Capítulo 26

Nova York, 1946

A vida over there não tinha saído como que ela esperava. Linhas amargas de desapontamento tinham surgido ao redor de sua boca e de seus olhos, mas Agnes ainda era uma mulher linda quando chegou aos quarenta e dois anos.

O começo de sua estadia tinha sido maravilhosa. O dinheiro de seu pai garantia um estilo de vida bastante confortável, e as contribuições que recebia de seus admiradores ajudavam significativamente. Não faltava nada. O elegante apartamento em Nova York era usado para festas deliciosas, e as pessoas lindas não tinham dificuldades para encontrar sua casa. Ofertas de casamento tinham sido numerosas, mas ela havia esperado o momento certo, à caça de alguém ainda mais rico, mais estiloso, mais sofisticado. Enquanto isso, não havia recusado nenhuma forma de diversão. Era como se tivesse de compensar os anos perdidos e viver duas vezes mais rápido e selvagem do que os demais. Havia uma ansiedade febril na forma como amava, festejava e gastava dinheiro em roupas, joias e móveis para o apartamento. Aqueles anos pareciam tão distantes agora.

Quando a quebra de Kreuger aconteceu em 1932, seu pai perdeu tudo. Uns poucos investimentos impensandos, e a fortuna que tinha juntado desapareceu. Quando o telegrama chegou, ela sentiu tanta raiva pelo comportamento idiota dele que rasgou o papel em pedacinhos e pisou neles. Como ele ousava perder tudo que um dia deveria ser dela? Tudo que deveria ser sua segurança, sua vida.

Ela enviou um longo telegrama como resposta, no qual dizia com exaustivos detalhes o que pensava do pai e como ele havia destruído sua vida.

Quando, uma semana depois, chegou um telegrama com a notícia de que ele tinha se matado com um tiro na cabeça, Agnes simplesmente o amassou e jogou no cesto de lixo. Ela não tinha ficado nem surpresa nem brava. Até onde sabia, era o que seu pai merecia.

Os anos que se seguiram foram duros. Não tão difíceis quanto os com Anders, mas uma luta para sobreviver da mesma forma. Agora, o único meio de conseguir isso era através da benevolência dos homens. Quando não teve mais recursos financeiros próprios, seus pretendentes finos e ricos foram aos poucos substituídos por namorados de status social inferior. As ofertas de casamento acabaram. Em vez disso, as propostas eram de natureza totalmente diferente, e enquanto os homens pagassem, ela não tinha nenhuma objeção. Também parecia que algo dentro dela tinha sido danificado pelo parto complicado dos filhos, então não podia engravidar, mas isso aumentava seu valor entre os parceiros ocasionais. Nenhum deles queria se ligar a ela por uma criança, e a própria Agnes preferia pular de um edifício do que passar novamente por aquela experiência atroz.

Agnes tinha sido forçada a desistir de seu lindo apartamento; o novo era muito menor, mais escuro e distante do centro da cidade. Ela não dava mais festas em sua casa e teve de vender ou penhorar a maioria de suas coisas.

Quando começou a Segunda Guerra Mundial, tudo o que estava ruim ficou ainda pior. E pela primeira vez desde que embarcara no navio em Göteborg, Agnes sentiu saudades de casa. Essas saudades aumentaram gradualmente e, quando a guerra finalmente acabou, decidiu voltar para a Suécia. Em Nova York, não tinha nenhum valor, mas em Fjällbacka havia algo que podia chamar de seu. Depois do grande incêndio, seu pai tinha comprado o terreno onde ficava a casa e construído uma nova no mesmo lugar – talvez com a esperança de que um dia ela voltasse. A casa estava em seu nome, então não fora perdida, apesar de todo o resto ter desaparecido. Estivera alugada durante todos esses anos, e a renda era depositada numa conta, caso ela voltasse. Várias vezes, durante esses anos, tinha tentado ter acesso a esse dinheiro, mas o administrador sempre dizia que seu pai tinha estipulado que ela só conseguiria o dinheiro se voltasse para seu país. Na época, Agnes tinha amaldiçoado o que via como uma injustiça, mas agora precisava admitir com relutância que talvez não fosse algo tão estúpido, afinal. Ela calculou que seria capaz de sobreviver com aquele dinheiro por pelo menos um ano e, durante esse tempo, teria de encontrar alguém que a sustentasse.

