Capítulo IX

O bombardeio de Sakiet provocara a intervenção conciliadora da diplomacia inglesa e americana; falava-se de um Dien-Bien-Phu diplomático; o exército clamava veementemente que não consentiria nisso. Começou-se a falar na volta de De Gaulle. Não se podia contar com a polícia para manter a ordem republicana. Como alguns tiras haviam sido abatidos por argelinos em Paris — não ao acaso, na maioria das vezes, mas por represália —, a polícia manifestou-se em massa no dia 13 de março, diante da Câmara. Enquadrada na rede Dides, ela simpatizava com o fascismo: quando, depois da queda de Gaillard, derrubado em 15 de abril por Soustelle e Bidault, a esquerda multiplicou os foros e os comícios, os “patriotas” que vinham quebrar a cara dos oradores estavam certos de sua proteção. Parecia impossível manter de pé qualquer combinação ministerial, e o nome de De Gaulle vinha à baila cada vez mais. Em 6 de maio, pronunciou-se o nome de Pflimlin, mas este, para ser investido, precisava dos votos dos Independentes, que não conseguiam decidir-se.

A FLN havia reabsorvido em grande parte o MNA e suscitara alianças espetaculares.166 Ela exigia que se aplicasse à ALN as convenções do direito internacional. Quando o governo francês mandou guilhotinar dois combatentes argelinos, três prisioneiros franceses foram fuzilados. Em 13 de maio, Argel resolveu manifestar-se contra essas represálias.

À noite, eu estava em minha casa com Lanzmann, quando Pouillon, secretário-redator da Assembleia, telefonou-nos: a manifestação do Fórum transformara-se em insurreição: a multidão, liderada por Lagaillarde, tomara o Governo Geral; Massu presidia um Comitê de Salvação Pública; em suma, para permanecer francesa, a Argélia, com o apoio do exército, separava-se da França. Seguiram-se outros telefonemas: amigos jornalistas comunicavam-nos os últimos telegramas. Pouillon anunciou-nos novamente que a resposta da Câmara fora firme; ela aprovara a investidura de Pflimlin por duzentos e oitenta votos contra cento e vinte, com os comunistas abstendo-se por princípio. Adormeci tranquilizada. No dia seguinte correu o boato de que, ao saber do voto da Câmara, os coronéis haviam empalidecido; um deles dissera: “Tudo perdido!” Pflimlin mandou cortar as comunicações entre a Argélia e a França: contra esse bloqueio, a sedição não se aguentaria mais de oito dias. Em 14 de maio, ninguém das minhas relações estava muito inquieto. Lanzmann fora convidado, com uma delegação de jornalistas de extrema esquerda, a visitar a Coreia do Norte: durante a noite, perguntara-se se a viagem não iria ser suspensa; agora, não pensava mais assim.

No dia seguinte, soubemos que, pela manhã, no Fórum, Salan gritara: “Viva De Gaulle”. E De Gaulle acabava de anunciar num comunicado: “Estou pronto a assumir os poderes da República.” Pflimlin restabeleceu as ligações com a Argélia, e não tomou nenhuma outra medida. No dia seguinte, os jornais descreveram a farsa organizada em Argel e em todo o país sob o nome de confraternização.

Na noite em que assisti, no teatro Sarah-Bernhardt, a O processo de Lúculo, de Brecht, sombrio ataque contra a guerra e os generais, a plateia aplaudiu delirante; mas ela era composta de intelectuais de esquerda, isolados há muito tempo em seu país. Os comunistas faziam profissão de otimismo. Lanzmann representava Sartre no Comitê de resistência contra o fascismo; em cada reunião, Raymond Guyot declarava: “Primeiro, devemos regozijar-nos: formam-se comitês por toda parte… A situação é excelente…” Mas no dia 19 a greve geral deflagrada pelos sindicatos fracassou. No mesmo dia, De Gaulle deu uma entrevista à imprensa que nos foi relatada por Lanzmann, enquanto jantávamos na rua de Bûcherie, com os Bost; ele reconhecera, na reunião, todos os velhos chefes do RPF. Ao mesmo tempo que reivindicava um procedimento excepcional para sua investidura, De Gaulle comunicara que desejava ser legalmente chamado pelo país. Senhoras da sociedade escutavam-no, extasiadas; Mauriac tinha desmaios. Bourdet perguntou a De Gaulle se ele não achava que estava fazendo o jogo dos facciosos. “O universo de vocês não é o meu” — foi mais ou menos o que De Gaulle respondeu. Lanzmann não duvidava de que ele teria êxito; a democracia burguesa preferia naufragar em proveito de um ditador a ressuscitar uma frente popular. Bost não queria acreditar nele: apostaram uma garrafa de uísque.

Americanos que faziam escala em Orly recusaram-se a deixar o avião, pois imaginavam que o clima em Paris estivesse muito turbulento: nós rimos disso, sem alegria. Tudo se passava numa calma fúnebre. O país se deixava convencer de que só havia uma alternativa: De Gaulle ou os paraquedistas. O exército era gaullista e a polícia, fascista; Moch propusera mobilizar as milícias populares; mas a única preocupação da direita e dos socialistas, no momento em que os paraquedistas se preparavam para marchar sobre Paris, era evitar “o golpe de Praga”. O apelo brutal endereçado por De Gaulle a Mollet no dia 19 chocara, por sua grosseria, o próprio interessado; depois, ele se dispôs a responder. Quanto à inércia do proletariado, devia ser tomada como um consentimento; sem De Gaulle, teria havido, sem dúvida, um sobressalto; mas seu governo, entre 1945 e 1947, não fora pior do que os que lhe sucederam; ele conservava seu prestígio de libertador e, não sendo venal, passava por honesto. Argel triunfava, graças a ele.

O que em 13 de maio parecia impossível parecia-nos fatal no dia 23. Os pieds-noirs e o exército haviam vencido. Tudo se passaria sem tumulto: era tão evidente, que a delegação à qual Lanzmann pertencia decidiu não adiar sua partida. Ele teria desejado permanecer, mas não podia deixar de solidarizar-se com os outros. Fui passar dois dias com ele num hotel que apreciávamos, perto de Honfleur. Mostrando-me os cercados floridos de macieiras, ele me disse, com voz desolada: “Nem mesmo a relva terá a mesma cor.” O que nos acabrunhava era descobrir de repente a fisionomia que a França adquirira pouco a pouco: despolitizada, inerte, prestes a abandonar-se aos homens que queriam levar a guerra até as últimas consequências.

Levei Lanzmann a Orly na manhã do dia 24 de maio. À tarde, ficamos sabendo da rebelião na Córsega. Foram para mim, como para tantos outros, dias desconcertantes. Eu não trabalhava mais. Em março, entregara a Gallimard Memórias de uma moça bem-comportada. Hesitava em continuá-las. Minha ociosidade e a ansiedade geral levaram-me, como em setembro de 1940, a voltar ao meu diário. Iniciei-o também, em grande parte, para mostrá-lo mais tarde a Lanzmann, com quem me era quase impossível corresponder-me. Mais uma vez, vou transcrevê-lo.

 

 

26 de maio  

 

Curiosos dias, em que se escuta de hora em hora o rádio e Inf. 1, e em que se esgotam todas as edições dos jornais. Ontem, neste domingo de Pentecostes, oitocentos mil parisienses haviam deixado a cidade, as ruas estavam desertas; a atmosfera estava pesada, mas não fazia calor, e o céu estava cinzento. Da janela de Sartre, viam-se passar carros de bombeiros, vermelhos, com sua grande escada, que atravessavam o bulevar Saint-Germain. Muitos carros de polícia patrulhando. O novo comitê de Argel (Massu, Sid-Cara, Soustelle) declarou, sábado: “De Gaulle ou a morte.” Foram eles que enviaram Arrighi à Córsega, mas afirmam também haver rompido relações com aquela região.

Lanzmann partiu anteontem para a Coreia. Telegrama de Moscou, onde ele permanece três dias.

Conversas com Sartre à noite, na Palette, sobre meu livro. Ele me lembra como estávamos felizes em Rouen, no anonimato da juventude (revejo a cervejaria Paul, onde eu corrigia meus originais). Não trair esse período, narrando-o.

Hoje faz um frio glacial. O vento agita a hera no muro do cemitério e entra no studio por todas as frestas das janelas. O trabalho que estou iniciando vai me tomar três ou quatro anos, é um tanto amedrontador. Penso que é preciso antes juntar de uma só vez uma grande quantidade de material.

Sim, ainda durante todo o dia, nesta segunda-feira de Pentecostes — Paris tão vazia quanto ontem, os jornais censurados, a imprensa estrangeira interditada —, atmosfera de catástrofe insípida. Choveu, e depois houve uma grande tempestade com trovões. Jantar na Palette com Nazim Hikmet. Dezessete anos de prisão, e agora obrigado a permanecer deitado doze horas por dia por causa do coração. Cheio de charme. Conta como, um ano depois de sua saída da prisão, houve dois atentados contra ele (carros, nas ruas estreitas de Istambul). Depois, quiseram mandá-lo servir na fronteira russa: ele tinha cinquenta anos. O major-médico lhe disse: “Meia hora em pé ao sol, e o senhor será um homem morto. Mas eu devo dar-lhe um atestado de boa saúde.” Então ele partiu através do Bósforo, num minúsculo barco a motor, em noite de tempestade: com tempo bom, o estreito era rigorosamente vigiado. Ele queria chegar à Bulgária, mas era impossível com aquele mar revolto. Cruzou com um cargueiro romeno, pôs-se a girar em torno dele, gritando seu nome. Eles o saudaram, agitaram lenços: mas não pararam. Ele os seguiu e continuou a rodar, em meio à tempestade que se desencadeara; ao fim de duas horas pararam, mas sem fazê-lo subir. Seu motor afogou, e ele pensou que tudo terminara. Finalmente, içaram-no a bordo. Fora preciso telefonar a Bucareste para pedir orientação. Transido, semimorto, entrou na cabine dos oficiais; havia lá uma enorme foto sua com uma inscrição: “Salvem Nazim Hikmet.” “O mais surpreendente”, acrescentou ele, “é que já fazia um ano que eu estava em liberdade”.

Lanzmann telefona de Moscou. São sete horas aqui, nove horas lá, e a noite cai sobre o Moskova. Tão perto, tão longe. Uns tipos jovens o abordam à porta do hotel, murmurando: “Business?” Querem trocar mulheres pelas roupas dele. Ele está perturbado, inquieto com os acontecimentos que só conhece através do correspondente do Humanité.

Dificuldade de trabalhar. Espera-se, não se sabe o quê. Noite com Sartre e Bost. Especulamos sobre os acontecimentos.

 

 

Terça-feira, 27 de maio  

 

Almoço com Sartre no La Coupole. A CGT decretara greve; a FO e a CFTC não aderiam, mas de qualquer modo esperava-se alguma coisa: nada; os ônibus e o metrô não param. No táxi, no rádio, o fim da declaração de De Gaulle. Sim é “o último quarto de hora”, como escreve Duverger. O motorista: “Muito bem! Agora são eles que mandam, faz tempo que estão se lixando para o mundo, gastando nosso dinheiro, e todos esses rapazes se matando na Argélia.” Furioso com os “bocós” porque haviam votado poderes especiais e uma homenagem ao exército; eles também zombam do mundo: “Também, está se vendo como a greve deles funciona!” Provavelmente um tipo de esquerda, pronto a aceitar De Gaulle, por desespero. Que mistificação! Tudo vai ser feito brandamente, e depois as coisas vão endurecer. País no abandono, por termos chegado à repulsa. Que insipidez nessa derrota! Impressão de viver dias “históricos”, mas não da maneira pungente, aguda, de junho de 1940; dias de logro, dias lodosos, como os que conta Guillemin. Chafurdamos na matéria confusa do livro de um futuro Guillemin.

Naquela noite havia terríveis coisas negras, torcidas como sarmentos, que caíam do céu; uma aterrissava ao meu lado, uma enorme serpente, e o medo me impedia de fugir. Uma espécie de carro de polícia passava, eu pulava para dentro dele. Estavam fazendo uma caça às serpentes que há horas se abatiam sobre a região — uma estranha terra de florestas e estradas intransitáveis. Mas a única visão impressionante era dessas grandes formas apocalípticas acima da minha cabeça, e que caíam.

Durante todo o dia telefonemas, como na noite de 13 de maio. E meu jovem amigo marselhês me escreve quase todas as manhãs. Precisamos nos falar, mesmo sem ter nada a dizer.

Péju acaba de telefonar (às seis horas), dizendo que Pflimlin saiu alterado da casa de Coty, que De Gaulle deixara Colombey e regressara. Nada de greve, em lugar nenhum, exceto entre os mineiros do norte. De Gaulle dissera, naquela noite, que, se não tivesse o poder em quarenta e oito horas, iria tomá-lo. O exército está com ele. Em Toulouse, pediu-se ao comando militar para garantir a ordem (por causa da manifestação prevista para esta noite), o que foi recusado.

Sartre trabalha em sua peça; e eu tento interessar-me pelo meu passado. Na estrada de Honfleur, Lanzmann dizia-me: “Nem mesmo a relva será da mesma cor”. Contemplo a praça Saint-Germain e penso: “Não será mais a mesma cidade”.

Rádio de sete e meia: talvez ainda uma esperança.

 

 

Quarta-feira, 28 de maio  

 

Passamos a noite de ontem com os Leiris. Ouvimos o rádio em casa deles; impossível captar a rádio Luxemburgo — só conseguimos pegar a rádio do Estado. Assembleia à noite: Pflimlin faz votar a lei sobre a Constituição. Lembrança do tempo em que escutávamos também o rádio com eles, no momento da volta dos alemães à Bélgica.

Esta manhã, tempo radioso. Recolho informações. Pflimlin teve uma maioria de quatrocentos votos contra pouco mais de cem; os Independentes deixaram o ministério, que está demissionário, mas sem criar “a vacância do poder”. Coty anunciou que a partir dessa noite um novo ministério seria constituído.

Deve haver uma grande manifestação esta tarde; nós compareceremos.

 

 

Sexta-feira, 30 de maio  

 

Não consigo escrever mais nada além deste diário, e até mal tenho vontade de escrevê-lo, mas é preciso matar o tempo. Quarta-feira, almoço na Palette com Claude Roy, que pediu para ser reintegrado ao PC, o que sem dúvida conseguirá. Ele cita uma frase de De Gaulle sobre Malraux, corrente em Paris: “Ele me reprovou por ter ido até à beira do Rubicão para pescar de vara; e agora que o transponho, ele pesca na lagoa.” Com efeito, Malraux passou todo esse tempo em Veneza, falando sobre arte; mas voltou anteontem à noite, e espera, segundo Florence, ser ministro da Informação ou da Cultura.

Vamos de táxi — quarta-feira —, às quinze para as cinco, ao metrô Reuilly-Diderot. Longo desfile da esquerda, na calçada. Visivelmente comunistas, trazendo cartazes: “Viva a República!” No metrô, esperamos o Comitê do 6.º, mas o CNE também marcou ali seu encontro. Da boca do metrô sai um monte de gente conhecida. Pontalis, Chapsal, Chauffard, os Adamov, os Pozner, Anne Philipe, Tzara, Gégé com sua família e seus auxiliares, minha irmã. Todos estão espantados de ver uma multidão tão grande: cada um temia que a manifestação fosse um fiasco. A Nation está apinhada de gente. Caminhamos atrás da bandeirola das “Belas-Artes”, para nos reencontrarmos atrás de “Os Direitos do Homem”, e depois num lugar indistinto. Velhos republicanos rejubilam-se porque aquilo os rejuvenesce cinquenta anos; pulam para ver, por cima das cabeças, a extensão do cortejo, e seus rostos se iluminam; alguns sujeitos penduram-se em postes, no meio das calçadas, sobem nos ombros de um companheiro, fazem sinais de aprovação: o desfile não acaba, nem numa direção nem na outra. Ao longo das calçadas, muita gente aplaude e grita conosco: são de fato manifestantes. Multidão alegre, multidão comportada, que obedece às ordens. Quase não se grita “Viva a República”, mas sobretudo “O fascismo não passará”; muito: “Massu na guilhotina, Soustelle na guilhotina”; um pouco: “Abaixo De Gaulle”, mas timidamente. Os slogans “De Gaulle no museu”, “Os paraquedistas na fábrica” tiveram grande sucesso. (Seria essa discrição devida a um acatamento das ordens, ou ao respeito a De Gaulle, de que falava ontem S.L.? Em todo caso, se alguém esboça um “De Gaulle na guilhotina”, fazem-no calar.) Canta-se a “Marselhesa” e o “Canto da partida”. Sartre canta a plenos pulmões. Dois belos rapagões, ladeados de duas pin-ups, não param de gritar. Nas janelas, curiosos, dos quais muitos demonstram simpatia; crianças aplaudem. Acima do Berceau-Doré, três senhoras velhíssimas, de perucas brancas e apoiadas em almofadas de um ouro fanado, cumprimentam-nos com gestos de rainha. Os sinais continuam a passar do verde ao vermelho, embora o tráfego tenha sido interrompido. Entretanto, de vez em quando o cortejo é bloqueado; para-se e parte-se de novo. Diante do posto de polícia, os guardas imóveis, impassíveis, e a multidão vira-se para eles gritando agressivamente: “Massu na guilhotina!” Desfile caloroso, unânime, emocionante. Diz-se que os exilados desfilaram com roupas riscadas, e os inválidos e doentes em seus carros. A chegada à praça de la République foi decepcionante; não se tinha previsto nada. Pessoas trepadas no pedestal agitavam bandeiras, mas nenhuma palavra de ordem foi pronunciada; dispersamo-nos. Ouvem-se alguns gritos: “À Concorde”, mas ninguém segue; aliás, não se teria passado. Não havia um só tira no trajeto, mas as duas extremidades estavam guardadas por carros da CRS. A multidão não era combativa. O que era espantoso era o entusiasmo que arrebatou a todos: até mesmo os sujeitos mais apolíticos vieram. Mas alguns de nós notavam que as pessoas estavam por demais bem-humoradas, contentes por gritar e cantar, mas de modo algum decididas a agir. E, na véspera, a greve fracassara; a FO e a CFTC felicitavam-se no dia seguinte por se terem manifestado “independentemente da CGT”. Certamente não haverá greve geral. Bost, Olga e os Aptechkman subiram ao primeiro andar do hotel Moderne, onde trabalhavam, com grande reforço de uísque, jornalistas americanos; lá de cima, diziam eles, a vista era impressionante. Entretanto, na sala de jantar do térreo, a dez metros da rua, inglesas de vestidos longos tomavam sua sopa com indiferença. Parece que Mendès foi aclamado na praça de la Nation, mas na chegada, quando os grupos se dispersavam, fascistas atiraram-se sobre ele: não era sua oportunidade.

