Desde o mês de maio, rajadas de palavras abatiam-se sobre a França; o claro vocábulo “mentiras” nem mesmo lhes convinha: eram lecta, sem relação positiva ou negativa com a realidade, ruídos produzidos no ar por um sopro humano. Equipes especializadas interpretavam-nas. Traduziam por “oferta generosa” a expressão “paz dos bravos”, que para os argelinos significava capitulação.
A imprensa acomodou-se. As eleições na Argélia foram uma farsa, e na França uma vitória para os UNR, que, com os eleitos muçulmanos impostos, formaram um bloco de duzentos e sessenta deputados gaullistas. Os comunistas perderam terreno. Muita gente que até ali se situava à esquerda escolheu o que chamava “o realismo”. Um caso surpreendente foi o de Serge Mallet, um sindicalista que, no início de 1958, falara a Sartre, com bastante inteligência, sobre as novas táticas patronais, e sobre as dificuldades que estas criavam nos sindicatos; procurava então, no quadro da luta de classes, um meio de superá-las. O longo estudo no qual retomou por escrito essa exposição espantou Sartre por sua inabilidade: Mallet corrigiu-se rapidamente. Mandou para a Temps Modernes e para vários jornais de esquerda artigos excelentes nos quais analisava o neocapitalismo, e descrevia as condições atuais do trabalho no campo e nas fábricas. Conheci-o no La Coupole, no momento do referendo, e ele me surpreendeu: sabia, de fonte segura, que um enviado de De Gaulle se encontrava em Túnis, negociando; a paz seria assinada em dois dias. Revi-o algumas semanas depois: descreveu as manobras dos jovens patrões para atomizar a classe operária, culpou os sindicalistas que se obstinavam em posições ultrapassadas, e eu percebi então que, sob a aparente intenção de adaptar a vanguarda operária às invenções do neocapitalismo, ele chegava à colaboração de classes. Aliava-se a esse economismo que era o filé mignon do regime. A Temps Modernes não aceitou mais nenhum artigo teórico dele.
Os resultados do referendo acabaram de apartar-me do meu país. Acabaram-se as viagens na França. Eu não tinha nenhum desejo de conhecer Tavant, Saint-Savin, e outros lugares que ignorava; o presente me estragava o passado. Desde então vivi na humilhação o orgulho dos outonos, e na amargura a suavidade do verão nascente. Acontece ainda a beleza de uma paisagem me emocionar, mas é como um amor traído, como um sorriso que mente. Toda noite, quando eu me deitava, temia o sono, que era atravessado por pesadelos, e ao despertar sentia frio.
“O período dos combates terminou”, declarou De Gaulle, em Tuggurt. No entanto, estes jamais haviam sido tão sérios. Challe alcançou sucessos militares, destruiu os katiba. Mas suas ofensivas psicológicas fracassaram, e ele não conquistou as populações. No início da primavera de 1959, foi-nos revelada uma faceta ainda pouco conhecida dessa guerra exterminadora: os campos de concentração. Sabia-se que, a partir de novembro de 1957, a operação chamada “reagrupamento” começara a ampliar-se. Uma vez que a ALN — a despeito da propaganda oficial — estava no povo “como um peixe n’água”, era preciso tirar a água: esvaziar as mechta e os aduares, queimar as terras e reunir os camponeses, sob o controle do exército, por trás do arame farpado. O método foi aplicado em larga escala. Em 12 de março de 1959, o Monde fez uma alusão rápida à existência desses centros. Em abril, o secretário-geral do Socorro Católico, monsenhor Rodhain, promoveu um inquérito do qual divulgou certas conclusões em La Croix: “Descobri que se tratava de mais de um milhão de seres humanos, em geral mulheres e crianças… Uma proporção considerável, sobretudo entre as crianças, passa fome. Vi, e dou meu testemunho.” Ele calculava em mais de um milhão e quinhentos mil o número de reagrupados.175 Alguns deles — vira com seus próprios olhos — estavam reduzidos a comer capim. A tuberculose fazia devastações. As pessoas estavam tão debilitadas que nem os medicamentos surtiam efeito. No dia 15 de abril foi divulgado um relatório ainda mais deprimente, endereçado oficialmente ao M. Delouvrier. Ressaltava que mais de um milhão de camponeses reagrupados viviam em condições “extremamente precárias”.176 Em média, havia quinhentas e cinquenta crianças por grupo de mil pessoas, e desse número morria uma a cada dois dias; como muitas mulheres e velhos também não resistiam, pode-se contar que os campos de concentração fizeram em três anos mais de um milhão de mortos.177
Delouvrier proibiu a criação de novos centros. Não foi atendido, e o número de reagrupados só fez aumentar. Em julho, Pierre Macaigne publicava no Le Figaro o relato de sua visita ao campo de Bessombourg: “Amontoados, entregues à própria sorte, quinze pessoas por tenda, desde 1957, esses desgraçados vivem ali uma promiscuidade humana indescritível. Em Bessombourg vivem mil e oitocentas crianças… atualmente a população é nutrida unicamente com semolina. Cada um dos reagrupados recebe cerca de cento e vinte gramas de semolina por dia… Oferecem leite duas vezes por semana: meio litro por criança… Nenhuma distribuição de alimentos com gordura foi feita nos últimos oito meses. Nenhuma distribuição de grão-de-bico há um ano… Nenhuma distribuição de sabão há um ano…”
Por meio de relatos de jovens soldados ou de jornalistas que viram na Tunísia argelinos arrancados de campos fronteiriços, fiquei sabendo de outros detalhes: os estupros sistematicamente organizados — mantendo-se os homens afastados do campo, ou reunidos num canto, enquanto os soldados se aproveitavam; os cães atiçados contra os velhos por prazer; as torturas. Tais como eram, esses relatórios já deviam perturbar as pessoas. Monsenhor Feltin e o pastor Boegner fizeram a denúncia, e se indignaram: mal foram ouvidos. A imprensa calava-se. A Cruz Vermelha francesa, orientada há dois anos pela Cruz Vermelha internacional para ocupar-se dos reagrupados, não se mexia. Em compensação, quando inundações fizeram em Madagascar cem mil desabrigados, o governo, preocupado em demonstrar as vantagens que a ilha trazia por pertencer à Comunidade, lançou uma campanha, e os franceses apressaram-se em provar que eram “formidáveis”.178 É preferível comover-se com uma catástrofe natural do que com crimes dos quais se é cúmplice.
Havia outros campos, de internamento, de trânsito, de triagem, onde homens eram encerrados por decisão arbitrária da polícia ou do exército; eram torturados física e psicologicamente, muitas vezes até a morte ou a loucura. Abdallah S. conta no Express como, entre pancadas e suplícios, obrigavam-no a renegar a FLN, e a declarar amor pela França com palavras saídas do coração. Campos dessa espécie também existiam na França; Larzac: ontem era o nome de um planalto que eu atravessara alegremente na minha juventude, a pé ou de bicicleta: agora era o nome de um inferno. As pessoas da região, apesar das precauções, conheciam-no. Todos os franceses sabiam que se havia aberto em seu solo campos parecidos com os da Sibéria, que haviam denunciado com estardalhaço: ninguém protestava. Camus não levantava a menor objeção, ele, que pouco tempo antes mostrara-se tão enojado com a indiferença do proletariado francês pelos campos de concentração russos.
Quanto à tortura, em março de 1958 De Gaulle, solicitado a condená-la publicamente, deixara escapar do alto de sua grandeza que ela estava ligada ao “sistema”, e que desapareceria com ele: “Não se tortura mais”, afirmara Malraux depois do 13 de maio. Ora, a tortura conquistara a própria França. Em outubro, o cardeal Gerlier, para defender os padres acusados em Lyon de terem ajudado a FLN, invocou as torturas sofridas pelos muçulmanos nos comissariados da cidade. Num comissariado de Versailles, um argelino “interrogado” enforcou-se nas grades da janela. A Témoignage Chrétien e a Temps Modernes publicaram queixas de estudantes argelinos atrozmente “inquiridos” em dezembro pela DST. Em fevereiro, durante o processo contra os argelinos que haviam atirado em Soustelle, um acusado apontou um dos policiais que enchiam a sala, o comissário Belœil: “Este homem me torturou.” O comissário eclipsou-se e não foi interrogado. Na Argélia a tortura era um fato admitido. “Outrora”, disse-me Gisèle Halimi, “quando eu afirmava: ‘As confissões do meu cliente foram arrancadas sob tortura’, o presidente batia na mesa: ‘A senhora está insultando o exército francês.’ Agora, ele se limita a responder. ‘No entanto, eu as considero verídicas.’” Uns trinta padres jovens, abalados por sua experiência argelina, escreveram a seus bispos, e um capelão militar condenou publicamente a tortura. Mas a reforma da justiça, instaurando em março o sigilo dos processos, facilitava sequestros e sevícias. Em junho, em La Gangrène, os estudantes torturados em dezembro — Boumaza, Khebaili, Souami, Fancis, Belhadj — falaram. Apresentavam queixa contra o M. Wybot, que assistira pessoalmente a várias sessões. Apreendeu-se o livro de atas, e o caso foi abafado.
Em março, preparava-se um comício contra a tortura na Mutualité. Eu estava preparando minha intervenção, quando o comissário do meu bairro veio avisar-me que o comício fora proibido. Falou polidamente; depois, mostrando uma fita de crepe na lapela: “Eu, senhora, perdi um filho na Argélia.” “É do interesse de todos nós terminar com essa guerra”, respondi. Sua voz tornou-se ameaçadora: “Só desejo uma coisa: ir lá e liquidar alguns deles.” Eu não gostaria de ser interrogada por ele. À tarde realizou-se uma conferência de imprensa. Conseguimos organizar mais tarde duas ou três reuniões. Um público numeroso assistiu, no cemitério Montparnasse, ao enterro de Ouled Aoudia, abatido por um policial, pouco antes do processo dos estudantes argelinos presos por terem reconstituído a UGEMA, e em cuja defesa ele atuaria. No fim do ano escolar, foi organizada uma “quinzena de ação pela paz na Argélia”. Essas manifestações não eram inúteis, mas tão insuficientes, que um número crescente de jovens e adultos optavam pela ilegalidade.
Depois da brecada de junho de 1956, não houve mais entre os jovens oposição aberta e coletiva contra a guerra. Alguns comitês de jovens, mais ou menos clandestinos, protestavam ainda, mas só com palavras. Em setembro de 1958, recebi o primeiro número mimeografado, anônimo, de uma publicação — Vérité pour…, limitada, de início, às análises econômicas e políticas, mas que logo pregou a deserção e a ajuda à FLN. Era dirigida por Francis Jeanson, que tentava assim superar uma dificuldade: “A de tornar pública uma ação que devia por hipótese permanecer clandestina.”179 Na mesma época criou-se o movimento Jovem Resistência.
Meus amigos e eu havíamos evoluído muito a respeito da questão do apoio à FLN. Revimos Jeanson, achávamos convincentes as razões pelas quais ele justificava politicamente a sua ação. A esquerda francesa só podia retomar posições revolucionárias ligando-se à FLN. “Estão atirando nas costas dos soldados franceses”, disseram-lhe. Essa censura me fazia pensar no sofisma dos alemães acusando os maquisards180 de impedir o retorno dos prisioneiros. Eram os militares profissionais e o governo que matavam os jovens franceses, ao prolongar a guerra. A vida dos muçulmanos não valia, a meu ver, menos que a vida dos meus compatriotas: a enorme desproporção entre as perdas francesas e o número de adversários massacrados tornava repugnante a chantagem do sangue francês.181 Como a esquerda fracassara em conduzir na legalidade um combate eficaz, se quisesse permanecer fiel a suas convicções anticolonialistas de quebrar toda cumplicidade com essa guerra, não restava outra saída senão a ação clandestina. Eu admirava aqueles que a realizavam. Só que ela exigia um engajamento total, e eu estaria trapaceando se me pretendesse capaz disso: não sou uma mulher de ação; minha razão de viver é escrever; para sacrificá-la, seria preciso que eu me acreditasse indispensável em outro lugar. Não era absolutamente o caso. Contentei-me em prestar serviços quando me pedissem; alguns dos meus amigos fizeram mais.
Malraux expulsava da Comédie Française Labiche e Feydeau; cobriu de discursos elevados os entendimentos da casa Philips, que tivera a ideia, para desespero dos gregos, de explorar comercialmente a Acrópole, apresentando ali o espetáculo Son et lumière. “Desde que os nazistas puseram os pés na Acrópole, nunca conhecemos semelhante humilhação”, lia-se no dia seguinte num jornal grego, e no entanto conservador. A França continuava a se degradar. A universidade estava na miséria e o governo dispunha-se a subvencionar as escolas livres. O antissovietismo da burguesia persistia. Os cientistas soviéticos anunciaram, ao lançar o primeiro lunik, que ele passaria a certa distância da lua: a imprensa insinuou que ele não conseguira atingi-la. O caso Pasternak foi um ganho inesperado. É verdade que a União dos Escritores Soviéticos mostrou-se sectária e inábil ao insultar e excluir Pasternak; mas enfim deixaram-no viver em paz em sua datcha; e os acadêmicos suecos comportaram-se como provocadores quando atribuíram o prêmio a um romance russo que se distanciava do comunismo, e que eles consideravam como contrarrevolucionário; obrigavam a União, que até ali fechara os olhos, a intervir. Pasternak é um grande poeta; mas não consegui ler Doutor Jivago; o autor nada me informava sobre um mundo diante do qual ele parecia ter-se feito deliberadamente cego e surdo, envolvendo-o numa bruma na qual ele próprio se dissolvia. Para engolir esse paralelepípedo de brumas compactas, é preciso que a burguesia se tenha apoiado num poderoso fanatismo. Este lhe inspirou mais tarde uma paixão não menos absurda pelo Tibet, do qual ignorava tudo, mas se revoltara contra a dominação chinesa: o Dalai Lama tornou-se a encarnação dos valores ocidentais e da liberdade. Mais ainda que a URSS, ela odiava a China. Ao voltar de Pequim, Lanzmann me falara muito da experiência das comunas. Parece que teve êxito desigual, segundo as regiões e as condições; mas era uma interessante tentativa de descentralizar a indústria e ligá-la intimamente à agricultura. Acusaram-na de arruinar a família, oprimir os indivíduos, e só se deu ênfase aos fracassos.
Recebi com certo prazer a notícia da morte do papa e de Foster Dulles. O caso de Chipre foi resolvido a favor dos cipriotas. Mas a mais espantosa vitória revolucionária foi a que os rebeldes de Sierra Maestra arrebataram em Cuba. No início do inverno, descendo das montanhas, marchavam para o oeste; Batista fugia, o irmão de Castro e suas tropas entravam em delírio em Havana, onde Fidel Castro era triunfalmente acolhido em 9 de janeiro. Descobriram-se no campo, em subterrâneos, grandes depósitos de cadáveres: mais de vinte mil pessoas haviam sido torturadas e mortas, e aldeias dizimadas pela aviação. O povo exigia represálias; para satisfazê-lo e contê-lo, Castro abriu um processo público que teve como resultado cento e vinte condenações à morte. Os jornais franceses apresentaram como um crime esse expurgo necessário. O Match publicou fotos dos condenados abraçando suas mulheres e filhos, mas evidentemente sem mostrar os cadáveres de suas vítimas, sem dizer o número, sem sequer mencioná-las. Castro foi bem acolhido em Washington; mas quando deu andamento à reforma agrária, e quando descobriram naquele Robin Hood um verdadeiro revolucionário, os americanos — que haviam queimado os Rosemberg, suspeitos de espionagem em tempos de paz — indignaram-se por ele ter mandado fuzilar criminosos de guerra. Castro tinha o apoio de todo o povo cubano; quando pediu demissão, em julho, para terminar o conflito que o opunha ao presidente da República, Urrutia, um milhão de camponeses se reuniram em Havana: entrechocando seus facões, num barulho ensurdecedor, exigiram que ele permanecesse à frente do país; e que Urrutia partisse — o que este fez. Dorticós o substituiu.
***
Durante as férias eu me decidira, como vimos, a continuar minha autobiografia; hesitei durante longo tempo diante dessa resolução; parecia-me pretensioso falar tanto de mim. Sartre me encorajava. Eu perguntava a todos aqueles que encontrava se estavam de acordo: estavam. Minha pergunta perdia o sentido à medida que o livro avançava. Confrontei minhas lembranças com as de Sartre, de Olga, de Bost; fui à Biblioteca Nacional para recolocar minha vida em seu quadro histórico. Durante horas, lendo velhos jornais, ligava-me a um presente carregado de um futuro incerto, e transformado num passado há muito tempo ultrapassado: era desconcertante. Por vezes eu me entregava tão inteiramente a ele, que o tempo oscilava. Saindo daquele pátio, imutável desde os meus vinte anos, eu não sabia mais em que ano aterrissava. Percorria o jornal da tarde com a impressão de que a continuação já se encontrava nas prateleiras, ao alcance de minhas mãos.
Eu estava estimulada pelo sucesso de minhas Memórias. Esse sucesso, uma vez Sartre fora de perigo, me tocava mais intimamente do que qualquer outro. De manhã, quando me levantava, e quando voltava para casa para dormir, havia sempre sob a minha porta cartas que me arrancavam da minha melancolia. Fantasmas surgiram do passado, alguns irritados, outros benévolos; companheiros que eu tratara bastante mal sorriam das inabilidades de sua juventude; amigos dos quais eu falara com simpatia se zangavam. Antigas alunas no Curso Désir aprovaram o quadro que eu traçara da nossa educação; outras protestaram. Uma senhora ameaçou-me de processo. A família Mabille me foi grata por ter ressuscitado Zaza. Deram-me sobre sua morte detalhes que eu ignorava, e também sobre as relações de seus pais com Pradelle, cujas reticências pude entender muito melhor. Era romanesca essa descoberta do meu passado a partir do relato que eu havia feito dele. Mergulhei de novo naquela época ao reler cartas e cadernos de Zaza, e foi como se ela morresse pela segunda vez. Nunca mais me apareceu de novo em sonho. De um modo geral, desde que foi publicada e lida, a história da minha infância e da minha juventude desligou-se inteiramente de mim.
Em outubro a equipe da Temps Modernes reuniu-se no Lipp para almoçar e festejar a volta de Pouillon, recentemente dedicado à etnografia, e que passara o verão perto do lago Chade, com os Corbo. Insensível ao calor, ele só fora incomodado pelas moscas que o cobriam da cabeça aos pés toda vez que se lavava diante da tenda. Alimentara-se alegremente com as broas de milho que amassavam para ele todas as manhãs. Não tinha outra ocupação a não ser falar com os nativos, através de um intérprete. Parecia-me que, em seu lugar, eu ficaria morta de tédio: “Todas as manhãs”, disse-lhe eu, “eu me perguntaria com angústia: que vou fazer até a noite?”. “Então nunca vá lá!”, respondeu ele, impulsivamente. Infelizmente, recolhera poucas informações; a vida dos Corbo era das mais rudes: “Eles perderam contato com o arco e flecha”, explicou-nos Pouillon. “Tiveram-no e depois perderam-no; é pior do que nunca o terem descoberto: nunca mais o encontrarão!” Algumas tribos vizinhas o utilizavam, mas para quê?, diziam eles. Naquelas condições, nenhuma invenção moderna, nem os carros, nem os aviões os deslumbravam: para quê? De vez em quando, matavam a pedradas alguns pássaros e os comiam. Possuíam gado, mas este pastava em campos distantes, e representava apenas uma fortuna fictícia. Eram as mulheres que lavravam a terra, e assim eram todos polígamos, salvo um idiota, celibatário, que vivia de caridade, e um velho de melhor situação que os outros, e que explicou a Pouillon: “Eu não preciso ter mais de uma mulher: sou rico.” Suas tradições pareciam tão rudimentares quanto seus costumes; para perpetuá-las, era preciso um encontro entre um velho inteligente e uma criança curiosa: isso acontecia raramente; muitas dessas tradições tinham caído no esquecimento. Eles viviam sem religião, sem cerimônias, ou quase. A voz de Pouillon vibrava de entusiasmo: aquelas pessoas escapavam da necessidade recusando todas as necessidades; e no despojamento encontravam a abundância. Ficamos com medo de que ele se naturalizasse corbo.
Fora do círculo dos meus íntimos, eu só gostava de conversar com as pessoas a sós, o que muitas vezes permite queimar a etapa das banalidades mundanas; eu lamentava nunca ter conseguido ultrapassá-la durante meus raros encontros com Françoise Sagan. Gostava bastante do seu humor leve, da sua vontade de nunca dizer mentiras e de nunca representar; sempre que a deixava, dizia a mim mesma que na próxima vez conversaríamos melhor; mas isso nunca aconteceu, não sei muito bem por quê. Como ela gosta das elipses, das alusões e dos subentendidos, e nunca termina suas frases, parecia-me pedante ir até o fim das minhas, mas não achava natural quebrá-las, e afinal não encontrava mais nada para dizer. Ela me intimidava como me intimidam as crianças e certos adolescentes, e todas as pessoas que se utilizam da linguagem de maneira diferente da minha. Suponho que eu, por minha vez, deixava-a pouco à vontade. Encontramo-nos novamente numa noite de verão, num terraço do bulevar Montparnasse; trocamos algumas palavras; ela demonstrava, como de costume, graça e espírito, e eu não desejava outra coisa senão ficar a sós com ela. Mas disse-me logo que alguns amigos nos esperavam no Épi Club. Estavam lá Jacques Chazot, Paola de Saint-Just, Nicole Berger e alguns outros. Sagan bebeu em silêncio. Chazot contou histórias de Marie-Chantal, e surpreendia-me pensar que outrora nada era mais normal para mim do que ficar sentada à noite numa boate, diante de um copo de uísque: sentia-me tão deslocada! É verdade que eu estava cercada de estranhos, e que estes sabiam tanto quanto eu o que eu viera fazer entre eles.
Eu lia um pouco. La Semaine sainte, de Aragon, entediou-me quase tanto quanto Doutor Jivago; uma vez compreendido o seu intento e apreciado o seu virtuosismo, não vi motivo para ir até o fim dessa estudiosa alegoria; gostava mais da voz de Aragon, direta e despida, tal como a ouvimos às vezes em Le Roman inachevé, ou em Elsa; ele me tocava quando falava da juventude e de suas miragens, de suas ambições, das cinzas da glória, da vida que passa e nos mata. A Zazie, que conquistou o grande público, eu preferia outros livros de Queneau, do Chiendent ao Saint-Glinglin. Mas mergulhava com prazer na densidade de Lolita. Nabokov contestava com humor inquietante as límpidas racionalizações do sexo, da emoção, do indivíduo — necessárias ao mundo da organização. Apesar da inabilidade pretensiosa do prólogo e do esgotamento final; fiquei presa à história. Rougemont, que fala bem tolamente da Europa, mas não tão mal do sexo, louvou Nabokov por ter inventado uma imagem nova do amor-maldição; e é verdade que na época de Coccinelle e dos bailados róseos, o amor não arrasta mais ninguém para a condenação; ao passo que, no primeiro olhar que lançou sobre Lolita, Humbert entra no inferno. Com La Révocation de l’Édit de Nantes, Klossowski escrevera, em estilo nobre, um romance de um erotismo barroco e profundo. Em geral, nos livros eróticos, os personagens são reduzidos a uma única dimensão; suas depravações não bastam para reanimar corpos que o autor cortou do mundo, e portanto privou-os do seu sangue. Mas a heroína de Klossowski, uma parlamentar radical-socialista e condecorada, vivia; quando, em subterrâneos dignos de Mystères de Paris, ele a entregava a flagelações, acreditava-se em seu júbilo masoquista. Ele não tratava melhor aqueles que apostavam no céu do que aqueles que zombavam deste; em todos, as distorções da sexualidade marcavam a incapacidade dos burgueses de hoje de assumir seus corpos, e portanto de ser homens.
Era geralmente à tarde, antes de trabalhar, que eu lia. À noite, na cama, acontecia-me percorrer um dos romances que me são enviados pelos serviços de divulgação; ao cabo de dez minutos, apagava a luz. Uma noite, contudo, não apaguei. O livro era de uma desconhecida, e começava sem brilho; uma mocinha bem-comportada encontrava um rapaz desnorteado, salvava-o de um suicídio, e os dois iam amar-se: é banal; esse livro não era. Inquietante, ambíguo, o amor deles punha em questão o próprio amor. A ingênua falava como uma mulher rica de experiência, e com um tom e uma voz que me prenderam até a última página, apesar de certas concessões. É um prazer raro ser atingida de improviso por um livro que ninguém ainda mencionou. Christiane Rochefort: quem era? Fiquei sabendo pouco mais tarde, quando o julgamento do público concordou com o meu.
Projetou-se em Paris a versão completa de Ivã, o Terrível. A primeira parte era um pouco pretensiosa; a segunda, desencadeada, lírica, épica, inspirada, superava talvez tudo o que eu jamais vira numa tela. Tendo o Comitê Central condenado a obra, em setembro de 1946, Eisenstein escreveu a Stalin, que o recebeu e assistiu ao filme na sala de projeção do Kremlin; Stalin mantivera o rosto impassível e se retirara sem dizer palavra, contou-nos Ehrenburg. Eisenstein fora autorizado a rodar uma terceira parte, que teria fundido com a segunda: mas já estava muito doente, e morreu dois anos mais tarde.
Fazia tempo que Bost elogiava um filme que vira em projeção privada, e que rompia com as rotinas do cinema francês: Le Beau Serge. Assim que passou numa sala pública, fui vê-lo. Representado por desconhecidos, mostrava um vilarejo do centro da França com tanta fidelidade que as imagens me pareciam recordações; Chabrol contava a vida sem alegria de seus habitantes e suas desgraças, sem jamais assumir uma atitude de superioridade. Em Les Cousins, não reencontrei essa inclinação à simpatia, nem o frescor da verdade; mas ali também o tom era novo. Em Les Quatre cent coups, Truffaut falava mal dos adultos, mas muito bem da infância. A modéstia de recursos não permitia aos diretores da nouvelle vague os custosos processos de fabricação de seus antecessores: eles sacudiram as velhas poeiras.
Em maio, Lanzmann levou-me certa noite para ver Josephine Baker ensaiar no Olympia; em cenários incompletos, atores em trajes de passeio acotovelavam-se com outros seminus, ou em fantasias antigas; apreciei aquela desordem, a agitação dos técnicos, o mau humor dos responsáveis, os efeitos insólitos produzidos pelo encontro de artifícios suntuosos com a insipidez cotidiana. Mas, ao me lembrar da Joséphine de minha juventude, repeti para mim mesma o verso de Aragon: “O que foi que passou? A vida…” Ela se defendia com um heroísmo que forçava uma apreciação favorável; por isso mesmo me parecia ainda mais indecente olhá-la. Eu descobria em seu rosto o mal que roía o meu.