Para que esse plano fosse bem-sucedido, seria forçada a manter a história que tinha criado sobre sua vida nos Estados Unidos. Vendeu tudo que tinha e gastou cada dólar num vestido de qualidade e num conjunto de malas finas. As malas estavam vazias – ela não tinha dinheiro suficiente para colocar nada dentro – mas ninguém perceberia isso quando desembarcasse. Parecia uma mulher de sucesso e também tinha elevado sua posição dizendo que era a viúva de um homem rico com empresas de natureza indefinida. “Algo na área de finanças”, era o que intencionava falar, com um dar de ombros blasé. Tinha certeza de que funcionaria. As pessoas na Suécia eram tão inocentes e tão facilmente impressionáveis por gente que tinha ido para a terra prometida. Ninguém acharia estranho que Agnes voltasse para casa com tantos triunfos. Ninguém suspeitaria de nada.

O cais estava cheio de gente. Agnes era empurrada de um lado para o outro enquanto levava uma mala em cada mão. O dinheiro não tinha sido suficiente para uma passagem nem de primeira nem de segunda classe, então ela parecia um pavão no meio das massas cinzentas da terceira classe. Em outras palavras, não precisou enganar ninguém no barco fingindo que era uma dama. Contanto que desembarcasse em Göteborg, ninguém saberia como tinha feito a viagem.

Sentiu algo macio roçando sua mão. Agnes olhou para baixo e viu uma garotinha com um vestido branco olhando para ela com lágrimas escorrendo pelo rosto. A multidão aumentava ao seu redor, indo de um lado para o outro, e ninguém prestava atenção na garotinha que devia ter se perdido dos pais.

– Onde está sua mamãe? – perguntou Agnes no idioma que agora dominava quase perfeitamente.

A garota chorou ainda mais forte, e Agnes lembrou-se vagamente que crianças naquela idade podiam não ter começado a falar ainda. Na verdade, parecia que nem tinha aprendido a caminhar direito ainda e que ia cair no meio de tantos pés ao seu redor.

Agnes pegou-a pela mão e olhou ao redor. Ninguém parecia estar procurando por ela. Nada mais do que roupas feias para onde olhasse e, julgando pela maneira como a criança estava vestida, definitivamente parecia pertencer a uma classe social diferente. Agnes estava a ponto de pedir ajuda quando teve uma ideia. Era ousada, incrivelmente ousada, mas brilhante. Sua história sobre o marido rico que tinha morrido e a deixado viúva pela segunda vez não ganharia mais veracidade se também tivesse uma filha? E, apesar de se lembrar quantos problemas os garotos tinham causado, provavelmente seria totalmente diferente com uma garotinha. Era doce como açúcar, aquela garota. Agnes podia vesti-la com lindas roupas e amarrar laços naqueles adoráveis cachos. Era uma bonequinha. O pensamento pareceu cada vez melhor para Agnes e, num piscar de olhos, ela se decidiu. Pegou as duas malas numa mão e a garota na outra e caminhou na direção do navio. Ninguém reagiu quando embarcou, e ela resistiu à tentação de olhar por sobre o ombro. O truque era fazer parecer que a criança era dela, e a menina tinha até parado de chorar, espantada, e a seguiu sem protestar. Agnes viu aquilo como um sinal de que estava fazendo a coisa certa. Parecia que seus pais não eram bons para ela, já que tinha ido tão facilmente com uma estranha. Em pouco tempo, Agnes seria capaz de dar tudo que a garota quisesse e sabia que seria uma excelente mãe. Os garotos tinham sido muito difíceis. Essa garotinha era diferente. Ela podia sentir. Tudo seria diferente.

***

Niclas veio para casa assim que ela ligou. Como não quis dizer o assunto, ele chegou à porta da frente com o coração saindo pela boca. Lilian estava descendo pela escada com uma bandeja na mão e pareceu surpresa.

– Por que você está em casa?

– Charlotte me ligou. Você não sabe o que é?

– Não, ela nunca me conta nada – reclamou Lilian. Depois deu um sorriso adulador. – Eu saí para comprar pães doces frescos, estão num saco na cozinha.

Ele a ignorou e desceu correndo as escadas para o porão. Não o surpreenderia se, naquele momento, Lilian estivesse escutando atrás da porta, tentando ouvir o que falavam.

– Charlotte?

– Estou aqui, trocando o Albin.

Ele entrou no banheiro e a viu de pé, ao lado do trocador e de costas para ele. Mesmo assim, pôde perceber que ela estava brava e tentou adivinhar o que teria acontecido daquela vez.

– O que é tão importante? Tenho pacientes esperando. – A melhor defesa era um bom ataque.

– Martin Molin ligou.

Ele tentou se lembrar do nome.

– O policial em Tanumshede – ela esclareceu, e Niclas se lembrou. O sujeito jovem e cheio de sardas.

– O que ele queria? – perguntou.

Charlotte, que tinha terminado de trocar e vestir Albin, se virou para o marido com o menino no colo.