Voltamos para a casa de Sartre emocionados, com uma aurora de esperança no coração. Logo depois, más notícias: os paraquedistas desembarcaram (esse boato correu durante quatro dias); nem exército, nem os CRS apoiam o governo: De Gaulle deixou Colombey, e Coty vai chamá-lo à noite. Sartre tinha compromisso para a noite, e eu não podia suportar ficar sozinha; fui encontrar, num restaurante da rua Stanislas, os Bost e os Apteckman. Tomamos os carros que havíamos abandonado na rua do Faubourg-Saint-Honoré, e rodamos à volta do Élysée iluminado; era quase meia-noite; as pessoas, que à noite tinham vindo em grande número, começavam a se dispersar; ouvíamos repetirem: “Massu em Paris! Os paraquedistas em Paris!” Era um punhado de quadragenários distintos. (Esqueci de dizer que a Bolsa sobe alegremente, que o napoleão baixou setenta francos.) Os tiras os repeliram muito delicadamente. Regimentos de CRS, em seus carros escuros ou fora dos carros, armas na mão, cercavam tudo; se fossem republicanos, nós nos sentiríamos defendidos, mas, nas circunstâncias atuais, era mais medo o que eles despertavam. Deixavam passar a multidão — pedestres e carros. Barbara Apteckman paquerava-os, e eles lhe lançavam amáveis gracejos. Ela lhes perguntou: “O que estão esperando?” “De Gaulle, mas já faz duas horas que o esperamos, e ele não aparece.” Outros disseram: “Somos de Bordeaux, aporrinham-nos aqui.” E outros: “Estamos esperando para combater.” Imenso desfile de carros elegantes que andavam devagar, por causa do engarrafamento. “Onde vão?” “Ver De Gaulle.” Um táxi do Maxim’s, de modelo antigo, com um velho motorista muito chique, e o emblema do Maxim’s na porta; no interior, um homem de casaca, e uma soberba mulher de vestido vermelho, coberta de joias. Dir-se-ia uma cena de cinema: o pequeno trio típico e inesperado num filme rodado dez anos mais tarde. Um carro saiu do Élysée, parecia que tudo terminara, e que De Gaulle não viera. Passamos diante da Câmara, e fomos beber na Bûcherie. Estava cheio de gente que havia participado da manifestação à tarde, e todos se espantavam com o grande número de pessoas. Mas ninguém sabia o que estava acontecendo agora, e o rádio dos Bost estava quebrado. Telefonei a Péju. Não se cogitavam mais paraquedistas, e os socialistas estavam firmes contra De Gaulle. Com efeito, ele voltou à noite para Colombey. Apteckman estava convencido, como eu, de que os socialistas trairiam. No dia seguinte (ontem, quinta-feira), a manhã foi de uma estranha tristeza. Fazia um tempo maravilhoso, eu saí para ler os jornais, passarinhos cantavam nas praças, os castanheiros perdiam suas flores. Sentei-me no terraço do café, na esquina da avenida D’Orléans. O Figaro criticava a manifestação. O Humanité anunciava quinhentos mil manifestantes, o que me decepcionou, pois pensava que éramos realmente quinhentos mil. O Express, prestes a se fazer soçobrar, com um Mauriac lamentável. Voltei para casa, incapaz de ler seriamente os jornais, de escrever ou de fazer qualquer outra coisa. Estava imobilizada pela angústia. Na calçada, as latas transbordavam de lixo, pois os garis estavam em greve.

E, durante o dia, a traição iniciou-se. Publicaram a carta em que Auriol pede a De Gaulle para retirar sua solidariedade a Argel, e sessenta e nove socialistas declararam que, se o fizesse, votariam nele, “a fim de afastar a guerra civil”. Almoçamos em casa dos Pouillon. Foi lá que ouvimos a mensagem de Coty às Câmaras: ele ameaçava pedir demissão se De Gaulle não fosse empossado. À noite, De Gaulle voltou. Reuniu no Élysée os chefes de grupos “nacionais”. Regressou a Colombey durante a noite. Vai haver ainda um dia de trapaças, e a jogada será feita segundo um roteiro bem-concebido e perfeitamente executado.

Durante o almoço, Pouillon falou de maneira muito divertida sobre os costumes e ritos parlamentares. Estava presente Lévi-Strauss, sempre silencioso. Ele perguntou, aparentando surpresa: “Mas por que De Gaulle despreza os homens?”, o que era encantador, pois ele parece interessar-se muito mais pela fauna e pela flora de um país do que por seus habitantes; mas na verdade é um humanista, e nada lhe repugna mais do que a ideia de “grandeza”.

Casa de Sartre, às cinco horas: jornais, rádio, irritação. Mesmo assim, ele trabalha.

Noite com Olga. Ela pediu a Bost para ir nos encontrar no La Coupole. Um jovem jornalista de esquerda que a acompanha recusa-se a acreditar que De Gaulle esteja envolvido num complô. Especula sobre seu “caráter”, o que me põe os nervos em frangalhos. Volto para casa em estado de grande exasperação.

 

 

Sábado, 31 de maio  

 

Não sei por que voltou-me a calma; talvez porque Sartre suspendeu a corydrane, obriga-se ao sono e à calma, e isso é contagioso. E depois, sobretudo, o jogo está feito, a partida está perdida e, como dizia Tristan Bernard depois de sua prisão, agora acabou-se o temor, vamos começar a esperar. De Gaulle será empossado esta noite, certamente. Pelo menos a SFIO vai explodir. A greve dos professores, apoiados pelos pais de alunos, foi um sucesso, ontem, no primário e no técnico, e meio sucesso no secundário. Haverá sérias forças de oposição e, de um modo ou de outro, elas terão seu peso.

Houve incidentes quinta-feira à noite, em Saint-Ger-main-des-Près: Évelyne estava lá. Belos carros cheios de belos senhores subiam para os Champs-Élysées; houve um engarrafamento. Começaram a buzinar e a gritar: “Argélia francesa.” Os cafés esvaziaram-se, todos os “camponeses” saíram, e como havia paralelepípedos diante da igreja, apanharam-nos e atiraram-nos contra os carros. Évelyne acompanhou de carro, com Robert, os belos automóveis. Em torno do Élysée, as senhoras em vestidos de noite, longas luvas e joias, confraternizavam com os CRS de capacete.

Mesmo à nossa volta, algumas pessoas recuam. Z., outro dia: “De Gaulle, em todo caso, é melhor que Massu.” E X. hoje explica-me que, se os socialistas não votassem em De Gaulle, seria a guerra civil. Ele espera que De Gaulle governe com Mendès-France e revolucione a economia. Sua mulher, a sós comigo, diz-me: “Você entende, precisamos pensar de modo que Jean (seu marido) não seja obrigado a demitir-se.”

Sartre almoçou com Cocteau, que não estava de acordo com o apelo enviado pela Academia a De Gaulle.

Conferência de imprensa no Lutétia sobre a tortura. Mauriac declara-se gaullista e é aplaudido apenas fracamente. Grande afluência. Poucos jornalistas, na verdade, mas quinhentos intelectuais.

Neste momento, leio mais do que escrevo. Em Critique, um artigo interessante sobre a pesquisa operacional. Se uma máquina calculadora tivesse que calcular o “optimat” em um caso como este — o caminho mais curto para visitar vinte cidades americanas —, precisaria de duzentos e cinquenta mil anos. Quanto ao homem, toma “atalhos”; cada um tem que se defrontar com outros que também se decidem por atalhos. Tudo se passa num nível em que o “optimat” não existe.

Lanzmann chega à Coreia hoje. Situação curiosa.

Quando eu voltava da rua Blomet, ontem, por volta de três horas, vi grupos de jovens que perambulavam no bulevar Pasteur. “Os tiras os expulsaram, mas eles voltam”, disse-me o motorista do táxi. Eram tipos de direita que queriam fazer recomeçar as aulas de Buffon. O motorista: “Greve, eu nunca mais faço: compreendi que, enquanto a gente não trabalha, outros trabalham, não vale a pena… O que vai acontecer? Não vai ser pior do que aquilo que tínhamos antes.” (Esta é a reflexão que se ouve por toda parte: pelo menos a coisa vai mudar, pior não pode ficar.) No entanto, ele acrescenta, sobre De Gaulle: “Tudo isso é culpa dele: em 1945, ele só tinha que expulsar todos os judeus.” Como eu risse, concluiu: “Não entendo nada disso, nada de nada; não se entende nada. E tenho um filho na Argélia!”

Ontem à noite, anuncia Inf. 1, ainda houve manifestações nos Champs-Élysées, com buzinadas e “Viva De Gaulle”. Contra manifestantes gritam: “O fascismo não passará.” Desordem. Vários feridos graves. Os comunistas levaram a melhor.

Esta manhã leio vagarosamente os semanários, e, em Werth, todas as passagens sobre De Gaulle. Burlesco o golpe dos cartões-postais enviados a Colombey. Não, nada de uma “grande figura”.

Almoço e dia tranquilo com Sartre. Sempre incapaz de trabalhar, tento ler Le Maroc à l’épreuve, dos Lacouture. O rádio anuncia a posse de De Gaulle para amanhã; os socialistas não estão de acordo entre si (setenta e sete a favor, setenta e quatro contra; na Câmara, cerca de quarenta a favor, cinquenta contra, Guy Mollet pode estar demissionário); eles votarão individualmente. De Gaulle abrandara-se; irá apresentar-se em pessoa diante da Câmara, aceita deixar-se fotografar. Ministério previsto, muito à direita, mas sem qualquer representante de Argel. Argel deve inquietar-se, apesar da gigantesca manifestação de ontem à noite.

Ao sair da casa de Sartre, encontro Évelyne, Jacques, Lestienne, Bénichou. Eles vão subir aos Champs-Élysées, onde estão previstos grandes desdobramentos. Os pequenos fascistas já vêm para Saint-Germain com seus jornais e suas insígnias; polícia em toda parte. Vai correr sangue.

Évelyne faz plantão no comitê do 6.º, e briga todas as noites. Senti uma profunda vontade de ser jovem, de ir aos Champs-Élysées num verdadeiro impulso de juventude, com sua turma. Talvez o tivesse feito, se não fosse o encontro que marcara com Violette Leduc. Voltei para casa. São oito horas da noite e de novo angústia. Em todo caso, vou levá-la a Saint-Germain, não posso permanecer trancada, à margem, esta noite: a última da República. Os comitês preveem manifestações para amanhã, mas tudo está vago, e isso também é angustiante.

Pergunta número um: que vai fazer De Gaulle na Argélia?

Estranha noite; V.L. chega e cai nos meus braços: “Chantal morreu!” E eis-me mergulhada nas histórias do prédio dela: o sequestrado do terceiro andar, a quem ela levou arroz-doce, que a recebeu de cuecas, depois se vestiu, engravatou-se, fez discursos “políticos” no corredor do prédio, e que a zeladora mandou despachar para Villejuif; Chantal, que tinha quinze anos, cabelos imensos, três tiros no coração, que permaneceu vinte e seis horas na mesa de operação, e que morreu esta manhã, depois de perder todo o sangue. Ela conta histórias sinistras, mas que não me dizem respeito, e que me impedem de pensar naquilo que me toca. Jantamos na Bûcherie, onde avistei Claude Roy, e fomos beber em Saint-Germain. Gente por toda parte, nem um só lugar no terraço do Deux Magots; sentamo-nos no terraço do Royal, e ficamos quase duas horas sem falar, só olhando. Olhávamos os vestidos extravagantes das mulheres, rostos e mais rostos, e sobretudo os carros que iam e vinham, cheios de mulheres arrogantes e de homens satisfeitos. Por vezes, um carro de polícia ou uma pequena viatura de patrulha. Quase nada de perceptível; a não ser, à meia-noite e meia, essa afluência de automóveis, uma afluência enorme, como uma volta de fim de semana ou uma tarde movimentada em dia de semana. Pregada à minha cadeira, ao lado de V.L., eu me sentia vazia, inteiramente possuída por aquela bela tarde sem céu (as luzes o devoravam) na qual, em suma, nada mais se passava, já que tudo fora consumado, mas na qual, com os automóveis lustrosos, as senhoras e senhores triunfantes, algo hediondo se desmascarava.

 

 

Domingo, 1.º de junho  

 

Um pouco de insônia; espanta-me o classicismo cívico dos meus sonhos; afogavam uma mulher nua, meio carne, meio estátua, que era a República. Cerimônia de posse esta tarde. Uma jovem tocou a campainha e me entregou o convite do meu comitê, do 14.º, para as quinze para as quatro.

Telegrama de Lanzmann, que chegara a Piongiang.

 

 

Segunda-feira, 2 de junho  

 

Nem um minuto, ontem, para contar o que se passava. O comitê me telefonou. É V. que telefona, e quando eu digo “Sou eu”, ele se mostra incrédulo: “É ela mesma?” “Claro.” “Em pessoa?” “Claro.” Sartre diz que é a desconfiança comunista. V. me conta a decisão do comitê: é preciso ir colocar flores na estátua da República. Pergunto-me se devo unir-me ao comitê do 14.º, e Sartre? V. hesita, não sabe, diz-me para passar pelo plantão, mas também para obedecer ao 14.º, e pede-me que transmita a ordem, porque lhes proibiram qualquer comunicado, e eles não puderam distribuir panfletos. Tudo isso me parece muito mal organizado.

Tenho um encontro com Rolland no Deux Magots porque ele quer publicar um fragmento de minhas Memórias no Observateur, com uma pequena entrevista. Quanto a ele, recebeu instruções comunistas: ir a Sèvres-Babylone de carro, para provocar engarrafamentos (?). Subo para a casa de Sartre; da janela, avisto Bost, que conversa com Évelyne, maravilhosa numa saia florida e jumper rosa, um lenço também rosa na cabeça. Todo dia ela faz a limpeza do 6.º; passou a manhã correndo as delegacias com Reggiani, para libertar uma moça presa por distribuir panfletos; não a encontraram. Ela nos propõe ir ao nosso encontro no comitê do 6.º; que se reúne às três e meia, em Sèvres Croix-Rouge.

Descemos às três e vinte e cinco; passam Adamov e outras “personagens do espetáculo”. Entramos no carro, onde já estão Olga e Évelyne. Na rua Jacob, compro íris azuis e brancos e gladíolos vermelhos: vinte anos atrás, quem diria que iríamos um dia depositar buquês tricolores ao pé da estátua da República! No cruzamento da Sèvres Croix-Rouge, muitos manifestantes com bandeiras e cartazes, uns espalhados, outros em grupos. Um carro passa e buzina: “Ar-gé-lia-fran-ce-sa.” Manifestantes atiram-se sobre ele; o motorista abre caminho zigue-zagueando, escarnecedor, sob as vaias. Grita-se: “Abaixo De Gaulle”, e os clientes do café Lutétia respondem: “Viva De Gaulle”. Discussão: os Desanti e alguns outros dizem para irmos à République; entretanto, os comunistas deram uma ordem diferente: o cortejo começa a subir de novo o bulevar Raspail, destacando as sílabas dos slogans. Pertencentes ao “Comitê antifascista”, tomamos de novo o carro e nos dirigimos para a République; felicito-me por isso, pois tenho a impressão de que o cortejo vai ser esmagado (o que realmente aconteceu — e até de maneira bastante sangrenta). Deixamos o carro e as flores no bulevar Voltaire. Às quinze para as quatro, pouca gente, mas tiras por toda parte, um exército: esquadrões de capacetes, a pé, e viaturas cheias; a estátua está cercada, impossível aproximar-se. O calor é muito forte, muito pesado; andamos em volta da praça; muitas pessoas, mas dispersas, perplexas; nos braços das mulheres alguns buquês (viam-se muitos naquela manhã, nas ruas, mas por outra razão: era Dia das Mães). Perto de uma saída do metrô uma mulher grita, tomada de uma crise de nervos. Sentamo-nos num terraço. Passam os Apteckman, que vêm sentar-se conosco; muitos fregueses estão, como nós, na expectativa; a velha senhora do lado tem um buquê. Apteckman vai ver o que está acontecendo, e volta correndo: pode-se passar. Bost corre para buscar nossas flores, mas demora, e nós nos misturamos sem ele ao cortejo que atravessa a praça, sob o controle dos tiras, em pequenos grupos; uma jovem que leva um buquê de margaridas dá uma flor a cada um de nós. Pousamos as flores e nos alinhamos na calçada; começa a chegar gente; atrás de nós, lojas de floristas, construídas ou pelo menos multiplicadas para a circunstância. A multidão canta a “Marselhesa” e grita: “A polícia conosco!” Rapazes em casaco de couro compram apressadamente peônias ou hortênsias e atravessam dignamente a praça; um velho maravilhoso, longa barba amarela, óculos, sorriso estático nos lábios — parece um devoto que volta da comunhão. Gritam sempre: “Polícia republicana! De Gaulle no museu!” Bruscamente todos começam a correr. Na multidão um enfermo cai, e homens se detêm para levantá-lo. Évelyne quis colocar-se atrás das grades de um cinema, mas expulsaram-na, os porteiros fecharam as portas corrediças (como durante a libertação de Paris). Tomamos uma rua transversal, chegamos novamente ao bulevar e procuramos o carro que Bost teve que deslocar (foi isso que o atrasou) para deixar espaço para os carros da CRS. São cerca de quatro e meia. Atravessamos novamente a praça de carro: ela está calma. (Foi dez minutos mais tarde, creio, que Georges Arnaud teve o braço quebrado por uma paulada: sangrou.) Corria o boato de que havia manifestações em Belleville, e nós subimos para Buttes-Chaumont. Como tudo está verdejante e alegre, como são lindas as ruas, com grandes saídas pelo azul distante de Paris! É um domingo calmo, as pessoas tomam a fresca nos bancos, crianças brincam, comungantes desfilam. E depois, na avenida Ménilmontant, encontramos um cortejo; saímos do carro e nos juntamos a ele; são comunistas, os membros das células do bairro: sobem e descem essas ruas onde outrora eu ia organizar “equipes sociais”; eles interpelam as pessoas às janelas: “Todos os republicanos conosco!” Como na quarta-feira, Sartre canta a plenos pulmões a “Marselhesa”; ele está ali, não como membro de uma delegação, nem mesmo como o escritor J.-P. Sartre, mas enquanto cidadão anônimo; e não tem mais nenhum respeito humano, e se sente bem dentro dessa multidão, ele que tem tanta dificuldade em aceitar as elites e se sente tão mal entre elas. Ganhamos novamente a avenida; diante de um café cujo terraço está cheio de africanos do norte, os manifestantes gritam: “Paz na Argélia”. Os argelinos mal sorriem. Uma mulher murmura: “Só poucos deles se manifestam.” “Tem razão, eles arriscariam demais, são sempre eles que pagam por tudo, nesses casos”, diz sua vizinha, com simpatia. As pessoas começam a juntar pedras na rua que está em obras; mas um outro cortejo, com bandeiras e cartazes, que vem ao encontro do nosso, as intercepta; trocam-se palavras; os responsáveis incitam a multidão a se dispersar. Viriam eles da République? Quando passamos ali de novo, de carro, a praça está calma; mas agora, além dos tiras, há enfermeiros da Cruz Vermelha, com capacetes, postados nas esquinas das ruas.

No quarto da Mme Mancy escutamos as últimas notícias. Houve desordens em vários lugares; nas portas, nas saídas das estações, os CRS barravam a passagem das pessoas que vinham dos subúrbios (na maioria, membros das células comunistas); isso não impediu reuniões na Trinité, na Bastilha etc. Bons discursos de Mendès e de Mitterand, declarando: “Não cederemos à chantagem”; mais da metade dos socialistas, cinquenta em noventa, vão votar contra. Às sete e meia começa a votação.