Pouco tempo antes — exatamente dez anos depois que os médicos lhe disseram: “Você ainda tem dez anos de vida” — Boris Vian morreu de irritação e de uma crise cardíaca, durante uma projeção privada do filme Cuspirei em teu túmulo. Chegando à casa de Sartre, no início da tarde, abri o Monde e li a notícia. Eu o vira pela última vez no Trois Baudets. Bebemos juntos: ele não mudara desde nossa primeira conversa. Eu tivera muita afeição por ele. No entanto, foi só alguns dias mais tarde, ao ver no Match a foto de um caixão coberto de pano, que me dei conta: sob este pano está Vian. E compreendi que, se nada em mim se revoltava, era porque eu já estava habituada à minha própria morte.
Passei um mês em Roma com Sartre. Ele estava se sentindo melhor, estava bem. Terminava sua peça. Refizera o primeiro ato, e escrevera os quadros seguintes, que me agradavam muito. Uma noite ele me deu o manuscrito do primeiro ato, que li na pequena praça Santo Eustáquio: um conselho de família reunira-se para julgar Franz; cada qual explicava seu ponto de vista, voltava-se a Suderman. Quando uma obra de Sartre me decepciona, tento primeiro pensar que estou errada, e me irrito quando ela me dá cada vez mais razão. Ele estava de muito mau humor quando o encontrei de novo, e lhe contei meu desapontamento. Não se perturbou muito. Sua primeira ideia fora um tête-à-tête entre o pai e o filho, e não sabia muito bem por que mudara. Retomou-a e, desta vez, a cena me pareceu a melhor de uma peça que eu colocava acima de todas as que ele já escrevera.
Por sua vez, ele me fez severas críticas sobre a primeira versão do meu livro: eu já disse que, quando não o satisfaço, ele também não me poupa. Era preciso recomeçar tudo. Mas ele concluiu que, para seu gosto, esse livro seria mais interessante que as Memórias, e trabalhei com prazer renovado. Nas horas quentes, deitada em minha cama, eu lia: Le vaudou, de Métraux, Soleil hopi, essa espantosa autobiografia de um índio que descobre sua dupla ligação com a civilização americana e com as tradições de sua aldeia; reencontrei em Le Planétarium os pequenos-burgueses paranoicos de Nathalie Sarraute. Descobri de novo Les Confessions, de Rousseau.
Sartre me deixou em Milão; eu marcara encontro com Lanzmann, uma semana mais tarde. Instalei-me em Bellagio, um tanto intimidada com esse tête-à-tête comigo mesma, porque perdera o hábito: os dias me pareceram curtos demais. Tomava café da manhã à beira do lago, folheando os jornais italianos; trabalhava diante da janela aberta, com o olhar encantado com a calma paisagem da água e das colinas; à tarde, lia o Mozart de Massin, que eu arrancara de Sartre antes que ele o terminasse: ele o achava excelente; era um livro tão rico e apaixonante, que eu tinha dificuldade de largá-lo para recomeçar a trabalhar. Retomava-o depois do jantar, bebendo grappa em um terraço. Depois caminhava, sob a lua. Passei dez dias em Menton, com Lanzmann. Ele leu meu manuscrito e me deu bons conselhos. Nossas vidas se separavam, mas o passado foi conservado intacto na amizade. Quando o conhecera, eu ainda não estava madura para a velhice: ele me escondera a aproximação dela. Agora encontrei-a já instalada em mim. Restavam-me forças para detestá-la, mas não mais para me desesperar com a sua chegada.
***
Durante o verão, Malraux fez uma viagem publicitária ao Brasil. Opunham-lhe a atitude política de Sartre; acusou-o, em discursos oficiais, de jamais ter resistido, e até mesmo de ter colaborado ao fazer representar suas peças durante a ocupação. Nunca se vira antes um ministro da Cultura insultar no estrangeiro um escritor do seu país. Por outro lado, ele pretendeu que, durante os três meses em que dirigira a Informação, a tortura fora suspensa; o que não era gentil com o M. Frey, observou-se.
Em julho, a Cruz Vermelha assinalara que um número crescente de muçulmanos desaparecia, como “desaparecera” Audin. Vergès e Zavrian se haviam instalado em 10 de agosto em Aletti, para receber as argelinas cujos maridos, filhos e irmãos se haviam evaporado do mesmo modo: elas afluíram. Expulsos, os dois advogados tinham, no entanto, recolhido cento e setenta e cinco depoimentos que foram publicados na Temps Modernes de setembro e de outubro, assim como no Express. Se não havia cadáveres, não havia provas, responderam as pessoas interessadas em negar esses assassinatos. La France Catholique explicou apressadamente que não se podia afirmar que Audin tivesse sido torturado e estrangulado porque ele não estava ali para testemunhar, e que os suplícios sofridos por Alleg não deviam tê-lo maltratado tanto, já que ele sobrevivera. Quando, em agosto, o sindicalista Aissat Idir morreu no hospital em consequência das queimaduras que sofrera, abriu-se um inquérito: internado no campo de Bitraria, ele acordara certa noite de janeiro com o colchão em chamas. Apesar dos protestos insistentes que, pela primeira vez, a imprensa, e em particular o Monde, publicou, concluiu-se que ele se queimara sozinho, por imprudência.
Em 16 de setembro, De Gaulle lançou a palavra “autodeterminação”. Consentiu em novembro em incluir o GPRA182 entre os “interlocutores válidos”; os complôs e os reagrupamentos fascistas multiplicaram-se; entretanto, os pacificadores perseguiam na Argélia as devastações de terras e das populações. Um comunicado oficial do exército registra que trezentos e trinta e quatro mil quinhentos e quarenta e dois muçulmanos foram encerrados em campos de reagrupamento entre junho e setembro.183 Em novembro, foi publicado no Express o testemunho de Farrugia, um ex-deportado, sobre o campo de concentração de Berrouaghia,184 que era justamente um campo de extermínio. Existiam outros. A Cruz Vermelha Internacional fez inquéritos nos centros de reagrupamento, de triagem, de internação, de albergamento, entre 15 de outubro e 27 de novembro, e reuniu, numa síntese de cerca de trezentas páginas, oitenta e dois relatórios; estes eram tão arrasadores para a França, que após negociações com o governo ela liberou apenas alguns excertos, dos quais o Monde divulgou certas conclusões. Mas o texto completo circulou clandestinamente. O Observateur lembrou a prudência com que a Cruz Vermelha Internacional falara dos campos nazistas: seus investigadores não haviam visto com os próprios olhos as câmaras de gás; os oficiais lhes haviam afirmado que as encomendas enviadas aos deportados lhes eram fielmente distribuídas etc. Evidentemente, desta vez também se tinha feito tudo para ludibriá-la, e ela mais ou menos se prestara a isso. Entretanto, embora eu fosse corajosa, tive dificuldade de continuar essa leitura até o fim.
O Témoignage Chrétien e depois o Monde divulgaram em dezembro o relatório de um padre, oficial da reserva, sobre as instruções dadas em agosto de 1958 ao “centro de treinamento para a guerra subversiva”, do campo Jeanne d’Arc “O capitão L… nos deu cinco pontos, de maneira precisa, com as objeções e as respostas. 1.º: É preciso que a tortura seja limpa; 2.º: que ela não ocorra na presença de jovens; 3.º: que não ocorra na presença de sádicos; 4.º: que seja feita por um oficial ou por alguém responsável; 5.º: e sobretudo que seja humana, isto é, que cesse assim que o sujeito fale; e sobretudo que não deixe vestígios. Mediante o que — conclusão —, você tem direito a água e eletricidade.”
Esse relatório passou mais ou menos despercebido. Os franceses flutuavam numa indiferença em que as palavras saber e ignorar se equivaliam, de tal maneira que nenhuma revelação significava qualquer informação. A Comissão Audin demonstrou que Audin fora estrangulado. A opinião pública mal teve notícia do caso, e não desejava saber mais.
Após dias de barricadas, De Gaulle fez votar os plenos poderes. A atmosfera tornava-se cada dia menos respirável. Nas encruzilhadas, diante dos distritos policiais, viam-se tiras armados de metralhadoras, com o olhar vigilante; se alguém se aproximava à noite para pedir informação, apontavam a arma: na noite de São Silvestre, em Gennevilliers, um deles matou um rapaz de dezessete anos, que voltava de uma festa de Réveillon. Ao voltar para casa de carro às duas horas da manhã, em alta velocidade, Bost foi interceptado por um carro de polícia. Teve que parar e mostrar seus documentos; profissão: jornalista. “Um intelectual!”, disse o policial, com ódio. Enquanto o ameaçava com sua metralhadora, outros revistaram a mala. Não se podia andar cem metros sem ver africanos do norte embarcados em carros de polícia. Passando em frente à chefatura de Polícia, vi um deles, ensanguentado, deitado numa maca. Um domingo, percorri de carro com Lanzmann a rua de La Chapelle: tiras protegidos por coletes à prova de balas, metralhadoras na mão, revistavam homens colados às paredes, com os braços levantados: argelinos bem barbeados e penteados, usando seus mais belos ternos; para eles também era domingo; mãos mergulhavam em seus bolsos, exibindo sua pobre intimidade: um maço de cigarros, um lenço. Desisti de passear em Paris.
No entanto, era certo que a Argélia obteria sua independência: toda a África estava de acordo. Quando a Guiné respondeu corajosamente não ao referendo, em 28 de setembro de 1958, a França rompeu com ela; mas não rompeu com as outras nações que, um ano mais tarde, fingiram engajar-se no mesmo caminho.185 A Bélgica, para evitar uma revolução no Congo, e salvaguardar seus interesses econômicos, descolonizava a toda velocidade. As últimas colônias inglesas haviam recebido a garantia de que seriam logo emancipadas. Durante o verão, em Monróvia, as jovens nações africanas haviam manifestado solidariedade à Argélia.
As coisas estavam menos sombrias no resto do mundo do que entre nós. Sob certos aspectos, a tensão entre os blocos subsistia: na Alemanha Ocidental sobretudo, fanaticamente anticomunista, e onde renascia o antissemitismo, cruzes gamadas apareceram sobre as sinagogas na noite de Natal. Mas a viagem de Khruchtchev a Washington e a viagem que Eisenhower deveria fazer a Moscou eram acontecimentos sem precedentes. O Lunik 2 e o Lunik 3 confirmavam a superioridade espacial da URSS: era uma garantia de paz.
***
Assim como se aconselha os passageiros de um avião acidentado a tomarem logo um outro, o velho Mirande, após o fracasso de Nékrassov, exortara Sartre: “Escreva logo uma nova peça; se não fizer isso, está perdido, nunca mais irá ousar.” Embora deixando passar vários anos, Sartre ousara. Eu gostava tanto de Sequestrados de Altona que reencontrei minhas ilusões de antanho: uma obra bem-sucedida transfigura e justifica a vida de seu autor; Sartre contudo, talvez por causa das circunstâncias em que a iniciara, jamais gostou dessa peça. Vera Korène montou-a no Renaissance e, de volta a Paris, assisti a quase todos os ensaios, muitas vezes maravilhada, muitas vezes decepcionada. Senti um prazer sem reservas na tarde em que Reggiani, corrigindo-se de ensaio em ensaio com um rigor sutil, gravou o monólogo final, que eu achava tão belo; era tranquilizador dizer-se que nenhuma de suas inflexões se modificaria. Pois os atores passavam por altos e baixos; nos cenários e nos figurinos, nem tudo me satisfazia e as mudanças faziam com que o espetáculo demorasse demais. Ajudei Sartre e fazer alguns cortes, encorajei-o a recusar outros que a direção exigia. Vera Korène e Simone Berriau, sua sócia, profetizavam catástrofes; cabalas, querelas, tempestades — eu estava habituada. Mas desta vez a cartada era séria. Nunca vira Sartre interrogar-se tão ansiosamente sobre a acolhida que teria. Entre duas sessões de trabalho percorríamos o bulevar, sob um céu amarelo, e a inquietude tomava conta de mim: “Mesmo que seja um fracasso, você terá escrito a sua melhor peça”, dizia-lhe eu; talvez, mas que desastre para os atores que haviam comprometido sua temporada! Quanto a ele, ficaria desencantado com o teatro. Pensei também nos inimigos que declaravam há anos que ele estava acabado, e que se apressariam com prazer em enterrá-lo. Já corriam boatos maldosos quando foi preciso adiar a primeira apresentação porque nem as intérpretes nem os maquinistas estavam prontos. Finalmente, a estreia; de pé, no fundo da plateia, observei a assistência; sufocava-se na sala mal ventilada: isso não ajudava a acompanhar um texto de riquezas difíceis. Decididamente eu lamentava que Reggiani não tivesse rasgado, como estava indicado, seu uniforme belo demais. Outras imperfeições de repente me cegavam. Mais comovida do que nunca com a revelação pública de uma obra que me tocava até a medula, suando e transida de angústia, encostei-me a uma coluna, pensando que ia desmaiar. Ao fim do espetáculo, aplaudiram com tanto entusiasmo, que senti a partida ganha. Mesmo assim, estava agitada quando, algumas noites depois, o pano subiu diante do público hostil dos ensaios gerais. Passeei com Sartre pelo bulevar, um edifício ardia em chamas e paramos para olhar os bombeiros lutarem contra o incêndio. Entrei num camarote, em outro, assistindo ao espetáculo aos pedaços, e constatando que, como sempre acontece, o elenco representava menos bem do que nas outras noites. No intervalo, Vera Korène e seus amigos se desmancharam em lamentações sobre a duração da peça: isso não levantava o moral dos atores, meio mortos de medo. Depois que desceu a cortina amigos espalharam-se nos camarins dos atores, nas escadas e nos corredores. Eles gostavam da peça, mas queixavam-se de terem ouvido mal o texto e de terem sentido calor demais. Eu tinha os nervos em frangalhos quando me vi no primeiro andar do Falstaff, onde Sartre convidara seus intérpretes e algumas pessoas íntimas para cear. Estávamos todos inquietos. Sartre resignara-se a novos cortes, mas com pesar, e eu sentia que ele estava atormentado. Esvaziou um copo, dois copos; outrora eu nunca pensava em contá-los, quanto mais ele bebia, mais engraçado ficava: isso era antigamente, encheu um terceiro copo, eu quis impedi-lo e ele riu, sem obedecer; então as lembranças do último inverno abateram-se sobre mim — as destilações, as escapadas do coração — e, com a ajuda do uísque, fui tomada de tal pânico, que caí em pranto; imediatamente, Sartre pousou o copo. Em meio à agitação geral, o incidente passou quase despercebido.
Sartre suprimiu ou cortou cenas, aliviando a representação em cerca de meia hora. E sem ter lido qualquer crítica, voou para a Irlanda, onde Huston o esperava para rever com ele o roteiro sobre Freud. Na quinta-feira, assim que acordei, fui comprar diários e semanários, e os percorri num terraço, ao sol: era uma bela manhã de outubro. Quase todos os críticos achavam, como eu, que Sequestrados superava as outras peças de Sartre. Enviei-lhe logo um telegrama e os artigos.
Quando ele voltou, dez dias mais tarde, o sucesso de Sequestrados estava garantido. Com o coração leve, contou-me sua temporada na Irlanda. Huston o recebera, de smoking vermelho à porta de sua casa; era uma construção imensa, ainda inacabada, cheia de objetos de arte caros e extravagantes, e circundada de prados tão vastos, que se levava horas para atravessá-los a pé: de manhã, Huston percorria-os a cavalo; acontecia-lhe cair de vez em quando. Convidava pessoas de todo tipo e de repente largava-as no meio de uma conversa que Sartre se esforçava em vão para continuar: tivera assim que entreter um bispo anglicano, um marajá, um eminente especialista em caça à raposa, e nenhum deles sabia francês. Com todos os seus dias tomados por discussões com Reinhart e Huston, ele viu pouco a Irlanda, mas saboreou a graça fúnebre do país. Achava ingrato o ofício de roteirista.
Tentei pela primeira vez uma experiência nessa área. Cayatte me propôs trabalhar com ele num filme sobre o divórcio; eu não tinha nenhuma vontade de escrever sobre “os problemas do casal”, mas conhecia-os bem: recebera tantas cartas, ouvira tantas histórias; a ideia de utilizar esse saber num roteiro me tentou. Duas coisas me incomodavam. O cinema não permite a mesma franqueza que a literatura; impossível evocar a guerra da Argélia, e portanto situar meus heróis em seu contexto social; mas, a meu ver, a sua aventura, assim desligada das circunstâncias, não tinha verdade: conseguiria eu interessar-me? Por outro lado, Cayatte desejava que tanto a versão da mulher quanto a do homem sobre o conflito que os opunha fossem apresentadas em dois relatos independentes. Objetei que a vida de um casal constitui uma história de dupla face, e não duas histórias. Ele insistiu. Mas acabou reconhecendo, ao ler meu script, que essa divisão o prejudicava. Fundi as duas partes. Teria sido melhor refazer tudo, mas eu estava presa aos meus personagens e às intrigas nas quais os comprometera; minha imaginação perdera a liberdade. Logo compreendi que, apesar da nossa boa vontade comum, havia um mal-entendido entre mim e Cayatte; penso que ele se dirigiu a mim porque me atribuem gosto pelos “romances de tese”; ora, eu já disse que não os aprecio. No meu roteiro evitei demonstrar o que quer que fosse, todos os episódios eram ambíguos, e as ligações múltiplas e nebulosas. Cayatte teria ou não razão em achá-lo confuso? Segundo ele, faltava o “achado” que surpreende o público e garante o sucesso; eu teria preferido cativar o público insidiosamente com um tom, um estilo, como fez por exemplo Bresson em Les Dames du Bois de Boulogne, onde se nota um despojamento tão intenso. Enfim, bem: Cayatte sabia o que queria, e não era o que eu lhe oferecia. Compreendi muito bem que descartasse o meu projeto.
Durante as poucas semanas em que me ocupei desse roteiro, não interrompi a revisão do meu livro. Estimulada pela aprovação, e mais ainda pelas críticas de Sartre, Bost e Lanzmann, eu cortava, acrescentava, corrigia, rasgava, recomeçava, sonhava, decidia. Para mim é um período privilegiado quando escapo enfim à vertigem das folhas em branco, sem que minha liberdade esteja ainda presa nas páginas escritas. Passei também horas lendo e relendo o manuscrito da Crítica da razão dialética; debati-me às apalpadelas através de obscuros túneis, mas, à saída, sentia-me muitas vezes transportada por um prazer que me rejuvenescia vinte anos. Sequestrados e a Crítica resgatavam para mim o marasmo e os medos do outono precedente. Através de Sartre e por minha própria conta, a aventura de escrever reencontrava o gosto da exaltação.
Passar horas, meses e anos falando com pessoas que não conhecemos: atividade estranha. Felizmente, o acaso de vez em quando me dá um pequeno presente. No verão de 1955, em Bayonne, entrei numa livraria: “Há um livro que me agrada”, dizia uma jovem; “é duro, é especial, mas eu gosto: Os mandarins”. Sinto prazer em ver, em carne e osso, leitores que me apreciam. Encontro também certa satisfação em deparar com aqueles que me detestam. Num outro verão, eu almoçava num hotel dos Pireneus com Lanzmann; alguns espanhóis e uma francesa casada com um deles, chamado Carlo, comiam numa mesa vizinha; ela falou de sua criadagem: “Tenho um motorista, é cômodo: isso leva as crianças para passear.” Melancólica e narcisista, ela analisou as sutilezas de seu coração: “Gosto de tudo aquilo que não se parece comigo.” Depois, sua voz elevou-se: “Uma louca, uma anormal, um livro ignóbil…” Tratava-se de O segundo sexo e de mim. Saímos antes deles, e, ao entrar no carro, entreguei a um garçom um cartão postal assinado: “A Mme Carlo, que tem o bom gosto de apreciar o que não se parece com ela.”
Desde a publicação de O segundo sexo recebo muitas cartas. Há algumas supérfluas: caçadores de autógrafos, esnobes, tagarelas, curiosos. Algumas me insultam: não fico zangada. As injúrias de um antissemita que se assina, espirituosamente, Merdocu, judeu romeno, ou de uma pied-noir que me acusa de coprofagia e descreve meus festins, só podem divertir-me. As de um tenente “Argélia francesa”, que me deseja doze balas no corpo, confirmam a ideia que tenho dos militares. Outras cartas azedas, invejosas ou irritadas ajudam-me a compreender as resistências que meus livros encontram. A maioria dos meus correspondentes me declaram sua simpatia, confiam-me suas dificuldades, pedem conselhos ou esclarecimentos: encorajam-me, e por vezes enriquecem minha experiência. Durante a guerra da Argélia, jovens soldados que sentiam necessidade de se abrir com alguém fizeram-me partilhar sua vivência. Pedem-me muitas vezes para ler manuscritos, e eu aceito sempre.
Entre as pessoas que desejam encontrar-me, muitas são indiscretas. “Gostaria de conversar com a senhora para conhecer suas ideias sobre a mulher”, pede-me uma jovem. “Leia O segundo sexo.” “Não tenho tempo de ler.” “Eu não tenho tempo de conversar.” Mas recebo de bom grado estudantes dos dois sexos. Há alguns que conhecem bem os livros de Sartre ou os meus, e que desejam esclarecimentos, uma discussão: para mim é uma oportunidade, enquanto os atendo, de ficar sabendo o que os jovens pensam e sabem, o que eles querem e como vivem. Acho reconfortante o convívio com moças cuja existência ainda não está comprometida. Tive uma agradável surpresa ao ver entrar no meu apartamento uma beldade loura de vinte anos, quando esperava receber, a julgar por suas cartas, uma mãe de família oprimida. Franco-canadense, sufocada pela família, por seu meio e por seu país, depois de ter avançado muito nos estudos ela ganhara, num concurso, uma bolsa para vir estudar direção teatral em Paris. Algumas recomendações, seu físico e sua inteligência ajudaram-na a fazer muito rapidamente relações nos meios teatrais parisienses; frequentava vários cursos; acompanhava ensaios: assistiu diariamente ao ensaios de Tête d’Or. Contava-me suas impressões: nada escapava ao seu olhar crítico e alegre. Difíceis problemas pessoais não a impediam de se preocupar seriamente com aqueles que agitavam o mundo. Senti sua falta quando ela voltou para o Canadá. Muito diferente, Jacqueline O. conseguira, também ela, libertar-se de um meio sufocante, e superar graves angústias interiores; eu admirava sua coragem; aos vinte anos, professora na Suíça, preparava-se para diplomar-se, trabalhava arduamente em novelas, escrevia em jornais, militava pelo socialismo, pelo voto das mulheres e pela independência delas; morena e roliça, suas longas unhas verdes ou violeta e seus brincos exagerados faziam um contraste interessante com sua atitude estudada. Mais tarde ela se despediria da Europa e partiria como professora para o Mali, onde vive bem.
Tive também muita amizade por um jovem marselhês que há anos, através de cartas, me oferecia a sua. Depois de uma adolescência difícil, fora marinheiro, depois lavador de pratos num restaurante em Londres, e ainda não sei mais o quê: “Sou um desadaptado clássico”, disse-me, com modéstia, na primeira vez em que veio à minha casa. Tinha uma cara fechada, a que um sorriso desajeitado conferia um ar infantil. Era contra a sociedade, contra os adultos, contra tudo. Trabalhando para ganhar a vida, dera um jeito de estudar e passar nos exames. De seu anarquismo hesitante, passara a um engajamento extremo, e mesmo perigoso. Repreendia-me frequentemente. Quando foi publicada A longa marcha, livro menos vivo que L’Amérique au jour le jour, perguntou-me inquieto, fazendo com a mão um gesto que representava uma degringolada: “A senhora vai continuar assim?”
Mulheres jovens, sobretudo, vêm procurar-me. Muitas delas, aos trinta anos, sentem-se acuadas por uma situação — marido, filhos, trabalho — que se criou com a sua cumplicidade, e contudo a contragosto: resolvem a situação com maior ou menor sorte. Muitas vezes tentam escrever. Discutem comigo seus problemas. Algumas me fazem confidências extravagantes. Encontrei duas ou três vezes, a propósito de um manuscrito medíocre, a Mme C., de uns trinta anos, confortavelmente casada e mãe de duas crianças, que me pôs a par de sua vida conjugal: ela era frígida; seu marido consolava-se com sua melhor amiga, Denise, e ambos faziam farras. “Por quê? Que é que você ganha com isso?”, perguntara ela a Denise. “Uma extraordinária cumplicidade; e depois, a ternura”, respondeu. Certa manhã, a Mme C. me telefonou: precisava ver-me imediatamente. Bateu à minha porta à tarde, e começou a contar. Ávida de conhecer a cumplicidade e a ternura, acompanhara de carro seu marido e Denise ao Bois de Boulogne, pela avenida das Acácias onde, segundo me contou, os farristas se convidam de um carro para o outro. C., o marido, escolheu dois calhambeques onde só havia machos. “Vocês não vão se aborrecer, meninas”, disse ele, trazendo para o apartamento deles dois homens, e depois quatro outros: mecânicos, garagistas, encantados com a oportunidade. Beberam muito. O marido contentara-se em olhar. Assim que os convidados saíram, ele se aproximou de Denise e murmurou palavras doces: a ternura era para ela! Desespero, cena; Denise foi embora: “Você estragou tudo!”, gritou C., que se retirou, batendo a porta. Ela correu atrás dele, cada qual tomou seu próprio carro e rodaram, um atrás do outro, em grande velocidade. No meio das Halles, ele parou e ela bateu com o carro. Esquecera seus documentos: policiais prenderam-na na delegacia até que o marido os trouxesse. Voltaram para casa e viram chegar, ameaçadores, dois dos visitantes noturnos: um dos outros quatro lhes havia roubado as carteiras. Esgotada, ela se deitara na cama, recordando suas atribulações: “E de repente”, disse-me, “senti algo que jamais sentira…”
Por que fizera questão de me contar tudo aquilo? Em todo caso, o fato me deu um curioso apanhado dos costumes parisienses. Certa noite, Olga, Bost, Lanzmann e eu passamos de carro pela avenida das Acácias. Os carros rodavam lentamente, ultrapassavam-se, esperavam-se; trocavam-se sorrisos. As hierarquias sociais eram respeitosas. Carros de luxo seguiam carros de luxo; os carros pequenos aglomeravam-se entre si. Entramos no jogo, e logo havia atrás de nós um 403 e um Aronde. Bost acelerou, e deixamos os carros para trás, conscientes de ter faltado a todas as regras do savoir-vivre. Quanto à Mme C., perdi-a de vista.