– Eles descobriram que alguém tinha ameaçado a Sara. No dia anterior à sua morte. – Sua voz estava gelada, e Niclas esperou nervoso que a esposa continuasse.

– E?

– O homem que a ameaçou foi descrito como um velho com cabelos grisalhos e roupas pretas. Ele a chamou de “filha do Demo”. Isso se parece com alguém que você conhece?

A raiva correu por suas veias numa fração de segundo.

– Maldição – Niclas gritou e subiu as escadas correndo. Quando abriu a porta, quase derubou Lilian. Estava certo: a velha fofoqueira estava parada ali, ouvindo. Mas não valia a pena pensar nisso agora. Colocou os sapatos sem se preocupar em amarrá-los, pegou seu casaco e correu até o carro.

Dez minutos depois, brecou bruscamente na casa de seus pais depois de cruzar muito rápido a cidade. A casa ficava ao lado da colina, bem acima do campo de minigolfe, e parecia exatamente igual aos dias de sua juventude. Abriu a porta do carro e saiu sem se importar em fechá-la. Depois correu para a entrada. Parou por um segundo, respirou fundo e bateu forte na porta. Niclas esperava que seu pai estivesse em casa. Não importava quão pouco cristão ele fosse, não era apropriado fazer o que tinha a intenção de fazer numa igreja.

– Quem é? – perguntou a voz familiar e ríspida de dentro da casa. Niclas testou o trinco. Como sempre, a porta não estava trancada. Sem hesitar, entrou gritando.

– Onde está você, seu demônio covarde?

– O que está acontecendo? – Sua mãe veio da cozinha até o corredor com uma toalha e um prato na mão. Depois ele viu a figura austera de seu pai surgir da sala.

– Pergunte a ele. – Niclas apontou um dedo trêmulo para seu pai, de quem não se aproximava desde que tinha dezessete anos.

– Não sei do que ele está falando – disse Arne, recusando-se a falar diretamente com o filho. – Que coragem, vir aqui e ficar me xingando e gritando comigo. Já chega. Vá embora.

– Você sabe muito bem do que estou falando, seu velho maldito. – Niclas viu com satisfação como seu pai hesitava diante de suas palavras. – E como você pode ser covarde, ameaçando uma garotinha! Se foi você quem a matou, pode ter certeza de que nunca mais vai andar, seu maldito filho...

Sua mãe, que olhava para os dois homens, deu um grito. Isso era tão incomum que Niclas ficou quieto abruptamente, e até seu pai fechou a boca sem responder.

– Agora um de vocês pode ser razoável e me contar o que está acontecendo? Niclas, você não pode entrar aqui gritando e, se tem algo a ver com Sara, então eu tenho o direito de saber.

Depois de respirar fundo algumas vezes, Niclas falou com os dentes cerrados de raiva:

– A polícia descobriu – ele quase não conseguia olhar para o pai – que ele gritou e ameaçou Sara. No dia anterior à sua morte. – A fúria tomou conta dele novamente, fazendo-o gritar: – Que diabos você tem na cabeça? Assustar uma menina de sete anos e chamá-la de “filha do Demo” ou alguma besteira assim. Ela tinha sete anos, não entende, sete anos! E devo acreditar que foi só coincidência que você a ameaçou no dia anterior à sua morte! Não é?

Ele deu uns passos na direção de seu pai, que se afastou rápido.

Asta agora olhava para o marido.

– O garoto está falando a verdade?

– Não preciso responder a ninguém. Eu só respondo ao Senhor – disse Arne bombástico, virando-se de costas para a esposa e o filho.

– Nem tente isso. Você vai me responder agora!

Niclas olhava espantado enquanto sua mãe seguia Arne até a sala com as mãos na cintura, pronta para brigar. Arne também parecia chocado que a esposa o desafiasse assim. Estava abrindo e fechando a boca sem que qualquer som saísse.

– Me responda – continuou Asta, encurralando Arne no canto da sala conforme se aproximava. – Você viu a Sara?

– Sim, eu vi – disse Arne, desafiador, numa última tentativa de afirmar a autoridade que achava que possuía nos últimos quarenta anos.

– E o que você disse para ela? – Asta parecia ter ficado um metro mais alta. Niclas achou seu aspecto aterrador e, pelo olhar de seu pai, podia ver que o velho achava a mesma coisa.

– Tinha de ver se ela era mais séria do que seu pai. Se ela tinha puxado o meu lado da família.

– Seu lado – falou Asta. – Ah, sim, isso seria ótimo. Bajuladores beatos e mulheres esnobes, é o que você tem do seu lado da família. Isso é algo que vale a pena copiar? Então, qual foi a sua conclusão?