Évelyne telefona; Jacques foi apanhado sábado a noite, nos Champs-Élysées, e conduzido para o Centro Beaujon; ele passou a noite errando pelos corredores e pátios, e o dia sem comer, porque fez greve de fome; seus companheiros de prisão eram fascistas, e se agrediram a pedradas. Começavam a soltá-los, mas em pequenos grupos. Jacques foi libertado às nove horas da noite. (Évelyne citou uma frase encantadora de Lestienne; ele se queixa de Palle. “Palle é gaullista, ele faz propaganda gaullista; é repugnante, pois ele sabe muito bem que no fundo eu sou de direita, e que é fácil demais influenciar-me!”)

Noite com Sartre no La Palette e na minha casa. Esperança (incerta) de uma recuperação da esquerda, e grande curiosidade com relação a Argélia. Malraux conversou durante três horas com De Gaulle, no sábado; provavelmente será ministro da Informação.

Setor privado: Sartre viu Huston e Suzanne Flon, no sábado; está combinado, ele fará o filme sobre Freud.

Por volta de onze horas desaba a tempestade que estivera ameaçando durante todo o dia. Relâmpagos envolvem um helicóptero de luzes avermelhadas, o helicóptero da polícia que sobrevoava Paris na quarta-feira durante o desfile, e que vigia a cidade ainda hoje; a torre Eiffel iluminada; eles chamam isso de seu “manto de luz”; eu gostava mais dela escura, com seus belos rubis em torno da cabeça. Trombas d’água e um vento forte, é pouco propício para manifestações de entusiasmo, e o fato é que não se esboçou nenhuma. A posse, esta noite, foi tão insípida quanto a de qualquer presidente do conselho. Nesse meio tempo, estou com a cabeça estourando; não sinto mais angústia, mas uma tensão tão grande, que tomo sarpagan.

Esta manhã, leio a Ligne de force, de Herbart, onde há passagens contra Gide muito maldosas, mas muito divertidas, e uma bonita anedota sobre Aragon.

Dou a Rolland páginas das minhas Memórias; almoço com a estudante americana J., que me espanta com considerações aberrantes sobre o gaullismo. Ela me conta sua infância: mancha horrível no olho, mãe judia, infantil, dominadora e agitada, complexos por toda parte. Uma operação, aos dezenove anos, devolveu-lhe um olho de aparência normal e ela pretende que os livros de Sartre e os meus lhe ensinaram que somos marcados pelo passado, mas não determinados por ele. A partir disso, salvou-se. Quer dar-me de presente os dezoito volumes manuscritos do seu diário. Está obcecada pela bomba atômica, e não compreende por que a França se preocupa tão pouco. Escreveu a Oppenheimer. Mostrou-me uma brochura sobre os quatro Americanos que foram de barco para o Pacífico, e se instalaram no lugar onde deve ocorrer a próxima experiência: eles se reencontraram na prisão. Ela sonha com um barco carregado de pessoas de todos os países: assim, os EUA não poderiam prendê-las. Ou então irá oferecer-se como mártir para experimentar os efeitos das explosões. É tipicamente americana essa ingenuidade idealista, em escala mundial (Gary Davis). Contudo ela não é tola, longe disso. Talvez se saia bem, se tiver uma profissão e os pés na terra.

Dia passado em casa de Sartre, lendo os jornais e tomando notas. Ele almoçou com S.-S. e Giroud. Um referendo foi feito no Express, há dez dias; todos eram energicamente contra De Gaulle, salvo F., por desespero, e evidentemente Jean Daniel.

Nem um único representante da Argélia no governo; e nem qualquer manifestação de entusiasmo em Argel. Eles têm muito medo de terem sido logrados. Beuve-Méry capitulou inteiramente. O último Express era muito mais correto que o anterior. O mais obstinado e mais sólido é Bourdet. Sua resposta a Sirius (Beuve-Méry) no Monde estava muito boa. Aliás, o Monde está dividido; certos colaboradores sustentam-se. O France-Soir começa a virar a casaca: eles publicam a partir de hoje trechos das Memórias de De Gaulle.

Dizíamos ontem à noite, com Sartre: “O intelectual pode estar de acordo com um regime; mas — salvo nos países subdesenvolvidos, que carecem de funcionários — ele jamais deve aceitar uma função de técnico, como faz Malraux. Deve permanecer, mesmo que apoie o governo, do lado da contestação, da crítica — em outras palavras: pensar e não executar. Dito isso, mil questões lhe serão colocadas; mas seu papel não se confunde com o dos dirigentes; a divisão das tarefas é infinitamente desejável.”

 

 

Terça-feira, 3 de junho  

 

Depois da tensão, depressão. Tenho tão pouca vontade de pôr o nariz de fora que durmo esta manhã até meio-dia e meia. Sempre este tempo pesado e frio. Ontem, noitada com Sartre e Bost. Almoço hoje com Sartre, Pontalis e Chapsal. Eu os esperava no Falstaff; na mesa vizinha, um senhor jovem, tipo funcionário um tanto importante,167 conversava com uma mulher muito feia: “Apesar de tudo, Mendès aplaudiu De Gaulle…” “Não, X não quer a Frente Popular: então ele se deixará convencer…” “Tente agir no seu grupo…” “É lamentável: parece que Lazareff é, no fundo, antigaullista…” Quando Sartre chega, eles murmuram: “É Sartre”, e pouco depois vão embora. Começamos a comer e telefonam a Sartre: “Senhor Sartre, eu queria dizer-lhe que o general se prepara para fazer a paz na Argélia, que ele não mandará prendê-lo, e que lamentamos as posições que o senhor tomou no Express.” Muito polido: ele queria convencer!

Não acho mais graça em anotar essas coisas. Mas estou por demais abatida para escrever. Ou estarei abatida porque não escrevo? Semana que vem partimos para a Itália; isso amplia o provisório, o contingente deste período. Para mim é difícil interessar-me pelo meu passado: não sei bem o que fazer.

Um excelente artigo no Saturday Review, com a minha foto na capa. Mas o Times e o New York Times não estão nada satisfeitos. O que os irrita é o fato de eu falar bem da China, embora eu não seja comunista.

Contar as manifestações de quarta-feira a domingo como uma “totalidade destotalizada” seria um verdadeiro problema literário; Sartre resolveu-o até certo ponto, em Le Sursis. Isso me parece mais interessante do que os impasses daquilo que eles chamam “a aliteratura”.

Sartre contava há pouco a Pontalis que, quando procura um tema de peça, faz-se um grande vazio em sua cabeça; em dado momento, ele ouve soar as palavras: “Os quatro cavaleiros do Apocalipse.” É o título de um romance de Blasco Ibañez que ele leu na juventude. Também ele tem bastante dificuldade de retomar o trabalho. Recomeça a tomar corydrane. “Não estou triste”, diz-me, “mas durmo. É uma calma mortuária”.

 

 

Quinta-feira, 5 de junho  

 

Não sei por que eu estava tão exasperada ontem à noite, provavelmente a irritação de ver todos aqueles jornais, todas aquelas pessoas se perguntarem o que “ele” irá dizer, e se perderem em exegeses sobre seus silêncios. E depois exasperada por ouvi-la, com os clamores de Argel ao fundo, com sua voz envelhecida e sua gradiloquência enigmática. E por pensar que eles vão recomeçar a decifrar o oráculo, desejando a todo custo extorquir-Ihe esperanças, enquanto o jogo está feito, implacavelmente; anos de guerra, massacres e torturas.

Ontem de manhã fui ao dentista. L., comunista e judeu, também está lúgubre. Ele diz que os comunistas têm um entusiasmo e um otimismo insuportáveis, convencidos de que ganharam tudo porque a metade dos socialistas votou com eles. Quanto a seus clientes, há os que lhe diziam: “Ora, De Gaulle não vai mandar você para um campo de concentração.” “Eu sei.” “Então, em que tudo isso pode afetar o senhor?” Almoço com Bianca, sempre muito absorvida por seus comitês. Diz que encontraram grupos de paraquedistas à paisana nas ruas. (Isso confirma o que foi censurado no Express, e que o jornal revela hoje: Lagaillarde desembarcou com seis companheiros num aeródromo, para contactar os paraquedistas acampados perto de Paris. De qualquer modo, enviaram todos polidamente de volta para a Argélia.) Ela diz também que em Passy e Neuilly uma espécie de “milícia urbana” começa a organizar-se, com chefes de núcleos etc., como durante a ocupação.

Passei a tarde na casa de Sartre, tentando em vão pensar no meu livro. Eu também me perguntava: o que De Gaulle vai dizer? Agora eu sei. Ele saúda a “renovação” e a “confraternização” cujo exemplo foi dado pela Argélia, e que ele deseja ver estender-se por toda a França. Soustelle não o deixa, durante o dia inteiro. Depois, no Fórum, ele presta homenagem a Argel, ao exército e, sem pronunciar a palavra integração, diz que os muçulmanos devem ser “franceses com todos os direitos”; fala de “colégio único”. Argel está decepcionada porque isso ainda não é suficientemente fascista para eles, e porque uma verdadeira integração os aborreceria de verdade. Apesar de toda a nossa desconfiança, de qualquer modo espanta-nos que ele tenha assumido tão radicalmente Argel e retomado sua política. Pelo menos assim fica tudo inteiramente claro. Só falamos disso a noite inteira, no La Palette. Censuro-me por não ter sido mais ativa. Sartre me diz o que eu me digo muitas vezes: para mim é difícil repetir o que ele faz; nosso dois nomes são apenas um. Não importa. Ao voltar da Itália, tentarei engajar-me mais. A situação me seria menos intolerável se eu tivesse militado mais energicamente. Ao voltar para casa, muito enervada e num certo sentido humilhada ao mesmo tempo que furiosa, encontro uma carta absolutamente insensata de Y., a propósito de Le Traître, de Gorz, e do artigo de Sartre no Express: é uma explosão de antissemitismo. Fui tomada de um ódio generalizado, que me sufocou durante mais de uma hora, e que só pude vencer com soníferos.

Dormi mal, acordei com os nervos em frangalhos. Uma carta enviada pelo “Ministério da Defesa Nacional”, assinada por uma Mme de…, pede-me artigos para a revista Bellone, da qual ela me envia um exemplar, e que é destinada às “mulheres-soldados”. Irão eles, ainda por cima, tentar uma aproximação? Vou comprar os jornais e os leio no café da esquina (a esquina da avenida D’Orléans). O Observateur continua muito bom, o Express tem bons trechos e artigos leves. Os dois são prudentes: esperavam que De Gaulle desejasse realmente negociar na Argélia; dizem que é preciso nos agruparmos contra ele, “mesmo que…”; hoje está tudo claro, e suponho que Bourdet esteja, segundo a velha expressão de Mauriac, “agradavelmente decepcionado”. Abbas, Tunis, Rabat são categóricos: o que De Gaulle oferece é inaceitável. Só aquele maluco do Amrouche no Monde faz continência: “Tenho confiança na sua palavra, meu General.” Por outro lado, fica-se sabendo que há mais de trezentos e cinquenta comitês de salvação pública na França. Com os encorajamentos de De Gaulle, isso vai proliferar. Sartre diz que, por enquanto, nós — ele e eu — nada podemos fazer. Então, vamos partir para um descanso, trabalharemos na volta.

Almoço com Reggiani e sua mulher. Sartre lhes conta sua peça, que gostaria de encenar em outubro; mais tarde, isso será aleatório.

Comprei um vestido para me divertir, mas isso me tomou cinco minutos, e não me diverti. Insipidez lamentável da derrota.

Eu mesma não compreendo por que estou tão transtornada. Chegaremos ao fascismo e então, prisão ou exílio, Sartre vai se dar mal. Mas não é o medo que me preocupa: estou aquém ou além disso. O que não suporto, fisicamente é esta cumplicidade que me impõem ao som dos tambores, com incendiários, torturadores e agentes de massacres; trata-se do meu país, e eu o amava e, sem chauvinismo nem excesso de patriotismo, dificilmente é tolerável ser contra nosso próprio país. Até os campos, o céu de Paris e a torre Eiffel estão envenenados.

Enquanto eu lia, esta manhã, na esquina da avenida, dois vendedores ambulantes — vendiam cerejas —, ambos africanos do norte, atiraram-se um sobre o outro. Como se batiam! Entretanto, dois passantes, de blusões de couro — não eram burgueses, claro —, precipitaram-se para separá-los. Estava difícil, pois um deles cravara firmemente os dentes no ombro do outro, através da camisa de xadrez. Depois surgiu um tira, risonho e balançando o cassetete; mas tudo acabara, e ele perdera uma oportunidade de espancar.

 

 

Sexta-feira, 6 de junho  

 

Esta manhã, sem qualquer razão particular, alguma coisa desfizera-se em mim, e eu estava relaxada. Cartão de L. de Irkoutsk; a Sibéria o encantou. Como me lembro daqueles pequenos aeroportos com suas cortinas esvoaçantes! Tomei o carro, fui a Fontainebleau e voltei, para verificar se estava bom; está tudo bem, posso viajar nele. Tenho pressa de partir.

Joan deixou com a zeladora os dezoito volumes do seu diário. Interessante, apesar da confusão, porque ela se entrega sem reserva. Em geral, os diários íntimos me fascinam, e este é bem extraordinário: mergulhamos realmente numa outra vida, um outro sistema de referências, e num certo sentido é a mais aguda das contestações: enquanto eu a leio é ela o sujeito absoluto, e não mais eu.

De Gaulle continua sua viagem pela Argélia, visivelmente bem descontente. Em Oran, gritaram: “Soustelle! Soustelle!”, e ele disse: “Parem, peço-lhes.” Evidentemente ele não gosta desse fascismo que vai tentar sobrepujá-lo, e cujo jogo, no entanto, está fazendo. Mas basta de comentários, de profecias e de exegeses. Registrarei apenas que falta calor à imprensa, e que esse come back não se faz de modo algum no entusiasmo.

 

 

Sábado, 7 de junho  

 

Quase quinze dias sem trabalhar, embora eu me sentisse tão impaciente no dia 25 de manhã. Mas a angústia não é propícia ao trabalho, sobretudo quando é preciso inventar e lançar-se. Carta de Joan, esta manhã; ao ouvir De Gaulle, sentira repugnância; reação puramente sentimental, mas que foi a de muitas pessoas: estilo fascista, militar, grandiloquente, que desmascara muitas coisas. Carta interessante de A.B.168 Ele fala do medo dos muçulmanos, nos pequenos bleds,169 evitavam-no porque o consideravam comprometedor; a falsa confraternização foi operada com terríveis pressões; durante todo esse tempo, as prisões continuaram, assim como as degolações.

Cuido da minha correspondência; manhã cinzenta, neutra.

 

 

Domingo, 8 de junho  

 

Acabou, rádio três vezes por dia, Inf. 1, todas as edições de jornais. Agora as coisas vão se passar lentamente. Sexta-feira à noite, em Mostaganem, De Gaulle pronunciou enfim as palavras “Argélia francesa”; mas os “gaullistas de esquerda” destacam que ele se recusou a pronunciar “integração”. Para um homem de “caráter”, ele se mostrou curiosamente acomodatício; pois, afinal — sem falar de todo o resto —, em Argel ignoraram os dois ministros que o acompanhavam, e ele engoliu a afronta, em vez de exigir que eles figurassem em todas as cerimônias nos dias subsequentes. Mostra-se realmente bastante condescendente.

Continuo a mergulhar e a me atolar no extraordinário diário de Joan. O texto me toca porque ela leu meus livros de modo tão vivo, que muitas de suas críticas são justas, e porque toma minha defesa com imenso calor, e muitas vezes com inteligência. Mas até nisso me sinto desencantada; há dez anos, penso, isso me teria impressionado; agora, experimento um certo prazer, mas angustiado: seria preciso escrever outros livros, melhores, ter novos méritos, merecer realmente existir assim para outrem. E estou presa entre dois projetos sem conseguir me fixar.

 

 

Terça-feira, 10 de junho  

 

Malraux disse a SS, que relatou imediatamente a Sartre: “Temos informações seguras sobre a confraternização: é uma realidade.” Quando a mitomania se erige em sistema político, a coisa torna-se grave. Ele fez um comentário sobre a “generosidade” da França, de tal ordem que o próprio Clavel protestou no Combat. Bost está no comitê de vigilância do cinema, e furioso com a prudência deles; dez em quinze são comunistas. Sartre diz que se trata apenas de uma tomada de posição, que os comitês nada podem fazer de sério antes do referendo.

Jantar, domingo à noite, com Suzanne Flon, que se mostra muito agradável, e com Huston; ele tem a sedução americana, apesar de um grande terçol. Falou-se muito de Freud, casto até o casamento, aos vinte e sete anos, e esposo perfeitamente fiel. Huston teve a ideia desse filme depois de rodar um documentário sobre as neuroses provocadas pela guerra; o filme resultara de tal forma antimilitarista que foi censurado.

 

 

Quarta-feira, 11 de junho  

 

Como eu tinha a noite de ontem livre, chamei Joan. Fico com o coração um tanto apertado ao pensar que durante cinco anos ela desejou ver-me, que se esforçou para isso com tanta tenacidade e habilidade, que acabou conseguindo, e que tudo se reduziu a essas três conversas banais. Agora, tendo lido quase todo o seu diário, eu quis falar-lhe dela mesma. Como fora infeliz! Que belo pequeno “inferno privado” ela fabricou para si, com essa curiosa mistura tão americana de liberdade e de tabus, tendo como fundo sua feiura atroz e as relações sofridas com uma mãe bonita, célebre e desequilibrada pelo abandono do marido — um homem calmo e encantador — que partira para o fim do mundo. Joan, uma mancha no olho, dentes defeituosos, afligida por tiques e pela timidez, passou na sombra uma infância solitária e acuada. Aos dezesseis anos, idílio com Bodenheim, célebre poeta dos anos 1920, na época destruído pelo alcoolismo, impotente, semilouco; bolinava-a nas praças. A mãe, avisada por uma police-woman, escreveu a Bondenheim uma carta na qual, fingindo ser um boxeador profissional, ameaçava quebrar-lhe a cara. Ele explicou a Joan que devia romper com ela porque tinha hemorroidas e uma hérnia; e também porque já tivera tantos problemas com menores, que com uma a mais ele se arriscava à prisão, ou pelo menos ao escândalo, e que então seu editor não reimprimiria mais seus livros. Morreu cinco anos mais tarde, surpreendido na cama com uma mulher bastante bela, por um marido ciumento, que o apunhalou no coração, estrangulou a mulher e acabou a vida num asilo. Todo Greenwich compareceu às exéquias de Bodenheim, e ninguém acompanhou o caixão da mulher. Depois, a história de Joan é uma longa sequência de aventuras mais ou menos sórdidas e de paixões infelizes. Passou dois anos em Yale: outras paixões infelizes. Ligada a comunistas e a trotskistas, veemente, agitada, desconfiavam dela, embora fosse uma aluna brilhante. Enfim, veio para Paris. Foi assim que assistiu à minha conferência, durante a qual fez uma intervenção, e que me escreveu. Jantamos no Falstaff. Uma vendedora de flores, meio louca, cantava e se contorcia no chão, em meio a risos. Aconselhei Joan a voltar para a América, a não manter mais diários, a pensar em outra coisa além dela própria, a ler em vez de falar. Aconselhei-a a escrever, e me parece que ela seria capaz de fazê-lo, porque nesse extravagante diário alguma coisa “passa”, e algo forte. Ela não ousa; quer trabalhar numa fábrica para “ficar perto do proletariado”, mas creio que a literatura é para ela o único meio de fugir da solidão. Pusera um vestido de veludo negro com uma joia azul bastante bonita, e mandara frisar a franja. “Não estou ugly, apenas plain”, disse-me. Voltará para a América em agosto. Eu ficaria espantada se ela se decidisse a escrever.