Todo escritor um pouco conhecido recebe cartas de gente meio louca; respondendo-lhes, eu não ajudaria a eles nem a mim; por isso, abstenho-me. Mas às vezes eles insistem. Certa manhã, em Roma, recebi um telegrama — em inglês — da Filadélfia: “Procuro em vão encontrá-la há quinze dias. Telefonarei terça-feira meio-dia. Love. Lucy.” Essa pessoa parecia conhecer-me, e até bastante bem: quem seria? A voz ao telefone me falou em tom íntimo; em inglês, àquela distância, foi-me um tanto ininteligível. “Desculpe”, disse eu, “mas quando nos encontramos? Não consigo situá-la…” Houve um longo silêncio: “Não consegue situar-me!” Desligaram. Pensei com desprazer que Lucy encontrara em Paris alguém que se fizera passar por mim. Ela telefonou novamente, à tarde. “Mme De Beauvoir”, disse-me, em tom cerimonioso, “estarei em Paris no dia 17 de dezembro, e gostaria de discutir com a senhora sobre o existencialismo”. “Mas com prazer”, respondi, desligando: eu compreendera. Soube depois que, para conseguir meu endereço, Lucy telefonara antes ao meu editor americano, e depois, por indicação deste, a Ellen Wright, em Paris. Começaram a chegar cartas: três ou quatro por semana. Lucy possuía uma loja de antiguidades, ia vender seu negócio para vir viver comigo, ia comprar um mantô novo, descrevia-me a minha alegria quando ela batesse à minha porta! “Há um mal-entendido”, escrevi-lhe várias vezes. Então eu recebia um telegrama ou uma carta, em tom formal: “Poderia conceder-me uma entrevista para discutir La morale de l’ambiguïté?” Nesse meio tempo, fui avisada de que havia na alfândega encomendas cujo porte eu deveria pagar: um busto de Nefertite, um “anel de noivado” no valor de cinquenta mil francos. Mandei devolver tudo ao remetente. Escrevi novamente: “Não venha.” Lucy, então, telefonou para Ellen Wright: “Devo ir, ou não?” “Não”, respondeu Ellen. Recebi uma última carta: “Vendi minha loja, estou sem recursos, e agora você me rejeita! Deu-me uma lição, mas sou má aluna: não a compreendi. Nem mesmo posso censurá-la, de tal modo se resguardou.” Um mês mais tarde, entregaram-me um pacote que vinha de Filadélfia: cuidadosamente embalada, uma travessa de cadeira.
***
Em 1958, contra a guerra da Argélia, contra as ameaças fascistas, estávamos muito próximos dos comunistas franceses. Sartre interviera no Movimento da Paz, pedindo que este lutasse pela independência da Argélia, assim como lutara pela independência do Vietnã. Em abril, com Servan-Schreiber, ele se reunira com comunistas no hotel Moderne visando à criação de comitês antifascistas. A partir de maio, militáramos lado a lado. Através de Guttuso, que ele revira na primavera de 1958, retomara contato com os comunistas italianos. Em 1959, Aragon lhe transmitira um convite de Orlova, que fazia o papel de Lizzie na Prostituta respeitosa, e de seu marido, Alexandrov. Não pensou que pudesse aceitá-la, mas quando a embaixada soviética nos convidou para um jantar, comparecemos. Estavam lá Maurois e Aragon, que se dispunham a escrever paralelamente a história dos EUA e a da URSS, Elsa Triolet, os Claude Gallimard, os Julliard, Dutourd, que evitou apertar nossas mãos, poupando-nos a sua. Eu estava à esquerda de Vinogradov, que se mostrava radiante porque se esperava para breve a vinda de Khruchtchev a Paris; meu outro vizinho era Leonid Leonov; eu lera, vinte anos antes, Os texugos; mas ele quase não falava francês. Conseguiu dizer-me: “A filosofia acabou… A equação de Einstein torna toda filosofia inútil.” Elsa Triolet estava sentada à minha frente, entre o embaixador e Sartre; seus cabelos estavam grisalhos, os olhos continuavam muito azuis, e ela conservava um lindo sorriso que contrastava com a amargura de seu rosto. Como se falasse de descobertas que permitiam rejuvenescer os velhos e prolongar a vida, ela disse, impulsivamente: “Ah, não! A vida já dura demais; já estou chegando a fim, não me obriguem a voltar atrás.” Tínhamos um traço em comum, como me dissera Camus em 1946: o horror de envelhecer. Certo dia, aludindo ao começo de Le Cheval roux — onde a narradora é tão drasticamente desfigurada por uma explosão atômica que dissimula os traumas sob uma meia —, Sartre perguntara-lhe como ela tivera coragem de se imaginar com aquele rosto pavoroso. “Mas basta olhar-me no espelho”, respondeu. No momento eu dissera a mim mesma: “Ela se engana: uma mulher velha não é uma mulher feia. É uma mulher velha.” Aos olhos dos outros, pode ser; mas para si mesma, passado um certo limite, o espelho reflete uma mulher desfigurada. Agora eu a compreendia. Depois do jantar, encontrei-me num canto da sala com Maurois. Eu esperava que ele me falasse de Virginia Woolf, que conhecera; mas a conversa não teve sequência.
Em outubro, Lanzmann me falou de um livro que lhe parecia muito bom: O último justo. Eu duvidava. Depois de tantas narrativas verídicas, depois de O III Reich e os judeus, de Poliakoff, o que esperar de uma ficção? Abri o livro certa noite e não consegui largá-lo. Quando, depois, o romance se tornou célebre e foi discutido, recusei muitas críticas que lhe foram dirigidas. Mesmo assim, na segunda leitura, fiz algumas restrições: defeitos na escrita; uma religiosidade que emerge sob hábeis camuflagens. Talvez também a autenticidade da obra se alie a uma astúcia exagerada; mas, enfim, a literatura é isso; como diz Cocteau: um grito escrito.
Lanzmann foi apresentado a Schwartz-Bart, e este nos convidou, numa tarde de domingo. Schwartz-Bart estava vestido como proletário, mas era a cabeça de um intelectual que emergia do pulôver de gola rulê; o olhar inquieto, a boca sensível e ambígua, falava voluvelmente, com voz ciciante, apenas perceptível. Absolutamente indiferente aos valores mundanos — dinheiro, distinções, privilégios, renome —, não parecia contudo aborrecido com o interesse que suscitava: “No momento não estou trabalhando, portanto as entrevistas e o resto não me incomodam: isso faz parte do ofício.” Escrevera seu livro da melhor maneira possível durante quatro anos: parecia-lhe coerente fazer o que fosse necessário para que o lessem. Mesmo assim, à indiscrição de certos jornalistas respondera taxativo: nada tinha de cordeiro; se professava a não violência, era — pareceu-me — porque naquele momento esta representava para ele a arma mais oportuna e mais agressiva; o que não o impedia de apreciá-la sinceramente. Acreditava na natureza humana, e pensava que esta era boa; desejava que a sociedade se contentasse com o que chamava “o mínimo humano”, em vez de correr atrás do progresso; em suma, inclinava-se mais para o ideal do santo do que para o ideal do revolucionário. Lanzmann e eu não concordávamos com ele em certos pontos, mas ele não aceitava bem uma discussão. Espontâneo, caloroso, dava a princípio a impressão de distensão e abandono; depois percebia-se que, ajustando exatamente suas ideias às suas emoções, construíra para si um sistema de defesa quase inexpugnável; não modificaria em uma só polegada as suas posições, a menos que remanejasse totalmente a sua relação com o mundo. Percebemos depois que ele não nos dissera nada além do que iria revelar à imprensa e à televisão; era normal, mas isso desmentia a ilusão de confiante intimidade que ele criava com seu desembaraço. Mesmo reduzido a uma versão um pouco oficial, o relato de seus aprendizados era apaixonante; tinha uma inteligência rápida, um encanto feito de doçura e de orgulho, de aspereza e de paciência, de sinceridade e de reticências; em vez das duas horas que eu previra, permaneci seis. Quando revi Schwartz-Bart, foi, ainda dessa vez, com Lanzmann, no La Coupole; o sucesso de seu livro, disputado pelos júris do Femina e do Goncourt, desagradara a escritores judaizantes pouco conhecidos; estes inspiraram a Parinaud, que cobiçava a láurea do Goncourt para um escritor da sua linha, um artigo que, graças ao comentário feito sobre ele por Bernard Franck no Observateur, divertiu toda Paris. Acusavam Schwartz-Bart de erros anódinos e, o que era mais grave, de plágio; na primeira parte de seu romance, efetivamente, umas dez linhas reproduziam de maneira muito próxima uma passagem de uma antiga crônica; não era coisa grave. Esse início era uma imitação; para plagiar textos, é preciso que estes tenham penetrado em nós: certas frases incrustam-se na nossa memória, a tal ponto que acabamos por pensar que são nossas; eu passara por essa experiência quando escrevi Todos os homens são mortais. Mas, como eu pressentira, se Schwartz-Bart se resguardava com tanto cuidado, era porque estava vulnerável; essa cabala o perturbara. Sentou-se à minha frente, fremindo de calma: “Acabou, não me preocupo mais”, disse; “passei a noite refletindo, calmamente. Pouco me importa o prêmio; dinheiro, já ganhei bastante. O que é terrível é perder a honra: mas vou recuperá-la. Vou desaparecer durante quatro anos; voltarei com um novo livro; e verão que sou realmente um escritor.” Asseguramos-lhe que os Goncourt não se deixariam enganar, e que nenhum de seus leitores duvidaria de que ele fosse o autor de seu livro. Ele mal escutava: “Prefiro preparar-me para o pior; é o meu método; preparo-me com precisão, aceito, e não temo mais nada.”
Depois do Goncourt, prematuramente concedido, para ódio das senhoras do Femina, recebi em casa Lanzmann e Schwartz-Bart. Fiquei surpresa ao vê-lo entrar, e tive vontade de rir: estava disfarçado; usava uma longa capa verde, um chapéu também verde, abas abaixadas, e óculos pretos: “Estou acuado”, disse, agitado. “As pessoas me abordam nos cafés, pedem-me autógrafo, chamam-me de Senhor Schwartz. Senhor! Imaginem só!” Ele compreendia com sincero pavor que a fama isola e mutila. E se inquietava com as obrigações que ela impõe; quantas cartas recebia! Confidências, confissões, agradecimentos, queixas, pedidos; parecia-lhe que devia ir visitar cada um de seus correspondentes; sentia-se responsável aos olhos de toda a comunidade judaica. Havia um pouco de complacência em seu desvario, e tive vontade de garantir-lhe que dali a alguns meses ele poderia passear com toda tranquilidade nas ruas. Mas, enfim, não se passa tão rapidamente da obscuridade à glória, da miséria à opulência, sem se perturbar com isso. Quer fazer com esses milhões que lhe caíam sobre a cabeça? Havia gente à sua volta que precisava de ajuda, mas modesta, e essas pessoas eram poucas. Quanto a ele, nada desejava. Comprar um apartamento não, evidentemente. Um carro? não saberia dirigi-lo: “Não tenho sonhos”, disse-nos; hesitou: “Sim, um, pequeno: uma motocicleta, para passear pelos arredores aos domingos.” Acrescentou, com meio sorriso; “E depois, roda-se facilmente com uma motocicleta, é cômodo.” Sugerimos uma vitrola, discos: três discos lhe bastavam: “Eu poderia ouvir indefinidamente a Sétima sinfonia; não vejo vantagem em comprar cinquenta discos.” Tinha sincera antipatia pelo luxo, e enormes escrúpulos com relação ao dinheiro, pois confrontava o preço das coisas com o salário dos operários; tomara um táxi para vir à minha casa: isso representava duas horas de trabalho para um servente. Eu o compreendia porque o dinheiro, desde que eu passara a possuí-lo, trouxera-me problemas cuja solução eu não encontrara. Ele falou também de seus projetos. Um romance sobre a condição dos negros; sensível à opressão sofrida pelas mulheres, tomaria como heroína uma mulher de cor. Eu me perguntava se ele conseguiria fazê-la viver de maneira tão convincente como o conseguira com Ernie. Em todo caso, ele ia partir para a Martinica.
Só fui revê-lo um ano mais tarde, quando voltou para assinar o Manifesto dos 121. Não havia cedido às facilidades da fama, nem às do dinheiro, embora o usasse com mais naturalidade, e embora o ascetismo não fosse mais o seu ideal — nem para ele, nem para a humanidade. Seus amigos da Martinica o haviam convertido à violência revolucionária: lera com total aprovação, na Temps Modernes, o primeiro capítulo de Os condenados da Terra, onde Fanon mostra que os oprimidos só têm esse caminho para conquistar sua humanidade. Interiormente mais livre que outrora, mais aberto, pareceu-me que tinha também os pés mais bem plantados na terra. Provava com suas mudanças que preferia a verdade do mundo às suas próprias opiniões, e o risco ao conforto das certezas.
Estava eu sozinha em casa de Sartre, certa tarde de janeiro, quando o telefonou tocou: “Camus morreu há pouco, num desastre de automóvel” — disse-me Lanzmann. Ele voltava do sul com um amigo, o carro batera numa árvore, e ele morrera instantaneamente. Pousei o fone, a garganta apertada, os lábios trêmulos: “Não vou começar a chorar”, disse a mim mesma. “Ele não era mais nada para mim.” Fiquei de pé, junto à janela, olhando a noite cair sobre Saint-Germain-des-Prés, tão incapaz de me acalmar quanto de mergulhar numa tristeza verdadeira. Sartre também ficou emocionado, e durante toda a noite, com Bost, falamos de Camus. Antes de me deitar, tomei beladenal; desde que Sartre se curara, eu não o usava mais, e devia ter dormido; mas não preguei os olhos. Levantei-me, vestida de qualquer maneira, e fui caminhar pela noite. Não era do homem de cinquenta anos que eu tinha saudade; não era daquele justo sem justiça, de arrogância desconfiada e rigorosamente mascarada, que rasgara meu coração ao consentir nos crimes da França; era o companheiro dos anos de esperança, cujo rosto despojado brincava e ria tão bem, o jovem escritor ambicioso, louco pela vida, por seus prazeres, por seus triunfos, pelo companheirismo, pela amizade, pelo amor e pela felicidade. A morte o ressuscitava; para ele, o tempo não mais existia, o ontem não tinha mais verdade que o anteontem; Camus, tal como eu o amara, surgia na noite, no mesmo instante reencontrado e dolorosamente perdido. Sempre que morre um homem, morre uma criança, um adolescente, um jovem: cada um chora aquele que lhe foi caro. Caía uma chuva fina e fria; na avenida Orléans, mendigos dormiam nas soleiras das portas, encolhidos e transidos de frio. Tudo me dilacerava: aquela miséria, aquela infelicidade, aquela cidade, o mundo, e a vida, e a morte.
Ao despertar, pensei: “Ele não vê esta manhã.” Não era a primeira vez que eu me dizia isso; mas cada vez é a primeira. Lembro-me de que Cayatte chegou, discutimos o roteiro; essa conversa não passava de um simulacro; longe de ter deixado o mundo, Camus, pela violência do acontecimento que o golpeara, tornara-se o centro desse mundo, e eu não enxergava mais, a não ser através dos seus olhos extintos; eu passara para o lado onde não há nada, e constatava, estúpida e desolada, as coisas que continuariam a existir, quando eu não mais estivesse aqui; durante todo o dia oscilei à beira da impossível experiência: tocar o avesso da minha própria ausência.
Naquela noite, eu programara rever Cidadão Kane; cheguei ao cinema muito cedo e me sentei no café que ficava em frente, na avenida do Opéra. Pessoas liam os jornais, indiferentes à manchete da primeira página e à foto que me cegava. Eu pensava na mulher que amava Camus, no suplício de encontrar em todas as esquinas aquele rosto público, que parecia pertencer a todos tanto quanto a ela, e que não tinha mais boca para dizer-lhe o contrário. Isso me parecia um refinamento, fanfarras que clamam os quatro ventos nosso desespero secreto. Michel Gallimard ficara gravemente ferido; ele estivera ligado às nossas festas, em 1944 e 1945; também ele morreu. Vian, Camus, Michel: a série dos mortos começara, e continuaria até a minha, que viria inevitavelmente, cedo demais ou tarde demais.
Naquele inverno, tornei a explorar uma área que negligenciara há muito tempo: a música. Dera a minha vitrola, e não ia mais a concertos. Minha jovem amiga canadense, que assistira aos concertos do Domaine Musical, me animara a ir a um deles: era bem perto da casa de Sartre, no Odéon, e ela se encarregaria de comprar as entradas. Eu tinha medo de não entender nada. Mas Sartre teve a curiosidade de experimentar. O fato é que nos sentimos perdidos. Por que zombavam? Por que aplaudiam? Wahl, Merleau-Ponty e Lefèvre-Pontalis, que vimos no intervalo, também não entendiam nada, mas isso não parecia incomodá-los. Sartre ficou irritado com esse atraso. Comprei uma vitrola e discos, enriquecendo minha coleção a cada mês. Sartre me ajudava a descobrir as séries. Webern ocupou-nos durante todo o inverno; achei sua música tão densa quanto uma escultura de Giacometti: nenhum excesso, nem uma nota supérflua. Eu retrocedia no passado; a música como um todo me interessava. Passava meus momentos livres junto ao toca-discos. Duas ou três noites por semana, instalava-me no meu sofá, com um copo de uísque, e escutava, durante três ou quatro horas. Isso ainda me acontece com frequência. A música é muito mais importante para mim agora do que em qualquer outro período da minha vida.
Perguntei-me por quê; certamente, a primeira razão é material: a existência do microssulco, a qualidade das gravações. Os antigos discos eram difíceis de classificar e de manipular; a audição era por demais interrompida para que se pudessem conseguir ao mesmo tempo concentração e abandono. Hoje, as paradas coincidem quase sempre com divisões naturais, e combinam com o ritmo da atenção. Muitas obras são editadas, o que permite compor programas variados e ricos. As circunstâncias também contaram: quase não vou mais ao cinema nem ao teatro, fico em casa; evidentemente, eu poderia ler; mas quando chega a noite, já estou farta das palavras; estou cansada deste mundo em que vivo, e que volto a encontrar nos livros. Os romances inventam um outro, mas parecido com este, e geralmente mais insípido. A música me introduz num outro universo, onde reina a necessidade, e cuja substância — o som — me é fisicamente agradável. É um universo de inocência — pelo menos até o século XIX — porque o homem está ausente dele: quando ouço Lassus, ou Pergolesi, a própria noção de mal deixa de existir: isso repousa. Além disso, era enorme a minha ignorância em música. Esta me trouxe o que as outras artes agora me recusam: o choque de grandes obras ainda virgens para mim. Descobri Monteverdi, Schultz, Pérotin, Machaut, Josquin des Prés, Victoria. Aprendi a conhecer melhor os músicos que já apreciava. Meus livros amontoaram-se ao acaso na minha biblioteca, e nada são, para mim; mas gosto de olhar, austeras ou risonhas, as lombadas multicores que abrigam sob seus matizes tumultos e harmonias. Foi através da música que nestes últimos anos a arte se misturou familiarmente à minha vida; foi através dela que senti emoções violentas, que experimentei seu poder e sua verdade, e também seus limites e fraudes.
***
Muitas vezes, aos domingos, passeando com Sartre pelo cais, por trás do Panthéon, em Ménilmontant, lamentávamos que a idade tivesse empanado nossa curiosidade; pois nos propunham grandes viagens. De passagem por Paris, Franqui, o diretor do maior jornal cubano, Revolución, veio à minha casa com alguns amigos, dos quais um falava francês. Cabelos e bigodes negros, muito espanhol; ele me disse com autoridade que era nosso dever ir ver com nossos próprios olhos uma revolução em marcha. Nutríamos grande simpatia por Castro; no entanto, o convite de Franqui, feito também a Sartre, nos deixou quase indiferentes. Brasileiros nos convidavam para irmos no verão e nossa reação não era mais entusiasmada. “Pergunto-me”, disse-me Sartre, “se não é o cansaço de nossos corpos que nos detêm, mais do que um cansaço moral”. Essa explicação lhe parecia mais verdadeira e mais otimista que a outra, e certamente o medo de que ele se esgotasse sufocava meus desejos. Havia uma outra razão para nossa apatia: a guerra da Argélia nos bloqueava o horizonte. Contudo, o resto do mundo existia, e não devíamos desinteressar-nos dele. Franqui estava certo: a experiência cubana nos dizia respeito. Uma visita ao Brasil nos esclareceria sobre os problemas dos países subdesenvolvidos; Amado e outros homens de esquerda a desejavam porque pensavam que, através de conferências e artigos, Sartre lhes poderia ser útil. Permanecer surdos a esses convites, mutilar nossa curiosidade, encolher-nos na desgraça francesa, era uma espécie de demissão. Sartre foi o primeiro a sacudir nossa inércia.
Quando decolamos, em meados de fevereiro, estava tensa a situação entre Cuba e os EUA, cujo embaixador voltara para Washington. Também o embaixador da Espanha deixara Havana, depois de ter irrompido, completamente bêbado, nos estúdios da televisão que, segundo ele, insultava Franco. As ligações de Cuba com a URSS estreitavam-se; Mikoyan acabava de ser recebido por Castro. Era uma bela manhã de fevereiro; eu via desenrolar-se abaixo de mim o desenho preciso e as cores simples de um mapa geográfico; o Gironda dos atlas estendia suas águas barrentas de Bordeaux ao oceano verdejante; a neve cobria os Pireneus docemente inclinados para o mar já primaveril; já se avizinhava Madri, até aquele momento tão distante. Sartre, que havia trinta anos não punha os pés ali, reencontrou a cidade sem alegria. Por volta de três horas da tarde, todas as lojas estavam fechadas, chovia, e os raros transeuntes pareceram-lhe mal-vestidos e insípidos. “Não se encontra nenhum prazer em imaginar o que essa gente tem na cabeça”, disse-me ele, no Café da Gran Via, onde bebíamos manzanilla. No dia seguinte, reviu os Goya e os Velásquez do Prado. E partimos para Havana. No avião, deciframos como pudemos jornais cubanos, e eu tive um sono perturbado. Ao acordar, vi um mar inteiramente novo, ilhas, depois a costa e uma planície verde, onde se erguiam palmeiras.
Confusão da chegada: as têmporas ainda doídas, os ouvidos zumbindo, com o sol que de repente queima, as flores, os cumprimentos, as perguntas feitas (“Que pensa da Revolução Cubana?”, perguntou um jornalista a Sartre. “Vim para sabê-lo”, respondeu ele) e todos aqueles rostos jamais vistos. Um carro nos leva por uma larga estrada, entre palmeiras e grandes flores; explicam-me, de passagem, locais, monumentos, e eu mal ouço, só vejo o mar selvagem à minha esquerda; sinto sono, calor, tenho vontade de tomar um banho, e eis-me sentada num primeiro andar, que dá para uma praça de pedra cinzenta, diante de uma igreja belíssima; servem-me um daiquiri, tão voluptuoso quanto nas descrições de Sartre, e as vozes continuam a explicar e perguntar. Elas se multiplicam, enquanto, depois de uma breve trégua, almoçamos num restaurante que imita luxuosamente a rusticidade dos bohíos. Daqui a alguns dias, darei nomes a esses sorrisos, terei simpatias e aversões; por enquanto, não faço distinção entre todas essas bocas que me interrogam sobre a pintura abstrata, a Argélia, a literatura engajada na França, na América, o existencialismo. Essa algazarra me agradaria se eu estivesse livre do enorme cansaço que a defasagem das horas agrava.
No dia seguinte, o cansaço desaparecera. Depois de Madri, depois de Paris, a alegria explodia como um milagre sob o céu azul, na suavidade sombria da noite. Sartre disse minuciosamente em sua reportagem “Furacão sobre Cuba” o que a revolução trouxera ao povo cubano. Assistir à luta de seis milhões de homens contra a opressão, a fome, os pardieiros, o desemprego, o analfabetismo, compreender seus mecanismos, descobrir suas perspectivas, foi uma experiência apaixonante. As discussões, as visitas, as sessões de informação só raramente assumiram aspecto oficial; nossos guias, nosso intérprete; Arcocha, logo se tornaram amigos; após alguns instantes formais, a nossa viagem de três dias com Castro se passou na familiaridade. Mergulhando com ele no calor das multidões, reencontramos uma alegria há muito perdida. Amei as simples e largas paisagens cubanas: o verde tenro das plantações de cana casa-se com o verde profundo das palmeiras que coroam altos caules de prata lisa; um dos meus espantos foi ver vacas pastarem ao pé dessas árvores cuja imagem, para mim, estava ligada ao deserto. Amei Santiago com suas multidões negras, e Trinidad, austeramente embalsamada em seu passado colonial, e no entanto fresca com toda a exuberância de suas flores. Amei Havana. O Vedado, onde nos hospedamos, tinha todas as seduções de uma rica cidade capitalista: largas avenidas, longos carros americanos, elegantes arranha-céus, e, à noite, as festas do neon. As janelas do meu quarto davam para um parque que descia para o mar: eu divisava ao longe a velha Havana, cuja ponta era furiosamente batida por altas ondas. Pela manhã, bebia com Sartre um café muito preto, quase amargo, comia abacaxis tenros e suculentos, e depois, enquanto ele escrevia um prefácio para Aden-Arabia, de Nizan, que Maspero desejava reeditar, eu deixava o frescor do ar-condicionado; ia ler no gramado, respirando o odor da relva e do oceano; à noite, ao sair do hall refrigerado, recebia no rosto a umidade da noite, seu odor de estufa quente de flores em delíquio. Sartre conhecia um pouco a velha Havana; mostrou-me suas ruas atravancadas e obsoletas, suas arcadas, suas praças onde pessoas sentadas em bancos sonhavam à espanhola, seus cafés-mercearias de esquina, amplamente abertos sobre a rua. Jantávamos ali sozinhos, ou com amigos: quando eu entrava num restaurante, uma capa de frescor caía sobre meus ombros. Muitas vezes sentávamo-nos no Ciro’s, outrora frequentado por Hemingway. Certa noite, ceamos num balcão do Mercado: tomamos uma sopa chinesa com o poeta Baragagno, o fotógrafo Korda e sua mulher, manequim e miliciana, em meio a um forte odor de legumes e peixes. Todos os dias apareciam nos jornais fotos de Sartre em companhia de Guevara, de Jimenez, de Castro; quando ele falou na televisão, todo mundo o reconhecia: “Sartre, é Sartre!”, gritavam os motoristas de táxi, quando passávamos. Homens e mulheres o detinham; antes, ignoravam tudo sobre ele, e até mesmo seu nome; suas efusões dirigiam-se ao homem que Castro lhes apontava como seu amigo, e elas nos faziam avaliar a popularidade do líder.
Era Carnaval. Nas noites de domingo, companhias de amadores apresentavam nas ruas em júbilo espetáculos preparados durante o ano inteiro; fantasias, música, mímica, danças, acrobacias: o gosto, as invenções e a virtuosidade daqueles comparsas nos maravilharam: dois balés, dançados por negros, reproduziam cerimônias camponesas, mágicas e esfuziantes; o segundo parecia, à primeira vista, reservado às mulheres: maquiados e usando cabeleiras, os homens também usavam saias coloridas: as saias de renda e os xales de suas avós distantes. Até a madrugada, com um bando de amigos, misturamo-nos ao alegre delírio de uma multidão ainda embriagada com sua vitória. Vimos também, no teatro, cerimônias negras, bastante próximas das cerimônias da África, apesar de certas influências católicas; o diretor convidara várias irmandades para oficiar, por uma noite, no palco; elas não representavam: viviam realmente um momento de sua vida religiosa. Muitos espectadores espantavam-me por terem pago para assistir aos ritos familiares; alguns se irritavam por não terem sido escolhidos, e criticavam os executantes: eu sei fazer bem melhor, murmuravam eles. Quando desceu a cortina, vimos nos bastidores as dançarinas, que mal haviam saído de seus transes. Essa passagem do jogo ritual ao espetáculo marcava ao mesmo tempo o respeito dos cubanos por suas tradições africanas e seu desejo de arrancá-las da clandestinidade.
