Eu disse por que, depois de Memórias de uma moça bem-comportada, decidi prosseguir com minha autobiografia. Parei, exausta, quando cheguei à liberação de Paris; precisava saber se meu projeto interessava. Pareceu-me que sim; entretanto, antes de retomá-la, hesitei de novo. Amigos e leitores me instigavam: “E então? E depois? Como vão os trabalhos? Em que pé está agora? Termine. Você nos deve a continuação…” Mas, tanto dos outros como de mim mesma, não faltaram objeções: “É cedo demais, você ainda não tem uma obra suficientemente rica…” Ou então: “Espere poder dizer tudo: lacunas, silêncios, são coisas que desvirtuam a verdade.” E também: “Falta-lhe distanciamento.” E ainda: “Afinal, você se revela mais nos seus romances.” Nada disso é falso: mas não tenho escolha. A indiferença, serena ou aflita, da velhice não me permitiria mais apreender o que desejo captar: aquele momento em que, na orla de um passado ainda ardente, começa o declínio. Desejei que meu sangue circulasse nessa narrativa; desejei lançar-me nela, viva ainda, e me pôr em questão, antes que todas as questões estivessem extintas. Talvez seja ainda muito cedo; mas amanhã certamente será tarde demais.
“Conhecemos sua história”, disseram-me também, “pois a partir de 1944 ela se tornou pública”. Mas essa publicidade não passou de uma dimensão da minha vida privada e, já que um dos meus objetivos é dissipar mal-entendidos, parece-me útil contá-la em sua verdade. Mais envolvida do que antes nos acontecimentos políticos, falarei mais deles; nem por isso minha narrativa será mais impessoal; se a política é a arte de “prever o presente”, não sendo especialista, é de um presente imprevisto que darei um depoimento: a maneira como a história se apresentou a mim no dia a dia é uma aventura tão singular quanto a minha evolução subjetiva.
No período do qual vou falar, tratava-se mais da minha realização do que da minha formação. Rostos, livros, filmes, encontros que tive, importantes no seu conjunto, quase nenhum me foi essencial; quando os evoco, são muitas vezes os caprichos da minha memória que dirigem minha escolha, não implica necessariamente um julgamento de valor. Por outro lado, não irei me demorar nas experiências que descrevi alhures — minhas viagens aos EUA, à China —, mas relatarei detalhadamente minha visita ao Brasil. Certamente, com isso, este livro acabará ficando desequilibrado: tanto pior. De qualquer modo, não pretendo que ele seja — não mais que o precedente — uma obra de arte: essa palavra me faz pensar em uma estátua que se entedia no jardim de uma mansão; é um termo de colecionador, de consumidor, e não de criador. Nunca pensaria em dizer que Rabelais, Montaigne, Saint-Simon ou Rousseau realizaram obras de arte, e pouco me importa que recusem esse rótulo às minhas memórias. Não, não uma obra de arte, mas minha vida em seus impulsos, suas aflições, seus sobressaltos, minha vida que tenta dizer-se, e não servir de pretexto a ademanes.
Mais uma vez, cortarei o mínimo possível. Espanta-me sempre que se reprove um memorialista por se estender; se ele me interessa, irei segui-lo por volumes; se me aborrece, dez páginas já são demais. A cor de um céu, o gosto de uma fruta, não os sublinho por complacência para comigo mesma; ao contar a vida de outra pessoa, eu anotaria com a mesma abundância, se os conhecesse, aqueles detalhes que se dizem triviais. Não só é por meio deles que sentimos uma época e uma pessoa em carne e osso, mas, por sua não significância, eles são, numa história verídica, a própria marca de verdade; nada indicam além deles próprios, e a única razão de evidenciá-los é o fato de estarem ali: isso basta.
Apesar das minhas reservas, que valem também para este último volume — impossível dizer tudo —, críticos acusaram-me de indiscrição; não fui eu que comecei: prefiro esquadrinhar eu mesma meu passado a deixar que outros o façam.
Em geral, reconheceram em mim uma qualidade à qual eu tinha me apegado: uma sinceridade tão distante da presunção quanto do masoquismo. Espero tê-la conservado. Exercito-a há mais de trinta anos em minhas conversas com Sartre, me investigando no dia a dia, sem vergonha nem vaidade, como investigo as coisas que me cercam. Essa qualidade me é natural, não por uma graça singular, mas por causa da maneira como encaro as pessoas, inclusive a mim mesma. Acredito na nossa liberdade, na nossa responsabilidade, mas, qualquer que seja a sua importância, essa dimensão da nossa existência escapa a qualquer descrição; o que se pode alcançar é apenas o nosso condicionamento; apareço aos meus próprios olhos como um objeto, um resultado, sem que intervenham nessa apreensão as noções de mérito ou de erro; se, por acaso, com a ajuda do distanciamento, um ato me parece mais ou menos feliz ou lamentável, para mim é muito mais importante, em todo caso, compreendê-lo do que apreciá-lo; tenho mais prazer em me descobrir do que em me lisonjear, pois meu gosto pela verdade ganha, de longe, da preocupação que tenho com a minha pessoa: esse mesmo gosto explica-se pela minha história, e não me vanglorio. Em suma, pelo fato de que não faço qualquer julgamento sobre mim, não sinto nenhuma resistência em revelar minha vida e eu mesma; pelo menos à medida que me situo no meu próprio universo: talvez minha imagem projetada num mundo diverso — o dos psicanalistas, por exemplo — pudesse desconcertar-me ou constranger-me. Mas, se sou eu que me retrato, nada me amedronta.
Evidentemente, é preciso entender o que significa minha imparcialidade. Um comunista ou um gaullista contariam de outro modo esses anos; e também um operário, um camponês, um coronel, um músico. Mas minhas opiniões, convicções, perspectivas, interesses, compromissos estão declarados: fazem parte do testemunho que dou a partir deles. Sou objetiva, é claro, à medida que minha objetividade me envolve.
Como o anterior, este livro solicita a colaboração do leitor: apresento, em ordem, cada momento da minha evolução, e é preciso ter a paciência de não fechar a conta antes do fim. Não se tem o direito, por exemplo — como fez um crítico — de concluir que Sartre gosta de Guido Reni porque o admirou aos dezenove anos. Na verdade, só a malevolência dita esses despropósitos e contra ela não pretendo precaver-me; ao contrário, este livro tem tudo o que é preciso para suscitá-la, e eu ficaria decepcionada se ele não desagradasse. Ficaria também decepcionada se não agradasse a ninguém, e é por isso que advirto que sua verdade não se exprime em nenhuma de suas páginas, mas somente na sua totalidade.
Apontaram-me em A força da idade muitos erros de pouco significado, e dois ou três sérios; apesar de todos os meus cuidados, também neste livro certamente terei errado com frequência. Mas repito que nunca trapaceei deliberadamente.