Esta manhã passei na Gallimard. Conversei durante uma hora e meia no Deux Magots com Jacques Lanzmann. Ele me conta sua viagem ao México, a Cuba, Haiti, São Domingos. Afirma que em Santiago de Cuba viu com seus próprios olhos homens pendurados pelos testículos e um tigre ao qual davam cadáveres para comer. Mas é um poeta. A imprensa de Batista publica cotidianamente fotos dos sujeitos que ele manda torturar e matar: mais de cem por dia. Claude Julien, que foi torturado durante a Resistência, ficou doente por isso. Eles haviam descoberto um meio de chegar ao maquis: pretendiam fazer uma reportagem sobre Castro e o exército rebelde. Foram presos uma hora antes da partida. Tiveram a ideia de dizer ao general (que castra de bom grado com as próprias mãos): “Temos na Argélia problemas análogos aos seus: então viemos ver como os resolvia.” Julien conseguiu, graças a seus documentos, partir de novo para Havana, enquanto punham Jacques no avião do Haiti.

Ontem à noite, o Comitê de Salvação Pública de Argel fez uma declaração incendiária. Salan a terá aprovado ou não? Após alguma hesitação, De Gaulle decide-se finalmente a dizer que não está satisfeito.

Em casa de Sartre, corrijo meus originais e tomo notas. Ele está tão contente quanto eu de partir para Veneza. Impossível para mim trabalhar antes de estar instalada lá. Três semanas atrás eu estava entusiasmada, mas esse entusiasmo acabou.

Jules Moch (En retard d’une guerre) distingue a época da destruição individual, artesanal, em pequena escala, em grande escala, quase universal. Por que estarei (Sartre está como eu) tão pouco afetada pela ameaça atômica? Talvez por não ter sobre ela o mínimo poder; só podemos pensar no assunto, e isso é ocioso; sobretudo quando os problemas da Argélia são tão reais, tão urgentes e nos concernem diretamente.

 

 

Sexta-feira, 13 de junho  

 

Carta muito amável de uma estudante de vinte anos. Neste momento tudo me encoraja ao narcisismo: o diário de Joan, uma porção de cartas amistosas, o livro de Gennari sobre mim, minhas próprias lembranças, que releio o tempo todo, enquanto corrijo minhas Memórias. Isso me faz decidir pela continuação dessa autobiografia: certamente há pessoas a quem ela interessará; Sartre me repete que, de qualquer modo, fiz o bastante para que a tentativa fosse legítima. Na Itália, portanto, vou empenhar-me nela. Dias contingentes que precedem as partidas; compras, correspondência, enormes pacotes de provas para corrigir. Pedi emprestado a V. Leduc o Virginia Woolf de Monique Nathan; desejava olhar de novo, depois de ler seu diário, as extraordinárias facetas dessa mulher — que solidão!

Malraux e seu “choque psicológico”: em plena aberração.

 

 

Segunda-feira, 16 de junho — Milão  

 

Subitamente, mudança completa de perspectivas: férias. Acordei no sábado às seis e meia, e quem me impedia de partir imediatamente? Parti. Que rejuvenescimento mergulhar de novo na solidão, na liberdade, como no tempo das viagens a pé. Uma bela manhã. Conheço de cor essa estrada do Morvan, balizada de recordações… Annecy também é uma lembrança, mais antiga; reconheço bem, a vinte anos de distância, os canais, as ruas de arcadas, os pequenos restaurantes à beira da água. Janto na velha cidade, tomo um uísque no lago, lendo Le Premier pas dans les nuages, de Hlasko. Gosto dessas partidas muito cedo, antes do nascer do sol. Bela estrada, ainda deserta, à beira do lago, e pouco a pouco os vilarejos povoam-se e se endomingam. No Petit-Saint-Bernard há neve e até mesmo esquiadores que participam de um concurso de slalom. Dão-me um pouco de nostalgia essas paisagens de montanha, porque tudo isso está perdido para sempre: as longas caminhadas de dez a doze horas, entre dois e três mil metros e mesmo mais, o sono sob a barraca ou nas granjas, tudo o que tanto amei. Almoço em Saint-Vincent. “Como vão as coisas na França?”, pergunta-me a proprietária. “Depende de que lado estamos, depende de gostarmos ou não dos generais”, digo-lhe. Para aproveitar o sol, para num prado, com uma soberba paisagem à minha volta, um castelo em ruínas ao longe, à minha direita, e um outro distante, à minha esquerda; mergulhada na relva alta, termino Hlasko: muita vodca, pouco amor, falta de alojamentos para fazer amor, uma maldade ambiente feita de descontentamento do mundo, e também de si mesmo; é habilmente contado, e nada mais. Atravesso ainda algumas pequenas cidades trepidantes da alegria dos domingos, e pavimentadas de seixos amarelos, e depois é a autoestrada e a praça do Scala.

São seis horas, não há absolutamente nada a fazer, é um pouco desconcertante e agradável. Tomo dois gin-fizz no bar do hotel: continuam muito bons. Como esse bar me parecia luxuoso em 1946! Era realmente uma nova juventude, mais perturbadora que a antiga. Eu me lembrava daquele tempo, e saí por aquela Milão morna, ociosa; quase vazia: um fim de domingo. Todas as italianas em vestidos tipo camisa, elegantes ou de confecção e, na minha opinião, lamentáveis. Novos arranha-céus, novos edifícios, as coisas mudam rápido na Itália. A autoestrada mudou desde o ano passado, com aquela enorme ponte que a liga à cidade.

Sartre chegou esta manhã, às oito e meia; lemos os jornais no Café do Scala. Maravilhosa Itália! Lá, entramos logo no ambiente. As primeiras páginas dos jornais estão ocupadas por um grande drama artístico: um louco, que se diz “pintor anacrônico”, ontem de manhã, em Brera, atacou a marteladas o Casamento da Virgem, de Rafael. Um vigia impediu que a destruição fosse total, mas permanecerão traços do “sacrilégio”, o que consterna o mundo inteiro, ao que parece. Os jornais de hoje falam pouco da França, mas no cabeleireiro encontrei, num número do Oggi, um artigo muito divertido: “Os dez mandamentos do gaullista”; estabelece um paralelo entre os acontecimentos atuais e os de 1922, na Itália; é a nossa vez de experimentar o fascismo, e eles se divertem. A esquerda, embora rindo, inquieta-se; uma ditadura de direita na França representa também para a Itália um grave perigo.

Esta manhã flanamos em Milão, e depois almoçamos com os Mondadori no restaurante do Scala. Ele não mudou em doze anos, continuando a manter sua aparência de soberbo corsário; ela ficou loura, mas conserva o sorriso, a naturalidade e o charme. Ele escreve seus primeiros poemas, poemas engajados — é de esquerda. Fala-se de Hemingway. M. conta que em Cortina ele bebia como de costume, mas que estava apavorado com o fígado, o coração, e com a ideia de que a bebida o mataria. Um dia, ao terminar a refeição, ele tivera soluços. Assustado, chamara o médico. “é preciso tomar o elevador”, disse o médico. E seis vezes seguidas H. subira, descera, subira, descera, sustentado pelo médico de um lado, e por Mondadori do outro. O soluço parara. Ele acomodara seu boné verde na cabeça e deitara-se.

Vamos ver a exposição de arte lombarda antiga; nada de bom, salvo um grande retábulo. Sartre irrita-se: “É uma arte de militar! Esta é a pintura que se faz quando os militares estão no poder!” (Mondadori nos dizia, com uma simpatia um tanto maliciosa: “Durante vinte anos, não tivemos nem arte nem literatura…”)

Jantamos à noitinha na praça do Domo, aliviados, livres da França. Sartre dizia que há muito tempo não se sentia tão em paz.

 

 

Terça-feira, 17 — Veneza  

 

Ainda assim, continuo a ter pesadelos: tenho pressa de acordar de manhã.

Partimos pouco antes de dez horas; céu azul acinzentado, mormaço e umidade: o norte da Itália. Jantar em Pádua. Tomamos café numa cafeteria que tem a reputação de ser a maior do mundo. Comprei o jornal. Na primeira página: Nagy fuzilado, Malester também, mais dois outros. “Não devemos mais comprar os jornais!”, diz Sartre, que perdera toda a tranquilidade.

Veneza; a décima, a 12ª vez? Amavelmente familiar. “Canal obstruído — obras em andamento.” Desviam-nos para canais inéditos, tão estreitos que é difícil cruzar com outro barco. Quartos encantadores no Cavaletto. Sartre pede “três chás” e se instala para trabalhar. Festy enviou-me provas; vou à praça de São Marcos, mas há música demais; instalo-me no cais e corrijo quarenta páginas, depois volto para cá. O céu está pálido, levemente rosado, um ligeiro rumor sobe das docas dos gondoleiros e dos cais. É preciso que amanhã eu recomece a trabalhar, ou começarei a aborrecer-me.

 

 

Quarta-feira, 18 de junho  

 

Nos jornais italianos, as manchetes na primeira página: “Le mani sporche.”170 Só se fala nas execuções de Nagy e Malester. Por quê? Discutimos indefinidamente, sem compreender. Para a França é sinistro, porque os comunistas vão ficar ainda mais isolados, a esquerda desmoralizada, o gaullismo reforçado. Os contramanifestantes hoje irão carecer de entusiasmo. E Sartre, que desejava esquecer a política durante alguns dias!

Longa carta de Lanzmann, deslumbrado com a Sibéria, e embriagado com geng-sgeng pelos coreanos. Ele ficou sabendo da posse de De Gaulle em Piongiang pela rádio de Okinawa.

 

 

Sexta-feira, 20 de junho  

 

Gosto bastante do meu quarto, com as luzes e as sombras que brincam no teto, e o batti-becco171 dos gondoleiros. Mas até essa manhã trabalhei mal, não fiz outra coisa senão ler, eu estava cansada. Esta manhã, decido-me a mergulhar no trabalho. Deveria impor-me escrever um rascunho de dez páginas por dia. Ao fim das várias eu teria material: uma boa “bagunça”, com a qual eu poderia construir algo. Há tantas lembranças a reunir, que este me parece o único método. Reli de ponta a ponta A convidada, e anotei o que pensava da obra. Reencontro ali, quase palavra por palavra, coisas que digo nas minhas Memórias, e outras que voltaram em Os mandarins. Sim — aliás, isso não é desanimador —, só escrevemos nossos livros.

Revimos San Rocco e sua igreja, e a Academia. Confronto o que vejo com o que Sartre me dizia no ano passado sobre Tintoretto.

Parece que quase nada se passou em 18 de junho, salvo alguns distúrbios fascistas em Ajácio, Pau, Marseille.

 

 

Sábado, 21 de junho  

 

Cartas. Uma, de uma romana, casada, mãe de dois filhos crescidos, que militara contra o fascismo e no PC, chocada com a execução de Nagy, e se queixando da vida: não ter nada a fazer, não poder agir contra nada. Quantas correspondentes me repetem: “É terrível ser mulher!” Não, eu não me enganava ao escrever O segundo sexo: tinha ainda mais razão do que pensava. Com extratos de cartas recebidas depois desse livro, teríamos um documento pungente.

Ontem, no museu Correr, vimos um Antonello da Messina, não muito belo, mas que mostra com evidência o que Sartre me dissera: foi por ele que se fez a passagem de Vivarini para A tempestade, de Giorgione, e mais precisamente da primeira fase de Bellini à segunda. Em vinte e cinco anos, nossos gostos não mudaram muito; a cada vez, reencontro o mesmo espanto admirativo diante dos Cosimo Tura, descobertos outrora com tanta surpresa.

O ritmo de nossa vida se estabelece. Levantar às nove e meia, longo café da manhã com leitura dos jornais, na praça de São Marcos. Trabalho até duas e meia. Comemos um pouco. Passeio ou museu. Trabalho de cinco às nove. Jantar. Uísque no Harry’s Bar. Último uísque na praça, quando ela está enfim livre dos músicos, dos turistas, dos pombos, e quando, a despeito das cadeiras dos terraços, reencontra aquela beleza trágica que Tintoretto lhe emprestou, no “Roubo do cadáver de São Marcos”.

Ontem à tarde, corrigi um enorme pacote de provas enviadas por Festy: pela primeira vez um livro que escrevi me dá prazer ao relê-lo. Se não me engano, ele deveria fazer sucesso entre mocinhas em luta com a família e com a religião, e que ainda não ousam ousar. Por outro lado, creio que recuperei o entusiasmo pelo meu novo livro.

Jornais de Paris. Mauriac, em Bloc-Notes, faz o elogio de Guy Mollet! Cartas de Paris. A reunião do 6.º, onde Reggiani leu o texto de Sartre, foi um sucesso, no dia 17 de junho; em particular, faz-se uma ovação a Sartre, desde as primeiras frases, e mais ainda no fim. (Eles eram cerca de setecentos nas Sociétés Savantes.) Henri Lefebvre foi excluído do Partido por um ano, porque aderiu ao “Clube da Esquerda”.

Como era bonita a praça de são Marcos à noite, essa claraboia nos telhados, iluminada apenas nas vastas fachadas planas, e essa silhueta de homem; ele olhava; dir-se-ia que não podia subtrair-se ao espetáculo daquela praça, à noite. De repente, tudo se extinguiu, tão inopinadamente que Sartre e eu dissemos ao mesmo tempo: “Olha! É como uma estrela cadente.”

 

 

Domingo, 22 de junho  

 

Sim, eis-me novamente de partida, penso que pelo menos por dois anos. Num certo sentido, é uma segurança. Há sempre em mim aquela colegial bem-comportada, que se inquieta se durante mais de uma ou duas semanas “estou sem fazer nada”. Uma viagem é uma atividade — entrego-me a ela sem remorsos. Mas em Paris eu flutuava, e censurava-me por isso. De qualquer modo, não perdi totalmente meu tempo. Além deste diário e das minhas provas corrigidas, recolhi material para meu novo livro e reli meus velhos romances, cartas, anotei lembranças. Creio que agora encherei realmente minhas dez páginas por dia.

Há algo de repugnante nesse atabalhoamento, mas não posso atrasar-me escrevendo mais de uma página enquanto este esboço não estiver em ordem. Foi assim que procedi com relação a Amérique; mas não com minhas Memórias, que compus em pequenas partes.

 

 

Terça-feira, 24 de junho  

 

Domingo à tarde passeamos pelos lados do Arsenal; havia muita gente em Fundamenta Nuova, mas não turistas: italianos que iam assistir às regatas. Barcos, lanchas e gôndolas cheios de gente amontoavam-se em torno dos postes com a ponta pintada de um verde berrante. Por toda parte, na laguna verde — exatamente do mesmo verde que as árvores —, procissões de gôndolas, e gondoleiros de uma brancura reluzente, debruçados sobre seus arpéus, as nádegas modeladas como nos quadros de Carpaccio. Algumas velas, cor de ferrugem, ou violáceas; dois ou três iates, ao longe. Partimos antes das regatas. Que paz nessas ruas: a província. E pouco a pouco — como os carros nas estradas quando nos aproximamos das cidades — os passantes tornam-se mais numerosos, de repente é a multidão; e grupos de camponeses de chapéus tiroleses, verdadeiros roceiros que descem de suas montanhas (um deles com uma enorme barba ruiva), gordas alemãs de vestidos transparentes e chapéus de palha — e de repente aparece São Marcos, os pombos, os fotógrafos, a grande cidade.

Depois do jantar no La Fenice, onde o proprietário fez questão de nos levar para visitar as cozinhas, vamos beber no Harry’s Bar. À saída, dois italianos abordam Sartre afavelmente. Convidam-nos a ir beber no Ciro’s. “Dobrem à esquerda: com Sartre, sempre à esquerda”, dizem eles, indicando-nos o caminho. Há um, bem baixinho, que é escultor; o outro, com cerca de quarenta anos, uma cara engraçada, muito viva, um pouco dissimulada, se diz “cientista”; ocupa-se de micróbios e dirige um laboratório: “Quanto a mim, meu ofício é fazer as pessoas mijarem”, diz ele. Chama-se “Charmant”. Leu O muro, e não quer ler mais nada de Sartre, de tanto que apreciou a obra. Gosta, como muitos italianos, de jogar com as palavras; emprega uma bela expressão que eu não conhecia: faire du casino (fazer barulho, algazarra, desordem). Oferece-nos vinho branco veneziano enquanto fala com encanto de Veneza, tão provinciana, e que no entanto abriga uma grande população trabalhadora: “Ninguém trabalha tão bem como os venezianos”, afirma. “Aliás, há trezentos mil deles em Milão.” Terminamos a noitada no dancing da taberna Martini, quase vazio, pois são duas da manhã.

Marcaram encontro conosco no Harry’s no dia seguinte às onze horas da noite; ao chegar, dizíamos: “Vai ser aborrecido; para começar, ontem tínhamos bebido. E depois, eles devem trazer gente.” Não nos enganávamos, mas foi diferente do que imaginávamos.