Com uma expressão dolorida, Arne disse:

– Silêncio, mulher, venho de gente temente a Deus. E não demorou muito para descobrir que a garota não era feita de bom material. Impudente, obstinada e barulhenta, nada do que as garotas devem ser. Tentei falar sobre Deus, mesmo, e ela me mostrou a língua. Então falei algumas verdades a ela. Ainda acredito que era meu direito fazer isso. Obviamente ninguém se importou em criar a criança de forma apropriada; era o momento de que alguém a guiasse.

– Então você a amedrontou – disse Niclas, fechando os punhos.

– Eu vi o Demônio na reação dela – disse Arne, orgulhoso.

– Seu maldito... – Niclas deu um passo na direção dele, mas parou quando alguém bateu na porta.

O tempo parou por um segundo e depois o momento passou. Niclas sabia que tinha estado na beira do abismo, mas havia recuado. Se tivesse atacado seu pai, não teria sido capaz de parar. Não dessa vez.

Deixou a sala sem olhar para nenhum dos dois e abriu a porta da frente. O homem do lado de fora parecia surpreso por vê-lo ali.

– Oh, olá. Martin Molin. Já nos encontramos. Sou da polícia. Gostaria de conversar com seu pai.

Niclas deixou que entrasse sem uma palavra. Sentiu que o policial olhava para ele enquanto caminhava até seu carro.

– Onde está o Martin? – perguntou Patrik.

– Foi até Fjällbacka – disse Annika. – Charlotte identificou nosso velho nojento sem muita dificuldade. É o avô de Sara, Arne Antonsson. Um doido de acordo com Charlotte. Ele e o filho não se falam há vários anos.

– Espero que Martin se lembre de confirmar o álibi dele, tanto na manhã em que Sara foi assassinada quanto no incidente de ontem, com o menininho.

– A última coisa que fez foi revisar o horário de ontem. Entre uma e uma e trinta, não foi?

– Exato. Estou feliz por ter pelo menos uma pessoa com quem posso contar.

Os olhos de Annika se entrecerraram.

– Mellberg já conversou com Ernst? Quero dizer, fiquei surpresa quando ele apareceu hoje de manhã. Achei que ele já teria sido suspenso pelo menos, se não fosse demitido.

– É, eu sei, achei que era o que havia acontecido quando ele foi para casa ontem. Fiquei tão surpreso quanto você de encontrá-lo sentado ali, como se nada tivesse acontecido. Vou falar com Mellberg. Ele não pode deixar a coisa assim dessa vez. Se não fizer nada, eu peço demissão! – Patrik disse, franzindo o cenho.

– Não fale assim – disse Annika alarmada. – Converse com Mellberg. Tenho certeza de que ele tem um plano para lidar com Ernst.

– Nem você acredita nisso – disse Patrik, e Annika olhou para o outro lado. Ele estava certo. Ela duvidava disso.

Annika mudou de assunto.

– Quando vamos interrogar o Kaj novamente?

– Estava pensando em fazer isso agora. Mas prefiro que Martin esteja presente.

– Ele saiu há pouco, então pode demorar a voltar. Tentou avisá-lo, mas você estava no telefone.

– É, eu estava ocupado verificando o álibi de Niclas ontem. Que é bom, por falar nisso. Consultas com pacientes das doze às três horas. E não fiquei só na sua agenda; confirmei com cada paciente que ele viu.

– Então, o que isso quer dizer?

– Se eu soubesse – disse Patrik, massageando o nariz com os dedos. – Não muda o fato de que ele não tem um álibi para a manhã de segunda, e ainda é estranha a maneira como quis esconder sua localização. Seja como for, não estava envolvido no que aconteceu ontem. Gösta vai telefonar para o resto da família e ver onde estavam naquele horário.

– Assumo que Kaj também terá de responder isso com detalhes – disse Annika.

Patrik assentiu.

– É, pode apostar. E a esposa. E o filho. Acho que é melhor conversar com eles depois de interrogar Kaj de novo.

– E, apesar de tudo, o assassino ainda poderia ser outra pessoa, alguém que ainda não consideramos – disse Annika.

– É a pior parte. Enquanto corremos atrás do próprio rabo, o assassino provavelmente está sentado em casa, rindo da gente. Mas depois de ontem, pelo menos tenho certeza de que ele, ou ela, ainda está na vizinhança. E que é provavelmente alguém de Fjällbacka.

– Ou já temos o assassino preso – disse Annika, apontando para a cela.

Patrik sorriu.

– Ou já temos o assassino preso. Bom, não tenho tempo a perder, preciso conversar com alguém sobre um casaco...

– Boa sorte – gritou Annika para ele.