No dia 5 de março, almoçávamos ao ar livre, numa espécie de rancho nos arredores de Havana, com Oltuski, o ministro das Comunicações, muito jovem, e dois colegas dele, quando ouvimos um grande ruído; o ministro do Interior foi chamado ao telefone. La Coubre acabara de ir pelos ares; os estivadores, todos negros, foram mortos. Num dia brumoso, de pé na tribuna onde estava Castro, assistimos, tremendo, aos funerais. As carretas desfilaram, seguidas pelas famílias em pranto: dir-se-ia carros de carnaval funebremente metamorfoseados, e os comparsas. Depois, Castro falou durante duas horas. Quinhentas mil pessoas escutavam, graves e tensas, convencidas — com razão, pensávamos — de que a sabotagem se devia, senão à América, pelo menos a americanos.
Os cortejos e as festas de domingo à noite foram suspensas. Iniciou-se uma campanha para reunir fundos que permitissem comprar armas. No Prado — aquele longo terraço largo e cheio de sombra, na orla da velha cidade —, mulheres jovens vendiam sucos de frutas e guloseimas, em benefício do Estado; vedetes dançavam ou cantavam nas praças, e recolhiam dinheiro; belas moças, com suas fantasias de carnaval; precedidas por músicos; esmolavam nas ruas.
“É a lua de mel da Revolução”, dizia-me Sartre. Nenhum aparato, nenhuma burocracia, mas uma relação direta entre dirigentes e povo, e uma efervescência de esperanças um pouco desordenadas. Isso não duraria sempre, mas era reconfortante. Pela primeira vez em nossa vida éramos testemunhas de uma felicidade que fora conquistada pela violência; nossas experiências anteriores, sobretudo a guerra da Argélia, só nos haviam revelado a violência sob sua imagem negativa: a rejeição do opressor. Aqui, os “rebeldes”, o povo que os havia apoiado, os milicianos que talvez fossem lutar em breve, todos irradiavam alegria. Recuperei um prazer de viver que eu pensava comprometido para sempre. Este foi contrariado pelas notícias que nos chegavam da França; Lanzmann nos enviou cartas abarrotadas de recortes de jornais: a polícia prendera vários membros da rede dirigida por Francis Jeanson, que conseguira escapar. Os comentários da imprensa provocavam náusea. Os homens teriam sido comprados; quanto às “parisienses” da rede, cujas fotos o Paris-Presse publicava na primeira página, teriam sido seduzidas pelos belos machos que lhes teriam sido enviados pela FLN. Dinheiro e sexo: impossível para os meus compatriotas atribuir outras molas às condutas humanas.
Foi portanto sem alegria que nos dispusemos a voltar para a França. Até Nova York viajamos com Chanderli, que representava o GPRA na ONU a título de observador, e que havíamos encontrado uma vez em Havana. Roliço, jovial, trazia para os filhos chapéus de camponeses de palha franjada que punha na cabeça, rindo.
Eu nunca estivera em Nova York com Sartre. Aterrissagem às duas horas da tarde, partida para Londres às dez, era pouco tempo. E eis que um adido cubano nos anunciou que organizara um coquetel de imprensa no Waldorf, às quatro horas! Senti que ainda estava longe da serena resignação do declínio. Sartre declarou que não estaríamos livres antes das seis. De táxi, a pé, novamente de táxi, a pé, percorremos a cidade. Era domingo e fazia frio: depois do tumulto colorido de Havana, com seu céu azul, suas multidões apaixonadas, ela nos pareceu morna e quase pobre; os transeuntes estavam mal vestidos, e pareciam aborrecer-se; havia novos arranha-céus, de uma elegância ousada, mas muitos bairros haviam sido reconstruídos no estilo dos nossos H.L.M.186 O contraste que, em 1947, opunha o luxo americano à miséria europeia não mais existia, e eu não via mais os Estados Unidos com o mesmo olhar; eram ainda o país mais próspero do planeta, mas não mais aquele que forjava o futuro; as pessoas com as quais eu cruzava não pertenciam à vanguarda da humanidade, mas a sua sociedade esclerosada pela “organização”, intoxicada por mentiras, e que a cortina de dólares cortava do mundo: tal como Paris em 1945, Nova York me parecia uma Babilônia decaída. É certo que a maneira como eu a atravessei contribuiu para apagá-la. Faltava tempo para despertar o passado, para esboçar um futuro. Quando saímos do Sherry Netherland, onde havíamos reencontrado o verdadeiro gosto do martíni, reconheci de repente o Central Park, Manhattan, cuja beleza era reanimada pela noite: mas já era hora de irmos para o Waldorf.
Havia muita gente: Sauvage, do Figaro, malevolente; jornalistas franceses e americanos, e também o velho e divertido Waldo Frank, e meu amigo Harold Rosenberg, que colaborava ainda de vez em quando na Temps Modernes, e outros que simpatizavam com a revolução cubana. Para ser autenticamente de esquerda, nos Estados Unidos, é preciso muita personalidade, independência e espírito aberto: senti um grande impulso de amizade para com aqueles homens e mulheres solitários e corajosos.
***
Depois do verão de 1951, eu continuara a me corresponder com Algren. Falava-lhe de Paris, da minha vida; ele me dizia que seu segundo casamento com A. não ia melhor que o primeiro, que a América estava mudando, e que ele não se sentia mais em casa. Com o tempo, estabeleceu-se um silêncio entre nós. De vez em quando eu ouvia boatos sobre ele, sempre extravagantes. Rasgara contratos fabulosos, assinara acordos desastrosos, perdera fortunas no pôquer; certa manhã de inverno, caíra num buraco d’água: só sua cabeça ficara de fora, e ele quase morrera em pé, gelado; marcara encontro com uma agente literária num bordel de Filadélfia, que se incendiara, e ele fugira pela janela; pouco depois, a agente dera um tiro na cabeça. Em 1956, a tradução de Os mandarins foi publicada nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que seu último romance; os jornalistas o crivaram de perguntas a meu respeito, e ele os repeliu com uma grosseria que parecia visar a mim; não me incomodei: eu conhecia seu mau gênio. Entretanto, quando Lanzmann me disse, certa noite: “Algren vai telefonar daqui a pouco, de Chicago: já foi dado um aviso”, compreendi que ele desejava explicar-se. Eu estava angustiada diante da ideia de ouvir aquela voz que viria de tão longe: cinco anos, mais de seis mil quilômetros. Ele não ligou: também tivera medo. Um dia enviei-lhe um bilhete, e ele respondeu. Recomeçamos a nos escrever, com grandes intervalos. Ele se divorciara, e vivia de novo em Chicago, num apartamento: enormes edifícios elevavam-se agora no lugar da velha casa de Wabansia. Ele esperava vagamente conseguir um passaporte, e vir a Paris. “Sim”, escrevi-lhe uma vez, “eu gostaria muito de revê-lo antes de morrer”. Ao ler essas palavras, ele pensou de repente que não tínhamos muito mais tempo de vida. Em novembro de 1959, uma carta me anunciou que lhe haviam finalmente devolvido a liberdade de viajar, que ele desembarcaria em Londres no início de março e que, dez dias mais tarde, aterrissaria em Orly. Respondi que só estaria em Paris por volta do dia 20, mas ele podia instalar-se na minha casa.
Eu estava emocionada e um pouco inquieta quando bati à minha porta; não ouvi nada; e, no entanto, eu telegrafara. Insisti: Algren abriu: “É você?”, perguntou-me, surpreso; Bost, que o recebera no aeroporto com Olga, garantira-lhe que nenhum avião chegaria de Nova York antes do dia seguinte. Algren tinha os olhos nus: substituira os óculos por lentes de contato que não soubera usar, e decidira que podia prescindir delas; a não ser por esse detalhe, não me pareceu mudado; foi reencontrando antigas fotografias que percebi que ele envelhecera; no primeiro momento, quarenta anos, ou cinquenta, ou trinta — vi apenas que era ele. Disse-me mais tarde que para ele também foram necessários vários dias para que descobrisse que o tempo me marcara. Não ficamos surpresos de nos reencontrarmos de chofre, depois dos anos de separação e dos verões perturbados de 1950 e 1951, tão próximos como nos mais belos dias de 1949.
Algren chegava de Dublin; contou-me sua temporada nos vapores da Irlanda, entre bebedores de cerveja inspirados; mergulhado num embrutecimento etílico, Brendan Behan, cujas obras ele apreciava muito, concedera-lhe apenas alguns grunhidos. Falou-me de Chicago, dos amigos antigos, de amigos novos, também eles drogados, rufiões, ladrões; suportava menos que nunca a arrogância das pessoas de bem; a sociedade tinha sempre razão, e suas vítimas eram tratadas como culpadas: essa era uma das mudanças que Algren menos perdoava à América. Todas as manhãs, a raiva o despertava: “Exploraram-me, enganaram-me, traíram-me.” Haviam-lhe prometido um mundo e ele se encontrava num outro, que contrariava todas as suas convicções e todos os seus desejos. Vociferava até a noite. “Outrora eu vivia na América”, disse-me. “Agora, vivo num território ocupado pelos americanos.”
No entanto, esse país onde — assim como eu, no meu — ele se sentia em exílio estava entranhado nele; Chicago ressuscitava no meu estúdio; como era seu costume lá, ele usava calças de veludo cotelê, casacos gastos, e na rua um boné; pousara numa das escrivaninhas sua máquina de escrever elétrica, e maços de papel amarelo; os móveis e o chão estavam cobertos de latas de conserva, de engenhocas, de produtos, livros e jornais americanos. Eu lia todas as manhãs o New York Herald; ouvíamos discos que ele trouxera: Bessie Smith, Charlie Parker, Mahalia Jackson, Big Bronzy; nada de cool, isso não o tocava; frequentemente americanos que vinham a Paris como turistas batiam à porta: ele os levava para passear, mostrava-lhes o museu Grévin. Vi somente seu amigo Studd, que trabalhava como free-lancer para a rádio de Chicago; concedi-lhe uma entrevista sobre Cuba que me valeu, quando foi transmitida, algumas cartas calorosas. Algren ligou-se a compatriotas que moravam no prédio; através deles, encontrou outros, entre os quais James Jones: eles formavam em Paris uma colônia fechada, apartados da França, cuja língua nem mesmo falavam, e dos EUA que haviam deixado, indiferentes à política, mas marcados por suas origens. Ele preferia seus furores cotidianos a esse desenraizamento.
Eu vivia muito mais retirada do que em 1949, e tinha menos pessoas para lhe apresentar. Depois dos Bost ele reencontrou Sartre, Michelle; apresentei-lhe Lanzmann, Monique Lange, habituada a ciceronear em Paris os autores estrangeiros da editora Gallimard, e seu amigo Juan Goytisolo. Ele surpreendia nossos visitantes acendendo, graças a uma pilha escondida no bolso, uma pequena lâmpada vermelha presa no meio de uma gravata borboleta.
Nos primeiros tempos, sobretudo, fiz com ele longas caminhadas através de Paris. Fomos em peregrinação à rua Bûcherie: eu não tinha mais nenhuma ligação com a velha casa que iam demolir. Jacques Lanzmann saíra de lá, Olga e Bost mudaram-se, assim como a costureira e seu marido; Betty Stern falecera e a pequena zeladora morrera num desastre de automóvel. Só restavam do meu passado Nora Stern e seus cães. Voltamos ao mercado das pulgas e ao Museu do Homem. Bost nos levou a passear de carro. Algren tomara emprestada — ai de mim! — uma máquina fotográfica e, como outrora, usava-a sem cerimônia, como antigamente. A rua Saint-Denis e suas putas o encantavam: pela janela metralhou um grupo parado à porta de um hotel; o sinal fechou e o carro parou: as mulheres começaram a xingá-lo e pensei que fossem escarrar-lhe no rosto. Recomecei a frequentar os restaurantes. Algren gostava muito do Akvavit, na rua Saint-Benoît, por causa das garrafas envoltas numa espécie de regalo de gelo, de onde corria um álcool límpido; divertia-se no Baobab, onde serviam “frango grande feiticeiro”, e ananases flambados com um fundo de música africana. Iamos tomar sopa de cebola nas Halles, e bifes regados a Beaujolais em vários bistrôs. Certa noite, jantamos num bateau-mouche, vendo deslizar diante de nós o cais, com seus mendigos e namorados.
Ele estava farto dos filmes americanos, e não sabia francês: fomos pouco ao cinema. Levei-o para ver Le Trou, de Becker, certa de que essa silenciosa história de evasão lhe interessaria; gostou mais do que eu de L’Amérique insolite, de Reichenbach, talvez porque não tivesse compreendido o comentário, que me estragou as imagens. Apesar das inabilidades, Come back Africa nos arrebatou a ambos; era um filme de circunstância; fora decretado estado de emergência na África do Sul, em consequência de motins que haviam custado, oficialmente, cinquenta e quatro mortos e cento e noventa e cinco feridos à população negra.
Empenhei-me em inventar passeios nos quais Algren tivesse prazer: eu mesma senti esse prazer ao andar como estrangeira através das noites de Paris. Ouvimos no Olympia Amália Rodrigues, tão bela em seu vestido negro, e oferecendo ao público, com a sedução de sua voz, um recital de flamencos e de fados. No Catalans, bebendo sangria, ouvimos outros flamencos e vimos excelentes dançarinos. Como ele gostava de cerejas em aguardente e de velhas canções francesas, fomos ao Lapin Agile, embora a clientela e o repertório estivessem lamentavelmente degradados; fomos ainda ao Abbaye, onde melodias francesas alternavam-se com folclore americano. No Ecluse, revi, depois de muito anos, Harold, que apresentava novas montagens muito bem-sucedidas. Olga e Bost nos acompanharam ao Crazy Horse Saloon; Algren achou a arte do strip-tease muito mais refinada em Paris do que em Chicago.
A noite mais inesquecível foi organizada por Monique Lange e Goytisolo. Depois de um jantar no Baobab, Monique propôs que fôssemos beber no Fiacre. Decididamente eu vivia à margem do século, pois fiquei um pouco perturbada com aquela multidão de rapazes e homens mais ou menos jovens, que tagarelavam e se acariciavam, com mãos que deslizavam sem cerimônia sob os pulôveres de angorá; sufocava-se, e assim que esvaziamos nossos copos, saímos; um adolescente que Monique conhecia apontou para mim: “Que é que ela vem fazer aqui?” “Mas isso lhe interessa.” “Ah! Então ela está a nosso favor?”, perguntou, muito contente. Algren estava muito mais espantado do que eu.
No Carrousel, encantado com as primeiras provocadoras, sentiu-se tão ludibriado ao saber que eles pertenciam ao sexo masculino, que quase se irritou. No Elle et Lui; perdeu inteiramente a cabeça: havia ali homens e mulheres vestidos de homens; ele não sabia mais a que sexo dirigir-se.
Monique fez com que ele fosse convidado ao Formentor, onde se reuniam editores e escritores de diversos países para criar um prêmio internacional. Eu o deixei partir sozinho e, dez dias depois, tomei o avião para Madri, onde ele me esperava com Goytisolo. Era início de maio, e o tempo estava lindo. Algren divertira-se muito, porque encontrara pessoas de todo tipo. Barcelona o conquistara; ele passara três dias subindo nos telhados, circulando no bairro chinês e no porto. Enquanto isso, em Madri, Goytisolo esgotara-se em gestões para libertar seu irmão Luís, encarcerado fazia algumas semanas, em consequência de uma viagem à Tchecoslováquia, e muito doente. Numa velha taberna de paredes pintadas, passamos uma noite interessante com jovens intelectuais que nos falaram dos esforços e das dificuldades da oposição; observaram-me que os livros de Sartre eram proibidos, mas que os de Camus exibiam-se nas vitrines das livrarias.
Madri aborreceu Algren, e eu voei com ele para Sevilha; árvores em flor, de um violeta brilhante, cortavam a secura de suas ruas. Em Triana, em dancings miseráveis, sob tetos decorados de guirlandas de papel, ouvimos todas as noites os soluços roucos dos flamencos. Reencontramos em Málaga Goytisolo e seu amigo V., um fotógrafo que nos levou de carro a Torres Molinos. Goytisolo conhecia muitas histórias sobre os homossexuais e as senhoras de sociedade que povoam a temporada de verão. Dormimos num pequeno porto cujas casas caiadas e cobertas de telhas vistosas espalhavam-se de alto a baixo numa colina: “Quanto mais estragado por dentro, mais pintam de branco as paredes externas”, disse-nos Goytisolo, quando passeávamos, de manhã. Com efeito: encontrávamos nas ruas crianças nuas, e entrevíamos interiores sórdidos. No alto do vilarejo, Algren tirou fotos: “Sim, para vocês é pitoresco”, resmungou uma mulher, “mas quando se tem que descer e subir o dia inteiro!”. Todas as fontes se encontravam ao pé do outeiro. De repente, quando, no dia seguinte, em Almería, Algren decidiu fotografar o bairro dos trogloditas, não o acompanhei; Goytisolo partiu por conta própria, para rever lugares e pessoas, e eu subi com V. para o alto de Alcabaza, espantada por ter negligenciado por duas vezes, ao atravessar a cidade, aqueles jardins e terraços, com suas flores violentas, seus cactos eriçados, escamosos, irregulares. V. fotografava também, mas com uma teleobjetiva, as penedias esburacadas, a população miserável que ia e vinha nos atalhos quase verticais. Li A colmeia, de Cela, um excelente livro, em meio à alegria do sol matinal e das amizades. Depois, foi a admirável estrada de Granada, através de terras vermelhas, ocre, cinzentas e túmidas. Passei três dias no Alhambra com Algren. A Espanha, em seu coração, ganhava disparado da Itália.
A permanência de Algren devia ser de cinco a seis meses, e eu não desejava afastar-me por tanto tempo da minha vida habitual. Continuei a trabalhar em casa de manhã, e à tarde em casa de Sartre, com quem passava várias noites por semana. Algren tinha artigos para escrever, não lhe faltavam amigos, e ele ama a solidão: esse arranjo lhe convinha.
Alguns dias depois de nossa volta de Cuba, Sartre e eu assistimos à recepção dada por Khruchtchev na embaixada soviética. Que grã-finismo! As senhoras gaullistas usavam espantosos chapéus com fitas, plumas, rendas, flores, e vestidos decotados, cobertos de berloques, de uma custosa não simplicidade; sem preconceito, as progressistas faziam melhor figura, sem chapéu e usando discretos tailleurs. Quanto à Nina Khruchtchev, seu sorriso plácido e seu vestido negro desqualificavam a própria noção de elegância. Debré discursou. Todos se apressavam para ver Khruchtchev: ele passou pela multidão e apertou as mãos. Sartre faltara a uma reunião de escritores e jornalistas, onde o teria visto mais longamente. Khruchtchev devia encontrar Eisenhower em breve, em Paris: pombas voejavam por cima das taças de champanhe.187
A Crítica da razão dialética foi publicada: violentamente criticada pela direita, pelos comunistas e pelos etnógrafos, teve a aprovação dos filósofos. O livro de Nizan, Aden-Arabie, e o prefácio de Sartre foram também muito bem recebidos. Em Havana, Sartre muitas vezes se aborrecera por ter que escrever esse texto, enquanto tantas outras coisas o ocupavam; mas o confronto de sua própria juventude com a juventude dos cubanos de hoje lhe fora útil: seu prefácio impressionou particularmente as moças e os rapazes de vinte anos. Os jovens o amavam; constatei isso uma vez mais na noite em que ele falou na Sorbonne sobre teatro. Provocou tantos aplausos quanto um maestro e, à saída, os estudantes o escoltaram em massa até um táxi; tanto quanto ao escritor, a simpatia deles se dirigia ao homem e a suas opções políticas. Exaustivo como de costume, ele empreendera sobre Cuba uma obra enorme, que ultrapassava muito os limites da reportagem que propusera ao France-Soir. Lanzmann ajudou-o a extrair dali alguns artigos. Ele continuou esse trabalho até nossa partida para o Brasil.
Ao voltar da Espanha, entreguei à Gallimard meu livro, para o qual ainda não encontrara título, e cujo início entreguei à Temps Modernes, sob o título um pouco comprometedor de Suite (Continuação). Desejava continuá-lo, e fui à Biblioteca Nacional para refrescar minhas lembranças dos anos 1944-48. Eu contara esse período nos Mandarins: eu pensava que é projetando uma experiência no imaginário que apreendemos com mais clareza o seu significado. Mas eu lamentava que o romance sempre fracassasse ao expressar sua contingência: as imitações que pode oferecer são logo retomadas pela necessidade. Numa autobiografia, ao contrário, os acontecimentos se apresentam em sua gratuidade, seus acasos, suas combinações por vezes absurdas, tal qual se passaram: essa fidelidade faz compreender melhor do que a mais hábil transposição como as coisas acontecem a sério aos homens. O perigo é que, através dessa caprichosa profusão, o leitor possa não distinguir nenhuma imagem clara — apenas um amontoado confuso de coisas. Assim como é impossível ao físico definir ao mesmo tempo a posição de um corpúsculo e o comprimento da onda que lhe está ligada, o escritor não tem meios para contar simultaneamente os fatos de uma vida e seu significado. Nenhum desses dois aspectos da realidade é mais verdadeiro que o outro. Os mandarins, portanto, não me dispensavam de prosseguir essas memórias, que aliás iriam estender-se até bem mais longe.
Fazia muito tempo que eu me interessava pelo esforço da doutora Weil-Hallé para difundir na França o uso dos contraceptivos. Tendo recebido muitas confidências, eu conhecia o drama das gestações involuntárias e dos abortos. “Para a mulher, a liberdade começa no ventre”, escrevera-me uma correspondente. Eu estava de acordo, e a atitude dos comunistas me irritara quando, quatro anos antes, a doutora Weil-Hallé, Derogy, Colette Audry e algumas outras anunciaram uma campanha em favor do controle da natalidade. Thorez acusou-as de malthusianismo: queriam enfraquecer o proletariado privando-o de filhos. Uma delegação de mulheres tentou discutir com Jeannette Vermersch: Colette Audry ainda tinha os olhos arregalados quando me contou a entrevista. Para evocar as belezas da concepção, Jeanette Vermersch encontrou expressões dignas de Pétain: “Vocês querem despoetizar o amor!”, acrescentou pouco mais tarde, num repente de praticidade: “Os jovens operários, vocês sabem, fazem isso nos corredores, entre duas portas…” Na verdade, são na maioria mulheres casadas que a ausência de anticoncepcionais conduz ao aborto. Com um otimismo digno daquele que hoje inspira Louis Armand, os comunistas evocavam, contra o planejamento familiar, a prosperidade que a França poderia conhecer, e que lhe permitiria alimentar setenta milhões de habitantes: as desgraças íntimas das operárias de hoje, isso não existia. Escrevi um breve prefácio para o livro da Mme Weil-Hallé sobre o Planejamento familiar e outro para La Grande peur d’aimer. Quando esta obra foi publicada, assisti à reunião de imprensa que ela deu na nova sede da editora Julliard. Estavam presentes umas cem pessoas: psicanalistas, médicos, especialistas mais ou menos autorizados do coração humano. A doutora Weil-Hallé, de vestido branco, loura, fria, virginal, expôs com voz musical as vantagens do pessário; quinquagenárias perguntaram com inquietude se o uso não era prejudicial ao romantismo amoroso. O vocabulário empregado era dos mais edificantes. Falava-se não de controle da natalidade, mas de maternidade feliz; não de contracepção, mas de ortogênese. Ao ouvir a palavra “aborto”, cobria-se o rosto; quanto ao sexo, não estava em lugar algum.
Por volta do fim de abril, Francis Jeanson reuniu em plena Paris os correspondentes dos principais jornais estrangeiros; Georges Arnaud estava presente, e publicou um relatório no Paris-Presse; o jornal não foi incomodado, mas prenderam Arnaud em 27 de abril por “não denúncia de criminoso”. Entretanto, embora confundido pelo Comitê Audin durante o processo que este movera em Lille contra La Voix du Nord, o capitão Charbonnier recebia a Legião de Honra. Preparava-se em Argel, juntamente com o processo de Alleg, o processo de Audin “em fuga”. Foi nesse momento que se instalou no 13.º arrondissement corpos supletivos muçulmanos: os harkis;188 em meus passeios com Algren, cruzei muitas vezes com esses homens de azul, pagos para traírem seus irmãos.
Certa manhã, no fim de maio, Gisèle Halimi me telefonou e me pediu com urgência uma entrevista: encontrei-a no terraço ensolarado do Oriental, na avenida Orléans. Ela voltava de Argel, onde fora defender uma argelina, em 18 de maio. Autorizada a permanecer lá apenas a partir do dia 16, obtivera uma revisão do processo, agora marcado para 17 de junho. A moça lhe dissera que a haviam torturado; magra, desfigurada, visivelmente traumatizada, trazia vestígios de queimaduras e citava testemunhas. Gisèle Halimi a encorajara a apresentar queixa e a pedir um inquérito que necessitava de um outro adiamento: poderia eu encarregar-me de escrever um artigo para reivindicar esse adiamento? Sim, claro. Eu me limitava, ou quase, a reproduzir o relatório de Djamila, e mandei levar meu artigo ao Monde. O M. Gauthier me telefonou: “Sabe, temos muito más informações sobre Djamila Boupacha!”, disse-me, como seu eu lhe tivesse pedido para contratá-la. “Um alto funcionário, muito bem informado, nos garante que pesam sobre ela graves suspeitas”, acrescentou. “Isso não justifica que lhe tenham enfiado uma garrafa onde o senhor sabe”, respondi-lhe. “Não, evidentemente…” Pediu-me, então, que substituísse a palavra “vagina”, usada por Djamila, pela palavra “ventre”: “Para o caso de adolescentes lerem o artigo”, esclareceu. “Eles poderiam pedir explicações a seus pais… Não teriam eles outra pergunta a fazer?”, perguntei a mim mesma. Beuve-Méry achava chocante, disse ainda o M. Gauthier, que eu tivesse escrito: “Djamila era virgem”; ele desejava uma perífrase. Recusei. Eles imprimiram essas três palavras entre parênteses.
