INTRODUÇÃO

Mensalão e a telemidiatização da Justiça

Se o STF flertava – já há algum tempo – com sua incondicionada adesão à era do populismo penal midiático, típico da sociedade do espetáculo (Debord), agora não existe mais dúvida. Sejam todos bem-vindos ao mundo do espetáculo judicial telemidiático. Como funciona a Justiça telemidiatizada? Não quero valorar, apenas descrever.

Em primeiro lugar, já não podemos falar em processo, sim, em teleprocesso. Não temos mais juízes, sim, telejuízes. Não mais sessões, mas, telessessões. Não mais votos, sim, televotos. Não mais o público, sim, teleaudiência. Se no campo das democracias populistas latino-americanas o que prepondera é o telepresidente, na era da Justiça telemidiatizada o que temos é o telerrelator, telerrevisor etc.

Está implantada definitivamente uma nova forma de ver e analisar a intrincada e complexa relação entre a mídia e os juízes. Nasce uma nova forma de se fazer Justiça. Não há dúvida que com o telejulgamento ganhamos em espetáculo (estética), mas corre-se sempre o risco de perder em segurança, porque o poder dos holofotes pode fazer da prudência, do equilíbrio e da sensatez estrelas que brilham pela ausência.

A Justiça se tornou muito mais percebida. Agora conta com teleaudiência, com rating. Para usar um bordão famoso, nunca na história deste país os ministros se tornaram conhecidos pelos seus nomes, que estão se transformando em marcas e, dessa forma, começam a ter um alto valor político-mercadológico. Os clássicos problemas da Justiça pioram a cada dia (mais morosidade, dificuldade de acesso, tratamento desigual, mau emprego do dinheiro público etc.), mas pelo menos agora existe em torno dela um denodado “glamour”. O cargo de Ministro tornou-se mais cobiçado, porque mais valorado social e psicossocialmente.

A espetacularização da Justiça populista não é uma vara mágica que resolve seus conhecidos problemas, ao contrário, a telejustiça é muito mais morosa e, tal como uma telenovela, gasta um semestre para desenvolver o enredo de um teleprocesso (prejudicando o andamento de centenas de outros). Isso tende a piorar, a médio prazo, a sua já degastada imagem (que vem perdendo pontos em cada ano, conforme pesquisas da FGV).

A Justiça telemidiatizada é composta de palavras e discursos (moralistas, duros, messiânicos) que a população adora ouvir. A Justiça está deixando de ser apenas um lugar onde as pessoas são julgadas (de acordo com suas culpabilidades), para se transformar num privilegiado palco que lembra os rituais religiosos bíblicos de expiação, onde são sacrificados “bodes expiatórios” para a necessária purificação da alma de todos os pecadores. O STF, na sua nova função de telejulgador populista, está lavando a alma do povo brasileiro (disse um órgão midiático). E também nos proporcionando tele-entretenimento, com acalorados “bate-bocas”, entrecortados por suaves e inteligentes telemensagens ritmadas do tipo “o voto minerva me enerva”.

Nem a democracia nem os telejulgamentos solucionam os graves problemas da população (saúde, comida, trabalho, educação, transportes, segurança etc.), mas conforme suas melodramáticas performances podem alimentar uma necessidade do inconsciente coletivo, que vai muito além daquela coesão social de que falava Durkheim, para alcançar, se não se toma a devida cautela, o pináculo da festa populista da vingança. Em outras palavras, a Justiça telemidiatizada não soluciona o problema do pão, mas pode contribuir muito para a fermentação do circo. Por quê?

Porque não se pode esquecer que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa (alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Nietzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximativo da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer. O gozo e a satisfação gerados pelo sacrifício de um potente “bode expiatório”, agora exposto ao moderno pelourinho dos telejulgamentos midiáticos, equivalem às grandes conquistas patrióticas nacionais (no futebol, por exemplo). É uma catarse que o povo, freudiana e psicanalicamente, deseja para a purificação dos seus pecados.

O STF acaba de sucumbir definitivamente às racionalidades da sociedade do espetáculo. Resta saber se ainda vão remanescer lampejos de serenidade para impedir que princípios jurídicos clássicos como o da legalidade, proibição de retroatividade da lei penal mais severa etc., não se tornem meros tigres de papel. Ser juiz não é nada fácil. Imaginem ser um super telejuiz, com a responsabilidade de salvar a honra nacional, de purificar a alma do povo?