Charmant jantava com um sujeito moreno, numa mesa redonda; aproximou-se de nós: “É um americano, muito chato, que chegou de Nova York.” Era um italiano que tinha negócios na América, mas genovês, e os genoveses, diz C., não são italianos. O americano não fala uma palavra em francês. A conversa desenrola-se mal; chega uma italiana loura, pesada, mas com belos olhos pálidos, muito pintada, mais ou menos ligada ao americano; também não fala francês. Gracejam com ela porque um assaltante andou de barco ao longo de sua casa, introduzindo-se por uma janela e roubando-lhe os sutiãs e as calcinhas. “Seus instrumentos de trabalho”, disse C., que tem qualquer coisa da misoginia dos homossexuais (é obcecado pelo homossexualismo). Propõe-nos, com ar animado, ir beber num hotel novo da Giudecca, muito bonito, onde seu amigo quer hospedar-se; aceitamos. Entramos no barco particular do hotel; encantador atravessar o canal numa bela noite estrelada, com uma lua crescente cor de laranja, que parece ter sido posta ali especialmente para os turistas; ao longe, as luzes do Lido, muito amarelas, e o palácio dos Doges que se afasta. O hotel tem um jardim que mergulha na lagoa: é realmente belo. Mas nós erramos incertos pelos grandes vestíbulos; o barman “levantou âncora”, diz-nos o porteiro. O americano sobe para escolher seu quarto, e nós nos instalamos para esperá-lo. O escultor telefona; bem, partimos de novo, e, ao desembarcar, Sartre e eu nos dizemos que parecíamos viver uma novela de Pavese: esses projetos entusiastas e ocos que fracassam a cada passo. O escultor nos esperava, com amigos; vamos ao campo da Fenice, onde há um café agradável, entre verduras. C. pede estranhas bebidas: uma mistura de menta e grappa, especialidade veneziana que o trabalhador veneziano engole, diz ele, às cinco da manhã, e misturas de pernod e uísque. Fico na grappa natural. O pobre Sartre está às voltas com um rapazinho de olhar deslumbrado, que trabalha em cinema; colaborou no roteiro de Le Amice, e me diz: “A senhora é famosa aqui: em Veneza adoram Os mandarins.” E C. me pergunta: “Os mandarins, é a senhora?” Aliás, ele não leu o livro. “Sim, pensando bem, dá para imaginar que a senhora possa escrever”, diz ele, perplexo. Aquilo tudo tornou-se mundano, o encanto rompeu-se. Despedimo-nos e nos dirigimos à nossa taberna habitual, na pequena praça dos Leões, ao lado de São Marcos. A grande praça está deserta; uma mulher ruiva soluça e grita; tem uma das mãos envolta em gaze e briga com dois sujeitos bem-vestidos que provavelmente são policiais à paisana; está prostrada sob as arcadas; de repente para de chorar, salta sobre os dois homens e protesta com grandes gestos; todas as putas da esquina saem da sombra para ver o que se passa. A ruiva afasta-se enfim, resmungando. Sentamo-nos diante de uísques. Um homem sai correndo do café vizinho — bem arrumado, de meia-idade, italiano —, seguido de um garçom que bate nele; o cliente volta-se bruscamente, pega uma cadeira, brandindo-a; o garçom joga-o por terra. Um grito entre os espectadores: “Não!”, e todos correm para separá-los. Era simpático: na França não teria havido esse entusiasmo, teriam deixado correr um pouco de sangue. Trazem o garçom de volta ao seu café; o cliente se retira e parte; dois minutos depois ele volta, ladeado de dois guardas armados de sabres. Vamos postar-nos diante do café, entre os espectadores (todos italianos, pois é tarde). O garçom se aborrece, pede que nos retiremos, e diz em francês: “Se tiverem educação, não fiquem aqui!” “Você está dizendo que eu não tenho educação?”, diz Sartre. A discussão vai acirrar-se mas o proprietário, aborrecido, manda o garçom entrar; uma puta alta e gorda grita para ele, em italiano: “É um francês e você o insulta: não é correto!” Voltamos aos nossos lugares. O italiano agredido vem tomar café no balcão de nossa taberna, com ar arrogante, mas confuso; depois vai embora. Dois mendigos vestidos com asseio, com belos cabelos brancos e rosto fino, ajudam o garçom do café vizinho a guardar cadeiras e mesas, enquanto escutam seu relato; ele lhes dá algumas moedas que repartem, retirando-se displicentemente pela noite adentro. Nós partimos também, e de repente há três ou quatro garçons de café à nossa volta, entre os quais o herói do drama. Ele quer explicar-se com Sartre; mas seu tom é agressivo, e parece que a briga, em vez de terminar, vai recomeçar. “Aquele cliente vem nos chatear todas as noites”, diz um dos garçons, para defender seu colega. Este último insiste: “Eu não ataquei o senhor, falava com todos, em geral.” “Eram italianos, e o senhor falou em francês”, disse Sartre, sorrindo. Todos riem, e o garçom estende gentilmente a mão: “Bem, então peço desculpas.” Em toda esta história, um estilo bem próprio da Itália.

Hoje, chuva: Veneza funde-se em brumas, os monumentos se diluem. Alguns gondoleiros vestiram capas negras.

De Gaulle continua a negociar a ida de Mollet a Argel: ele quer estar seguro de que não será obrigado a deixá-la no vestíbulo. Sob a pressão de Argel, um dos repórteres da rádio perde seu lugar; e o conjunto do pessoal é modificado: Delannoy vai-se, Nocher volta. Cada vez mais Argel conduz os fatos.

 

 

Quarta-feira, 25 de junho  

 

O Corriere della Sera diverte-se muito com a entrevista coletiva de Malraux. Fotógrafos, televisão, grande badalação; Malraux falava com voz de pregador místico, e os quatrocentos jornalistas presentes ficaram surpresos. Poucas informações, diz o correspondente italiano, mas aprendeu-se muito sobre o “estilo psicológico e coreográfico do regime”. Malraux quer fazer da Argélia um Tennessee Valley, e enviar os três prêmios Nobel franceses para pesquisar nas prisões. Como diz Sartre: “Cai-se da covardia no símbolo.”

 

 

Quinta-feira, 26 de junho  

 

Carta de Lanzmann, admirativo e esgotado. Diz que os coreanos são extraordinariamente simpáticos, mas que o otimismo oficial é pior que o dos chineses.

Movem-se processos contra o Observateur e contra o Express: ao menos fica-se sabendo qual é a situação da liberdade de imprensa. Aliás percebe-se, ao compará-la com os jornais italianos, que a imprensa francesa se autocensura por iniciativa própria: está castrada. Os artigos incriminados concerniam evidentemente à Argélia; havia entre outras coisas uma entrevista de um dirigente FLN. Entretanto, Argel se enfurece; a entrevista de Malraux os exasperou.

 

 

Segunda-feira, 30 de junho  

 

Revimos Torcello e os Carpaccio de San Giorgio; subimos ao Campanillo e os sinos ressoaram a toda força nos nossos ouvidos. Visitamos a Bienal: uma exposição de Braque muito feia, e uma belíssima de Wols; esculturas interessantes de Pesvner. E passamos noites encantadoras; para evitar os encontros, emigramos do Harry’s Bar para o Ciro’s, onde uma pianista alemã tocava belas melodias antigas. Divirto-me com dois jovens americanos que permanecem horas sentados lado a lado, sem abrir a boca, mas com o olhar perpetuamente iluminado, um sorriso nos lábios, como se ainda não se tivessem recuperado do espanto de estar na Terra, de ser americanos e de saber que o resto do mundo existe. Um gordo belga desbotado tentou fazer um retrato de Sartre, sem identificá-lo: era lamentável. Viera de Bruxelas em companhia de um conde homossexual, que era vítima de um desses terríveis sofrimentos amorosos frequentes entre eles: o olhar negro, vazio, fascinado por uma imagem ao longe, e retornando dificilmente à realidade quando o outro lhe dirigia a palavra.

Naquela noite, a última, estivemos no Harry’s para nos despedirmos de Charmant e do escultor. Eles tomavam vinho branco com um rico armador sueco e sua mulher. Ele me enterneceu porque comprara Os mandarins e passara a noite inteira lendo centro e trinta e sete páginas do livro; disse-me com entusiasmo que achava aquilo “ainda melhor que …E o vento levou.” Disse: “É verdade que sou esnobe: que mais posso ter?” Indica a sueca: “Ela detesta Os mandarins.” Ela diz, sem nenhum constrangimento: “Sim, há política demais; eu detesto política.” Aliás, acrescenta com graça: “Sou de direita. Tenho um marido, um amante legal e muito dinheiro: então sou de direita.” Depois, um tanto inquieta, ao armador: “Não é verdade que tenho muito dinheiro?” Ele sacode a cabeça e ela ri: “Não? Então é a ruína.” Ataca C.: “Quanto a você, é uma merda.” E ele, com entusiasmo: “Sim, mas tão humana!”

 

 

Terça-feira, 1.º de julho  

 

Partida. Mas primeiro tomamos café da manhã no Rialto, no Grande Canal, lendo os jornais. De Gaulle partiu com Mollet para a “frente” argelina. O caso do professor de Perpignan que matou um aluno parece clara. Perpignan está cheia de “africanos” vindos do Marrocos e da Tunísia, radicalmente fascistas, e que constituíram uma espécie de “Comitê de Salvação Pública” contra os professores que fizeram greve em maio e, em geral, contra todos os professores de esquerda. Os Amiel eram de esquerda, e lhes tornavam sistematicamente a vida impossível: na sala de aula, com desordens, e em casa com bombas deixadas na caixa do correio; haviam-no ameaçado seriamente de morte. Alguns dias antes, como alguns alunos viessem provocar distúrbios em sua porta, ele atirara para o ar. Desta vez houve sob suas janelas uma desordem pior do que a habitual: ele atirou. E agora, no pátio do liceu, os professores brigam entre si, fascistas contra antifascistas. Bianca me falara da tensão, mesmo em Paris, entre alunos e professores, nos liceus “bem”, como o Pasteur, o Janson etc.

Parada em Ferrare. Chegada às seis horas em Ravenne. É agradável, no cair da noite, mas não há nada de mais barulhento que essas cidadezinhas italianas com suas motos e vespas. Já faz seis anos desde que estive aqui, que dirigi pela primeira vez durante toda viagem, que acabava de conhecer Lanzmann.

 

 

Quarta-feira, 2 de julho  

 

Como é bela Spoleto, com suas ruas todas em rampas e escadas, e os pequenos seixos das calçadas. Há grandes lanternas penduradas nas fachadas negras, e tanta sombra que as aranhas pensam que estão num sótão, e tecem imensas teias entre os fios telegráficos. O hotel dá para uma pequena praça irregularmente pavimentada, cercada de vegetação, onde lamuria-se uma pequena fonte, e que parece um jardim particular. O perfume das tílias em flor mistura-se a um vago odor de curtume e de incenso. Em torno estão as colinas secas, e o azul longínquo da Itália.

Não fui rever os mosaicos de Ravena; não tinha vontade, e não me sinto mais investida de uma missão: em viagem, só faço aquilo que me agrada. Agradava-me rever Urbino, onde almoçamos e tomamos café sob as arcadas. O garçom perguntou a Sartre: “O senhor é francês? É escritor? O senhor é Jean-Paul Sartre?” Pretendeu tê-lo reconhecido “através dos jornais”. Mas, um minuto depois, três jovens professores italianos vinham pedir autógrafo a Sartre: foram eles que o identificaram.

Em Spoleto, vende-se La tortura, de Alleg. Nas paredes, cartazes: De Gaulle il dittatore, Mollet il tradittore, Pflimlin il codardo. E o comentário: “Aí está aonde leva o anticomunismo: ao fascismo… Cuidado com o Papa!” Maravilhoso céu azul, e o prazer de reencontrar a Itália: Veneza não é a Itália.

À noite passeio com Sartre nessas ruas que recendem a tisana. As grandes lanternas estão acesas.

 

 

Sexta-feira, 4 de julho  

 

Ontem, vimos as ruas: o Domo e a soberba ponte de altas arcadas que transpõe um vale estreito e pouco profundo; por que essa ponte? Diante do hotel, os garçons dispõem mesas e lampiões, pintam de roxo as arquibancadas, para não sei que festa. Partimos para Roma: vê-se a vinte quilômetros de distância São Pedro e o monte Mario.

Chovia, e aproveitei mal a tarde, apesar do prazer de estar hospedada na praça da Rotonda, no hotel Senado. Dormindo uma hora à tarde, justo antes de despertar sou tomada de angústia: teremos então setenta anos, e morreremos, é verdade, é certo, não é um pesadelo! Como se a vida acordada fosse um sonho demasiado azul, de onde se tivesse apagado a morte, e como se eu atingisse no sono o âmago da verdade.

Hoje, belíssima, muito azul, a felicidade de estar por muito tempo em Roma me retoma, assim como o desejo de escrever. E escrevo. Longa carta de Lanzmann, dividido entre seu amor pelos coreanos e o tédio da viagem em delegação.

De Gaulle retorna da Argélia. Ele não recebeu o Comitê de Salvação Pública: estão furiosos, em Argel. Mas o equívoco prossegue, o símbolo e a logomaquia. Um artigo de Mauriac no Le Littéraire, no qual ele exalta De Gaulle e fala, com uma afeição amarga, de Malraux, apaixonado pelo poder, a quem se deu “um ministério para roer”.

Sartre, feliz em Roma, põe-se a escrever sua peça com prazer. Ainda não li nada; parece que, em Paris, Simone Berriau começa a se preocupar.

Quando tenho vontade de escrever, agora, volto ao meu livro; quando a vontade me deixa, até mesmo este diário me entedia. Não sei muito bem se ele terá sua chance.

 

 

Terça-feira, 8 de julho  

 

Grandes manchetes nos jornais: “Soustelle substitui Malraux.” Os socialistas unem-se cada vez mais. Mollet continua firme.

Não, neste momento nada tenho a dizer neste diário. Roma está sem turistas, não muito quente, ideal. Mesmo ritmo do ano passado. Por volta de dez horas, café da manhã demorado na praça, sempre cheia de maltrapilhos, com seus chapéus moles; trabalho até duas ou três horas; comemos um sanduíche num terraço, passeamos um pouco. Recomeçamos a trabalhar às cinco. Jantamos no Pancracio, com espaguetes à carbonara e Barolo. E tomamos uísque um pouco além da conta na praça Santi Apostoli, ou na praça Del Popolo. E tudo isso é tão familiar, tão feliz, que as palavras não têm mais razão de ser.

 

 

Sexta-feira, 11 de julho  

 

E talvez seja também por outras razões que não tenho nada a dizer. Sim, Roma é uma felicidade, e meu trabalho, embora um tanto entediante, interessa-me, e o de Sartre é difícil, mas o absorve. Só que há a França. Bebendo o último uísque, na rua Francesco Crispi, e olhando as dançarinas do dancing vizinho (e a prostituta divertida, toda de rosa e tão feminina, uma noite, e no dia seguinte de jeans, e fascinada pelos sapatos de Sartre), confessamo-nos que não estávamos alegres. Fingimos viver docemente, em paz, mas na verdade os dias não têm sabor.

Bela tempestade ontem em Roma, e à noite a Via Veneto, ainda toda molhada, estava quase deserta. Não gosto tanto assim de Fellini; mas é impossível não ver a Via Veneto através das imagens de Noites de Cabíria.

Florenne falava amistosamente no Monde sobre os trechos publicados na Temps Modernes da “moça bem-comportada”. Eu gostaria muito que esse livro agradasse, e isso me ajudaria a escrever o seguinte.

Os socialistas pediram a De Gaulle para suprimir os Comitês da Argélia; como dizia o Corriere della Sera, é muito significativo, e sem nenhuma importância. Silêncio, resignação da imprensa francesa. O Express e o Observateur assinalam com desespero essa deformação e a ascensão quase insidiosa e tranquila, fatal, de tudo o que detestamos.

 

 

Domingo, 13 de julho  

 

“Antes da invenção do vidro, era impossível ter talento fora das regiões onde cresce a oliveira.” Eis um tipo de consideração que me encanta. Li os Sauvy com paixão; e agora leio os Fourastié, que me divertem muito. Ele também me perturba, com seu lado Mme Express-tecnocrata. Horrível visão tecnocrata do homem; o avesso de seu otimismo é o organization man. Essas cidades terciárias, onde Le Corbusier, Francastel, Fourastié etc. gostariam de fazer com que as pessoas vivessem, são exatamente as suburbs, os bairros residenciais americanos; isso me causa arrepios. Espaço, luz, ar, ordem — muito bem — mas o que chamam eles de “harmonia?” Será que o “homem” (que homem?) não necessita de agressividade em torno de si, assim como de calma, resistência, imprevisto, e de sentir ao seu redor que o mundo não é uma grande horta? Será preciso mesmo escolher entre pardieiros e loteamentos de luxo?

Que belo dia! Almoçamos no Tor del Carbone, bem perto da Via Appia. Ciprestes, araucárias e tijolos, sob um céu pálido, e essa estrada que não acaba mais porque, mesmo de carro, o olhar a mede tal como era quando percorrida a cavalo ou a pé, até a distante Pompeia: ereta entre os ciprestes retos, ela sugere uma terra plana e sem limite. Eu a amei hoje quase com a mesma emoção de vinte e cinco anos atrás.

Esta noite as pessoas vão dançar em Paris, com os mais belos fogos de artifício, as maiores orquestras já vistas em muitos anos. E era irrisório, no ano passado, um governo socialista proibindo os bailes de 14 de julho. Mas essa “renovação nacional” que se celebra amanhã é repugnante. Eu gostava tanto dos 14 de julho! Não acontecerá nada? Estou contente por não estar em Paris. Teria trincado os dentes todas essas noites.

Como é agradável! Através da estreita rua, e janela do meu banheiro enquadra exatamente a janela do meu vizinho da frente, que, por sua vez, enquadra uma tela de televisão; ele está sentado, sozinho numa cadeira, e vejo perfeitamente o que ele olha. Esta noite, uma mulher de vestido de bolas medita sozinha, sobre o fundo branco; depois, ela diz uma palavra, e aplaudem. É um programa de auditório com prêmios, do qual fazem relatos apaixonados todos os dias, nos jornais; na Itália é realmente um esporte nacional.

A tempestade descarregou a atmosfera, e o alívio está também em mim, sem causa. Tanto pior para os bailes de 14 de julho; ainda há pouco eu estava na praça Navona, havia o céu azul-escuro das noites romanas, acima das casas vermelho-escuras, com as claraboias iluminadas, e toda aquela gente que perambulava, e era a perfeição do momento. Esta noite, de novo, a vida morde-me o coração.

 

 

Terça-feira, 15 de julho  

 

Doravante o 14 de julho será também a festa nacional do Iraque: Revolução em Bagdá! Eis o pacto de Bagdá em migalhas, uma vez que o Iraque apoia a “República árabe”. Nasser no sétimo céu, e os insurretos de Beirute também. Suponho que a FLN se rejubila.

Entretanto houve desfile nos Champs-Élysées. De Gaulle não assistiu porque na tribuna ele só teria o terceiro lugar: sempre esse sentido agudo da “grandeza”! Malraux falou, na praça de L’Hôtel-de-Ville, mas à guisa de “povo de Paris” havia combatentes muçulmanos e franceses, reunidos por ordem. Único episódio interessante: alguns jovens soldados argelinos, trazidos à força a Paris, para simbolizar a confraternização, passando diante da tribuna, em vez de saudarem Cotym, tiraram de dentro das camisas bandeirolas verdes e brancas e agitaram-nas com gestos de desafio. À noite, houve onze pessoas liquidadas pelos argelinos, entre as quais seis muçulmanos colaboracionistas.

Outra longa carta de Lanzmann. Diz que não há um só coreano que não seja viúvo ou órfão; ao contarem suas histórias, muitos choram. Os americanos aniquilaram cidades e aldeias por simples prazer, e são profundamente odiados. Em todas as peças, em todos os filmes, eles representam os “vilões”, com narizes de papelão, em meio a vaias que nada têm de convencional. Lanzmann viu o desfile, muito mais duro e militar (diz Gatti, que assistiu aos dois) do que o de 1.º de outubro na China. Ainda estão enrijecidos na guerra; a singularidade do país é esse pano de fundo da guerra.

Sartre recebeu visitas ontem à noite. Eu fui ao cinema: filme americano ruim, sobre os malefícios do jornalismo. Apresentavam-se trechos de Glória feita de sangue. Parece bom, e eu quase não tenho coragem de ir vê-lo. O presente é bastante desagradável para que eu ainda vá me repugnar com os fuzilamentos de 14-18 e a canalhice militar. Como dizia Georges Bataille: “Eu me martirizo quando me apraz.”

Ao tomar o café da manhã com Sartre, encontro os Merleau-Ponty, esfuziantes, pois estavam de partida para Nápoles. Uma pequena italiana muito intimidada plantou-se diante da nossa mesa e me disse grandes amabilidades; isso causa sempre prazer. (Em que medida? etc. É um dos pontos a elucidar no meu próximo livro.)

Se eu me parecesse com esse famoso homem de letras de que fala Fourastié, a quem o ruído dos patins de duas crianças impede de trabalhar, seria bem infeliz. Esta praça é a mais barulhenta de Roma: vespas, motos, carros que freiam bruscamente, rangendo, buzinas apesar da proibição, ruídos de lataria, gritos, tudo. Mas isso não me incomoda. As romanas ficam desfiguradas com esses vestidos tipo camisa, ainda mais agressivos à noite, na Via Veneto, do que quando usados de manhã pelas donas de casa do bairro. Um desencadeamento de sadismo pederástico entre os grandes costureiros.