Recebi, no Monde, quatorze cartas de simpatia, e três furiosas: “Todo mundo sabe que as histórias de torturas são uma das peças rituais do arsenal dos advogados da FLN; mas se por acaso entre elas há algumas verdadeiras, tudo o que se pode dizer é que é uma das formas da justiça imanente”, escreveu-me uma pied-noir recolhida em Paris. Outras cartas amistosas chegaram-me: “Não, não nos habituamos ao escândalo: mas não somos informados!”, diziam-me um dos meus correspondentes. E uma outra, transtornada: “Meu marido e eu pensávamos que, depois de De Gaulle, não se torturava mais.” Constituímos uma Comissão de Defesa de Djamila Boupacha. Foram dirigidos telegramas ao presidente da República, pedindo o adiamento do processo. Um artigo de Françoise Sagan no Express apoiou essa campanha. O Monde foi apreendido em Argel por causa do meu artigo, e também por uma página sobre o caso Audin. “Quatrocentos mil francos de prejuízo, a cada vez!”, disse-me ao telefone o M. Gauthier, com a voz carregada de censuras.
Em 12 de junho devia ocorrer na Mutualité um congresso “para a paz na Argélia”, que foi proibido. O processo de Georges Arnaud realizou-se em 17 de junho; Sartre era testemunha; cheguei cedo e esperei muito, à porta do quartel de Reuilly, com Péju, Lanzmann, Évelyne e a mulher de Arnaud; ele se felicitava, disse-nos ela, por essa permanência na prisão, que lhe permitira conversar com os detentos argelinos. Sentei-me nas primeiras filas; a sala estava cheia; uma sala bem parisiense, onde toda a intelligentsia de esquerda marcara encontro. Via-se ali uma das vedetes do caso Lacaze, o doutor Lacour, com sua noiva, uma negra linda, que era secretária de Vergès. Arnaud falou muito bem, sem buscar efeitos, sem demagogia. Algumas testemunhas limitaram-se a defendê-la num plano profissional: muitas, ajudadas pelas perguntas dos advogados, apoiaram seu requisitório. Através de Arnaud, o processo visava aos intelectuais em geral, e Maspero nos fez rir ao se apresentar desafiadoramente: “Sou um intelectual, orgulhoso de ser intelectual, de uma velha família de intelectuais, três gerações de intelectuais.” O calor era sufocante naquela sala superlotada e, pouco depois do testemunho de Sartre, sai com ele. Arnaud foi condenado — estava na ordem natural das coisas —, mas com sursis. Foi libertado naquela mesma noite.
Um jornalista me contara, durante o julgamento, que o processo de Djamila acabava de ser adiado: Gisèle Halimi acabava de ser mandada de volta a Argel pelas autoridades, e o tribunal, conhecendo o rumor provocado pelo caso, não ousara julgar a moça na ausência de sua advogada. Tratava-se agora de perseguir os torturadores; se levada adiante, a instrução teria automaticamente concluído por um “improcedente”: era preciso obter a destituição dos tribunais de Argel, que só Michelet, ministro da Justiça, estava habilitado a requerer ao supremo Tribunal.
Uma delegação, composta por Germaine Tillon, Anise Postel-Vinay, ambas ex-deportadas, Gisèle Halimi e eu, foi procurá-la em 25 de junho. As conversas de Melun se iniciavam e, apesar da distância que separava o ponto de vista de De Gaulle da visão do GPRA, aqueles senhores do regime consideravam que a guerra, com seus horrores, já era coisa do passado. Assim eu expliquei a mim mesma a atitude do ministro da Justiça: nervoso, esquivo, nem mesmo se deu ao trabalho de contestar os fatos que lhe expúnhamos: “A família Boupacha foi muito sacrificada”, disse Germaine Tillon. “Todas o foram!”, respondeu ele, em tom brusco e consternado, como se constatasse uma fatalidade na qual o governo não tivera nenhuma participação; não pôs em dúvida as torturas sofridas por Djamila: vira outras! Hesitava apenas quanto à decisão a tomar. “Pedirei a opinião do M. Patin. Falem com ele. Farei o que ele me aconselhar: é uma questão de consciência”, ousou acrescentar. Acompanhando-nos até a porta, disse-me com ar atormentado: “É terrível essa gangrena que nos vem do nazismo. Ela invade tudo, apodrece tudo, e não se consegue contê-la. A pancada é normal: não há polícia sem pancada; mas a tortura!… Tento fazer com que compreendam: há um limite que não deve ser ultrapassado…” Levantou os ombros para indicar sua impotência: “É uma gangrena!”, repetiu. Recuperou-se: “Felizmente, tudo isso vai acabar!”, concluiu, com ardor; não fiquei orgulhosa de ter que lhe apertar a mão.
À tarde, acompanhadas pelo M. Postel-Vinay, fomos ao escritório do M. Patin, Gisèle Halimi contou essa entrevista,189 que me impressionou demais para que eu não volte ao assunto. Calvo, olhos saltados, olhar indeciso por trás dos óculos, ele tinha nos lábios um sorriso infinitamente superior e um pouco cansado do senhor que ninguém passa para trás. Estava sentado diante de seu assistente, o M. Damour, que não pronunciou três frases: ele opinava quando Patin falava. Germaine Tillon atacou: ela conhecera muito de perto numerosos casos de tortura, e nunca uma queixa acarretara sanções; era por isso que, desta vez, decidira que era bom dirigir-se à opinião pública. Patin virou-se para mim: eu cometera um delito divulgando a queixa de Djamila. “E a senhora não relatou os fatos com exatidão”, censurou-me. “Foram soldados comandados por um capitão que revistaram a casa, e não uma escória.” “Falei de harkis, de inspetores de polícia, e de guardas; é o senhor que os está chamando de escória.” Fizeram-me sinais para que me acalmasse, e compreendi que levaria vantagem se me abrisse o menos possível. “Sua Djamila me deu má impressão”, continuou ele. “Ela não gosta da França…” E como Gisèle Halimi citasse as palavras do velho Boupacha que, apesar das torturas, conservava uma confiança ingênua na França, ele levantou os ombros: “É um covarde, um palhaço…” E acrescentou: “Esses oficiais que vocês atacam são tão gentis… Outro dia, eu almoçava com um jovem tentene; pois bem! na vida civil ele é engenheiro agrônomo”, disse ele, como se a agronomia pusesse o homem acima de qualquer suspeita: “Um artigo como o seu os magoa muito”, acrescentou, olhando-me com reprovação. Germaine Tillon lembrou de novo que jamais se aplicara publicamente uma sanção a um militar: no entanto, o número de civis muçulmanos massacrados era infinitamente mais elevado que o das vítimas europeias. Ele apontou para uma pilha de dossiês: “Eu sei”, disse, “eu sei”; Como eu gostaria que os céticos tivessem visto aquele gesto, de certo modo reconciliador, do presidente da Comissão de Salvaguarda! Violações, mortes, torturas, tudo estava inscrito ali, ele o admitia; e parecia perguntar: que posso fazer? “Vejam bem: Argel é uma grande cidade; a polícia não é suficiente para manter a ordem; os militares se encarregam de suprir a falta: mas são noviços… Levam-se os suspeitos dos distritos; à noite, os oficiais voltam para casa; então os detentos permanecem ali, com uma ralé que muitas vezes vai longe demais…” Dessa vez eram os soldados do contingente que ele chamava de ralé. Anise Postel-Vinay indignou-se: “Os alemães jamais deixavam os detentos nas mãos dos soldados: havia sempre um oficial.” (Na verdade, também na Argélia as sessões de tortura sempre foram dirigidas por um ou vários oficiais: isso não significava nenhuma melhora.) Irritado, ele explodiu: “Compreendam, se não déssemos um pouco de autonomia aos militares, não seria mais possível sair nas ruas de Argel. Em outras palavras, o senhor está justificando a tortura!”, protestou Gisèle Halimi. Ele se perturbou: “Não me faça dizer isso!” Ela disse que achava escandaloso que o advogado não tivesse o direito de assistir seu cliente durante o inquérito. “Ora, convenhamos”, disse ele, com um sorriso cético, “se fosse exigido um advogado, não haveria inquérito: os suspeitos seriam liquidados na surdina, com uma bala na cabeça: nós os protegemos.” Eu mal podia acreditar no que ouvia: Patin confessava espontaneamente que seus caros oficiais sem mácula não hesitariam — não haviam hesitado — em assassinar os adversários que uma justiça justa poderia subtrair ao seu ódio. Voltamos a Djamila. “Que foi que ela lhe disse, exatamente, a propósito da garrafa?”, perguntou ele a Gisèle Halimi, com um ar ligeiramente licencioso. Gisèle lhe contou, e ele sacudiu a cabeça: “Foi isso, foi isso!” Sorriu com finura: “Eu temia que eles a tivessem feito sentar-se sobre uma garrafa, como faziam na Indochina com os viets”. (Quem seriam eles, senão os caros oficiais de mãos limpas?) “Os intestinos são então perfurados, e a pessoa morre. Mas não foi isso o que aconteceu…” Murmúrios diversos. Ele acrescentou: “Vocês sustentam que ela era virgem. Mas, afinal, temos fotos dela, tiradas em seu quarto: está entre dois soldados da ALN, de armas na mão, e está segurando uma metralhadora.” E daí? ela sempre proclamou que militava na ALN, e isso não põe em dúvida a sua virgindade, dissemos. “De qualquer modo, para uma moça é meio escabroso”, respondeu ele; depois queixou-se: “Quando a interroguei na prisão em Argel, ela não quis falar comigo.” “Evidentemente: tem bons motivos para desconfiar dos franceses e da polícia.” “Mas eu! Será que pareço um policial?” Respondemos cortesmente: “Aos olhos de uma prisioneira muçulmana, nem mais nem menos que qualquer outro.” “Então é de desesperar: para que servimos?” O olhar do M. Patin procurou o de seu assistente: “Para que servimos nós, M. Damour?” “Quando o senhor a reviu, Djamila lhe propôs visitar os centros de triagem de El-Biar e de Hussein-Dey: e o senhor não compareceu”, disse Gisèle Halimi. “Como! Nem pensem nisso! Eu seria expulso!” A voz de Patin encheu-se de terror e indignação: “E poderiam até prender-me!” Pensou um pouco: “Vocês não percebem! Esses interrogatórios são fatigantes. E me custam caro. Não é, M. Damour? Não nos reembolsam de todas as nossas despesas: sai tudo do nosso bolso.” Ele tocara um ponto sensível: o M. Damour animou-se: “Sua Djamila custou-nos vinte e cinco mil francos”, disse-nos, com reprovação. “Enfim! chegamos ao fim de todos esses dramas!”, concluiu o M. Patin. Ele ainda teceu algumas considerações sobre a psicologia de Djamila: “Ela se toma por uma Joana d’Arc!” “Quando tínhamos vinte anos, em 1940, éramos muitas a nos considerarmos Joana d’Arc”, disse Anise Postel-Vinay. “Sim, senhora”, respondeu Patin, “mas a senhora era francesa!” À noite, quando contei esse diálogo a Sartre e Bost, eles ficaram, como eu, atônitos com tanta franqueza. Devemos ter deixado transparecer nossa repulsa, pois Patin disse a Vidal-Naquet: “A Comissão Audin me é muito mais simpática que a Comissão Boupacha, com a qual me entendi muito mal.” Pouco tempo depois, os juízes argelinos propuseram veladamente uma transação: que Djamila se deixasse examinar por um especialista que a declararia louca e irresponsável; seria libertada e ao mesmo tempo sua queixa perderia o crédito, concluindo-se pela improcedência. Ela recusou. No fim de julho transferiram-na para Fresnes, e um juiz de Caen foi encarregado do inquérito.
As conversações de Melun fracassaram; mas os jovens não admitiam a mesma inércia da qual, em 1956, a fraqueza dos adultos havia atirado os que os haviam precedido. A UNEF reconheceu a UGEMA: o ministro da Educação cortara-lhe as verbas. Uma manifestação não violenta ocorreu em Vincennes, onde vegetavam argelinos arbitrariamente internados: recusávamos seu princípio, mas o método era eficaz. O número de insubmissos aumentava. Encontramos certa tarde, na rua Jacob, Rose Masson, dilacerada entre a angústia e o orgulho; seu filho mais velho, Diego, fora preso em Annemasse, quando ajudava convocados a transpor a fronteira; no interrogatório ele reivindicou altivamente suas responsabilidades; nascido de mãe israelita, exilado durante a infância nos Estados Unidos, ele jurara nunca transigir com o racismo. Sua prima, Laurence Bataille, acusada de esconder armas e de transportar de carro um importante membro da FLN também fora presa. Em Esprit, Jean le Meur, preso, expôs as razões que um cristão tem para desobedecer. Um romance, Le Déserteur, assinado por Maurienne, explicava por que certos convocados preferiam o exílio a essa guerra. Foi sob a pressão desses jovens rebeldes que Blanchot, Nadeau e alguns outros tomaram a iniciativa de um manifesto em que intelectuais reconheceriam o direito à insubmissão; Sartre o assinou, assinou como toda a equipe da Temps Modernes. Os comunistas nos opunham um texto truncado de Lenin: combate-se a guerra participando dela; esse texto não se aplica às guerras coloniais em lugar algum — nem nos quartéis, nem na Argélia — e, além disso, eles não haviam criado qualquer agitação antimilitarista. Juntos, Servan-Schreiber e Thorez nos condenavam em nome da “ação das massas”: mas na época as massas estavam de férias. Evidentemente, apenas uma minoria restrita tomaria o caminho da ilegalidade, respaldando-a, e assim comprometendo a nós mesmos, esperávamos radicalizar uma esquerda deploravelmente “respeitosa”, segundo a expressão de Péju; e pensávamos que essa ação de vanguarda poderia ter várias repercussões.
Minha irmã expôs na galeria Syntheses seus últimos quadros, que achei muito bonitos. Encontrei em seu vernissage Marie Le Hardouin, transtornada pela execução de Chessman, sobre quem escrevia um livro. A guerra da Argélia mobilizava minhas emoções — que aliás já se tinham esgotado —, mas eu a compreendia. Em Marseille, onde passei alguns dias com Algren, nós nos perguntávamos sobre o futuro de seu país. Em Seul os estudantes haviam expulsado Sygman Rhee; no Japão, tinham-se manifestado violentamente contra Hagerthy. Che Guevara predissera aos EUA: “Vocês vão perder todo o planeta” — e a profecia se tornava verdade. Para mudar a política americana, Algren não contava nem com Nixon, nem com Kennedy: “Qualquer que seja o vencedor”, disse-me, “meu único consolo será o fato de o outro ter perdido.”
Pouco mais tarde, parti com ele por duas semanas: ele desejava ver Istambul e a Grécia. A viagem a jato, que comprimia em algumas horas grandes fragmentos do meu passado, maltratou-me até a angústia: pareceu-me que eu estava morta, e pensei sobrevoar minha vida do alto do céu. O lago de Genebra: eu o vira pela primeira vez em 1946, com Sartre. Era espantoso avistar ao mesmo tempo Milão e Turim, separadas por cento e sessenta quilômetros de autoestrada que eu percorrera com impaciência tantas vezes. E já descobria Gênova, a estrada que beira a costa e que nos levara — Sartre e eu — de Roma a Milão: almoçávamos em Grosseto, na Bucca San Lorenzo… De repente, acordei Algren, que dormitava ao meu lado; estávamos passando sobre Capri, invisível, e a luz era tão límpida que, a doze mil metros de altitude, distinguíamos com precisão os contornos de Ischia; reconheci Forio e o promontório rochoso onde um fiacre nos conduzira; Algren mostrava-me, escapando de uma greta, filetes de vapor que na verdade não eram outra coisa senão a fumaça do seu próprio cigarro, e ria da minha credulidade. Depois foi a vez de Amalfi, as Galli, essa costa onde se sobrepunham tantas lembranças, e o sul, de um mar a outro. A noite caía sobre Corfu. Dei um salto no passado, até a ponte de Cairo City, quando apareceram as costas da Grécia, suas ilhas, e o canal de Corinto. Enquanto seguíamos para Istambul através de um céu de púrpura e enxofre, eu sentia uma dor no coração ao lembrar o quanto eu já fora cheia de vida, e o mundo novo. Naquele momento, contudo, sentia-me feliz: mas do outro lado de uma linha que eu nunca mais voltaria a atravessar.
Istambul à noite nos pareceu deserta. Pela manhã regurgitava. Ônibus, carros, carrinhos de mão, carros puxados por cavalos, bicicletas, mensageiros, transeuntes; o trânsito era tão denso na ponte Eminomu, que mal se podia atravessá-la, correndo perigo de vida; ao longo do cais comprimiam-se flotilhas: vapores, barcos, barcaças, lanchões. As sirenes uivavam, as chaminés soluçavam: na calçada, táxis superlotados avançavam, derrapavam, paravam num gemido de descargas soltando estalidos; as latarias entrechocavam-se; gritos, assobios, uma enorme confusão ressoava em nossas cabeças, aturdidas pela violência do sol. Este batia forte, e no entanto nenhum reflexo manchava as águas enegrecidas do Corno de Ouro, atravancadas de velhas embarcações de madeira apodrecida, encerradas em hangares. No coração da velha Istambul escalamos ruas mortas, orladas de casas de madeira mais ou menos despencadas, e outras nas quais havia lojinhas e oficinas; engraxates acocorados diante de seus apetrechos olhavam-nos com ar hostil; olharam-me do mesmo jeito no miserável bistrô de mesas de madeira, onde tomamos café, detestariam eles os americanos ou os turistas? Sequer uma mulher na sala; quase nenhuma nas ruas; apenas rostos de homens, e nenhum deles sorria. O bazar coberto, mergulhado numa luz cinzenta, deu-me a impressão de uma imensa quinquilharia; nos poeirentos mercados ao ar livre, tudo era feio: os utensílios, os tecidos e as imagens populares. Uma coisa despertou nossa curiosidade: a abundância de balanças automáticas e o número de pessoas, muitas vezes miseráveis, que sacrificavam uma moeda para se pesar. Onde estávamos? Essas multidões, pululantes e inteiramente masculinas, indicavam o Oriente e o Islã: mas não encontrávamos ali nem as cores da África, nem o pitoresco chinês. Sentíamo-nos no limiar de campos desfavorecidos, e de uma insípida Idade Média. O interior da igreja de Santa Sofia e a Mesquita Azul corresponderam à minha expectativa; apreciei pequenas mesquitas, mais íntimas e vivas, com seus pátios e suas fontes, em torno das quais voejavam pombos; mas quase nada subsistia dos séculos submersos. Bizâncio, Constantinopla, Istambul; a cidade não cumpria as promessas desses nomes: salvo à hora em que suas cúpulas e seus finos minaretes pontudos se recortavam, no alto da colina, à luz do crepúsculo: então, seu sangrento e suntuoso passado transparecia através de sua beleza.
Gostaríamos de ter conhecido turcos. Algumas semanas antes, um golpe de estado militar expulsara Menderes; houvera na cidade motins dos quais os estudantes participaram: que pensariam eles agora, o que estariam fazendo? O turismo social não deixa de ter inconvenientes, mas nossa solidão os tinha mais. Aborrecidos por não termos acesso a outra coisa além de cenários, partimos ao cabo de três dias.
Atenas, por comparação, pareceu-nos feminina e quase voluptuosa; passamos uma semana em Creta: paisagens admiráveis, algumas ruínas emocionantes, sobretudo as de Phaestos. E depois voltamos a Paris, e chegou o momento de nos separarmos. Nuvem alguma, durante aqueles cinco meses, toldara nosso entendimento. Eu não me desesperava, como outrora, à ideia de que nossa história não tivesse futuro: também nós não o tínhamos; ela não me parecia barrada, mas antes acabada, salva da destruição como se já estivéssemos mortos. Os tempos antigos não me inspiravam nem mesmo aquela nostalgia onde ainda se demora uma esperança. Algren me contou que, ao fim de um passeio, seus passos o haviam levado maquinalmente para a rua Bûcherie: “Como se meu corpo não tivesse renunciado ao passado”, disse-me ele, com saudade na voz: “Era tão melhor assim, o passado?”, perguntei-lhe. “Aos quarenta anos eu não sabia que tinha quarenta anos: tudo começava!”, respondeu-me impulsivamente. Sim, eu me lembrava. Mas já fazia um bom tempo que eu soubera da notícia; tinha uma idade, uma idade avançada. Pela maneira como nos havíamos reencontrado, havíamos apagado dez anos, mas a serenidade das despedidas me fez voltar à minha verdadeira condição: eu estava velha.
***
Nossa visita a Havana nos dera novas razões para ir ao Brasil. O futuro da ilha jogava-se em grande parte na América Latina, onde se delineavam correntes castristas: Sartre propunha-se a falar de Cuba aos brasileiros. Tínhamos visto uma revolução triunfante. Para compreender o Terceiro Mundo, era-nos necessário conhecer um país subdesenvolvido, semicolonizado, onde as forças revolucionárias estavam ainda, talvez por longo tempo, acorrentadas. Os brasileiros que encontramos convenceram Sartre de que, combatendo no país deles a propaganda de Malraux, ele serviria eficazmente à Argélia e à esquerda francesa: sua insistência provocou nossa decisão.
Essa viagem só durou dois meses; se a relato em detalhes, irão reprovar-me provavelmente por quebrar a linha da minha narrativa. Mas o Brasil é um país tão atraente e tão pouco conhecido na França que eu lamentaria não fazer meus leitores compartilharem integralmente a experiência que tive: aqueles a quem essa reportagem entediar podem saltá-la.
Antes de voarmos para Recife, onde se realizava um congresso de críticos, fomos convidados para jantar em casa do M. Dias, um pintor que tivera a gentileza de se ocupar das nossas passagens e de nossos vistos. Quadros agradáveis — obras suas — decoravam um apartamento onde era servida uma refeição quente à moda do seu país, que julguei muito mais civilizada que a nossa: todos podiam mover-se e mudar de interlocutor. Havia belas mulheres bem arrumadas e intelectuais, dos quais muitos haviam estado na prisão no tempo de Vargas: entre outros, o pintor Di Cavalcanti, corpulento e alegre sob sua espessa cabeleira branca. Conversamos com Freyre que, em Casa-grande e senzala, descreveu os costumes no Nordeste brasileiro durante o período colonialista; ele me deu um livro ilustrado sobre Ouro Preto. Falou-se muito de Brasília; embora admirando as concepções de Lucio Costa e os edifícios de Niemeyer, a maioria lamentava que Kubitschek tivesse enterrado fortunas nessa cidade abstrata, onde ninguém desejaria viver: “Apesar disso”, disse Di Cavalcanti, “na capela do palácio presidencial há agora um pequeno buquê de flores feitas de conchas: enfim, um pouco de mau gosto! Enfim um sinal de vida! Já é um começo.”
E de novo, em meados de agosto, voei através das solidões do céu. Sob meus pés fazem-se e se desfazem calçadas, praias, oceanos, ilhas, montanhas e abismos que vejo com meus próprios olhos e que não existem. Nada muda: nem o clima, nem os odores, nem a multiforme melancolia das nuvens, e de repente, sem me ter movido, eis que me encontro alhures. Parto de novo, com o coração rompido por uma estranha fadiga, a rodar assim em torno da terra que também roda, estendendo suas luzes, apagando-se depressa demais, enquanto meu relógio perde a conta das horas. Vi a fita escura do Tejo, o aeroporto de Lisboa; através do alto-falante, uma voz chamou os passageiros para Elisabethville; olhei com curiosidade aqueles homens e mulheres que se dirigiam ao seu avião — para que destino? Pouco mais tarde desembarquei num país úmido e negro. Homens escuros, vestidos de branco, azafamavam-se sem ruído entre as mesas; Dacar, a África, o enorme continente onde o Congo sangrava; avistei soldados de shorts, com capacetes azuis: a ONU acabava de se decidir pela intervenção em Catanga.
Nasceu uma manhã, e com ela um mar verde, escolhos e uma costa orlada de espuma branca. Recife: rios, canais, pontes, ruas retilíneas, colinas, uma igreja portuguesa sobre um monte, palmeiras. Ainda as bacias, as pontes, a igreja; ainda, ainda; viramos, e um pequeno avião voa em torno de nós. “Não estão conseguindo fazer descer o trem de aterrissagem”, disse-me Sartre. Pensei: “Vão conseguir.” Nada de mal podia acontecer naquela hora, sob aquele céu, no limiar de um continente novo. Ao cabo de uma meia hora, apareceram as rodas e o avião pousou: ambulâncias e carros de bombeiros amontoavam-se no aeroporto. O aparato militar que nos escoltava devia transmitir ordens ao piloto, em caso de aterrissagem forçada.
Sartre não se sentia bem; sofria de herpes-zoster, devido ao excesso de trabalho e a um persistente descontentamento. Eu mesma vacilei ao receber no rosto o ar livre e o sol. Havia muitas mãos estendidas, flores, jornalistas, fotógrafos, mulheres de braços nus, homens vestidos de branco, o rosto de Jorge Amado. Polícia, alfândega; como em Havana, o cansaço me aturdia quando um carro nos conduziu ao centro da cidade: primeiro a um hotel, diante de um cais, depois a um restaurante fresco e alegre. Tomei minha primeira batida:190 uma mistura de aguardente de cana — cachaça — e limão. Entre mim e esses desconhecidos era um primeiro laço aquele gosto novo, para eles familiar; conheci também o sabor do maracujá — a fruta da paixão —, cujo suco, de uma rica coloração amarela, enchia as garrafas. Notei em todas as mesas garrafas cheias de farinha: era mandioca, com a qual se salpicam os pratos. Era difícil adivinhar quem nos agradaria, quem nos desagradaria, quem iríamos rever, onde e quando: o congresso atraíra gente de todos os estados do Brasil. Compreendemos com satisfação que Amado, que viera especialmente para nos receber, iria servir-nos de guia pelo menos durante um mês.
Passamos alguns instantes no congresso, e Amado nos levou com um grupo para descansarmos na fazenda de um amigo. Esta confirmava as descrições que eu lera no livro de Freyre: embaixo, as habitações dos trabalhadores, a moenda, onde se mói a cana, uma capela ao longe; na colina, uma casa. O proprietário pintava, e seus quadros enchiam de luz a residência; o jardim levemente inclinado, com suas árvores, suas sombras, suas flores, a ondulante paisagem de cana-de-açúcar, palmeiras e bananeiras, pareceram-me um paraíso tão voluptuoso que por um instante acaricei o mais aberrante dos sonhos: enfiar-me na pele de um proprietário rural. O amigo de Amado e sua família estavam ausentes; tive uma primeira amostra da hospitalidade brasileira: todo mundo achava normal instalar-se na varanda e pedir que servissem bebidas. Amado encheu meu copo de suco de caju amarelo-pálido: ele pensava, como eu, que se conhece um país em grande parte pela boca. A seu pedido, amigos nos convidaram para comer o prato mais típico do Nordeste, a feijoada: para o caboclo, um caldo de feijão preto, mas para o gastrônomo burguês uma espécie de rico cassoulet.