Na medida em que a Justiça começa a se comunicar diretamente com a opinião pública, valendo-se da mídia, ganham notoriedade tanto os anseios populares de justiça (cadeia para todo mundo, prisão preventiva imediata, recolhimento sem demora dos passaportes dos condenados, fim dos recursos – ignorem a justiça internacional) como a preocupação de se usar uma retórica populista, bem mais compreensível pelo “povão” (“réus bandidos”, “políticos bandoleiros”, “a pena não pode ficar barata”, “o sistema penal brasileiro é frouxo”, “os juízes são flexíveis”, “Vossa Excelência advoga para o réu?”, “no Brasil o rico não vai para a cadeia” etc.).

A mídia, quando favorável, é uma formidável amiga, mas também pode se transformar numa perigosa inimiga. Sem a cobertura populista não teriam ocorrido, dentre outros, episódios como a hostilização pública do telerrevisor Lewandowsky ou a inusitada aclamação popular do telerrelator Joaquim Barbosa, guindado à condição de herói nacional por alguns meios de comunicação, embora ele mesmo tenha se declarado um anti-herói (Folha de S.Paulo). Ambos cumpriram com seus deveres como Ministros da mais alta Corte da República, mas estão sendo tratados de forma bastante diferente, seja pela mídia, seja pelo público “midiatizado”.

Frenesi generalizado, porque agora o paradigma é outro, é o emotivo, o voluntarista, o performático. O telejuiz deixa de ser um terceiro equidistante para se transformar num ator midiático, daí a lógica dos reiterados pedidos – entre eles – de réplica e tréplica, que denotam perfil de parte. O maior temor, nesse contexto, é o de que esses novos personagens da telejustiça deixem de cumprir o sagrado papel democrático de balança contramajoritária. Não poucas vezes, como sublinha com frequência o Ministro Gilmar Mendes, para fazer justiça o juiz tem que decidir contra a vontade da maioria. Mas como contrariar a maioria quando a telejustiça assume a lógica das democracias populistas de opinião?

São novos megadesafios para os novos supertelejuízes, que ainda devem recordar que, no campo do direito penal, a convicção de que a voz do povo é a voz de Deus constitui um risco incomensurável. Em razão da excessiva carga emocional que traduz, nada mais injusta, desequilibrada e insensata, muitas vezes, que a voz do povo. As balizas da justiça, quando deixadas sob o comando do povo ou da pura emoção, ficam totalmente cegas (a história de Jesus Cristo que o diga). Quando a emoção fala mais alto que a razão, tudo quanto satisfaz a ira das massas passa a ser “válido” e “justo”.

Aos tradicionais quatro “pês” que habitam nossas cadeias (pobre, preto, prostituta e policiais) a telejustiça está agregando uma quinta categoria, constituída dos políticos e seus satélites orbitais (banqueiros, bicheiros, construtores, dirigentes petistas, tucanos privataristas etc.). Não há como não reconhecer que os teleprocessos são altamente politizados. Mas nem por isso devem revigorar nossa memória, como bem sublinhou Tarso Genro, sobre a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, da era stalinista, que dizia: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov”. Será que a era da telejustiça protagonizada por supertelejuízes será capaz de nos proporcionar um mundo melhor e mais justo?

Objeto e estrutura do livro

Para além da midiatização do Judiciário, um outro tema de grande destaque no cenário criminológico atual reside, sem sombra de dúvida, na análise das opiniões pública e publicada diante da punição, e isso em razão da crescente preocupação diante do populismo punitivo que vem se desenvolvendo em inúmeros países e que possui nos clamores punitivos dos cidadãos um pilar significativo para o delineamento de respostas mais severas à criminalidade. O presente livro, atento a esse contexto, traz duas abordagens essenciais para a compreensão desta problemática no território brasileiro: uma espécie de teoria geral do populismo penal e o populismo penal midiático.

Enquanto a primeira parte do livro se ocupará da teoria geral do populismo penal, a segunda se incumbirá mais detalhadamente do populismo penal midiático, conferindo especial atenção às suas engrenagens e formas de atuação. Referências e aproximações (diretas ou indiretas) à Ação Penal 470, que trata do caso “mensalão” no STF, são encontradas em ambos os textos, de forma a provocar reflexões sobre se o julgamento e a cobertura dada foram ou não alcançados pelas teias e lógicas populistas.

Após a menção da origem e dos agentes do populismo penal, são expostas, já na primeira parte, distinções entre as planificações política e penal da diretiva, abrangendo as diferenças (marcantes) entre as democracias representativa (clássica) e de opinião (atual). Também no campo conceitual, são mencionadas as várias espécies de populismo penal, como o midiático, o judicial, o legislativo, dentre outros, ingressando-se num exame pormenorizado das modalidades conservadora clássica e conservadora disruptiva.

