurou:

– Não, deveria? Você sabe que ele nunca sai do quarto.

– Verdade, mas pensei que você poderia ter ido lá e falado oi. Ver como ele está. – Ela sabia que isso não ia acontecer, mas não perdia as esperanças. Morgan era filho dele, afinal de contas.

– Por que deveria? – Kaj bufou. – Se ele quiser companhia, pode vir aqui. – Ele se levantou. – Tem algo para comer?

Em silêncio, ela se levantou e começou a preparar o jantar. Anos antes ela chegou a pensar que Kaj poderia fazer o jantar, já que estava em casa o tempo todo. Esse pensamento já não passava por sua mente. Tudo estava como sempre tinha sido. E sempre seria.