Eu lera no livro de Freyre que as moças do Nordeste casavam-se outrora aos treze anos, em todo o esplendor de sua beleza que, aos quinze anos, começava a empanar-se. Um professor me apresentou sua filha, muito bonita, muito pintada, olhos de brasa; uma rosa vermelha num busto desabrochado: quatorze anos. Nunca encontrei adolescentes: eram crianças, ou mulheres feitas. Estas, no entanto, fanavam-se com menos rapidez do que suas antepassadas; aos vinte e seis e vinte e quatro anos, Lucia e Cristina T. irradiavam juventude. A despeito dos costumes patriarcais do Nordeste, elas tinham liberdades; Lucia lecionava, e Cristina, desde a morte do pai, dirigia nos arredores de Recife um hotel de luxo, pertencente à família; ambas faziam um pouco de jornalismo, e viajavam. Foram elas que nos levaram a passear de carro através de Recife.
Vimos Olinda, a primeira cidade do país a ser construída — trezentos anos antes de Brasília — segundo o traçado de um arquiteto; Mauricio de Nassau que, entre 1630 e 1654, governou a região, na época sob o domínio da Holanda, mandou construí-la por Pieter Post, e depois decorá-la por uma equipe de pintores e escultores. A cidade fica localizada numa elevação, a seis quilômetros de Recife, e conservou intactas muitas de suas velhas casas. Quando os holandeses foram expulsos, artistas portugueses ali construíram igrejas sobriamente barrocas: através do odor indolente dos trópicos, reencontrei as escadas, os pórticos, as fachadas que me haviam encantado na seca terra portuguesa. Descemos para uma praia sem começo nem fim: como eu amei a indolência dos altos coqueiros face ao tumulto imperioso do oceano! Sobre a água luziam, muito brancas, as velas triangulares das jangadas: balsas com mastros, feitas de cinco ou seis troncos de árvores unidos por cavilhas de madeira; quando o tempo está calmo elas enfrentam o mar, mas não resistem às tempestades: a cada ano, muitos pescadores não voltam. Experimentamos água de coco, sob um quiosque; aspira-se por um canudo que atravessa a casca: era morna e insípida.
Recife também tem belas igrejas barrocas; janelas de sacadas trabalhadas lhe dão uma aparência frívola e encantadora. No mercado, grupos cercavam os contadores de histórias; alguns improvisavam, cantando; outros liam em brochuras canhestramente ilustradas; paravam antes do fim; para conhecê-lo, era preciso comprar o livro. No centro da cidade, havia praças antigas plantadas de árvores frondosas, rios, lojas, vendedores ambulantes; mas, assim que nos afastávamos deles, nas secas ruas retilíneas de muros descascados, de terra batida, só encontrávamos decadência e desolação. “Em Recife, há um mendigo sob cada palmeira”, dissera-me Bost. Não; naquele ano chovera, e os camponeses dos arredores tinham raízes para roer; mas no período de seca eles invadem a cidade. São vinte milhões que agonizam cronicamente num árido polígono do tamanho da França. Cristina nos mostrou, na orla da cidade, uma zona onde se amontoava em barracos de madeira uma população desprovida de tudo. Ela nos falou das ligas camponesas que, sob o impulso de Julião, deputado socialista e advogado em Recife, tentava reunir os camponeses e promover uma reforma agrária: vários de seus amigos faziam parte dela. “Quando comecei a me ocupar do hotel”, disse-nos Cristina, “eu era ainda muito jovem, e quis mostrar-me madura: faria os empregados trabalharem o máximo possível, pagando-lhes o mínimo possível. Depois, vi como eles viviam…” Católica devota, as desigualdades sociais a revoltavam. Nas manhãs de domingo, ela velejava, no clube mais seleto da cidade; e disputava corridas com paixão; mas discutia com outros sócios e em geral com todas as pessoas do seu meio. No bairro residencial de Recife, dirigia seu carro muito depressa, e assustava os pedestres de propósito: “É preciso lembrar-lhes que são mortais”, dizia rindo.
Em consequência dessas combinações em que os brasileiros são mestres, acabamos tendo quatro passagens de avião para nós dois; Amado fez com que Lucia e Cristina as aproveitassem. Ele passara a juventude na Bahia, onde tivemos outro guia além dele: um jovem professor de etnografia, Vivaldo, um mestiço com físico de jogador de futebol. Zélia Amado veio nos encontrar; chegou com uma noite de atraso; um avião capotara no aeroporto, e o dela não pudera aterrissar. Formávamos um grupo de sete pessoas que falavam francês e se sentiam bem juntas. Para nos locomover, dispúnhamos de uma espécie de micro-ônibus e de um motorista. Sartre estava melhor; as obrigações se limitaram a uma conferência e dois almoços oficiais. Passamos uma semana muito alegre.
Salvador compõe-se de duas cidades, ligadas entre si por elevadores e funiculares: uma que se alonga até o mar e outra debruçada no alto de uma rocha. Era lá que se encontrava o hotel, muito moderno, grande e de linhas elegantes. Do meu quarto, no bar imenso de paredes de vidro, cheio de plantas verdes e de pássaros, onde tomávamos batidas, via-se, sob um céu sempre agitado, “a baía de Todos os Santos” com seus recifes, suas praias, seus coqueiros serenos, as barcas, suas velas em forma de trapézio; breves ondas agitavam o oceano. Amado nos mostrou as ruas comerciais da Cidade Alta. Na porta da Universidade, lia-se: “Filosofia em greve”: os estudantes e o reitor não estavam se entendendo. Igrejas por toda parte. Uma das mais conhecidas é a obra de artistas espanhóis; nem uma polegada de pedra lisa: conchas, rodilhas, volutas, rendas. As fachadas portuguesas são sóbrias; no interior, entretanto, a riqueza leva a melhor sobre o bom gosto: revestimento de ouro cinzelado e rebuscado, relevos e pingentes, pássaros, palmas e demônios escondendo-se, como numa charada, entre os relevos das paredes e dos tetos; as sacristias exibem cômodas de jacarandá ou cabiúna, faianças de Delft, azulejos portugueses, porcelanas, ourivesaria, santos de cera em tamanho natural, dignos do museu Grévin: macilentos, marcados de cicatrizes, crispados de dor ou de êxtase sob suas perucas de cabelos naturais; e Cristos chicoteados, feridos, cravados de espinhos, cujas chagas sangram pelas longas fitas vermelhas. Faziam-me pensar nos fetiches de Bobo-Diulasso.
As velhas ruas onde Amado passou sua infância, estreitas, retilíneas, precipitam-se ab-ruptamente para o mar; ao lado encontra-se o bairro das “mulheres da vida”. Entramos em bazares cheios de mercadorias confusas: as paredes e os tetos semeados de borboletas brilhantes, recortadas de capas de revistas. O carro desceu as rampas escarpadas e nos deixou no porto, perto do mercado coberto; a não ser pela higiene, lembra o mercado de Pequim; nos estreitos corredores vendem-se comidas grosseiras, salgados, couros, tecidos, roupas de baixo, latarias; mas também uma extraordinária profusão de objetos de arte popular, sobrevivência de uma cultura antiga e matizada de várias culturas. Amado comprou para nós e para ele colares, pulseiras de grãos coloridos, cerâmicas, figurinhas de terracota, bonecas de rostos negros, vestidas com os tradicionais adornos baianos, Exus de ferro fundido — espíritos mais maliciosos do que malignos que, de forquilha na mão, evocam nossos diabos —, instrumentos musicais, uma quantidade de ninharias; explicou-nos o sentido dos amuletos, imagens, ervas, tambores, joias, ligadas às cerimônias religiosas. Os cestos transbordavam, ao ar livre, até as bacias onde se balançavam uma flotilha de saveiros: seus cascos se tocavam, os mastros uniam-se como as árvores de uma densa floresta; os vendedores ambulantes vendiam roletes de cana-de-açúcar descascada, que são mastigados e cuspidos depois de se chupar o suco, bolos de coco, bolinhos de feijão, jarras, ânforas, mais cerâmica — belas ou horríveis —, bananas e outras frutas; os eflúvios do óleo de coco misturavam-se a um odor de salmoura; nos barcos ou em terra firme, ia e vinha uma multidão de homens e mulheres cuja pele, do chocolate ao branco, passava por todos os matizes do moreno. Passamos por uma barbearia onde se faziam apostas para o jogo do bicho, espécie de loteria que, como o futebol, constitui o divertimento favorito no Brasil. No primeiro andar, uma negra mantém um botequim de aspecto banal, mas célebre; na parede, uma imagem de Iemanjá, a deusa do mar; num pote, “espadas de Ogum”, folhas de cacto em forma de lâminas, muito difundidas na França, e rigorosamente necessárias à proteção das casas brasileiras. Sartre não tocou nos guisados cheios de gordura — cor de vermelhão, coral, pistache — que eu provava com prudência; a frigideira de siri me conquistou.
Alguns dias mais tarde, vimos, à saída da cidade, um outro mercado. “Os brasileiros não vão levá-los lá”, dissera-me uma francesa. Mas Amado nos levava a toda parte. Chovera, e patinhávamos na lama; salvo cerâmicas muito bonitas, os cestos refletiam a miséria dos compradores: na Bahia também a fome rondava, sobretudo nos lugares que Amado chamava de “bairros de invasão”, porque as pessoas lá se haviam instalado como posseiras. Uma dessas construções ficava sobre uma laguna: tinham certeza de que ninguém iria reclamar aquele terreno; passarelas oscilantes ligavam à terra casebres construídos sobre estacas, e isso me lembrava o “bairro sobre a água” de Canton, mas aqui os habitantes viviam no abandono, sem nenhuma higiene. Outros pobres arrabaldes espalhavam-se sobre colinas verdes, entre bananeiras de folhas recortadas; fios telegráficos os atravessavam, cemitérios das pipas com as quais se divertiam as crianças; a terra marrom e gorda exalava um odor de campo; eram quase aldeias, conservando as tradições e as ligações orgânicas das comunidades rurais.
O fato é que a população da Bahia, 70% negra — foi a região da cana-de-açúcar e da escravidão —, participa de uma intensa vida coletiva. Os ritos africanos nagôs são ali perpetuados, dissimulados por prudência por trás da liturgia católica, até fundir-se com ela, à maneira do vodu haitiano, numa religião sincrética, o candomblé. É um conjunto complexo de crenças e de práticas, que comporta numerosas variantes, uma vez que os candomblés não estão hierarquizados em Igreja. O livro de Roger Bastide, Les Religions africaines au Brésil, acabava de ser publicado, e eu o li. Existe um Deus supremo, pai do Céu e da Terra, cercado de espíritos — os orixás — que correspondem a alguns dos nossos santos; Oxalá está próximo de Jesus, Iemanjá da Virgem Maria, Ogum de são Jorge, Xangô de são Jerônimo, Omolu de são Lázaro. Exu, mais semelhante ao antigo Hermes do que ao nosso demônio, serve de intermediário travesso entre os homens e os “encantados”. Estes residem na África, mas seu poder se estende até muito longe. Todo indivíduo pertence a um orixá (os sacerdotes lhe revelam seu nome) que o protege se ele lhe faz as oferendas e os sacrifícios exigidos. Certos privilegiados que se submeteram aos ritos bastante longos e complicados da iniciação são chamados a servir de “cavalo” ao seu deus: fazem com que este baixe em seus corpos através de cerimônias que são — como para os católicos a descida de Deus na hóstia — o momento culminante do candomblé.
Em Recife haviam organizado para nós uma noite em que negros fantasiados de índios dançaram bailados muito sofisticados; mas não conseguíramos ver Xangô. Na Bahia, as festas religiosas são quase cotidianas, e toda a intelectualidade se interessa por ela. Amado, iniciado desde a juventude, é um dos mais altos dignitários do candomblé; Vivaldo pertence a uma categoria mais modesta, mas conhece todas as “mães de santo” e os babalaôs (adivinhos, meio sacerdotes, meio feiticeiros) da cidade. Ele nos introduziu em cerimônias não espetaculosas, mas autênticas. Por duas vezes o carro nos levou, à noite, através daquelas montanhas-russas que são os subúrbios da Bahia, até casas longínquas, onde rufavam tambores. Todas as vezes a mãe de santo nos fez entrar primeiro na cozinha, onde uma mulher preparava comidas profanas e sagradas, e depois no quarto onde se erguia o altar: em meio a uma misteriosa desordem fetichista — fitas com cores dos deuses, oferendas, pedras, jarras —, os orixás são representados por estátuas grosseiras: são Jorge e seu dragão, são Jerônimo, são Cosme e são Damião (os gêmeos de múltiplos e importantes poderes), são Lázaro etc. Num pátio cercado de paliçadas comprimiam-se negros — sobretudo mulheres —, membros da confraria e outros que vinham como convidados; alguns brancos: um pintor, que muitas vezes se inspira naquelas danças, um jornalista do Rio — Rubem Braga —, o francês Pierre Verger, grande iniciado segundo nos disseram, e o homem que melhor conhece os arcanos do candomblé. Alguns homens batiam nos tambores sagrados, e outros tocavam instrumentos desconhecidos. A mãe de santo misturou-se à dança das filhas de santo: iniciadas que já haviam sido “cavalgadas” por seus guias durante cerimônias análogas; umas eram muito moças, outras muito velhas; usavam seus mais belos adornos, longas saias de algodão, corpetes bordados, turbantes — e também joias e amuletos; rodopiavam em passo ritmado, oscilante, por vezes brusco, mas tranquilo; a maioria ria e gracejava. De repente, um rosto se transformava; o olhar se fechava; após um tempo mais ou menos longo de concentração ansiosa, ou por vezes instantaneamente, tremores agitavam o corpo da mulher e ela cambaleava; como para ampará-la, os iniciados — Amado, Vivaldo, entre outros — estendiam-lhe as mãos. Uma das servas do santo — uma iniciada, mas a quem está recusada a graça da visita divina — acalmava a possessa com uma pressão, um abraço, desatava-lhe o turbante, tirava-lhe os sapatos (para devolvê-la à sua condição de africana) e arrastava-a para o interior da casa. Em todas as sessões, todas as dançarinas caíam em transe, assim como dois ou três convidados que eram levados com os outros. As filhas de santo voltavam, vestidas com suntuosos trajes litúrgicos que correspondiam a seus santos, trazendo nas mãos emblemas, entre os quais uma espécie de espanador, cujos penachos faziam rodar; a solenidade de seus gestos e a gravidade de seus rostos indicavam que um deus as habitava. Retomavam sua dança, cada qual intensamente entregue a seu êxtase, mas integrada aos movimentos do grupo. Sartre me falara do frenesi dos vodus; aqui, a disciplina coletiva controlava as manifestações individuais; estas, em algumas dançarinas, atingiam uma grande violência, mas sem nunca isolá-las de suas companheiras. Durante uma das festas, uma jovem negra estava terminando o ciclo de sua iniciação. Com a cabeça raspada, vestida de branco, tremia ligeiramente, com o olhar fixo no invisível, ao mesmo tempo presente e distante, como meu pai em sua agonia. No fim, entrou em transe, partiu e voltou transfigurada por uma alegria misteriosa.
Fiz a pergunta clássica: “Como se explicam esses transes?” Só a mãe de santo o tem o direito de simulá-los, para facilitar a descida dos orixás: e me pareceu que uma das duas usou realmente dessa permissão. Todos os observadores estão de acordo em afirmar que as outras não trapaceiam, e eu não tinha dúvidas disso: tanto para elas quanto para o espectador, sua metamorfose era uma surpresa; elas também não pareciam neuróticas nem drogadas: as velhas, sobretudo, irônicas e alegres, chegavam ao candomblé com todo o seu bom senso cotidiano. E então? Vivaldo, muito claramente, e Pierre Verger, com menos franqueza, falaram de intervenção do sobrenatural. Amado e todos os outros confessavam-se ignorantes. O certo é que esses fatos nada têm de patológico, mas são de ordem cultural; encontramos experiências análogas em todos os lugares onde indivíduos estão divididos entre duas civilizações. Obrigados a se dobrarem ao mundo ocidental, os negros da Bahia, outrora escravos, hoje explorados, sofrem uma opressão que chega a lhes tirar a posse de si mesmos; para se defenderem, não lhes basta conservar seus costumes, suas tradições, suas crenças: eles cultivam as técnicas que os ajudam a se arrancar, através do êxtase, da personagem mentirosa na qual foram aprisionados; no instante em que parecem perder-se é que se reencontram: eles são possuídos, sim, mas por sua própria verdade. O candomblé, se não transforma os seres humanos em deuses, ao menos, através da cumplicidade de espíritos imaginários, restitui a humanidade a homens rebaixados à categoria de rebanho. O catolicismo lança os pobres de joelhos diante de Deus e de seus sacerdotes. Pelo candomblé, ao contrário, eles experimentam essa soberania que todo homem deveria poder reivindicar. Nem todos atingem o êxtase, mesmo entre aqueles que a iniciação predispõe a isso: mas já basta que alguns o experimentem, para salvá-los todos da abjeção. O momento supremo de sua vida individual — quando, de vendedora de bolos ou de lavadora de pratos, ela se transforma em Ogum ou em Iemanjá — é também aquele em que a filha-de-santo integra-se mais estreitamente em sua comunidade. Poucas sociedades oferecem a seus membros oportunidades semelhante: realizar sua ligação com todos, não na banalidade cotidiana, mas através daquilo que se experimenta de mais íntimo e mais precioso. O pitoresco do candomblé é comedido e bastante monótono; se os intelectuais progressistas lhe dão tanta atenção, é porque — esperando as mudanças às quais aspiram — ele mantém nos deserdados o sentimento de sua dignidade.
Após ter descido e subido estradas ab-ruptas — felizmente, Zélia possuía um poderoso amuleto contra acidente —, paramos, certa manhã, à porta, guardada por um Exu, do mais antigo, mais amplo e mais célebre candomblé da Bahia. Esse santuário, sobre o qual reina a mais venerada das mães de santo, é, na Bahia, o que Monserrat é na Espanha: só que esta religião, aqui, serve aos pobres e não aos ricos; o chão de terra batida substitui o mármore, a terracota a ourivesaria, e alguns tambores fazem as vezes de grandes órgãos. Situado numa colina, o recinto encerra casinhas onde os neófitos vivem durante o período de iniciação, e para onde voltam, em certas circunstâncias, as filhas e as servas dos santos; há uma grande sala de danças, construída — como nossas igrejas — segundo as regras de uma simbologia complicada; na construção principal, aloja-se a mãe de santo: num altar estão reunidas — em imagens de gesso de mau gosto — as divindades das cidades; as divindades dos campos têm suas capelas do lado de fora: estão dispostas de maneira a lembrar a localização dos templos no continente original, pois cada candomblé é um microcosmo da África. Depois de dar uma olhada nesses oratórios — dos quais alguns se perdem na paisagem, a uma distância bastante grande —, retornamos à casa da mãe de santo: diante de sua porta, ciscavam sem alegria duas galinhas destinadas a um sacrifício. Os Amado pertencem ao seu candomblé; chamando-a à parte, acertaram com ela a questão de suas obrigações, que nunca deixaram de cumprir. Avisada de nossa visita, ela envergara seu mais belo traje: saias e anáguas, xales, colares, joias. Era viva, tagarela e maliciosa; queixou-se de Clouzot, que tentara violar-lhe os segredos, fez um elogio inflamado a Pierre Verger, que lhe trouxera da África diversos objetos: suas relações com os orixás fortificaram-se com isso. Ela própria estivera na África, e penso ter compreendido que, tendo que escolher entre os deuses de suas duas linhas, ela optara pelo culto nagô. Falava um pouco de nagô: a posse da língua africana é necessária para a relação com os santos. Enquanto na cozinha uma jovem nos servia alguns alimentos, a mãe de santo consultou seus búzios para saber de que espírito dependíamos: Sartre era Oxalá, e eu Oxum. Avistáramos na estrada, de quando em quando, galinhas degoladas perto de árvores; contamos-lhe isso: tratava-se certamente de malefícios que ela censurou. “Trabalho para o bem, e nunca para o mal”, declarou. São os feiticeiros que, com a ajuda do “cão” — o diabo —, tornam as pessoas doentes, arruinam-nas, matam-nas. Mães de santo, pais de santo e babalaôs intercedem pela felicidade dos homens. Conversamos durante muito tempo. Em detalhe, a junção do candomblé com o catolicismo muitas vezes tem resultados extravagantes; mas no conjunto o fetichismo rústico integrado pelo cristianismo combina muito bem com as sobrevivências do fetichismo africano; e os baianos sentem-se tão à vontade na igreja de São Francisco quanto em seus terreiros.
É sobretudo na igreja do Senhor do Bonfim que se desenrolam cerimônias pagano-cristãs, em que o sangue de galinha convive com o incenso; Fizemos um belo e longo passeio para vê-la, seguindo a costa de cortes complicados, avistando na passagem o velho forte de Montserrat, e a capela cujo adro avança para o mar. A igreja ergue-se no alto de uma grande praça: diante do pórtico vendem-se rosários e colares rituais, crucifixos e amuletos, imagens do Sagrado Coração e de Iemanjá, avançando sobre as ondas, com os longos cabelos soltos. A sacristia contém uma coleção de impressionantes ex-votos: gessos e muletas, fotografias, pinturas, modelos de órgãos que o Senhor curou.
Nas ruas da Bahia, à noite, pratica-se ainda, entre os rapazes de má conduta, a antiga savate francesa;191 quando prendem navalhas no tornozelo, a prática torna-se mortal. Inspirou uma dança à qual assisti, numa espécie de taberna, no meio de um “bairro de invasão”, e num outro dia no centro da Bahia, numa sala decorada com guirlandas, bandeiras e serpentinas multicores. Cada dançarino faz seu parceiro voar e o joga por terra, ameaçando-lhe o rosto com o pé, mas evitando atingi-lo. Há uma grande variedade de fugas e de ataques. Músicos acompanham esse combate sem armas. Campeão e professor, um velho negro magro, muito baixo, de ar matreiro, fez uma exibição impressionante.
O pai de Amado fora plantador de cacau: aos dezenove anos, em sua primeira narrativa, Cacau, Jorge descreveu a condição de seus trabalhadores agrícolas. Mais tarde, em Terras do sem-fim, pintou a coragem e os crimes dos primeiros conquistadores da floresta, os “coronéis”, que exerciam o direito de vida e morte sobre os rebanhos de escravos, e acertavam suas querelas a tiros. Em São Jorge dos Ilhéus, evoca a geração que lhes sucedeu: especuladores e exploradores que respeitavam as aparências de legalidade. Em seu livro Gabriela cravo e canela, que naquele ano fazia um enorme sucesso, Amado descrevia ainda Ilhéus, o porto do cacau. Desejou levar-nos para conhecê-lo.
Sobrevoamos uma movediça paisagem de colinas e florestas cheias de água. À noite, chovia sobre Itabuna, que não nos pareceu menos insípida ao sol da manhã. Para conhecer um país, Amado pensava que é preciso primeiro saber o que se come lá; levou-nos ao mercado; feijão mulatinho, mandioca, arroz de má qualidade, abóboras, batatas-doces, tijolos de açúcar escuro192 parecidos com sabão preto, carne de boi seca ao sol: nada fresco; no lombo de burricos, ânforas revestidas de palha; no chão, cordames, cantis de pele de cabra; ao ar livre respirava-se um odor de velho celeiro. As pessoas — mestiços de índios e portugueses, com muito pouco ou nenhum sangue negro — tinham rostos cansados. O solo é rico, mas monopolizado por alguns privilegiados; o fumo e o cacau não deixam espaço para a cultura de alimentos. Amado e algumas pessoas importantes nos acompanharam a uma fazenda — modelo, segundo nos disseram. Seguimos um rio caudaloso, através de um lindo campo. A casa do proprietário erguia-se sobre uma elevação, no meio de um jardim. Como a grande maioria dos proprietários rurais, ele gostava mais de morar no Rio do que em sua propriedade. Foi o administrador que nos recebeu. Com um sorriso nos lábios, conduziu-nos ao lugar — mais parecido com um estábulo do que com uma aldeia — onde se alojavam os trabalhadores. Nem água, nem luz, nem aquecimento, nem móveis: muros cercando um quadrado de terra batida; alguns caixotes. Os quartos alinhavam-se em torno de um pátio onde se arrastavam crianças nuas, de ventre inchado, e mulheres esfarrapadas; os homens de pele e cabelos escuros olhavam para nós, com os facões nas mãos e o ódio nos olhos. Em Cuba eles tinham essa pele, esses cabelos, esses facões, e seus olhos fixos em Castro reluziam de amor. Num corredor, presa por percevejos, uma escarnecedora imagem publicitária representava uma elegante viajante descendo de um carro-leito: não vi qualquer outro ornamento. Nos telhados, as castanhas de cacau secavam ao sol, produzindo um cheiro fermentado e adocicado, se misturava a outros odores inomináveis. Passando por um atalho lamacento chegamos à mata onde crescem os frutos de ouro: os arbustos que os carregam precisam da sombra de altas copas, e de terra úmida e macia, que enlame nossos sapatos. Amado colheu um fruto e quebrou a casca: branca, um pouco viscosa, a amêndoa lembrava muito longe o gosto do chocolate. Ao voltarem perguntei-lhe por que nos haviam falado de “fazenda modelo”: “Suponho que um médico passa por aqui de vez em quando; que o poço de água fica a média de um quilômetro; que a chuva não atravessa os telhados.” De qualquer modo, acrescentou ele, “comparados aos camponeses do sertão, estes homens são privilegiados: eles comem”.
Ao longo do rio, entre florestas, através de um campo onde parecia que poderíamos ter sido felizes, chegamos a Ilhéus. Fardos de cacau amontoavam-se nos entrepostos; homens, na maioria negros, transportavam-nos para os barcos atracados na enseada tranquila, separada do oceano por uma entrada, e cujas águas tinham a mesma tonalidade verde-tenro das palmeiras, suavizadas pela noite. Organizados, sindicalizados, os estivadores trabalham duro, mas ganham bem; via-se por seus músculos, por seu ar de saúde, pela boca que sabia rir e cantar que comiam bem. Ao largo de Ilhéus, o oceano é tão revolto, que as grandes embarcações não podem aproximar-se; avistamos duas delas ao longe, esperando sua carga. Em Gabriela, Amado reivindicou para Ilhéus um porto moderno; no Brasil, é tal o seu prestígio que as obras começaram: fustigados pelo vento e pelas brumas, fomos até a extremidade do paredão que estavam construindo.
Um outro recurso da região é o gado. Partimos certa manhã para Feira de Santana, a uma centena de quilômetros da Bahia: era dia de feira. Uma densa multidão acotovelava-se ao longo de quilômetros, músicos fantasiados de cangaceiros faziam todo o barulho que podiam, com seus violões e suas gargantas; vendiam-se bolos, doces de frutas, cocadas, guloseimas; mas essa ilusão de alegria dissipava-se rapidamente; o mercado era quase tão miserável quanto Itabuna; não havia arte popular, a não ser medíocres figurinhas de barro. Bahia estava muito longe; refluía para ali a desolação dos campos, onde viver é extenuar-se sobrevivendo; não havia lugar para o supérfluo. Na orla da cidade, imensos rebanhos de bois estavam reunidos em currais, onde os vaqueiros galopavam levantando poeira. Para se defender dos cactos e dos espinhos do mato, cobrem-se de couro, desde o chapéu até a ponta das botas. Seus rebanhos não lhes pertencem; têm uma pequena participação na criação dos bois, quase não rende nada, por causa da seca e das epidemias. No chão, espalhavam-se chapéus, sapatos, calças, casacos, luvas, cintos, aventais de couro, de uma bela cor rosada, mas de cheiro repugnante.