– Dan! Dan! – gritou Erica. Ela conseguia ouvir o pânico em sua voz e isso a deixava ainda mais brava. Mexia freneticamente no cobertor dentro do carrinho, como se a filha fosse capaz de se esconder num canto. Mas o carrinho estava vazio.

– O que foi? – perguntou Dan, que veio correndo, com um olhar ansioso no rosto. – O que aconteceu? Por que está gritando?

Erica tentou falar, mas sua língua parecia grudada e inchada, as palavras não saíam. Em vez disso, ela apontou com a mão trêmula para o carrinho, e Dan correu para olhar.

Ele fitou o espaço vazio, e Erica viu como ele entendeu o que havia acontecido.

– Onde está Maja? Ela desapareceu? Onde...? – Não terminou a frase, e começou a olhar para todos os lados. Erica se apoiava nele, tomada pelo pânico. Agora as palavras conseguiram sair de dentro dela.

– Precisamos encontrá-la! Onde está minha filha? Onde está Maja? Onde está?

Shhh, calma, calma. Vamos encontrá-la. Não se preocupe, vamos encontrá-la. – Dan escondeu seu pânico para poder tranquilizar Erica. Colocou as mãos nos ombros dela e olhou bem para a amiga.

– Agora, precisamos ficar calmos. Vou sair e procurá-la. Você liga para a polícia. Vai ficar tudo bem.

Erica sentiu seu peito se mexer com espasmos, numa estranha imitação do ato de respirar, mas obedeceu. Dan deixou a porta da frente aberta, e um vento frio entrou na casa. Mas isso não a incomodou. Não sentia nada mais do que o pânico paralisante que fazia seu cérebro parar de funcionar. Simplesmente não conseguia se lembrar onde tinha deixado o telefone. Finalmente saiu correndo pela sala olhando embaixo das almofadas e jogando as coisas para o alto. Finalmente se lembrou de que estava embaixo da mesinha de café da sala. Ela se jogou na direção dele e com dedos tensos discou o número da delegacia. Foi quando ouviu a voz de Dan do lado de fora.

– Erica, Erica, eu a encontrei!

Ela largou o telefone e correu para a porta da frente, seguindo a voz do amigo. Só de meias, ela desceu os degraus da frente e chegou à calçada. O frio molhado penetrava em sua pele, mas não se importava. Viu Dan correndo em sua direção com algo vermelho nos braços. Um choro terrível começou, e Erica sentiu o alívio tomar conta de si. Maja estava gritando, ela estava viva.

Erica atravessou os poucos metros que a separavam de Dan e agarrou Maja. Chorando, abraçou a filha por um segundo, antes de se ajoelhar, colocar Maja no chão e abrir o macacão vermelho para examiná-la. Ela parecia bem e agora estava gritando o máximo que podia, agitando os braços e as pernas. Ainda de joelhos, Erica levantou sua filha e apertou-a forte mais uma vez, enquanto deixava que as lágrimas de alívio se juntassem às gotas de chuva.

– Vamos, vamos entrar. Vocês duas vão ficar ensopadas – disse Dan gentilmente, enquanto ajudava Erica a se levantar. Sem soltar o bebê, ela o seguiu até a casa. O alívio que sentia era algo físico, de uma maneira que nunca poderia ter imaginado. Era como se tivesse perdido uma parte do corpo, que agora estava sendo reimplantada. Ela ainda estava chorando, e Dan tentava consolá-la com tapinhas no ombro.

– Onde você a encontrou? – ela conseguiu perguntar.

– Estava deitada no chão, na frente da casa.

Só agora os dois pareciam entender que alguém devia ter colocado Maja ali. Por alguma razão, essa pessoa deve tê-la tirado do carrinho, saído da casa e deixado a garota dormindo no chão. O pânico de pensar nisso fez Erica voltar a chorar.

Shhhh... já passou. – disse Dan. – A gente a encontrou, e ela parece estar bem. Mas é melhor ligar para a polícia. Não deu tempo de ligar para eles, não é?

Erica negou com a cabeça.

– Precisamos ligar para Patrik – ela disse. – Você pode fazer isso? Não quero nunca mais me separar dela. – Ela abraçou Maja ainda mais forte. Mas então percebeu algo que não tinha visto antes. Olhou para a blusa de Dan e afastou um pouco a menina para examiná-la também.

– O que é isso? – perguntou. – Que coisa preta é essa?

Dan olhou para o macacão sujo, mas só perguntou:

– Qual é o número do Patrik?

Com a voz trêmula, Erica disse o número do celular de Patrik e ficou olhando enquanto Dan discava. O medo crescia em seu estômago.

Os dias passavam devagar. A sensação de impotência de Anna era paralisante. Nada do que a irmã de Erica falasse ou fizesse escapava dele. Lucas observava cada passo, ouvia cada palavra.