Leio o Jones, sobre Freud; a espantosa e curiosa dosagem de consciência e leviandade, de ingenuidade e de sagacidade nesse “aventureiro”. Sua cocaína matou radicalmente um sujeito (sem falar dos outros), e a história de Flish é horrível. Ele tinha “sentimento de culpa”, mas era culpado. Admirável história de Breuer. Ele trata de Anna O. (ou antes, como diria Camille, ela “se trata nele”, pois foi ela quem inventou a catarse). Ele se apaixona por ela sem confessar a si próprio; mas sua mulher percebe. Ele decide parar o tratamento e avisa Anna, que aliás está quase curada; na noite da ruptura, chamam-no; ela está de novo muito mal: representa histericamente um parto; Breuer compreende, pega o chapéu, foge para Veneza com sua mulher, e lhe faz um filho — uma filha que se mata sessenta anos mais tarde em Nova York. Anna, contudo, foi a primeira assistente social da Europa; salvou uma porção de crianças judias dos pogroms da década de 1900.

 

 

Quarta-feira, 16 de julho  

 

Em 25 de maio, iniciei este livro com alegria; agora, trabalho com dificuldade, e tenho certas dúvidas; talvez faça calor demais: 36º; e fiz, num impulso, quatrocentas páginas de uma horrível confusão; isso mata o prazer. Seria preciso que, a partir desses materiais que vou ainda acumular durante um mês, tirando-os da minha cabeça, eu recuperasse, em Paris, um pouco do interesse por mim mesma, um pouco do entusiasmo. Ainda não faço a menor ideia de qual será o tom deste livro, nem seu plano.

Os americanos invadiram o Líbano, diz o Paese Sera; “desembarcaram” no Líbano, diz Il Messagero. Nuanças.

Os jovens muçulmanos com estandartes da FLN foram detidos; eram quatro, dizem. Segundo o Monde, gritavam: “Abaixo a Argélia francesa!” Os franceses abateram Bellounis,172 acusado de ter liquidado quatrocentos de seus homens; os italianos dizem que os franceses abateram Bellounis e os quatrocentos homens.

Jones não explica bem a neurose particular de Freud, nem como ele se livrou dela. Talvez estivesse constrangido pela existência da filha, mas há questões que não coloca: as relações de Freud com a mulher, por exemplo. Diz-se logo que eram “excelentes”; mas as depressões, as enxaquecas de Freud estão ligadas diretamente à sua vida doméstica. Afinal de contas, Freud era um homem muito ativo: amava apaixonadamente as viagens. Monógamo, sim; mas exatamente por quê? Jones evita a questão. Em compensação, o que ele descreve em detalhe, e muito bem, é o trabalho de Freud, ao mesmo tempo tão diferente do trabalho desenvolvido por um filósofo, e do desenvolvido por um cientista. O momento mais comovente é aquele em que ele descobre seu erro sobre a histeria: acreditara que todas as suas pacientes haviam sido “seduzidas” pelos pais, e expôs essa tese a seus colegas, em meio à reprovação geral; e refletiu que não podia haver tantos pais incestuosos, que o seu próprio pai não o fora, embora duas de suas irmãs apresentassem perturbações histéricas; compreendeu que suas pacientes tinham inventado tudo. Que desmentido! Que choque! Mal ousou continuar exercendo a profissão, e durante muito tempo não ganhou mais um tostão. E contudo escreve a Fleisse, dizendo que tem a impressão de uma vitória, mais do que de uma derrota: essa mentira unânime lhe pareceu carregada de sentido, e abriu um novo caminho. Com efeito, foi a partir daí que Freud descobriu a sexualidade infantil. “Sou um aventureiro, um conquistador, e não um cientista”, dizia ele, por vezes, com pena. É comovente ver essas noções que se haviam tornado tão escolásticas, mecânicas — a transferência, por exemplo —, revelarem-se numa experiência tão viva. A primeira vez em que uma doente lançou os braços em torno do pescoço de Freud, ele se lembrou da história de Breuer, e pressentiu a transferência. Faz numa carta uma descrição maravilhosa da praça Colonna, e dos italianos: hospedava-se no hotel Milano. Nas suas fotos, o rosto, com a idade, torna-se cada vez mais intenso, além de cada vez mais fechado, e sobretudo triste.

Joan luta contra sua tendência à idolatria, procurando as fraquezas de seus “heróis”; mas ao contrário, quando se toma de início um “herói” por um homem, chega-se a admirá-lo a partir de suas fraquezas superadas.

Reli este diário, e me diverti. Eu deveria continuá-lo, mas seria preciso cuidar mais dele. O que é evidente sempre passa em silêncio: por exemplo, nossas reações depois da execução de Nagy.

Por que há coisas que desejo dizer, e outras que quero amortalhar? Porque são preciosas demais (sagradas, talvez) para a literatura. Como se só a morte, só o esquecimento estivessem à altura de certas realidades.

Se ao menos eu pudesse escrever depois de ter bebido; ou ficar um pouco animada quando escrevo! Deveria haver aí uma união!

Chuva, chuva romana; é bonito, através das persianas, à meia-noite, com o estrondo do trovão e o grande ruído da água. As tempestades combinam com Roma. Abri minhas persianas; cataratas caem do céu, do Domo do Panteão, dos telhados, das calhas. Há três silhuetas negras, minúsculas, hirtas, com a mancha branca das camisas, sob as colunatas repentinamente imensas do Panteão; movem-se agora a passos lentos sobre o adro preto e branco, enquanto à sua volta se desencadeiam a água e os relâmpagos. É belo. A rua transforma-se numa torrente, um pedaço de papel mergulha no turbilhão, vacila e vai esmagar-se contra um muro. Quando o relâmpago reluz, rosários de strass brilhantes abatem-se sobre a calçada. Um forte odor de terra, de repente, nessa cidade de pedra. Os carros vão deixando sulcos, como se fossem barcos. Mas subitamente não há mais carros, e a luz elétrica, fora, acaba de apagar-se. Pessoas tentam sair da Sacristia; o garçom abriu um guarda-chuva, e um táxi arranca rugindo. E sempre esses homens sozinhos, insólitos e tranquilos, bem pequenos e que mal se movem, pretos e brancos sobre as lajes pretas e brancas.

Bonança. Uma tabuleta ilumina-se de novo: Pizzeria. Últimos estrondos. Um homem rosa e azul passa correndo. É uma hora da manhã.

 

 

Sexta-feira, 17 de julho  

 

Toda vez que começo um novo livro, tenho a impressão de que é um empreendimento titânico, impossível. Esqueço como se faz o trabalho, como se passa dos rascunhos sem forma à escrita; parece-me que este projeto está perdido, que jamais conseguirei chegar ao fim. E depois o livro se faz, bem ou mal: é só uma questão de tempo.

 

 

Domingo, 17 de agosto — Paris  

 

Decididamente, tenho bom gênio. Gostei dessas férias, e de qualquer modo é um prazer encontrar-me de novo em Paris, sentada diante da minha escrivaninha, nesta peça invadida pelas lembranças do Extremo Oriente, que Lanzmann espalhou, aos montes, sobre os divãs descobertos. Passados seis anos, é a primeira vez que não viajo de férias com ele, por causa da Coreia. Mas estou envelhecendo. Muito claramente, meu desejo de correr as estradas empana-se, o de trabalhar aumenta, começo a sentir aquela urgência da qual Sartre tem tanta consciência. Como fazia calor na Itália! Os braços colavam na mesa, e as palavras grudavam-se à células do cérebro, sem descer até a caneta. Aqui, é um frescor, quase demasiado, e tenho diante de mim ao menos onze meses ininterruptos; poderá parecer muito, mas no momento isto me encoraja. E Lanzmann me diz que agradam bastante os fragmentos publicados das minhas Memórias, e isso também me encoraja.

Foi por causa do calor que durante um mês eu não mantive este diário: é preciso escrevê-lo rápido, com uma alegria na mão que corre sobre o papel. Eu podia forçar-me a trabalhar — já redigi umas sessenta páginas, o que, para mim, é considerável —, mas não me restava entusiasmo para outra coisa. A partir dessa primeira manhã em Paris, recomeço a escrevê-lo.

Talvez também não houvesse grande coisa a dizer sobre Capri. Naquele ano, tínhamos quartos deslumbrantes nesse hotel de la Pineta, que eu havia notado no ano passado, quando respirava a fumaça das cozinhas do La Palma. Havia uma vasta peça ladrilhada, que parecia fresca, embora não o fosse, um grande terraço com espreguiçadeiras, cadeiras, mesas; via-se o mar, pinheiros, o monte Solario, e durante uma semana tivemos os mais belos luares. Eu gostava do canto dos galos, de manhã. A ilha tinha um agradável cheiro de mato, mas em certos lugares flutuava um perfume por demais açucarado de morangos esmagados. Café da manhã com Sartre no Salotto, com leitura dos jornais, trabalho de onze e meia até cerca de três horas; passeio sob forte calor, com uma parada para comer um pouco; na Metromania havia um delicioso bolo, e que bela vista! De novo, trabalho até nove horas. E longas noites olhando as pessoas na praça, bebendo uísque. O lado “turista” era infelizmente acentuado pelos lampiões pendurados acima do Salotto.

Teremos sentido tão intensamente este ano as fraquezas de Capri porque estávamos menos alegres? A situação da França nos repugnava, mas era um nojo tão lânguido, que nem mesmo tive mais vontade de falar dela. E depois, no ano passado Sartre escrevia sobre Tintoretto com alegria. Ao passo que sua peça custa a deslanchar; neste momento, ele não está com disposição de escrever “ficção”. Só o faz porque assumiu compromissos.

Vimos os Clouzot, e jantamos duas vezes com Moravia, muito divertido, sereno e amistoso; em vez de abordar ideias gerais, falou dele, da Itália, e falava bem. A propósito de seu acidente, confessou com uma simplicidade que desarma: “Ah! Estou sempre sofrendo acidentes, dirijo muito mal, sou nervoso demais e quero andar depressa; certa vez, no caminho de Spoleto para Roma, não havia ninguém na estrada, eu ia a cento e quarenta, tudo corria bem; mas de repente…” Em Roma, ele confundira a marcha a ré com a primeira, e acuara duas camponesas contra uma parede; dois dias antes, quase arremessara contra um caminhão o imenso e custoso Cadillac de uma princesa, e freara tão bruscamente que o carro se incendiara “dentro das rodas”. Ele admite que Carlo Levi é mais prudente: “Mas para sair do estacionamento é obrigado a chamar o vigia: não sabe dar marcha a ré. E nunca passa de quarenta por hora.”173 É muito engraçado quando o fazemos falar de seus confrades. Diz que todos esses escritores que vêm do interior têm algo a dizer sobre suas regiões; é uma coisa local, e depois esvaziam-se: ao passo que ele tem Roma inteira (isto é, a Itália e o homem). Com que rapidez ele trabalha! Escreve durante duas ou três horas pela manhã, nunca mais, e faz duas novelas por mês e um romance a cada dois ou três anos! Nós lhe falamos de seus primeiros livros. Ele conta um pouco de sua vida, aos pouquinhos, muito gentilmente. Teve uma doença óssea, dos nove aos dezesseis anos; quase não estudou, escreveu Os indiferentes aos vinte anos; o livro teve na Itália sucesso maior do que qualquer outro livro no passado, e nos anos seguintes. Durante seis anos sentiu-se vazio; nada fez. Depois, escreveu Ambições frustradas; o romance não obteve na Itália sequer uma linha de crítica, por causa do fascismo: era literatura decadente, e, avançando pouco a pouco, proibiram-no de assinar as crônicas que mandava para jornais, e depois de escrevê-las. Tinha dinheiro de família, e assim pôde fugir do fascismo viajando: para a China, para a França, para a América. Passou vários anos em Capri com a mulher, Elsa Morante. Fala dela com muita consideração, considera seus livros os melhores romances italianos da atualidade, mas parece assustado quando digo que gostaria bastante de conhecê-la. Aborrece-se porque ela se cerca apenas de homossexuais. Calcula que em Roma 80% dos homens dormiram com homens. Fala disso com uma espécie de inveja, porque as aventuras lhes são tão fáceis, e porque eles têm uma gulodice tão alegre; cita uma frase de P., amigo de Morante: “Quantas pessoas há na Terra?” “Mais de dois bilhões.” “Isso dá mais de um bilhão de homens com os quais não dormirei!” Ele conta também com graça, como todos os italianos, histórias sobre a Igreja. Esse papa tem realmente ambição de se tornar santo, um santo canonizado; os cardeais oram por ele: “Que o Senhor abra os olhos do nosso Santo Padre — ou então que Ele os feche.”

Prazer de escrever pelo prazer de escrever: escrevo qualquer coisa. Quando voltávamos ao hotel, encontrávamos a qualquer hora aquele rapazinho pálido, de quinze anos, que um dia uma hóspede mandara abotoar seu corpete; ele estava sempre ali, de manhã e à noite. Certo dia, perguntei-lhe: “Você não dorme nunca?” “Às vezes”, respondeu-me, sem amargor nem ironia, num tom absolutamente matter of fact. No dia seguinte, interroguei-o: “Quanto tempo dormiu esta noite?” “Quatro horas.” “E durante o dia?” “Uma hora.” “Não é muito.” “É a vida, senhora.” Ele deve estar contente por comer e estar bem-vestido: é um privilegiado. Mais desolador ainda, talvez, o caso do garçom de camisa de malha listrada, que serve no Capranica; na terceira noite em que fomos lá ele disse a Sartre, titubeando: “Fábrica? …eu… trabalhar…” Queria trabalhar numa fábrica, na França. Sua profissão não lhe agradava. “Serviço não bonito, esta noite”, disse uma vez, com tristeza; jamais seu serviço era bonito; uma vez, no entanto, iluminou-se: “Oh! esta noite a conta está muito bonita.”

Houve a viagem relâmpago de Lanzmann, e seiscentos milhões de chineses, sem contar os coreanos, invadindo a pequena ilha de Capri. Acompanhei-o a Nápoles, onde o aeroporto civil estava guardado por um exército de militares americanos, porque estava coberto de caças americanos com destino ao Líbano. Depois, volto, com Sartre, pelas novas estradas Nápoles-Roma, à beira-mar; na Domiciana, os pinheiros e o verde etrusco nos deram a ambos, de repente, a impressão de termos sido projetados em plena Antiguidade. Noitada em Roma com os Merleau-Ponty, que encontramos na praça do Panteão. Depois, Pisa. Os Pisano do museu: a dançarina sem cabeça, e a mulher que se esconde por trás do vestido; dir-se-ia que o mármore imergiu num vulcão, a matéria é trágica e o movimento espantoso.

Retorno, com Sartre, até Pisa, onde ele espera Michelle. Inferno da estrada Pisa-Gênova. E na manhã de 15 de agosto, na cammionale até Turim, inferno. Depois, o prazer de dirigir, sobretudo ontem; Bourg-Paris em cinco horas e meia.

Sinal de velhice: a angústia de todas as partidas, de todas as separações. E a tristeza de todas as lembranças porque eu as sinto condenadas à morte.

 

 

Quarta-feira, 24 de agosto  

 

Trabalho. Mergulhei durante duas tardes, na Biblioteca Nacional, em velhos exemplares da NRF e de Marianne: é espantoso encontrar-se antes dos acontecimentos que agora pertencem ao passado. Desejo cada vez mais escrever sobre a velhice. Inveja dessa juventude tão mais avançada que nós, em parte graças a nós. Como éramos malnutridos, então! Como era rudimentar tudo o que nos explicavam em filosofia, em economia etc. Impressão (muito injusta) de tempo perdido pela humanidade às minhas custas. E é duro guardar com relação à nossa vida e ao nosso trabalho uma dimensão de futuro, quando nos sentimos já enterrados por todos aqueles que virão depois.

Na noite de anteontem, a FLN fez uma série de atentados espetaculosos: depósitos de gasolina incendiados em Marseille, tiras mortos em Paris. Dacar e Guiné vaiaram De Gaulle. Leio Duverger e O conflito do século, de Sternberg, que me diverte como um romance policial. Primeiro dia de bom tempo, depois da chuva e do frio; o tempo está quente, dourado, um pouco outonal e suntuoso.

O Comitê de Resistência contra o Fascismo organiza uma grande contra-manifestação para o dia 4 de setembro: o que acontecerá? Lanzmann, que participa muito da organização, diz-me que a campanha de preparação está muito bem conduzida. Ele falou em muitas reuniões, em Paris e no interior.

 

 

Segunda-feira, 1.º de setembro  

 

Telefonema de Sartre. Viu Servan-Schreiber em Roma. Fará três artigos no Express, nos dias 11, 18 e 25.

 

 

Quinta-feira, 4 de setembro  

 

Esta manhã tem um sabor vagamente sinistro: Sartre ainda na Itália, Lanzmann que não voltou de Montargis, onde falou ontem à noite: Paris me parece vazia. Os operários batem fortemente na parede; impossível dormir depois das oito horas, e é difícil trabalhar; Aliás, estou nervosa demais. Céu azul, leve, com nuvens douradas sobre as folhagens que amarelam; e outono entre as tumbas do cemitério Montparnasse. Estou angustiada pensando nesta tarde. Não é medo (embora talvez este esteja presente), mas a angústia do fracasso; temo ter que engolir uma hora dessa repugnante cerimônia, sem nenhum resultado. Sim, estão ressuscitando Pétain: vão condecorar com a Legião de Honra cem operários de elite, e Malraux vai explicar que De Gaulle aceitou o desafio da esquerda, e que ousa falar na praça da Répúblique. Passei lá anteontem à noite, com Lanzmann. Está tudo arrumado de tal maneira — com tribunas que se encherão de convidados, de tiras, de antigos combatentes etc. —, que o público ficará a quilômetros, e sequer será ouvido. Ontem à noite, pelo informativo, a chefia de polícia anunciava que era proibido levar cartazes. No Comitê nos deram papéis amarelos, com um “não” em cima. Devíamos apresentá-los quando De Gaulle aparecesse. Aliás, as orientações variam com os comitês. O de Évelyne só aparecerá às cinco horas, e não às quatro, e mostrará logo suas bandeirolas, o que é idiota. Confia-se na improvisação. De qualquer modo, com todos os tiras que haverá na multidão (até o Paris-Presse admitia, com um sorriso), não creio que se tenha muita oportunidade de contestar essas paradas, essas mascaradas que me embrulham o estômago de asco.

Uma jovem telefonara fazia dois dias, para me “contatar”. Fui portanto ao comitê da minha seção. Era lamentável e tocante. Cometi o erro de chegar às nove horas: ninguém. Praguejando, a zeladora me entregou uma chave, mas preferi esperar sentada num banco. Uma mulher jovem chegou meia hora depois, e me fez entrar num grande ateliê deserto, no fundo de um pátio. Pouco a pouco, outras mulheres chegaram; éramos oito ao todo, e nenhum homem. Discussões ociosas; entretanto, admiro a dedicação delas. Não iam dormir antes da meia-noite, e três delas ofereceram-se para colar cartazes e distribuir panfletos entre seis e sete da manhã; e têm filhos e uma profissão. Noite suave, com muita gente nas ruas, e neon.

Os africanos do norte não têm mais direito de circular à noite. Em Athis-Mons, os tiras atiraram em italianos que tomaram por africanos do norte.