Faltava — pois Amado é sistemático — informar-nos sobre o fumo. “Cachoeira fica a uma hora daqui”, disse-nos o professor em cuja casa almoçamos. Foram necessárias três horas para chegar ao fim da estrada cheia de barrancos, e as sacudidelas despertavam dolorosamente o herpes-zoster de Sartre; avistamos dois ou três casebres isolados junto aos quais cresciam pés de fumo. A cidade estendia-se, tranquila, dos dois lados de um rio; perambulamos por ali, vendo velhas casas e velhas igrejas. Depois entramos num galpão mal iluminado, onde mulheres extenuadas amassavam com os pés nus folhas de fumo; ao odor acre das plantas mortas juntava-se o cheiro das privadas, onde mantos de imundície decompunham-se ao sol, e eu tinha a impressão de um inferno onde as mulheres eram condenadas a pisotear seus excrementos. À saída, elas se precipitaram para mergulhar os pés num filete de água lamacenta: não havia lavatórios nem torneiras, e no entanto a alguns passos dali corria um rio. Muitas operárias usavam colares sagrados. “Ah!”, disse Vivaldo a uma delas. “Você é filha de Oxum?” Interrogou-a sobre os candomblés de Cachoeira. Ele nos disse depois que ela, a princípio hesitante, iluminou-se quando compreendeu que ele próprio era um iniciado. Compreendi plenamente o milagre operado pelos candomblés quando vi a abjeção em que essas mulheres eram mantidas.
Uma última excursão nos levou, certa manhã, ao fundo da baía, a cidade do petróleo. Um dos orgulhos do Brasil é que o petróleo está hoje nacionalizado. Pressionado por uma violenta corrente antiamericana, Vargas criou em 1953 o monopólio estatal da Petrobras: nenhum capital estrangeiro poderia, daí em diante, ser investido na exploração do petróleo, o que significou um golpe para as companhias petrolíferas americanas. Um ano mais tarde, o clã “americano” levou Vargas ao suicídio, mas o monopólio permaneceu. A Petrobras contrata por vezes técnicos estrangeiros, mas não há uma só jazida que não lhe pertença. Uma refinaria gigante estende-se à beira-mar: nós a contemplamos do alto da elevação onde está construída a cidade operária, muito confortável. Comparado aos camponeses, o proletariado constitui no Brasil uma aristocracia, e os operários da Petrobras situam-se no seu topo. Vimos também na floresta um britador cujo trépano perfurava a terra até quatro quilômetros de profundidade.
Essas visitas nos faziam conhecer fisicamente a terra brasileira, os recortes de suas costas, a cor de suas florestas. Ao mesmo tempo, nossos amigos nos esclareceram sobre sua situação política, que no início tivemos dificuldade de entender.
Estava-se em pleno período eleitoral. O Brasil se preparava para escolher seu presidente. Além disso, o Rio, destituído de sua categoria de capital em benefício de Brasília, constituída doravante o estado da Guanabara, cujo governador e cujos representantes era preciso agora escolher. Três homens disputavam a presidência. Ademar — a quem se atribuía o lema “Roubo, mas faço” — não tinha a menor chance; assim, a batalha se travava entre Jânio e o marechal Lott; Jânio era o candidato da direita; uma vez no poder, ele favoreceria os interesses do grande capital; no entanto, dirigira a Cuba e aos argelinos declarações de amizade. Cristina estava decidida a votar nele; usava sapatos decorados com seu emblema — uma vassourinha: ele prometia pôr fim à corrupção. “Ele vai instalar uma outra equipe de aproveitadores”, dizia Lucia. “Ele apoia Cuba e a Argélia; fará alguma coisa pelos camponeses”, dizia Cristina. “É um histérico; promete, mas não vai cumprir”, respondia a irmã. Ela votaria em Lott, como Amado e toda a esquerda. Nacionalista e antiamericano, Lott garantia que iria lutar pela independência econômica do Brasil. Era apoiado por Kubitschek — a quem a Constituição impedia de se candidatar à reeleição, mas cujo prestígio era grande — e pelos comunistas; infelizmente, Lott era um militar muito carola e, em política externa, reacionário: tomara partido contra Cuba. Seus próprios partidários espalhavam sobre sua burrice anedotas tão inquietantes quanto cômicas. Impedido por uma doença de participar de um exercício de manobra, ele resolveu reproduzi-la em sua casa: partiu, com o ordenança, para uma marcha de quarenta quilômetros em torno do jardim. Ao cabo de vinte quilômetros, pararam. O soldado sentiu sede, e percebeu que esquecera o cantil; quis ir buscá-lo, e Lott o deteve: “Está a vinte quilômetros daqui”, disse. Durante seis semanas, bandeirolas, cartazes, discos, carros com alto-falantes louvaram ruidosamente os méritos dos dois candidatos; soltaram-se fogos em sua honra.
Acompanhávamos essa companhia nos jornais que, por analogia com o espanhol, compreendíamos mais ou menos. Li a maioria dos ensaios sobre o Brasil, escritos em francês, ou traduzidos; através das traduções francesas, pude ter uma ideia da sua literatura.
Despedimo-nos das irmãs T. e de Vivaldo: ele esperava febrilmente a chegada de um professor africano que ia ensinar-lhe o nagô. Quando deixamos a Bahia, risonha e molhada, com seu lodo amarelo, suas multidões negras, suas igrejas onde os Cristos são fetiches, os altares onde santos de gesso representam deuses africanos, seus mercados, seu folclore, seus feitiços rústicos, sabíamos que íamos mudar de universo. Três horas de avião. O solo eriçou-se de montanhas denteadas, de “dedos de Deus”, de picos sem vegetação, de “pães de açúcar”; descobri uma baía semeada de inúmeras ilhotas e tão vasta que meu olhar não conseguia abarcá-la por completo. Rio. Um caminho populoso e feio, avenidas superpovoadas, onde flutuavam bandeirolas eleitorais, e um túnel levaram-nos ao nosso hotel, em Copacabana.
A beleza de Copacabana é tão simples, que nos cartões-postais não a percebemos: foi preciso algum tempo para que ela penetrasse em mim. Abria minha janela no sexto andar; entrava no meu quarto um vapor quente, com um fresco odor de iodo e sal, e o marulho das grandes ondas. A linha dos altos edifícios abraça, em seis quilômetros de extensão, a curva doce da vasta praia onde morre o oceano; no meio, uma avenida rigorosamente lisa: nada atrapalha o encontro das fachadas verticais com a areia plana; o despojamento da arquitetura harmoniza-se com a nudez do solo e da água. Uma única mancha de cor, na brancura da praia: pipas de aluguel, vermelhas e amarelas, com manchas pretas. Era inverno, e só se percebiam raras silhuetas, paradas ou em movimento, entre a calçada e o mar. De manhã cedo, passam as empregadas do bairro; depois, por volta das oito horas, os empregados, as pessoas que trabalham durante o dia; e finalmente os ociosos e as crianças. Poucos tomam banho: as ondas são fortes demais; há enseadas e praias mais protegidas em outros lugares; em Copacabana as pessoas molham os pés, estendem-se ao sol e jogam futebol. Era difícil pensar que essa solidão indolente, que o esplendor bruto do oceano e dos rochedos pertenciam a uma grande cidade compacta e febril. À noite, uma bruma com cheiro de estufa peneirava as luzes dos edifícios e o neon dos cartazes: e nada mais no mundo se poderia desejar, além dessa cintilação a dessa fresca umidade.
Copacabana abriga trezentos mil habitantes, na maioria da alta e pequena burguesia; era agradável passear entre seus belos edifícios, frequentemente construídos sobre pilotis, no estilo de Le Corbusier. O bairro morre junto a uma rocha cortada por algumas ruas, mas que geralmente se atravessa por túneis. Por toda a cidade do Rio há morros e pães de açúcar que interceptam suas ruas, e que são atravessados subterraneamente por avenidas. Esses montes são cobertos de vegetação, e a floresta invade a cidade, sitiada também pelo oceano: nenhuma outra grande cidade pertence tão integralmente à natureza. Um passeio de carro pelo Rio é uma sequência de escaladas e de curvas, de quedas imprevistas, de descidas íngremes, com bruscas e magníficas descobertas sobre os rochedos da costa, com seu colar de praias. Do Corcovado, a setecentos metros de altitude, onde se cravou um Cristo de trinta metros de altura, fica-se deslumbrado com essa paisagem urbana e selvagem.
A cidade só está construída em elevações nos melhores bairros; estende-se até locais tão distantes, que os motoristas a dividiram em duas zonas: os táxis da zona norte não penetram na zona sul, e vice-versa. Atravessamos algumas vezes os feios aglomerados operários da zona norte, mas só conhecemos familiarmente a zona sul. A avenida Presidente Vargas nos desencorajava por sua largura, mas passeávamos sempre pela avenida Rio Branco; muitos transeuntes nas calçadas, ruas atravancadas, lojas, quiosques, cartazes, bares abertos para a rua onde brilhavam máquinas de café e recipientes cheios de suco de abacaxi, de laranja, de caju e de maracujá; bandeirolas e slogans: aquela animação parecia alegria, mas as pessoas tinham um ar triste. À direita e à esquerda, as ruas interditadas aos carros estavam entupidas de gente; depois, os próprios pedestres se faziam raros e as grandes lojas davam lugar a minguadas lojinhas; em pleno coração da cidade flanávamos por lugares que pareciam aldeias obsoletas. Mais de uma vez tomamos um bonde, cuja lentidão e cujas paradas nos agradavam. Vimos os edifícios construídos pelos jovens arquitetos brasileiros: o Museu de Arte Moderna e o conjunto habitacional de Afonso Reidy, os edifícios de Rino Levi, os de Niemeyer e de Costa, ambos alunos de Le Corbusier, com quem construíram o Ministério da Educação; as obras dos dois eram mais elegantes que as do professor. De Portugal restavam poucos traços. Esqueci o nome daquele largo decorado de azulejos que é um grande pátio com uma única saída, longe dos ruídos da cidade, cercado de casas coloniais e de jardins de árvores exuberantes. Um dos nossos lugares prediletos era a praça de embarque: emparelham-se vapores em direção às ilhas da baia; lanchas e barcas transportam pessoas, carros e mercadorias para Niterói que, com seus duzentos mil habitantes e seus arranha-céus, parece ser, do outro lado, uma gêmea desafortunada do Rio. Os barcos circulam sobrecarregados e, com frequência, um jornal anuncia que trinta ou cinquenta passageiros afogaram-se. É grande o movimento de táxis e bondes; vendedores ambulantes e lojas vendem comidas e bebidas. Ali perto estendem-se os grandes mercados que cheiram a legume fresco, a abacaxi e também peixe e carne velha. Do primeiro andar de um restaurante vê-se a baía com suas embarcações, a terra e seu tráfego. Num domingo, seguindo por uma melancólica avenida cortada por um canal, observamos ao longe homens de camisas cor-de-rosa, amarelas e sobretudo verdes (é a cor predileta dos brasileiros). Eles riam e conversavam com mulheres debruçadas às pencas nas janelas de grandes casas baixas. Através de portas entreabertas podiam-se ver, sentadas em escadas, belas mulatas vestidas com roupas de banho. Nada de clandestino; às claras, em plena tarde, dir-se-ia uma festa de aldeia.
À noite, o Rio resplandecia: colares, cordões, correntes, cintos de pedrarias enrolavam-se em torno de sua carne escura. Preferi ainda, nas fumaças cinza-azuladas do crepúsculo, as pequenas ruas com suas lojinhas fechadas. Há no Rio algo de cansado e fanado (as calçadas de mosaico preto e branco estão esburacadas, o asfalto incha, as paredes são descascadas, as ruas são sujas) que o sol e a multidão ocultam. Nos bairros populares, entregues à noite e ao silêncio pairam fantasmas e saudades.
Dos três milhões de habitantes do Rio, setecentos mil vivem nas favelas; os camponeses famintos que vêm, frequentemente de muito longe, tentar a vida na cidade amontoam-se nos terrenos que os proprietários deixam abandonados: pântanos e outeiros rochosos; quando acabam de construir uma choça com tábuas, papelão e pedaços de zinco, as autoridades não se acham mais no direito de expulsá-los. No próprio coração do Rio, sobre os morros ab-ruptos, as favelas pululam. Um agente de turismo sugerira pintá-las para disfarçar sua miséria: o projeto, já em execução, fora abandonado, mas alguns barracos têm cores berrantes; a distância, empoleirados nos morros mais altos, dominando a cidade e o oceano, alguns desses bairros parecem aldeias felizes. Os brasileiros não gostam de mostrar suas favelas. Entretanto, Teresa Carneiro, que havíamos conhecido em Paris, nos fez visitar uma. Era uma aglomeração de quatro mil almas, na maioria negros, espalhada em um morro de mais de cem metros de altitude, em Copacabana. Miséria, sujeira, doenças, a favela assemelhava-se a todas as outras; mas tinha uma particularidade: uma religiosa, que chamavam de irmã Renée, morava lá. Filha de um cônsul francês, abalada na juventude com os sofrimentos do povo espanhol, tomara o hábito e trabalhara na linha dos sacerdotes operários. Haviam-na aconselhado a vir para o Rio. “Invadira”, com o consentimento do proprietário, um pedaço de terra onde os homens da favela tinham-na ajudado a arrumar um dispensário e uma escola. Loura, rosada, maçãs do rosto salientes, quase bela, usava; uma blusa azul de enfermeira. Surpreendeu-nos por sua inteligência, sua cultura e seu bom senso materialista. “Vamos falar de Deus com essas pessoas quando elas tiverem água… Primeiro os esgotos, depois a moral.” Defendia a causa dos favelados: “Acusam-nos de uma enormidade de crimes; acho que, nas condições em que eles vivem, até cometem bem poucos.” Mostrou-nos, à beira-mar, o clube onde a juventude dourada jogava tênis e se pavoneava ao sol: “Eu, com a raiva que sinto, já teria descido para degolá-los. Mas os favelados, coitados, não comem o suficiente, e é por isso que não reagem.” Havia em sua mesa um grande livro sobre a maconha: homens e mulheres intoxicavam-se com drogas que os lançavam em profundo delírio. No sábado à noite, em vários barracos, celebravam-se macumbas, muito diferentes dos tranquilos candomblés da Bahia; nesse subproletariado, apartado de suas tradições rurais, o transe era uma aventura individual, e não coletiva; durante seus transes, os iniciados queimavam-se, feriam-se, por vezes gravemente; no domingo de manhã, Renée tratava deles. Ela dizia que eles conheciam remédios mágicos: vira cortes profundos, que cicatrizavam uma hora depois. “Há qualquer coisa na religião deles”, afirmava, sem se perturbar com isso, pois provavelmente pensava que são múltiplos os caminhos que levam a Deus. Administrava a favela segundo métodos muito próximos daqueles que vira aplicarem na China: convencera a população de que ela própria deveria trabalhar para seu bem-estar. Homens haviam traçado e cimentado caminhos, e cavavam uma espécie de esgoto; ela os ajudava a roubar eletricidade da cidade; ao mesmo tempo, agia junto à Prefeitura para obtê-la legalmente, e também para ter água e esgotos de verdade. Algumas mulheres do lugar ajudavam-na, e ela tentava formar substitutas. Uma minoria branca bastante importante convivia com os negros, e ela combatia o racismo entre eles. Tinha seus problemas. O lugar era superpovoado; a Prefeitura e o bom senso impediam que se aceitassem novos moradores; ela os repelia. “Mas isso não é caridade”, dizia. “Recusar um teto às pessoas não é bom.” Durante o mês de férias que lhe era concedido por seus superiores, ela pretendia ocupar-se dos índios da Amazônia: “É preciso passar férias inteligentes”, disse-nos, com um sorriso. Direta, espontânea, sem sombra de egocentrismo, desarmava todas as críticas que se podem dirigir às senhoras que trabalham em obras sociais e às irmãs de caridade: não olhava as pessoas às quais servia com os olhos da sociedade ou de Deus, mas antes a sociedade e Deus com os olhos delas.
Zélia sabia dirigir, e Cristina, que viera ao Rio com a mãe, tinha carro; elas nos mostraram os arredores: a estrada selvagem aberta na rocha que prolonga as praias; nos flancos da Tijuca, a mil metros de altura, a floresta pujante e densa que hoje ocupa o lugar de plantações de café extintas. Os Amado nos levaram a Petrópolis, na montanha; no verão, quando o calor no Rio é sufocante, eles alugam quartos num imenso hotel que devia ser um cassino: o jogo foi proibido, e os salões desertos enfileiram-se. Vimos a casa onde Stefan Zweig se matou. Num outro dia, tomamos com Zélia um barco para a ilha de Paquetá, onde demos uma volta de charrete; o velho carro harmonizava-se com as belas residências decadentes, com os jardins abandonados e com o odor antigo dos eucaliptos.
À noite, jantávamos num dos terraços da Atlântica, atentos à cintilação das luzes, ao murmúrio das ondas, à tépida e úmida carícia do ar. Muitas vezes almoçávamos em churrascarias. Diante das brasas erguem-se espetos de ferro, fixados verticalmente no solo, nos quais estão enfiados quartos de porco, de carneiro, de boi: é assim que, no sul, os gaúchos assam a carne. O churrasco é servido num aparato que mantém o espeto na posição horizontal; em nenhum outro lugar do mundo comi carne tão suculenta; os europeus apreciam pouco a farinha de mandioca que a acompanha; frita, bem temperada, achei a mandioca deliciosa; o cheio de lenha queimada embalsamava o ar.
No Brasil, o mais modesto hotel-restaurante intitula-se boate; em Copacabana também há muitas boates, no sentido que damos a essa palavra, mas os Amado as ignoravam. Fomos apenas a esses bares escuros que chamam de “inferninhos” porque, num ambiente de álcool e de música, ali se desenrolam idílios mais ou menos venais. Foi ali que Graham Greene, vindo ao Rio para um congresso do Pen Clube, passou, solitário, o melhor do seu tempo, fugindo às discussões literárias.
Sentíramos uma simpatia imediata por Jorge e Zélia; no Rio, tornamo-nos íntimos: não pensávamos, na nossa idade, tendo vista já desfazerem-se tantos laços, conhecer ainda a alegria de uma amizade nova. Filha de um comunista morto por policiais, e ela própria comunista, Zélia encontrara Jorge durante uma campanha eleitoral; ele a conquistara, a duras penas, de um marido que ela nem amava mais; fazia quinze anos que formavam um casal feliz e cheio de vida. Zélia devia à sua origem italiana uma naturalidade e um frescor juvenis; tinha caráter e calor, um olhar profundo e uma conversa viva; achei sua presença fundamental, e é uma das raras mulheres com as quais eu ria. Em Jorge também a sobriedade e a paixão se equilibravam: por trás de sua ponderação, sentiam-se grandes tumultos dominados. Ele era sensível àquilo que chamava de “coisinhas boas da vida”: as comidas, as paisagens, o encanto das mulheres, a conversa e o riso. Preocupado com os outros, sempre pronto a compreendê-los e a ajudá-los, tinha decididas aversões e muita ironia. Solidamente e enraizado na terra brasileira, gozava ali de uma situação privilegiada: no momento em que um país trabalha para superar suas divisões, ele atribui honras de heróis aos escritores e artistas que refletem a unidade nacional à qual aspira. Todos os que sabiam ler, no Brasil, conheciam Gabriela, e em nenhum outro país vi qualquer autor gozar de tamanha popularidade. Tão à vontade num “bairro de invasão” como na casa de um milionário, ele podia introduzir-nos tanto na casa do presidente Kubitschek quanto no terreiro da “mãe de santo”.
Quando jovem, estivera na prisão, durante o governo Vargas. Mais tarde, com a interdição do PC, exilara-se com Zélia. Passaram dois ou três anos na Tchecoslováquia, numa época difícil. Conheceram Paris, Itália, Viena, Helsinque, Moscou, Paquistão, Índia, China, e não sei mais que outros lugares. Nos congressos e nas viagens, ele muitas vezes juntava-se ao poeta cubano Nicolas Guillén, e ao chileno Pablo Neruda; para matar o tédio das visitas oficiais, pregava suas peças. Ao assistir a uma ópera em Pequim, entre Guillén e um intérprete, retransmitiu a Guillén uma versão que escandalizou o poeta, por sua obscenidade. Alguns dias depois, eles tiveram uma discussão com escritores chineses sobre teatro. “Não compreendo”, disse Guillén, indignado, “que vocês respeitem as tradições a ponto de conservar cenas pornográficas nas peças que apresentam ao povo.” Os chineses pareceram atônitos; Amado abafava o riso, e Guillén compreendeu, de repente: “Ah! Você!”, disse, sem rir. Em Viena, Amado enviava telegramas a Neruda: “Ao maior poeta da América Latina” — para fazer raiva a Guillén. No entanto, confiou a este último uma carta, forjada por ele próprio, na qual uma admiradora se oferecia a Neruda. No café da manhã, Neruda leu a carta para os dois, depois tornou-se sombrio: “Que tola! Esqueceu de me dar seu telefone!”. Zélia e ele sabiam um sem-número de histórias sobre uma enormidade de gente.
Ela fazia cursos na Aliança Francesa e falava muito bem francês. Jorge exprimia-se com menos correção, mas correntemente, como a maioria dos brasileiros que encontramos. Tinham em comum alguns “brasilianismos”; em vez de individu, homme, bonhomme, type,193 Amado dizia monsieur.194 “Ce monsieur-là a une tête qui ne me revient pas… je crois que c’est un sale monsieur.”195 Para nos anunciar nossos encontros (rendez-vous), dizia: “Vocês têm três compromissos (compromis) esta tarde”; havia aí uma sutileza que nos agradava demais para que a corrigíssemos.
Os Amado moravam a dois minutos do nosso hotel, num grande apartamento com piso de lajotas e envidraçado, cheio de livros; as estantes estavam cobertas de objetos de arte popular: de todos os cantos do mundo eles haviam trazido vasos, jarras, brinquedos, caixas, bonecas, estatuetas, barras, cerâmicas, instrumentos de música, máscaras, espelhos, bordados, joias. Um pássaro de cor suave voava em liberdade pelo estúdio. Tinham um filho e uma filha de cerca de doze e oito anos. O filho, João, solicitado pelo jornal da escola a entrevistar Sartre, recusou-se durante muito tempo: “Ele diz que não tem mais nada a dizer a juventude”, objetava.196 Uma amiga francesa morava com eles, e o irmão de Jorge, um jornalista, aparecia sempre. Para nós, foi um lar. Quase toda noite, tomávamos batidas de maracujá, de caju, de limão e de hortelã. Às vezes, jantávamos lá ou, se saíamos, eles nos acompanhavam. Jorge organizava nossos encontros, defendia-nos dos importunos com uma paciência obstinada, que irritou mais de um; um jornalista que não foi atendido acusou-o de nos sequestrar. Os almoços oficiais com universitários, escritores e jornalistas realizavam-se à beira da baía; o local era tão belo e a comida tão boa, que eu quase não me aborrecia.
O Última Hora publicou “Furacão sobre Cuba”. Rubem Braga e um amigo seu — católico de esquerda — decidiram editá-la. Discutimos o assunto com eles. Revimos Di Cavalcanti. Através da Tijuca, estradas cheias de curvas nos conduziram à casa de Niemeyer: ele morava nas alturas, numa mansão, obra sua, que mais parecia uma escultura abstrata do que uma casa; um telhado cobria o terraço, o estúdio era inteiramente aberto para o céu. Ele nos ofereceu um gim-tônica, e conversamos como se nos conhecêssemos há muito tempo. Construir uma cidade pedaço por pedaço é para um arquiteto uma sorte extraordinária; ele era grato a Kubitschek por lhe ter oferecido essa oportunidade, e por tê-lo apoiado contra tudo e contra todos. Mas ele era comunista — assim como Costa, que concebera o plano da nova capital —, e colocava para si mesmo questões sobre as quais pretendia falar-nos mais longamente em Brasília. Afora Villa-Lobos, quase não conhecíamos a música brasileira. As “escolas de samba”, onde se prepara o Carnaval, ainda não estavam abertas. Amado nos fez ouvir discos. Convidou um compositor que cantou, acompanhando-se ao violão. O autor da peça Orfeu do Carnaval organizou para nós uma noite de música. (Ele não gostava de modo algum do filme que, segundo ele, o traíra: todos os brasileiros que encontrei censuravam Marcel Camus por ter dado uma imagem fácil e mentirosa do país.) Encontramos em casa desse brasileiro um grupo de rapazes e moças da bossa nova que tocaram piano e violão e cantaram, num estilo tão discreto que, numa comparação, faz o mais cool dos jazz parecer ardente. Sartre me disse ao sair que, na presença das moças, sentia o mesmo constrangimento que Algren, no Carrousel, diante dos travestis. Olhava com prazer o rosto agradável, os generosos contornos de uma mulher, e descobria que estava observando uma garota de treze anos!
Passamos uma noite na casa de Josué de Castro, de quem seus inimigos diziam, com muita injustiça: “A fome o alimenta bem.” Ele era tão interessante quanto seus livros, e engraçado. Jovens tecnocratas falaram-nos da economia brasileira; depois, conversamos à vontade; entre outras coisas, sobre os acidentes de todo tipo, tão frequentes no Brasil. Os bondes do Rio circulam sobrecarregados de pencas humanas, e uma simples sacudidela basta para atirá-las fora do comboio: “E isso não é nada, perto dos trens de subúrbio”, disse-nos Amado; muitas vezes os viajantes caem sobre os trilhos, ferem-se e morrem. Castro e Amado que, no entanto, haviam dado várias vezes a volta ao mundo, confessavam que nos aviões brasileiros morriam de medo,197 e Niemeyer, disseram eles, para ir de Brasília ao Rio, o que lhe acontece com frequência, faz dezoito horas de carro, em vez de voar durante uma hora. Pouco provido de rodovias e estradas de ferro, o Brasil tem a rede aérea mais desenvolvida do mundo, depois dos EUA, mas um equipamento muito insuficiente. Esse país — e esta é a razão de um traço marcante entre os brasileiros, o blefe — vive muito acima de seus meios; já tem um pé no futuro: indústrias prósperas, cidades modernas, petróleo em abundância; mas entra nesse futuro com os pobres instrumentos legados pelo passado: velhos barcos, velhas caminhonetes, velhas caranguejolas, estradas esburacadas, laboratórios, técnicos e quadros insuficientes; assim, acaba sempre tendo problemas. Além disso, como em todos os países vassalos de um imperialismo estrangeiro — Cuba antes de Castro, a China antes de Mao —, no Brasil grassa a corrupção; face a um povo de insondável miséria e sem defesa, os ricos formam uma espécie de máfia, que só pensa em encher os bolsos, e o mais rápido possível; construções, transportes, vacinas, alimentos e as mais elementares normas de segurança não são respeitados. Os brasileiros mal conseguiram reduzir os riscos que qualquer empreendimento comportava no século passado, ao passo que todas as suas operações se multiplicaram desmesuradamente em todos os planos198 — homens, material, espaço. Incêndios nas favelas, edifícios que desmoronam, barcos que afundam, caminhões carregados de camponeses que despencam em fossos, alguma coisa nesses desastres me lembrava a Itália, em proporções gigantescas; na Itália, espera-se que os operários morram para que haja preocupação quanto às condições em que eles trabalham: mas, de qualquer modo, existe a preocupação; no Brasil, não: a mão de obra é superabundante, e as vidas humanas não valem um tostão.