A violência tinha aumentado também. Agora ele se deleitava abertamente com a dor e a humilhação dela. Ele fazia o que queria, quando queria, e Deus a ajudasse se protestasse ou resistisse. Não que ela pensasse em fazer isso agora. Era tão óbvio que havia algo de errado com a cabeça dele. Todas as barreiras tinham desaparecido e havia algo maligno em seus olhos que acionava o instinto de sobrevivência dela e lhe dizia para atender suas exigências. Pelo menos isso permitiria que sobrevivesse.

Ela mesma tinha se desconectado completamente. Era a visão de seus filhos que mais doía. Eles não tinham mais permissão de ir à creche e passavam os dias na mesma existência sombria que ela. Sem entusiasmo e submissos, eles a observavam com olhos mortiços, e isso parecia uma acusação. Ela assumia toda a culpa pelo que estava acontecendo. Devia tê-los protegido. Deveria ter mantido Lucas longe da vida deles, precisamente como tinha sido sua intenção. Mas um único instante de medo a fez desistir. Ela se convenceu de que estava fazendo isso pelo bem das crianças, por sua segurança. Em vez disso, entregou-se à própria covardia. Era seu hábito sempre tomar o caminho de menor resistência, pelo menos à primeira vista. Mas dessa vez tinha julgado muito mal suas opções. Escolhera o caminho mais estreito, complicado e perigoso, e trouxera seus filhos junto.

Às vezes sonhava que o matava. Antecipando o que agora sabia ser a conclusão inevitável. Ocasionalmente, observava como ele dormia perto dela, durante as longas horas em que ficava acordada durante a noite, incapaz de relaxar o suficiente para fugir para os sonhos. Depois, imaginava com prazer como uma das facas da cozinha entrava em sua carne e cortava a frágil linha que o conectava à vida. Ou sentia a corda cortando suas mãos enquanto a enrolava no pescoço dele e apertava forte.

Mas não passavam de maravilhosos sonhos. Algo dentro dela, talvez uma covardia inerente, a fazia ficar deitada na cama enquanto esses pensamentos sombrios ricocheteavam dentro de seu crânio.

Às vezes imaginava o bebê de Erica. A garotinha que ainda não tinha visto. Invejava a criança. Estaria recebendo o mesmo calor, o mesmo cuidado que a própria Anna tinha recebido de Erica quando eram crianças, algo mais parecido com mãe e filha do que com irmãs? Mas na época não dava valor ao que Erica fazia por ela. Sentia-se sufocada e inferior. A amargura que sentia pela falta de amor de sua mãe tinha, aparentemente, feito seu coração endurecer tanto que não era receptivo ao que sua irmã tentara lhe oferecer. Anna sinceramente esperava que Maja fosse mais capaz de aceitar o enorme oceano de amor que sabia que Erica era capaz de dar. Principalmente pelo bem da irmã. Apesar da diferença de idade e da distância que as separavam, Anna a conhecia muito bem. Sabia que se havia alguém que precisava desesperadamente receber amor de volta, era Erica. A coisa estranha era que Anna sempre a vira como sendo tão forte, e sua própria amargura fora diluída por esse sentimento. Agora que se sentia mais fraca do que antes, via sua irmã como era de verdade. Alguém que morria de medo de que todos vissem o que a mãe delas tinha visto, o que a tinha feito sentir que as duas irmãs não mereciam amor. Se Anna tivesse mais uma chance, abraçaria Erica com força e agradeceria por todos aqueles anos de amor incondicional. Agradecer pela preocupação, pelas broncas, pelo olhar preocupado quando pensou que Anna estava indo pelo caminho errado. Agradecer por tudo que antes fazia Anna se sentir sufocada e pressionada. Que irônico. Ela não sabia exatamente como era se sentir realmente sufocada e pressionada. Até agora.

O som da chave na porta a fez dar um salto. As crianças também pararam, alarmadas, suas brincadeiras desanimadas.

Anna se levantou e foi esperá-lo.

Schwarzenegger olhou preocupado para ele por trás dos óculos escuros. O Exterminador do Futuro. Se Sebastian fosse como ele. Cool. Forte. Uma máquina sem a capacidade de sentir.

Sebastian olhou para o pôster quando se deitou na cama. Ele ainda conseguia ouvir a voz de Rune, sua falsa voz de preocupação. Aquele tom pouco sincero, de carinho fingido. A única coisa que o preocupava realmente era o que as pessoas falariam sobre ele. O que foi que o padrasto disse mesmo?