 

 

9 de setembro  

 

No dia 4 de setembro eu me enganava quando previa um completo fiasco. Na praça de Saint-Germain-des-Prés, à uma hora, esbarro com Genet: caímos nos braços um do outro, almoçamos juntos num terraço. Ele me fala com entusiasmo da Grécia e de Homero, e fala muito bem de Rembrandt; havia trechos do seu Rembrandt no Express, mas eram recortes: o que ele diz é muito melhor. Também ele reconstrói o tipo à sua imagem, quando diz que passou da soberba à bondade porque não queria nenhuma tela entre o mundo e ele: aliás, é uma bela ideia. Fala-me amavelmente dos fragmentos que leu das minhas Memórias: “Isso lhe dá densidade.” Lança-se numa apologia apaixonada do terrorismo da FLN, mas tento em vão arrastá-lo para a praça da République.

Bost resolveu usar sua cruz de guerra, e Lanzmann ostenta sua medalha da Resistência. Chego com ele, pouco antes das quatro, às barreiras que separam os convidados do público, na rua Turbigo; lá, os tiras controlam os cartões de entrada. Ao ver a disposição das barreiras, pensamos logo: “É uma armadilha.” Subimos para o liceu Turgot, onde estava marcado o meu encontro: ninguém; ao longo da calçada, carros cheios de CRS, mulheres feias e muito arrumadas passavam diante deles brandindo atrevidamente seu salvo-conduto: sentiam-se gente de elite.

Compreendi que a rua estava fechada; que os outros não chegariam ao liceu, e saí daquele beco. Já a trezentos metros havia um primeiro cordão de policiais. L. foi encontrar-se em Saint-Maur com os dirigentes do Comitê de Resistência,174 e eu esperei o Comitê do 6.º no metrô Réaumur, onde ele devia reunir-se, segundo Évelyne. Com efeito, vi chegarem Évelyne, os Adamov etc. Agora as pessoas afluíam, em bandos, em multidão, em massa. Recuperamos a esperança; agrupamo-nos no metrô Arts-et-Métiers, bem perto da primeira barreira de tiras. Um sujeito que queria passar insultou-os; eles esbofetearam-no, a multidão berrou e inundou-os de papeizinhos: Não. A coragem de certos manifestantes tirou-me o fôlego. Alguém disse com voz negligente: “Eles vão atirar, estão colocando as luvas”, e nós recuamos um pouco, de maneira a poder tomar ruas transversais. As pessoas continuavam a chegar, em massa, mas todos levavam um choque ao ver a extensão das barreiras. Adamov disse, aborrecido: “Vamos tentar em outro lugar!” Eu achava que devíamos ficar, sem nos dispersar, e fazer frente às tribunas em número tão grande quanto possível; creio que tinha razão e que seria preferível isso a se deixar espancar; a impaciência de Adamov nos foi salutar. Começamos a rodar em torno da République, procurando em vão um meio de nos aproximarmos. Corria o boato de que grupos se haviam dirigido à praça da Nation, mas convenci o meu a voltar para manifestar-se diante das tribunas, no Arts-et-Métiers. Cruzamos com outros cortejos, que iam para onde? Não sabiam. Diziam uns aos outros: “Ali está fechado.” “Lá também.” Finalmente encontramo-nos na rua Bretagne, e, em meio a aplausos, algumas pessoas agitaram bandeirolas, pequenos cartazes, tabuletas e balõezinhos com a palavra Não. Gritou-se “Abaixo De Gaulle”, ao ritmo das manifestações estudantis, e Adamov disse, com irritação: “É alegre demais, isso não convém.” Cachos de balões subiam ao céu, bem acima da tribuna, e muitos Não flutuavam no ar. Encontramos Scipion e o pai de Lanzmann; estava chegando da rua Turbigo; as pessoas que tinham conseguido passar em grande número haviam sido apanhadas como ratos: começaram a manifestar quando Berthoin tomou a palavra, a tal ponto que não se ouviu seu discurso; então a polícia atacou pela frente e pela retaguarda: não havia nenhuma saída e a multidão foi selvagemente espancada. Enquanto Scipion contava, Adamov teve sede, e entramos todos num bistrô; de repente, do lado de fora, começou a investida: policiais atiravam. (Um tiroteio já começara antes, e nós nos havíamos refugiado sob um portão; a porteira deixava entrar todo mundo, e dizia: “Se eles vierem, fechem o portão.”) Mulheres ensanguentadas entraram no bistrô, uma calma e a outra aos gritos, realmente aturdida: nós a deitamos num banco da sala dos fundos. Uma loura tinha os cabelos empapados de sangue; homens ensanguentados passavam na rua. Évelyne derramou três lágrimas de emoção, e alguém lhe disse severamente: “Não vá desmaiar!” Saímos e recomeçamos nossa manifestação. Ao longo de toda a rua Bretagne havia feira, e os comerciantes pareciam estar do nosso lado. A multidão era muito simpática; dura, muito arrogante e alegre; era a mais viva das manifestações a que assisti: não lícita, como o grande cortejo-enterro da République, nem hesitante como o domingo da posse; era séria e para alguns perigosa. A mulher de V. estava pálida ao chegar às cinco horas, verde às cinco e quinze, em vômitos às cinco e meia; seu marido apoiava-lhe a cabeça no muro, e a animava carinhosamente: “Está doente”, disse um amigo; e outro retificou: “Está com medo.” E acrescentou, compreensivo: “É sempre assim.” Perguntei por que ela não ficava em casa: “Ah! Ela fica com tanto remorso, que este a torna ainda mais doente do que o medo.” Deixaram-na em um café da rua des Archives.

Por volta das sete e meia resolvemos nos retirar. O pai de Lanzmann nos levou em seu carro, passamos novamente pelo cruzamento Arts-et-Métiers: o chão estava coberto de Não; na rua Beaubourg haviam arrancado paralelepípedos; nos bulevares, grupos discutiam. Estivemos em casa de Bost. Ele participara da manifestação com Serge. Jantamos todos na casa de Marie-Claire, contando como fora o dia e analisando o artigo de Germaine Tillon, que Bost, Lanzmann e eu considerávamos uma porcaria.

No dia seguinte, infâmia da imprensa. De qualquer modo havia alguma força nas “centenas de manifestantes” do Figaro. A Chefatura de Polícia anunciava cento e cinquenta mil pessoas, havia seis mil convidados, quatro mil basbaques, estrangeiros ou mesmo gaullistas disfarçados; éramos portanto cento e quarenta mil. (Quando dei o número a Sartre por telefone, ele ficou decepcionado; em Roma os jornais falavam de duzentos e cinquenta mil manifestantes.) Na rua Beaubourg, houve tiros: quatro feridos a bala. L’Humanite e Libération publicam relatos que conferem exatamente com o que Lanzmann escreveu para o jornal do Comitê de Resistência: pena que ninguém os leu, salvo as pessoas que tinham a mesma opinião. Mesmo assim, através das artimanhas do France-Soir, algumas verdades apareceram; e houve as cartas publicadas pelo Monde no dia seguinte; e o tom do Paris-Presse não é triunfante. Confessam que não se estabeleceu certo “contato” entre De Gaulle e o público. Ouvimos seu discurso, na casa de Marie-Claire: não ao vivo, mas retransmitido meia hora depois, para que se pudesse apagar o rumor dos Não; voz e discurso de um velho muito pouco vigoroso. A pérola do dia, citada por vários jornais: “Seis jornalistas suecos foram violentamente espancados, levados ao posto policial, e novamente surrados. Seus protestos acabaram chegando à embaixada: soltaram-nos, dizendo: ‘Desculpem-nos, nós os tomamos por holandeses.’ Outro jornalista disse: ‘Eu sou americano’, um policial deu-lhe um murro no olho, dizendo: ‘Go home!’”

M. estava entre os convidados; mesmo lá, nem todos haviam aplaudido, e se ouviam escandalosamente os Não. Os diplomatas estrangeiros olhavam atentos o espancamento no fim da rua. Durante o discurso de De Gaulle, as pessoas viravam a todo momento a cabeça para o lado da multidão, e de vez em quando corria o boato: “Eles romperam as barreiras.” Então aqueles senhores tinham todos o mesmo reflexo: tiravam os cintos para usá-los como arma. Trucagem radical de Actualités, do rádio, da televisão. Mesmo assim, De Gaulle renuncia à sua grande turnê de propaganda; só irá, até o dia 28, a algumas pequenas cidades, e mesmo assim se limitará a entrar em cantato com os “poderes constituídos”.

Um detalhe entre outros, sobre a propaganda. Encontro novamente em casa um aviso de penhora. Escrevo ao cobrador: “De acordo, marque o dia.” Ele me responde: “Se pretende pagar em novembro, suspendo a penhora.” E fico sabendo que os contadores receberam a recomendação “confidencial” de não cobrarem os impostos com brutalidade, e de não executarem as penhoras. Coisas para adular os contribuintes.

 

 

Domingo, 14 de setembro  

 

É um outono suntuoso. Ontem, às oito e meia da manhã, eu tinha a impressão de me encontrar de novo em Pequim: era a mesma ternura dourada do céu e do ar, e eu esperava um carro que devia levar-me a uma reunião maçante; tratava-se de uma conferência para professores protestantes, em Bièvre; eu tinha aceitado, na perspectiva do referendo, para arrancar deles alguns não. Era bonito, o velho solar cambaio, num grande parque coberto de relva crespa. Os assistentes pareciam simpáticos; muitos pastores, entre os quais Mathiot, que acaba de passar seis meses em cana por ter ajudado um FLN a fugir para a Suíça. Falei sobre o engajamento dos intelectuais; discutiu-se um pouco, e eles pareciam concordar. Mas fiquei decepcionada no carro ao voltar; a mulher de cabelos brancos pensava como eu; mas as duas outras, a psiquiatra e a doutora, tinham medo dos paraquedistas e dos comunistas: diziam que, afinal de contas, De Gaulle era De Gaulle; à esquerda, só há Mendès, e é uma personalidade tão odiosa! Todas essas pessoas que se estrangulam assim, com as próprias mãos, não são fascistas: mas têm um tremendo pavor do comunismo!

À noite, Lanzmann me levou para jantar no Vanne Rouge. Encontrei-me de novo em Paris, tão sonolenta e ao mesmo tempo tão nervosa, que nem mesmo pude ir beber um trago do Dôme: voltei para casa e fui dormir. Esta manhã ainda me sinto tensa. Será que vai recomeçar tudo, como em maio? Tenho medo. Tenho medo de ficar assim angustiada até o dia 28. E depois? Não consigo imaginar esse mês de outubro.

Voltou-me o prazer de manter este diário, em parte porque neste estado de tensão qualquer outro trabalho me é difícil. Estava simpática a reunião do “Comitê de Ligação” do 14.º, na sexta-feira à noite. Saí a pé para a rua do Château; era doce e poético andar pela rua Froidevaux, passar diante do hotel Mistral e diante do Les Trois Mousquetaires. Mergulhei tanto no meu passado, nesses últimos tempos, que neste momento ele é uma dimensão da minha vida. A pequena sala, que deve ser um plantão da CGT, estava cheia. Jusquin pediu que me sentasse à escrivaninha. Eu estava ao lado de Francotte, senador e antigo conselheiro municipal comunista, o tipo consumado do velho político astucioso de esquerda. Ele me disse: “Ah! Os mandarins! Gostei…” E zombeteiro: “É exatamente a mesma situação, o mesmo problema: conosco, ou contra nós…” Respondi-lhe: “Sim, e a mesma solução: somos obrigados a trabalhar com vocês.” Então ele disse, num tom inimitável: “É que… o que é que vocês querem? Às vezes a gente se engana, comete erros: quem não os comete? Mas no fundo estamos com a verdade.” Jusquin não expôs mal a situação, mas — Deus meu! — por que aquele otimismo? Por que dizer que “a vitória dos não está garantida”, quando o problema é saber se haverá um pouco mais de não do que votos comunistas? Pediram-me artigos para o jornalzinho do bairro, e também aceitei um encontro com estudantes da Cidade Universitária. Depois, mandaram-me um recado: “Que prazer em revê-la etc.” Era F. d’Eaubonne, que eu não via há muito tempo. Levei-a ao Trois Mousquetaires, onde comi alguma coisa. Ocupava-se de Travail et Culture, mas houve dissensões políticas, e ela se retirou. Escreveu ainda em Europe, e é leitora de originais na Julliard.

Sartre volta amanhã; disse-me pelo telefone que está muito cansado. O artigo que enviou — fiz alguns cortes com SS — ressente-se disso; é pouco inspirado. Mas era preciso que o escrevesse.

Excelente conferência de Mendès-France. Lanzmann esteve presente e, curiosamente, Genet também. Diz-se que Mauriac parecia comovido, mas isso não o impediu de repetir senilmente no seu bloco de anotações: “Mesmo assim, há De Gaulle; há De Gaulle.” Ele se acusa — com muita razão, e eu temo por ele — de ter procurado durante toda a vida o lamentável tipo de isolamento que o sleeping-car acarreta.

 

 

16 de setembro  

 

Fui encontrar Sartre ontem, na estação de Lyon, sob a chuva, e passamos o dia conversando. Ele está muito cansado. Eu continuo a “militar”. Redação de cartazes, colóquios, artigos. Lanzmann está completamente absorvido pela campanha eleitoral. Em sua conferência de Montargis, diante de duzentos e cinquenta professores, ele falara em “violação das consciências”. Z., comunista, disse-lhe: “Você não devia ter pronunciado essa palavra: havia mulheres.”

 

 

Quarta-feira, 23 de setembro  

 

Vivi numa loucura até esta manhã. Sartre teve uma crise de fígado justamente no domingo, quando ia começar seu novo artigo para o Express. Estava tão esgotado, febril e apático, no domingo à tarde, que parecia impossível que se recuperasse; e como ficara aborrecido com o fato de seu primeiro artigo ter sido um pouco insípido, irritava-o a ideia de acontecer o mesmo com este. Trabalhou vinte e oito horas seguidas, sem dormir e quase sem parar; dormiu um pouco, na noite de domingo para segunda, mas quando o deixei, segunda-feira às onze horas da noite, exausto, retomou o trabalho e continuou até as onze horas da manhã; parecia surdo e cego ontem à tarde; perguntava-me como iria aguentar-se em pé durante o comício. E parece que falou muito bem. Só foi deitar-se à meia-noite e meia. Nesse meio tempo, na segunda-feira à noite, encontrei Lanzmann às voltas com seu artigo sobre a China: passou a noite e todo o dia seguinte escrevendo-o — e ficou muito bom. Eu, no entanto, passei a noite de segunda-feira fazendo cortes no artigo de Sartre — trabalho ingrato e bastante cansativo, quando há urgência. Enfim o Express chegou à casa de Sartre; o artigo está realmente excelente e quase não se percebem os retoques.

Não sei se é o nervosismo ou o trabalho, mas estou sempre com a pressão alta; sinto-o na nuca, nos olhos, nos ouvidos, nas têmporas, e isso torna o trabalho difícil. Escrevi os artigos prometidos; é uma loucura o tempo que me toma o menor trabalho de jornal. Mesmo assim, bem ou mal, retomei meu livro, a partir do primeiro capítulo.

Ontem de manhã, um trapista bateu à minha porta: Pierre Mabille. Trazia-me cadernos de Zaza, para me ajudar a completar minhas Memórias. Nada de interessante; as cartas dela dizem tudo.

Almoço esta manhã com Badiou, o normalista; ele me fala do partido socialista, da “ocupação” de Toulouse pelos paraquedistas no dia 14 de julho; eles empurravam as pessoas nas calçadas, bebiam nos cafés, recusavam-se a pagar e obrigavam as mulheres a dançar. Os capitães gritavam ao microfone: “Vamos, rapazes, façam-nas dançar. Vocês valem muito mais do que esses gigolôs civis.” Mas isso não fazia propaganda antigaullista: ao contrário, as pessoas pensavam: De Gaulle nos salvará disso. Badiou me disse que seu pai estivera seriamente em perigo no dia 27 de maio, quando antigos adeptos de Tunísia — Marrocos, numerosos em Toulouse, quiseram fazer um putsch nacionalista. Falamos sobre a Argélia, naturalmente. E sobre o referendo. Ele está extremamente pessimista.

Todos esperam o domingo: 60 ou 70%? Apostamos em 65 a 68%: talvez 68%. Depois será a campanha eleitoral, que se anuncia mal.

As torturas continuam cada vez maiores e na própria metrópole. Todos os dias, tiroteio entre policiais e africanos do norte.

 

 

Sábado, 27 de setembro  

 

Sim, faz-me bem sair da concha; no ano passado, muitas vezes eu lamentei viver confinada demais. Gostei bastante da noite de ontem. Não que eu tivesse tirado dela a pequena satisfação pessoal que experimentara durante minha conferência na Sorbonne, diante de seiscentas pessoas vindas por minha causa, e que me haviam acolhido tão calorosamente; mas também eu sou “uma verdadeira democrata”, e é esse tipo de contato que me toca mais, quando se goza da simpatia coletiva.

Preparei umas quatro palavras de introdução, num bistrô na rua D’Alésia, e depois entrei na escola. Mais ou menos duas mil e quatrocentas pessoas, metade na sala, abafadas de calor, e metade tremendo de frio, no pátio. “A mais bela reunião de toda a campanha”, disse Stibbe. Piedosamente, Jusquin pretendia que só havia um terço de comunistas; mas, mesmo invertendo a proporção, um terço de não comunistas, lado a lado com os comunistas, não era tão mau. Junto à tribuna, velhos senhores — um barbudo, e alguns calvos — mostravam-se muito agitados. Havia um comício da UFD a cerca de cem metros, na Prefeitura do 14.º, e não os haviam avisado de que esse outro estava ocorrendo; pessoalmente cada qual estava pouco ligando, mas era preciso respeitar a susceptibilidade dos outros etc. Em suma, decidiu-se que se enviariam mutuamente delegações. Depois, meu copresidente tomou a palavra, eu falei brevemente, e os oradores desfilaram: Madaule, Gisèle Halimi, muito convincente; ela falava sem estardalhaço, em tom de bate-papo, mas apaixonado, com pequenos gestos e um entusiasmo sorridente; fizera um comício na véspera em Toulouse, passara o dia num trem, e no dia seguinte ia pedir um indulto ao presidente da República. Tem filhos e uma profissão que deve pôr à prova os nervos e o coração, além de ser uma mulher superativa para quem eu tiro meu chapéu. Simpatizamos uma com a outra, e trocamos endereços. Houve depois um número encantador de Yves Robert, acompanhado de Danièle Delorme, fresca como uma flor, num tailleur amarelo da última moda; deveriam utilizar mais essa “gente do espetáculo”; foi muito divertido. Surpreendente intervenção de um advogado que até anteontem era gaullista de esquerda, polido, cuidado, tipo “sujeito de futuro”, radicalmente diferente de toda a assistência, e fazendo malabarismos com palavras incompreensíveis: conta que na quinta-feira, no comício Pleyel, os aplausos desencadeados abafavam a voz de Soustelle. Gritavam: “Morte aos comunistas!” e Soustelle os encorajava. “Vão matá-lo”, gritou alguém. (As pessoas intervinham, como no guinhol, com “Sim! Não! Bravo!” Era simpático a valer.) O advogado concluiu com um grande gesto retórico: “Vi aquela sala e estou vendo esta: e já fiz minha escolha!” Aplaudiram-no, cada qual sentindo-se pessoalmente escolhido. Depois foi a vez de D’Astier, clássico; um comunista lendo (como eles fazem sempre), sem saltar uma só palavra, e sem qualquer inflexão de voz, um longo memorial; Stibbe, que comenta com precisão a constituição. Todos os outros oradores suavam; quanto a ele, quando me estendeu a mão, esta estava gelada. Houve um episódio burlesco; um UFD, delegado do outro comício, frisou pesadamente as divergências entre a UFD e as pessoas ali presentes; mas regozijou-se com “essas existências paralelas que iam encontrar-se para dizer não”. Enquanto o copresidente reivindicava dinheiro, anunciaram que Bourdet estava na sala; ovação: “A tribuna!” Mas ele se recusou a falar. Vinha do comício da UFD, onde só havia, ao que parece, noventa e três pessoas. Eu gostava bastante das caras das pessoas e de suas reações. Havia uma mulher muita miserável, quase mendiga, que trouxera duas crianças: uma meninazinha morena, que tinha a cabeça à Modigliani, sob os cabelos negros cortados em forma de cuia; um menininho de dez anos que ria, aplaudia e parecia encantado.