Considerando e, sobretudo, demonstrando ser o fenômeno populista o primordial agente (ou discurso) condutor do direito penal simbólico e expansionista desde o princípio do novo milênio, além de indutor ou incrementador de vários malefícios sociais como o medo, a insegurança, a crise de credibilidade na Justiça e o encarceramento massivo, cuida-se do seu contexto no concerto geral dos movimentos político-criminais, tais como o garantismo/minimalismo, o abolicionismo, o neoconservadorismo, a esquerda punitiva e o fundamentalismo penal, aproveitando o ensejo para, munido de dados empíricos, assinalar os erros cometidos pela política criminal brasileira.

Ainda na primeira parte deste livro, são feitas considerações críticas sobre a atuação da mídia populista, a qual, por exemplo, em seus juízos paralelos, tem se revelado hábil na realização de cerimônias de bodes expiatórios e, consequentemente, na humilhação de suspeitos ou acusados de ter praticado um crime. Neste toar, esclarecimentos sobre o funcionamento e características do “jornalismo justiceiro” não foram negligenciados na primeira parte do livro.

Em se falando de justiça, necessário ressaltar que, ao longo da parte I desta obra, são pontuadas várias críticas sobre a pressão que a mídia exerce sobre os operadores jurídicos, principalmente sobre os juízes criminais, no intuito de interferir em suas decisões judiciais, incluindo-se o caso do mensalão.

Na segunda parte deste livro, a partir de uma reflexão transdisciplinar, envolvendo Criminologia, Comunicação Social e Política Criminal, a autora discorre sobre o populismo penal midiático, bem como sobre a mentalidade da opinião pública perante a punição e seus (possíveis) reflexos na construção de políticas criminais no Estado Democrático de Direito contemporâneo.

Para tanto foram contempladas no decorrer das primeiras páginas da parte II a sistemática da construção da realidade social pelos mass media, suas formas de atuação na formação da opinião pública e sua postura enquanto potente grupo de pressão na construção das referidas políticas. Nesse ensejo, a obra não tardou em abordar a vinculação entre os populismos midiático e punitivo, discorrendo também sobre a interação entre as agendas midiática, pública e política, estudadas pela teoria da agenda-setting.

Em um segundo momento, o exame debruçou-se sobre o posicionamento da opinião pública entre as Criminologias do Eu e do Outro, visando a identificar, igualmente, a emersão de anseios de nuances psicossocial e instrumental nela contidos.

Nessa senda, partindo da premissa beckeriana de que a reação social, mediante a provocação de empresários morais, possui o condão de desencadear o processo de criminalização primária e que, consoante Garland, as mentalidades e sensibilidades sociais fornecem guarida e limites às políticas criminais, constituindo o posicionamento manifestado pela opinião pública em cartas publicadas em periódicos uma influência na elaboração da política criminal, o livro em tela, com o fito de ilustrar o panorama dessa opinião, recorreu a uma análise empírica dos comentários publicados entre 1º/8/2009 e 31/7/2010 na seção “Do Leitor” do jornal Zero Hora, impresso diário de maior circulação paga no Rio Grande do Sul, situando-se, no ano de 2010, na 6ª posição da categoria no ranking brasileiro, de acordo com a Associação Nacional de Jornais. Ao final do ponto, traz-se a lume a necessária reflexão sobre a apropriada classificação desses comentários como opinião pública ou publicada.

Por conseguinte, são abarcados os possíveis reflexos dessas demandas populares na política criminal brasileira, ilustrando a problemática de leis punitivistas e simbólicas. Ademais, no que tange à hipótese de rompimento de eventual ciclo populista, são aventadas algumas possibilidades de transformação das práticas da mídia, dos poderes executivo e legislativo, evocando ainda a responsabilidade dos cidadãos nessa tarefa.

Por fim, e para além dos reflexos das opiniões pública e publicada no processo de criminalização primária, é realizada uma análise da incidência da pressão destas no âmbito da criminalização secundária, mais precisamente sobre a atividade jurisdicional. Nesta perspectiva, sendo sabido que o julgamento do caso “mensalão” pelo STF tem causado grande frenesi, repercutindo na imprensa nacional e internacional, não há como deixar de reconhecer a estreita identidade entre a narrativa do livro e os comentários lançados da seção do leitor dos periódicos do país, incluindo-se o Estadão e a Folha de S.Paulo.