– Ouvi que foram feitas acusações terríveis contra Kaj. Tive dificuldades em acreditar que fossem verdade, mas ainda preciso fazer a pergunta: ele em alguma ocasião se comportou de maneira imprópria com você ou algum dos outros garotos? Ficou espiando no chuveiro ou algo assim?

Sebastian rira por dentro com a ingenuidade de Rune.

– Ficou espiando no chuveiro... – Isso não teria sido tão ruim. Era a outra coisa que ele não podia aguentar. Não agora, quando tudo estava começando a aparecer. Ele tinha uma ideia de como essas coisas funcionavam. Tiravam fotos, guardavam e trocavam, mas não importava quão bem a guardassem, todas iriam aparecer agora.

Não demoraria mais de uma manhã, depois a escola toda saberia. As garotas olhariam para ele, apontando e rindo. Os garotos fariam piadas sobre bichas e gestos estúpidos quando ele passasse. Ninguém teria a menor compaixão por ele. Ninguém veria o tamanho do buraco em seu peito.

Ele virou a cabeça um pouco para a esquerda e olhou para o pôster de Clint como Dirty Harry. Queria ter uma pistola como aquela. Ou até melhor, uma metralhadora. Poderia fazer como aqueles caras nos Estados Unidos. Entrar na escola com um casaco preto comprido e matar todo mundo que estivesse no caminho. Especialmente os mais populares, que iam tratá-lo pior. Mas sabia que isso era apenas uma ideia louca. Não queria machucar ninguém. Não era culpa deles, na verdade. Ele era o único culpado e só queria machucar a si mesmo. Poderia ter parado aquilo, claro. Alguma vez já tinha dito não? Não com todas as palavras. De alguma forma, ele tinha esperado que Kaj visse como aquilo o perturbava, quanto o machucava, e parasse.

Tudo tinha sido tão complicado. Porque uma parte dele gostava de Kaj. Ele tinha sido ótimo, e no começo Sebastian recebia aquele sentimento paternal dele. O sentimento que nunca recebeu de Rune. Conseguia conversar com Kaj. Sobre a escola, sobre garotas, sobre mamãe e sobre Rune, e Kaj colocava o braço em seu ombro e escutava. Foi só depois de um tempo que as coisas começaram a dar errado.

A casa estava silenciosa. Rune tinha saído para trabalhar, feliz por ter confirmado o que achava que já sabia, que todas as acusações contra Kaj eram completamente infundadas. Ele provavelmente se sentaria no restaurante e reclamaria em voz alta como a polícia tinha feito acusações infundadas.

Sebastian levantou da cama e se preparou para sair. Parou na porta e se virou. Olhou cada um deles e fez um movimento com a cabeça, como se os cumprimentasse. Clint, Sly, Arnold, Jean-Claude e Dolph. Os que eram tudo que ele não era.

Por um momento, achou que eles tinham respondido.

A adrenalina ainda estava alta depois do encontro com seu pai, e Niclas sentia-se suficientemente beligerante para enfrentar a próxima pessoa com quem tinha contas a acertar.

Dirigiu por Galärbacken e parou quando viu que Jeanette estava em sua loja, preparando-se para abrir no Dia de Todos os Santos. Estacionou o carro e entrou. Pela primeira vez desde que tinham se conhecido, ele não sentiu nada quando a viu. Só um desgosto ácido e metálico, tanto por si mesmo quanto por ela.

– Que merda você acha que está fazendo?

Jeanette se virou e lançou um olhar frio quando ele bateu a porta atrás de si, fazendo o sinal de “Aberto” voar.

– Não sei do que você está falando. – Ela ficou de costas para ele e continuou a desempacotar uma caixa de suvenires, colocar preços e guardá-los nas estantes.

– Você sabe muito bem. Sabe exatamente do que estou falando. Você foi até a polícia e disse algumas besteiras sobre como eu a forcei a mentir e me dar um álibi. Quão baixo você pode descer? É vingança que está querendo ou só se diverte criando problemas? Que merda estava pensando? Eu perdi minha filha há uma semana. Não pode entender que não quero continuar enganando minha esposa?

– Você me prometeu – disse Jeanette, com os olhos brilhando. – Prometeu que ficaríamos juntos, que você se divorciaria de Charlotte, que teríamos nossos filhos. Me prometeu um monte de coisas, Niclas.

– Então, por que merda você acha que eu falei isso? Porque você adorava ouvir. Porque logo abria as pernas quando ouvia essas promessas sobre um anel e um futuro. Porque queria ter um pouco de prazer com você na cama de vez em quando. Não posso acreditar que seja tão estúpida a ponto de acreditar em mim. Conhece o jogo tão bem quanto eu. Não fui seu primeiro homem casado, tenho certeza – ele disse, rude, vendo como o rosto dela se contorcia como se tivesse levado um tapa. Mas ele não se importava. Já tinha cruzado a linha e não queria mostrar nenhum lado sensível ou evitar que se sentisse mal. Agora somente a verdade pura e não adulterada era apropriada e, depois do que ela tinha feito, ela merecia ouvir.