À saída, estudantes, pessoas muito gentis e um cego com a mulher: ele leu Os mandarins em braile, dirige uma biblioteca braile, fez uma antologia premiada pela Academia, e gostaria que eu patrocinasse sua revista de poetas cegos: já conta com Fernand Gregh e Duhamel! Eu me esquivo. Na grande cervejaria, encontro C. Chonez, F. d’Eaubonne, Renée Saurel. Numa mesa vizinha, H. Parmelin, O. Wormser, Pignon; em outra mesa, os UFD: Stibbe, Bourdet, Halimi; enviávamos delegações de mesa em mesa; o clima era muito alegre, e eu fiquei até uma e meia da manhã. Todos falam muito bem do artigo de Sartre.

Hoje, trabalho; o primeiro capítulo toma forma. Não é impossível que o livro esteja terminado em dois anos.

Terça-feira saem os livros da Gallimard. Lembro-me dessa espécie de angústia com relação a Os mandarins, diante da ideia de todos os olhares que iriam percorrer páginas onde eu colocara tanto de mim mesma. Desta vez, é diferente, coloquei-me a distância; críticas e leitores não me perturbam. Mas sinto um mal-estar — quase remorso — ao pensar em todos aqueles de quem falei, e que ficarão furiosos.

Um belo outono, quente, dourado, umbroso e ensolarado; mas as agressões começam, mais ou menos em toda parte, na França.

Última conversa com um motorista de táxi; ele observa que Paris está cheia neste sábado por causa da votação: “E como irão votar?”, pergunto. “Ora, minha senhora, é evidente: votarão na honestidade… Esse homem é honesto: se não fosse, fique certa de que os partidos o teriam insultado… Não, não o vejo como ditador; e depois, ora: vamos eleger os deputados, e teremos direito de falar… Em todo caso, é preciso que as coisas mudem, não pode ser pior do que o que havia antes… É preciso ter confiança.”

 

 

Domingo, 28 de setembro  

 

Referendo.

 

 

Segunda-feira, 29 de setembro  

 

Muito bem! Provamos o gosto da derrota, e este era amargo. Era um linda dia dourado, leve, as pessoas iam votar com um sorriso, as seções eleitorais pareciam quase vazias apesar da enorme participação, sem dúvida porque tudo estava muito bem-organizado. Votei de manhã, almocei com minha irmã, acompanhei Sartre à rua Mabillon; o sujeito da seção disse-lhe, sorrindo: “Esta manhã vieram fotógrafos que perguntaram a que horas o senhor votaria.” Passeamos com vagar e nos sentamos num terraço perto de Saint-Michel: sentíamo-nos desmobilizados, vazios; não estávamos muito ansiosos: entre 62% e 68%, o resultado parecia certo, segundo o próprio governo, segundo os comunistas, e segundo o bom senso. Encontramos Boubal, que disse com convicção: “Ah! Era bom o tempo da ocupação!”, e se queixou de que no Flore só havia homossexuais. Depois, trabalhamos e jantamos no La Palette. Sartre sempre um pouco cansado. Arranquei dele a promessa de ir consultar o médico. Lanzmann chegou por volta de meia-noite, já arrasado, sem querer demonstrar muito, porque Sartre o acusa muitas vezes de pessimismo. Os resultados apurados eram consternadores: mais de 80%. Sartre foi dormir. Passamos no France-Soir, fervilhante de atividade: já haviam apurado todo o interior, com exceção de Marseille, e isso dava mais de 80%. Voltamos para casa abatidos e recomeçamos, como no dia 13 de maio, a ronda de telefonemas. Primeiro Péju, que tinha uma quantidade de números precisos, deprimentes. No Humanité, Lanzmann encontrou T., e perguntou: “Mas os comunistas traíram: como é possível?” E o outro respondeu sombriamente: “Leia o artigo do seu amigo Sartre.” Eu comecei a chorar, nunca pensei que fosse ficar tão abalada; ainda tenho vontade de chorar, esta manhã. É terrível estar contra todo um país, o nosso: já nos sentimos no exílio. Telefonamos ao pai de L.; ele disse que nos Champs-Élysées estavam todos os ativistas fascistas, que exultavam. A alegria deles é quase tão dura de suportar quanto a decepção dos que estão do nosso lado. Houve um instante de falsa esperança: segundo Europe 1, as últimas notícias davam somente 72%. Mas era um erro: Paris votara sim na proporção de 77%. Há muitos, uma enorme quantidade, que não sabem o que fazem, que são como o meu motorista do outro dia: é preciso mesmo mudar, é preciso perseverar. Só que é irreversível; até perceberem que a esperança não está onde pensam, quantos anos se passarão? E então? Ao telefone, Lanzmann perguntou a um encarregado de informações como ele votara; votara sim. “Votou mal”, disse Lanzmann. Também eu, ligando para os assinantes ausentes, perguntei: “Está contente com os resultados?” “Por que me pergunta isso?”, perguntou o sujeito, num tom inquieto. “Para saber.” “Já fui muito insultado, há pouco”, disse-me ele. “Foi porque votou sim?” “Sim”, respondeu. “Ah! É que realmente é uma pena”, concluí, desligando. Ele não estava certo de ter razão: mas de qualquer modo era um sim.

Pesadelos durante a noite inteira. Sinto-me em frangalhos.

Quando comprei o France-Soir e o Libération e os abri, na praça Denfert-Rochereau, lembrei-me da guerra, quando eu abria os jornais e caía em pranto: “Os alemães entraram na Bélgica.” Desta vez eu estava preparada; mas senti quase a mesma angústia. Como o Libération estava sombrio! Parece que o Humanité também, mas não havia mais exemplares. Telefonei. Sartre não esperava por isso. Quanto a mim, tenho a morte na alma.

Foi o meu departamento, o Corrèze, o que melhor votou! Essa pobre região de urzes e castanheiros já era radical na minha infância.

As pessoas têm horror do Parlamento. Sartre revela em seu artigo que os deputados são olhados como “preguiçosos” e responsáveis por uma espécie de rebelião contra o executivo. Há outras coisas, ainda. Primeiro, velhos ranços de escândalos: Panamá, Oustric, Stavisky; nenhum acontecera durante a quarta sessão (a casa das piastras era outra coisa); mas as pessoas conservaram a ideia de que na Câmara é tudo franco-maçonaria, intrigas, propinas e golpes baixos. A questão é que eles não querem ser governados por iguais: pensam muito mal deles porque pensam mal de si próprios e de seus vizinhos mais próximos. É “humano” gostar do dinheiro e servir aos próprios interesses. Mas quando somos humanos como os outros, não somos capazes de governá-los. As pessoas pedem, então, o não humano, o sobre-humano, o Grande Homem que será “honesto” porque ele, sim, está “acima dessas coisas”.

Derrota sinistra porque não é a derrota de um partido, de uma ideia, mas a condenação, feita por 80% dos franceses, de tudo aquilo em que acreditávamos e tudo o que desejávamos para a França. Uma negação deles mesmos, um enorme suicídio coletivo.

 

 

Quarta-feira, 1.º de outubro 

 

Dia obscurecido pelo referendo e pela doença de Sartre, que está com dor de cabeça, que não quer ir ao médico antes de sábado, e que me deixa aflita. Tenho pesadelos, e me sinto mal durante o dia todo.

À noite, jantei com Han Suyin, muito sedutora. Encontrei-a de novo no Pont-Royal: tailleur claro, alta, magra, o rosto mal revelando a origem asiática, bela para os quarenta anos. A filha, de pai chinês, é nitidamente asiática: não sabe uma palavra de francês, e deve ter-se entediado bastante. Jantamos em casa de Beulemans. Han Suyin é interessante. Resolveu muito jovem assumir sua condição de mestiça: optou por não escolher; sente-se tão ocidental quanto asiática, diz ela; mas todo o seu coração está na Ásia. Vive em Cingapura e, de nove horas da manhã às cinco da tarde, diariamente, trata de mulheres chinesas (é ginecologista); depois volta de carro para casa e escreve. Desde 1952, vai todos os anos à China; admira enormemente os dirigentes e os funcionários: são santos, diz. Conta-me que em Cingapura e mesmo em Cantão, apesar do regime, ainda há comunidades de mulheres (cerca de trinta mil em Cantão) que são oficialmente lésbicas, casam-se entre e si e adotam crianças. Podem sair da comunidade e desposar um homem. Então, cortam os cabelos. Têm sua deusa, suas cerimônias etc. Ela diz que o puritanismo chinês é sufocante, e que no início os russos causaram escândalo porque tentavam flertar com as chinesas. Pensa que, pelo menos durante cinco anos, a situação continuará a ser dura para os intelectuais chineses.

 

 

Quinta-feira, 2 de outubro  

 

Dias sombrios. A leitura do Express é deprimente: um número de derrota aceita, e de diversão. O Observateur mantém-se melhor. Sartre almoçou com Simone Berriau; bendita seja, pois conseguiu meter-lhe medo: ele vai logo ao médico, e eu o acompanho; satisfação mitigada: ela o ameaçou de hemiplegia e de enfarte; ele parece terrivelmente cansado; entope-se sucessivamente de optalidon, de beladenal e de corydrane; tem vertigens, e incessantes dores de cabeça.

Jantar no La Coupole com Gisèle Halimi. Passando de um assunto a outro, ela me conta sua vida. Ah! A sorte das mulheres ainda não está decidida… Ela me conta o processo de Philippeville: nenhum hoteleiro quis hospedá-la, nem a qualquer de seus companheiros; foi preciso que os advogados da cidade os acolhessem em suas casas. O promotor pedira nove condenações à morte: o tribunal condenou quatorze, isto é, todos os acusados (apanhados ao acaso, depois do motim, provavelmente todos inocentes), salvo um delator. O processo, aliás, foi anulado, e será reaberto esses dias em Argel.

 

 

Segunda-feira, 6 de outubro  

 

Sartre foi ao médico. Passa um pouco melhor, embora continuem as dores de cabeça.

Choveu tanto, que nas avenidas de Paris as árvores ainda estão verdejantes. Dir-se-ia que ainda não chegou o outono.

O futuro não tem perspectiva. Sentimo-nos desempregados, desmobilizados e desconcertados.

 

 

Terça-feira, 14  

 

Realmente, dias péssimos. Naquele avião que perdera um motor, a seis horas de Shannon, era assim: um medo constante, com breves tréguas, e o despertar do medo. A mesma coisa com Sartre. Em certos momentos ele parece melhor; ou, como ontem, embrulha as palavras, anda com dificuldade, sua escrita e sua ortografia são de enlouquecer, e eu enlouqueço. O ventrículo esquerdo está muito cansado, diz o médico. Seria preciso um verdadeiro repouso que ele não fará. Nossa morte está em nós, não como a semente no fruto, como o sentido de nossa vida; em nós, sim, mas estranha, inimiga, terrível. Nada mais conta. Meu livro, as críticas, a literatura, as cartas, as pessoas que me falam dessas coisas, tudo o que me teria causado prazer, radicalmente anulado. Nem mesmo tenho mais coragem de manter este diário.

 

 

Terça-feira, 21  

 

Dias horríveis. Sobretudo sábado, quando estive no médico. Domingo, ontem: um longo pesadelo abafado!

 

 

Terça-feira, 28 de outubro  

 

Saída deste pesadelo, desta doença. É preciso que já se esteja muito embotado pela velhice para suportá-la.

Creio que vou parar este diário.

 

Com efeito, parei. Pus as folhas numa pasta, sobre a qual escrevi, impulsivamente: Diário de uma derrota. E nunca mais toquei nelas.

 

***

 

O que se passara durante aqueles dias horríveis foi que Sartre escapara por um triz de um ataque. Fazia muito tempo que ele submetia sua saúde a uma dura prova, menos pela sobrecarga que se impunha ao querer realizar o “pleno emprego” de si mesmo, do que pela tensão que se instalara nele. Pensar contra si mesmo é bem bonito, é fecundo, mas a longo prazo arrasa; exigindo demais da cabeça, ele também danificara os nervos. A redação de L’Imaginaire, outrora, causara-lhe perturbações bastante graves; para terminar La Critique, realizara um esforço muito mais atlético. Mas sobretudo a derrota da esquerda, a ascensão de De Gaulle, com tudo o que ele encarnava, haviam-no abalado muito. Em Roma, sempre se entupindo de corydrane, ele trabalhara numa peça; eu a conhecia por alto, e em Pisa, antes de deixá-lo, ele me mostrara o primeiro ato. Fora, fazia quarenta graus, mas no seu quarto ele regulara o aparelho de ar condicionado de maneira a transformá-lo numa geleira. Li tremendo de frio um texto cheio de promessas, mas que não se sustentava. “É Suderman”, disse-lhe. Ele concordou. Ia recomeçar, mas faltava-lhe tempo, e mais uma vez ele se comprometera imprudentemente. O medo de estragar uma obra que era muito importante para ele contribuía para irritá-lo e agitá-lo. Enfim, quando regressou a Paris, foi acometido de uma séria crise de fígado. As vinte e oito horas de trabalho ininterrupto, seguidas à noite de um comício, como anotei no meu diário, o haviam exaurido. Arrasado pelas dores de cabeça, com a voz pastosa, embrulhando as palavras, a caligrafia e a ortografia distorcidas, tinha vertigens e perda do equilíbrio. Almoçando em casa de Simone Berriau, pousara deliberadamente o copo a cinquenta centímetros da mesa: ela tomara imediatamente o telefone e marcara uma consulta para ele com o professor Moreau. Esperando-o durante a consulta, num bistrô vizinho, eu pensava que ele fosse sair de lá numa padiola. Voltou a pé, e me mostrou a receita: alguns remédios, não fumar nem beber mais, repousar. Ele obedeceu mais ou menos, mas continuou a trabalhar. As dores de cabeça persistiam. Ele, outrora tão vivo e decidido, andava com o pescoço duro, os membros entorpecidos; o rosto inchado e hirto, a fala e os gestos incertos. Seu humor também se tornara insólito: uma bonomia intercalada de surtos de violência. O médico ficara impressionado com seu ar de paciência, pois lhe prometera imediatamente: “Vou devolver-lhe a agressividade.” Entretanto, quando eu o via em seu escritório, crispado, arranhando o papel com a pena desorientada, os olhos velados de sono, dizia-lhe: “Descanse.” Ele me respondia com uma violência sem precedente. Por vezes, cedia. “Cinco minutos, sim”, dizia. Deitava-se então e, vencido, adormecia por duas ou três horas. “Está cansado, hoje”, disse-me sua mãe, certa tarde, quando cheguei antes dele. “Está cansado?”, perguntei-lhe, quando chegou. “Não”, ele respondeu, instalando-se em seu escritório. Insisti: “Garanto-lhe que estou muito bem”. Sorriu: “Cada um tem suas destilações…” “O que quer dizer?” “Você sabe muito bem: as escapulidas do coração.” E se pôs a traçar sinais incríveis. Fingi trabalhar, esperando vê-lo desabar de um momento para outro. Tinha um encontro marcado na manhã seguinte com uma amiga; consegui que desmarcasse com um bilhete; ele se corrigiu quatro vezes ao escrevê-lo, e quando ela o recebeu, caiu em pranto: as palavras acavalavam-se, disformes e incoerentes. Fui procurar o médico: “Não vou esconder-lhe”, disse-me ele. “Quando o vi entrar no consultório, pensei: este homem vai ter um ataque.” E acrescentou: “É um grande emotivo. Está esgotado intelectualmente, mas sobretudo afetivamente. Precisa de tranquilidade moral. Que trabalhe um pouco, se faz questão, mas de modo algum deve lutar contra o relógio: do contrário, não lhe dou seis meses de vida.” Tranquilidade moral, na França, hoje! E ele desejava terminar sua peça antes de dois meses! Fui logo procurar Simone Berriau; ela concordou em adiar para o outono seguinte Sequestrados de Altona. Não falara com Sartre sobre essas providências; quando lhe contei, algumas horas mais tarde, ele me ouviu com uma sorridente indiferença: eu teria preferido que ele se zangasse. Durante algum tempo trabalhou apenas em pequenas doses; depois restabeleceu-se lentamente. O mais penoso para mim, durante essa crise, foi a solidão à qual sua doença me condenava: não podia partilhar com ele as preocupações de que ele era objeto. Fiquei marcada pela lembrança daquele período, sobretudo daquele dia em que “as escapulidas do coração” haviam erguido um mistério entre nós. Em 1954, a morte se tornara para mim uma presença íntima, mas daquele momento em diante ela me possuiu.

Esse poder tinha um nome: velhice. Em meados de novembro, jantamos no La Pallete com os Leiris; depois do nosso último encontro, ele havia tomado uma dose mortal de barbitúricos, e só haviam conseguido salvá-lo com uma operação delicada, e um longo tratamento. Sartre e ele eram dois sobreviventes. Falamos de soníferos, de drogas, de calmantes e de estimulantes que Leiris usava; perguntei-lhe qual era precisamente o efeito deles: “Bem”, disse-me ele, “isso descontraria”. E como eu insistisse: “A gente tem as mesmas contrariedades de antes; só que elas não nos contrariam mais.” Enquanto ele se entendia com Sartre sobre as diferenças entre estimulante e tranquilizante, pensei: “Pronto, passamos para o outro lado: o dos velhos.” Pouco mais tarde, conversando com um amigo muito antigo, Herbaud, eu disse que, afinal de contas, não tínhamos mais nada a esperar senão a nossa morte e a dos que nos eram próximos. Quem irá primeiro? Quem sobreviverá? Eis agora as perguntas que eu fazia ao futuro: “Vamos, vamos”, disse-me ele. “Ainda não chegamos lá: você sempre esteve adiantada para a sua idade.” No entanto, eu não me enganava…

O último elo que me mantinha longe do meu verdadeiro estado partiu-se: minhas relações com Lanzmann romperam-se. Era normal, era fatal e mesmo, tanto para um como para o outro, pensando bem, era desejável; mas o momento de reflexão ainda não chegara. A ação do tempo sempre me desconcertou: tomo tudo por definitivo, e assim o trabalho da separação foi difícil para mim; aliás, para ele também, embora a iniciativa tenha vindo dele. Eu não estava certa de que conseguiríamos salvar o passado, pelo qual eu tinha muito apreço para que a ideia de renegá-lo não me fosse odiosa. Foi com o coração melancólico que terminei esse ano deprimente.