– Seu porco filho da puta – disse Jeanette, tentado pegar um dos objetos que estava desempacotando. No momento seguinte, um farol de porcelana voou na direção da cabeça de Niclas, mas ela errou e acertou a vitrine. Com um barulho ensurdecedor, o vidro se quebrou, e grandes estilhaços caíram no chão. O silêncio que se seguiu foi tão completo que ecoou pelas paredes. Como dois combatentes, eles se encararam com raiva mútua. Depois Niclas se virou e caminhou tranquilamente para fora. O único som era o vidro sendo esmagado embaixo de seus sapatos.

Arne olhava em silêncio enquanto ela fazia as malas. Se Asta não estivesse tão determinada, a visão dele a teria surpreendido tanto que teria parado o que estava fazendo. Arne nunca parecera tão indefeso. Mas sua fúria mantinha as mãos trabalhando, dobrando roupas e colocando-as na maior mala que tinham. Ela ainda não sabia como ia carregar tudo ou para onde iria. Não importava. Ela não queria ficar nem mais um minuto na mesma casa que ele. Finalmente, a venda tinha caído de seus olhos. Aquela sensação de dissonância que sempre teve, a sensação de que as coisas podiam não ser como Arne dizia, tinha finalmente tomado conta. Ele não era todo-poderoso. Ele não era perfeito. Era somente um homem fraco e patético, que adorava acossar as outras pessoas. E também havia sua crença em Deus. Provavelmente não era muito profunda. Asta via claramente agora como ele usava a palavra de Deus de uma maneira que, estranhamente, sempre combinava com suas próprias visões. Se Deus era como o Deus de Arne, então ela não queria ter a mesma fé que ele.

– Mas Asta, não entendo. Por que está fazendo isso?

A voz dele estava chorosa como a de um garotinho, e ela nem queria responder. Arne ficou ali na porta, apertando as mãos enquanto via a esposa remover um item de roupa atrás do outro das gavetas e dos armários. Não queria voltar, então era melhor que levasse tudo de uma vez.

– Aonde você vai? Você não tem para onde ir!

Agora ele estava implorando, mas a natureza extraordinária da situação­ só a fez sentir um arrepio. Ela tentou não pensar em todos os anos que tinha perdido; felizmente era bastante pragmática. O que estava feito estava feito. Mas não queria perder nem mais um dia de sua vida.

Consciente de que estava a ponto de perder o controle da situação, Arne agora tentava um método mais conhecido. Pensou que poderia ganhar controle levantando a voz.

– Asta, você precisa parar com toda essa besteira! Desfaça as malas imediatamente!

Por um instante, ela parou de fazer as malas, mas só o suficiente para olhar de uma maneira que resumia os quarenta anos de opressão. Ela juntou toda a sua raiva, todo o seu ódio e os mandou para ele. Para sua satisfação, percebeu como ele se encolheu e diminuiu diante de seu olhar. Quando voltou a falar, foi numa voz quieta e tímida. A voz de um homem que percebeu que havia perdido o controle para sempre.

– Eu não quis... Quer dizer, claro que não deveria ter falado com a garota daquela forma, entendo isso agora. Mas ela não tinha nenhum respeito e, quando se comportou de maneira tão teimosa em relação a mim, pude ouvir a voz de Deus me falando que deveria intervir e...

Asta o cortou.

– Arne Antonsson. Deus nunca falou com você. Nunca vai falar. Você é muito estúpido e surdo para isso. E quanto a toda a besteira que ouvi nesses quarenta anos sobre como você nunca teve a chance de se tornar pastor porque seu pai bebeu todo o dinheiro – você deveria saber que não era dinheiro que estava faltando. Sua mãe cuidava muito bem da bolsa e não deixava seu pai beber mais do que o necessário. Mas ela me contou antes de morrer que não tinha nenhuma intenção de jogar seu dinheiro fora mandando-o para o seminário. Ela pode ter sido uma mulher rude, mas tinha uma boa cabeça e podia ver que você não servia para pastor.

Olhando para ela, Arne estava tentando respirar enquanto ficava cada vez mais pálido. Por um momento, Asta pensou que ele estava tendo um ataque do coração e sentiu que hesitava contra sua vontade. Mas depois, se virou e saiu da casa. Deixou aos poucos o ar fluir entre seus lábios. Não sentia prazer em destruí-lo, mas no fim ele não deixou nenhuma alternativa.