No fim da noite chegou Prestes. Eu lera o livro que Amado escrevera sobre ele. Capitão em 1924, ligou-se, com seu batalhão, a uma revolução paulista que fracassou; durante seis anos, com uma coluna de mil e quinhentos homens, percorreu o Brasil, perseguido pela polícia e pregando a revolta. Durante essa primeira “longa marcha”, converteu-se ao comunismo. Em 1935, tentou sublevar o exército contra Vargas, e foi condenado a quarenta e seis anos e oito meses de prisão. Sua mulher, de origem alemã, teve os seios cortados pelos “camisas-verdes”, e foi entregue aos alemães: morreu num campo de concentração. Em 1945, depois da partida de Vargas, ele foi libertado e tomou a frente do Partido Comunista Brasileiro, na época o mais considerável do continente. O Partido foi dissolvido em 1947 por Dutra, e Prestes refugiou-se na clandestinidade. Mas em 1955, tendo apoiado com os votos comunistas o candidato nacionalista, Kubitschek, pode, desde então, viver a descoberto. A situação dos comunistas é curiosa: o Partido continua proibido; mas, em nome da liberdade individual, qualquer um tem o direito de ser comunista, e de se reunir com pessoas da mesma opinião. Prestes não se parecia mais com o jovem e belo “cavaleiro da esperança” dos tempos heroicos. Numa longa exposição dogmática, ele atacou as ligas camponesas e pregou a moderação: o Brasil se tornaria um país socialista, contanto que não fizesse nada para isso. Ele falava nas praças públicas a favor de Lott, o candidato do governo, por quem meus amigos sentiam cada vez mais repulsa. “Votarei nele, mas ele vai prender-me”, dizia Amado. Por que os comunistas não propunham um homem que, sem o declarar abertamente, pudesse representá-los? Em número bastante pequeno, não faziam questão de contar quantos eram. A batalha eleitoral só dizia respeito à metade da população: os analfabetos não votam, e os camponeses não sabem ler nem escrever. Os brasileiros, no entanto, dizem-se democratas, e até certo ponto isso é verdade; ignoram o orgulho; patrões e empregados vivem, superficialmente, em pé de igualdade; em Itabuna, quando o administrador de uma fazenda nos ofereceu um drinque, o motorista que nos levava bebeu no salão conosco. A separação se dá num nível mais baixo; os administradores não tratam os trabalhadores das plantações como iguais, nem mesmo como homens. Até certo ponto, também, os brasileiros recusam o racismo. Quase todos têm sangue judeu, porque a maioria dos portugueses que emigraram para a América do sul eram judeus; quase todos têm sangue negro. No entanto, constatei nos meios burgueses um antissemitismo bastante forte. E nunca vimos nos salões, nas universidades nem nos nossos auditórios um rosto chocolate ou café com leite.199 Sartre fez com franqueza uma observação sobre isso, durante uma conferência em São Paulo, e depois reconsiderou-a: havia um negro na sala; mas era um técnico da televisão. Admite-se que a segregação seja econômica; mas o fato é que os descendentes dos escravos permaneceram todos proletários; e, nas favelas, os brancos pobres sentem-se superiores aos negros.
Isso não impede que os brasileiros estejam ligados às suas tradições africanas. Todos aqueles que encontrei sofriam a influência dos cultos nagôs. Se não estavam, como Vivaldo, convencidos da existência dos santos, pelo menos acreditavam em seus poderes. Quando a mãe de santo nos revelou o nome de nossos protetores, Amado nos garantiu que uma consulta feita por outra sacerdotisa daria os mesmos resultados. Grande dignitário do candomblé, ele observava todos os seus preceitos. Rejeitando um prato de feijão branco, disse a Sartre: “Meu santo me proíbe isso; você é Oxalá; tudo o que é branco lhe é permitido.” Ele sorria; mas certamente preferia ceder a superstições a correr o risco de zombar delas. Sartre interrogou Zélia, filha das cidades, racionalista e positiva: embora não acreditasse no sobrenatural, ela hesitava em não acreditar. O pai de Amado sofria de câncer, e pensava que um espírito maligno o torturava. Zélia convocou um espírita; todo o pessoal da casa participou da sessão de exorcismo, e a arrumadeira caiu em transe; as dores do velho desapareceram; toda vez que voltavam, o espírito as expulsava. “Que pensar?”, dizia Zélia. Ela usava habitualmente o colar sagrado com as cores do seu santo. Um pequeno fato nos pareceu significativo. Alguém dera a Sartre um amuleto que lhe garantia a proteção de Oxalá. Após um jantar em casa de um jornalista, os convivas felicitaram a cozinheira. Zélia lhe disse, indicando Sartre: “Ele tem o mesmo santo que você.” Sartre mostrou seu amuleto: a cozinheira pensou que ele lhe estava fazendo um presente e pegou o talismã, agradecendo. No dia seguinte, o jornalista telefonou para Amado: Sartre não estaria arrependido daquele presente irrefletido? Não gostaria que fosse devolvido?
Zélia nos contou que, certa manhã, um amigo, O., que desejava ser deputado, pediu-lhe que o levasse com a mulher antes do amanhecer ao Alto da Tijuca. Obedecendo às prescreves de um babalaô, desceram do carro e tiraram dele uma cesta com uma dúzia de ovos, que começaram a passar no corpo, jogando-os em seguida num barranco. À noite, deveriam distribuir esmolas; percorreram a cidade para encontrar um mendigo, e acabaram por acordar um vagabundo deitado num banco. O. não foi eleito. Apareceu de novo durante nossa estada no Rio, e organizou uma cerimônia de umbanda à qual Amado nos propôs assistir. O carro de Zélia atravessou o Rio atrás da caminhonete eleitoral de O., coberta de panfletos de propaganda: Vote em O. O pequeno João Amado estava no carro, e gritava ao alto-falante: “Vote em O. Vote em Sartre, em Amado. Não vote em O.” A caminhonete dava voltas para apanhar aqui e ali cabos eleitorais. Levamos duas horas para chegar à zona norte; erramos em subúrbios distantes antes de encontrar um jardim onde bandeirolas anunciavam o comício que O. iria fazer no fim da tarde. O mato cercava a grande casa rústica onde uma mãe de santo criava uma dúzia de filhos adotivos; eles dormiam amontoados nas camas e brincavam sob as árvores. Muito negra, gordíssima, magnificamente vestida, ela nos fez admirar um altar semelhante aos da Bahia, e em certos aspectos muito mais rico. A imensa mesa onde devíamos almoçar ainda estava vazia. Na cozinha e no jardim, mulheres ativavam-se em torno dos fogões. Estávamos desmaiando de fome quando, por volta de três horas, serviu-se enfim o arroz de camarão e o porco frito — suculentos, mas um pouco estragados por um pomposo discurso de O. Como tínhamos compromissos no Rio, escapulimos no meio do banquete. Mais uma vez, O. foi derrotado nas eleições.
A esquerda brasileira pretendia estabelecer estreitas relações econômicas com as jovens nações da África negra. Reprovava Kubitschek por sua visita a Salazar: os brasileiros conheceram a ditadura e a detestam; o colonialismo lhes causa repugnância. Os exilados portugueses que encontramos, democratas em Portugal, tinham uma atitude fascista com relação à África: desejavam que a revolta dos angolanos fosse reprimida. Os brasileiros, que conquistaram sua independência há apenas cento e quarenta anos, tomam sempre partido a favor dos povos que a reivindicam. Foi por isso que Sartre despertou neles um entusiasmo tão grande quando falou da Argélia e de Cuba; sobretudo de Cuba. A revolução castrista lhes dizia respeito diretamente; eles também viviam sob o domínio dos EUA, e o problema da reforma agrária os preocupava.
Em Recife, para grande alívio do cônsul da França, um homem gordo e cordial, Sartre falou da Argélia sem atacar de frente o governo. Na Bahia ele também foi moderado. Quando a Universidade do Rio — marcando assim seu liberalismo — abriu-lhe um anfiteatro para que ele desse uma entrevista à imprensa, Sartre decidiu falar abertamente. Respondeu sem rodeios às perguntas que lhe fizeram sobre De Gaulle e sobre Malraux. Toda a imprensa noticiou esse diálogo e, desde então, no Rio e em São Paulo, diários e semanários publicaram em cada número fotos de Sartre e comentários detalhados de suas atividades. Houve enorme afluência à conferência que ele fez na Universidade, e também à conferência que foi organizada por jovens tecnocratas sobre o sistema colonial; ela se realizou no Centro de Estudos e a sala foi pequena demais para conter o público que se amontoava nos balcões e nos jardins. A audiência e o orador suavam em bicas — a tal ponto que a camisa de Sartre ficou manchada do azul de seu casaco que desbotara, quando ele conseguiu escapar dos aplausos. Rubem Braga fez a proeza de publicar “Furacão sobre Cuba” antes da nossa partida, e Sartre aceitou, por solidariedade a Cuba, autografar publicamente seu livro; pelo mesmo motivo, e apesar dos meus escrúpulos, sentei-me ao lado dele num hall brilhantemente decorado, diante de uma mesa cheia de volumes recém-impressos, e assinei também. Um dos compradores, para agradar a Sartre, ofereceu-lhe um retrato de De Gaulle que ele próprio pintara e emoldurara. Na Universidade, falei — não por gosto, mas porque me pediram — sobre a condição da mulher.
A colônia francesa nos manifestou uma hostilidade inequívoca. Não só Sartre expunha — em conferência, artigos, entrevistas no rádio e na televisão etc. — seus pontos de vista sobre a Argélia e sobre De Gaulle, como também foi visitar o representante do GPRA, que morava em Copacabana com a mulher, uma francesa que fora professora na Argélia. Vimos em sua casa números falsos do El Moudjahid adulterados pelo serviço de inteligência do exército francês. Eles julgavam muito importante o trabalho que Sartre estava realizando em prol de sua causa.200
Nossa permanência no Rio foi interrompida durante mais ou menos uma semana, passada em São Paulo, que ficava a uma hora de distância, de avião. “Vocês não preferem uma boa noite tranquila, num trem noturno?”, sugeriu Amado. Acabou resignando-se de boa vontade. A chegada, havia uma multidão no aeroporto, sobretudo jovens que levavam cartazes: Cuba sim, Yankee não, e que aclamaram Sartre e Castro. Fomos recebidos de braços abertos pela “Sociedade Sartre”, por estudantes, e por professores muito jovens.
A cidade não é bonita, mas transborda de vida. É um dos berços do Brasil: os jesuítas ali se instalaram em meados do século XVI, e de lá partiram os bandeirantes para conquistar o interior. É também a cidade mais moderna: largas artérias, viadutos, altos edifícios, uma multidão atarefada, trânsito intenso, uma profusão de pequenas lojas e ricos magazines. De 1900 a 1960, passara de oitenta mil para três milhões e meio de habitantes, e ainda não acabara de se construir: havia por toda parte prédios inacabados. Observamos, entretanto, que os pedreiros trabalhavam lentamente e, em certas obras, simplesmente não trabalhavam: a enorme inflação a que o país fora arrastado acarretava uma recessão; muitos empreendimentos eram abandonados. Levaram-nos para um passeio no bairro italiano, que não apresentava um caráter próprio, e no japonês, muito característico; seus habitantes são quase todos japoneses; lojas vendem artigos japoneses, os restaurantes servem especialidades japonesas à moda japonesa. Há uma zona residencial muito rica: jardins floridos, casas de estilo colonial, mansões ultramodernas. Há também favelas; falava-se muito do diário mantido por uma negra, Carolina, que descrevia com rudeza, no dia a dia, a vida de sua favela: um jovem repórter a descobrira por acaso, e o livro seria um best-seller.201 Observamos nas ruas populosas muitos cartazes que louvavam os méritos da doutrina espírita, ou que anunciavam sessões espíritas. Fui até Santos; era domingo, e o porto dormia. O passeio à beira-mar, com suas palmeiras, suas praias, seus quiosques, seus carrinhos de criança, fez voltar à minha memória a beleza de Copacabana.
Mais industrializada, intelectualmente São Paulo também levava vantagem sobre o Rio em animação. Entrevistas à imprensa, televisão, encontros, discussões com jovens sociólogos e jovens economistas, autógrafos, almoços com escritores, visita ao Museu com um grupo de pintores que nos viam — que provação! — olhar seus quadros: não paramos. Quanto mais os conhecíamos, mais simpatia tínhamos pelos intelectuais brasileiros. Conscientes de pertencerem a um país que cresce, e do qual depende o futuro de toda a América Latina, seus trabalhos eram para eles ações em que engajavam suas vidas; sua curiosidade era vasta e exigente; em geral muito cultos, de espírito ágil, era proveitoso e agradável conversar com eles. Tinham uma profunda preocupação com os problemas sociais. Com as favelas espalhadas em suas cidades, os brasileiros não podem esquecer a miséria, que os fere em seu orgulho nacional; ela contesta seus sentimentos democráticos: mesmo à direita, preocupam-se com ela e procuram combatê-la.202 A ala progressista da burguesia e os intelectuais são levados a tomar posições revolucionárias. Ficamos impressionados com um fato que se repete em toda a América Latina; grandes proprietários, industriais riquíssimos, são comunistas; só o socialismo, pensam eles, pode libertar seu país do imperialismo dos EUA, e salvar a massa de seus compatriotas de uma degradação que recai sobre eles. É claro que são exceções, e os intelectuais desempenham um papel reduzido. Não se deveria concluir que a revolução é para amanhã.
O Última Hora promoveu certa manhã um encontro entre Sartre e dirigentes sindicais. Nem todos responderam à mesma coisa às perguntas que ele fez; mas dessa conversa destacaram-se alguns fatos precisos que outros depois confirmaram. Os operários brasileiros mal acabam de emergir da condição de camponeses: foram camponeses, ou seus pais o haviam sido; como seu nível de vida é consideravelmente mais alto que o do campo, eles se sentem privilegiados. Seus interesses em nada são solidários com os interesses dos famintos do Nordeste, nem mesmo com os dos diaristas do sul. Alguns são bastante conscientes de pertencerem a uma classe explorada; mas todos julgam que hoje se impõe uma certa colaboração com o grande capital. A atitude deste último é ambígua. Deseja apropriar-se dos recursos do Brasil, que atualmente estão em grande parte na dependência de empresas americanas; mas, para se desenvolver, ele tem necessidade de ajuda financeira dos EUA; combate o imperialismo americano, ao mesmo tempo que o favorece. Na medida em que visa industrializar o país e torná-lo economicamente independente, os proletários veem nos sucessos do grande capital uma promessa de prosperidade: este é o sentido do apoio dado pelos comunistas a Kubitschek e depois a Latt. Abstração feita de sua subordinação a América, a situação do Brasil lembra a da Itália, invertendo-se o norte e o sul, mas é mais trágica por causa do subdesenvolvimento e da extensão do território. A unidade nacional prejudica o norte, pois os grandes proprietários dessa região investem seus lucros nas indústrias do sul, o que impede que o norte se desenvolva. Fadados à fome, os camponeses estão em estado revolucionário; mas a dispersão, a inanição e a ignorância não favorecem neles o aparecimento de uma consciência de classe, e eles não têm poder sobre quase nada; o proletariado é consciente e tem meios práticos para lutar: mas sua situação não é revolucionária. Quanto à pequena burguesia, em Cuba a falta de mercados ergueu-a contra Batista; no Brasil, a industrialização autoriza suas esperanças, e ela aceita a ordem estabelecida. Nossos interlocutores estimavam que tão cedo o socialismo não teria oportunidade no Brasil.
Falei novamente sobre as mulheres numa sala florida e perfumada, diante de senhoras paramentadas, que pensavam o contrário do que eu dizia; mas uma jovem advogada me agradeceu em nome das mulheres que trabalham. A condição das mulheres brasileiras é difícil de definir. Varia segundo a região. No Nordeste, uma moça — mesmo que viva numa favela — não tem qualquer possibilidade de se casar se não for virgem; é rigidamente vigiada pelos que a cercam. As grandes cidades industriais do sul são muito mais liberais. No Brasil o divórcio não existe. Mas se um homem e uma mulher, sendo um deles casado, decidem viver juntos, anunciam isso nos jornais. São considerados nos meios mais puritanos como um casal legítimo, e seus filhos têm direito ao nome e à herança do pai. Está tudo muito bem, mas o preço disso é que, ao deixar seu lar, a mãe perde todo o direito sobre os filhos. E quando um homem morre, só a primeira esposa é legatária: a companheira que partilhou sua vida sem contrato oficial não recebe um cruzeiro sequer.
Sartre fez uma conferência literária e outra sobre o colonialismo numa sala de teatro de seiscentos lugares; quando chegamos, já estava lotada, e mais de quatrocentas pessoas empurravam-se diante das portas defendidas por policiais; ouviam-se seus gritos impacientes, enquanto Sartre começava a falar. De repente, vencendo a barreira, atiraram-se na sala, sentaram-se no chão e se colaram às paredes, em meio a aplausos. Dois franceses pediram a palavra para defender a “Argélia francesa”; dir-se-ia cúmplices encarregados por Sartre de ridicularizar seus adversários; um deles, aliás, era um semilouco notório. Um professor e um padre francês garantiram a Sartre a sua solidariedade.
No Brasil, tenta-se descentralizar o ensino superior. Acabava de ser criada uma universidade em Araraquara, cidade de oitenta mil habitantes, a algumas horas de São Paulo. O professor L., querendo promover-se, tanto fez que Sartre acabou por aceitar ir lá para falar de dialética diante dos filósofos, e do colonialismo com os estudantes. Partimos ao cair da noite, e, segundo as disposições de Amado, pernoitamos na fazenda de M., diretor de O Estado de S. Paulo. É um jornal de direita, mas muito diferente dos nossos: eu já disse que ele fazia uma campanha contra a miséria das favelas; gente de esquerda escrevia para ele; fazia considerável propaganda de Sartre e de suas conferências. Como “liberal” que se opunha ao dirigismo de Vargas, M. estivera preso com Amado, e os dois conservavam relações cordiais. Repórteres nos fotografaram por conta do jornal. Durante o jantar, M. nos falou do problema negro. “Não somos de modo algum racistas”, explicou ele; “só que — é culpa nossa — não conseguimos elevar o negro ao nosso nível intelectual e moral. Assim, forçosamente ele permanece na posição mais baixa da escala social.” No outro lado da mesa, seus três filhos trincavam os dentes: eles provavelmente teriam exprimido as mesmas ideias, mas com mais habilidade. O pai, espantosamente vigoroso, apesar da idade avançada, atacou as mulheres que fumam: o fumo exasperava, segundo ele, as neuroses próprias do nosso sexo. Sua mulher, que parecia ter os nervos bem no lugar, conduziu-nos aos grandes quartos antigos que haviam preparado para nós.
Ao despertar, fiquei deslumbrada com o esplendor das árvores, da relva, das quaresmas, dos hibiscos, das buganvílias amarelas, laranja, rosa e violeta. Visitamos a plantação: o café arrancado, queimado e atirado ao mar, aquele escândalo abstrato de 1928, eram aquelas plantas verde-escuras que cobriam planaltos; a semente esbranquiçada de seus pequenos frutos quase não tinha sabor. Vasta e monótona, mas agradavelmente semeada de vales, com grandes árvores no horizonte, a paisagem parecia feliz, sob o céu leve. Mas Amado nos descrevera o rude trabalho da colheita; este dura apenas algumas semanas, durante as quais os trabalhadores agrícolas são alojados pelo proprietário; por vezes ele os conserva até o ano seguinte, mas se resolve diminuir a mão de obra, ou renová-la, está no seu direito: eles vão procurar emprego em outro lugar. Na parte baixa do parque dos M., num dos lados do pátio onde secavam os grãos de café, uma sala de aula abrigava umas vinte crianças: no ano seguinte, a maior parte delas provavelmente estaria a quilômetros dali, teriam dificuldade de aprender a ler. As casas dos diaristas eram mais decentes do que as pocilgas de Itabuna, mas muito pobres.
Em Araraquara, Sartre engoliu alguns sanduíches, e por volta de duas horas entrou no anfiteatro cheio de bandeirolas: “Viva Cuba! Viva Sartre! Você falou dos bohíos: agora fale das favelas.” Os estudantes discutiram com Sartre sobre a possibilidade, no Brasil, de uma revolução análoga à de Castro. Sartre lhes fez perguntas sobre as ligas camponesas, falou-lhes sobre a necessidade de uma reforma agrária. “Dir-se-ia que são todos revolucionários!”, disse eu a Amado, com quem passeei pouco mais tarde, no deserto de um domingo, enquanto Sartre revisava notas: “Quando eles se tornarem médicos e advogados, isso passará”, respondeu ele. “Não irão reivindicar mais nada além de um capitalismo nacional, independente dos EUA. A sorte dos camponeses não mudará.” Quando chegávamos à casa do professor L., vimos aparecerem carros, caminhões, caminhonetes, ônibus: uma enorme multidão que voltava de um jogo de futebol; os brasileiros são fanáticos por esse esporte.
Sartre falou sobre a dialética. Partimos tarde; jantamos numa churrascaria, e já era noite alta quando deixamos a estrada principal para nos dirigirmos de novo a fazenda de M., onde íamos pernoitar novamente; o motorista se perdeu nos caminhos de terra que passam entre as plantações. Enfim divisamos uma luzinha ao longe: guiamo-nos por ela, perdendo-a, reencontrando-a, dando voltas sem conseguir atingi-la. Só às duas horas da manhã o carro parou ao pé da escadaria: as lâmpadas estavam acesas, as portas abertas; fomos para os nossos quartos. Mais um exemplo dessa hospitalidade brasileira que foi um dos encantos de nossa viagem. Quando saí de manhã encontrei no corredor Amado, que ria porque não gostava do professor L.: “Esse pobre senhor quase teve um enfarte!”, disse-me. Abrindo o jornal, L. lera uma manchete: “Sartre prega a revolução.” Soltara um gemido: “Sou um homem acabado!”
Sartre tornara-se muito popular entre os jovens. Duas ou três vezes, em São Paulo, conseguimos passar a noite sozinhos. A rudeza da cidade abrandava-se, os pedestres andavam com menos rapidez, um negro passava cantando; depois do tumulto do dia, saboreávamos essa calma sonhadora. Muitas vezes paravam carros: “Podemos levá-los a algum lugar?”
No Rio, em todas as esquinas, estudantes nos abordavam. “O que pensa a seu respeito, M. Sartre?”, perguntou uma jovem, ao fim de uma conferência: “Não sei”, respondeu ele, rindo. “Nunca me encontrei.” “Oh! Que pena para o senhor!”, disse ela, com entusiasmo. Um representante do governo francês esteve no Rio ao mesmo tempo que nós; houve um coquetel em sua homenagem; um amigo brasileiro, ligeiramente bêbado, segundo seu próprio relato, chamou-o à parte: “A França não é o senhor: é Jean-Paul Sartre.” O funcionário sorriu; já que o Brasil celebrava Sartre, teria sido inábil privar a França dessa honraria: “São dois aspectos da França”, disse ele. Os intelectuais brasileiros eram gratos a Sartre por encarnar o outro aspecto. O Rio nos outorgou o título de “cidadãos honorários”. Nossos diplomas nos foram entregues durante uma breve recepção.
Tínhamos dificuldade de conseguir jornais franceses; mas, através de cartas e telefonemas, nossos amigos nos informavam sobre o que se passava na França. O processo Jeanson abriu-se em 7 de setembro; os advogados desejavam a presença de Sartre; mas ele assumira compromissos com os brasileiros, e não queria abandonar a ação que desenvolvia entre eles em benefício da Argélia. Achou que uma carta teria tanto peso quanto um testemunho oral. Do Rio a Paris, a correspondência não chega rápido, e até mesmo arrisca-se a se extraviar no caminho. Por telefone, Sartre expôs longamente a Lanzmann e a Péju o que desejava declarar diante do tribunal, e encarregou-os de redigir o texto, que foi lido em 22 de setembro:
“Encontrando-me na impossibilidade de comparecer à audiência do tribunal militar, o que lamento profundamente, faço questão de me explicar de maneira bastante detalhada sobre o objeto do meu precedente telegrama. É pouco, efetivamente, afirmar minha ‘solidariedade total’ com os acusados: mas é preciso também dizer por quê. Não creio jamais ter encontrado Hélène Cuénat, mas conheço bastante bem, através de Francis Jeanson, as condições nas quais trabalhava a ‘rede de apoio’, cujo processo se abre hoje. Lembro que Jeanson esteve por longo tempo entre meus colaboradores, e se nem sempre estivemos de acordo, como é normal, em todo caso o problema argelino nos uniu. Acompanhei dia após dia seus esforços, que foram os da esquerda francesa, para encontrar uma solução para esse problema através de meios legais. E foi só diante do fracasso desses esforços, diante da evidente impotência dessa esquerda, que ele se decidiu a entrar na ação clandestina, para levar um apoio concreto ao povo argelino, em luta por sua independência.
“Mas convém aqui dissipar um equívoco: a solidariedade praticada com os combatentes argelinos não lhe era apenas ditada por nobres princípios ou pela vontade geral de combater a opressão onde quer que ela se manifeste; ela procedia de uma análise política da situação na própria França. A independência da Argélia, na verdade, está conquistada. Irá efetivar-se dentro de um ano, ou dentro de cinco anos, de acordo com a França ou contra ela, depois de um referendo, ou pela internacionalização do conflito — ignoro-o —, mas já é um fato, e o próprio general De Gaulle, levado ao poder pelos paladinos da Argélia francesa, vê-se hoje obrigado a reconhecer: ‘Argelinos, a Argélia é sua.’
“Assim, repito, essa independência é certa. O que não é certo é o futuro da democracia na França. Pois a guerra da Argélia apodreceu este país. A progressiva diminuição das liberdades, o desaparecimento da vida política, a generalização da tortura, a insurreição permanente do poder militar contra o poder civil, marcam uma evolução que podemos, sem exagero, qualificar de fascista. Diante dessa evolução, a esquerda é impotente, e continuará a sê-lo se não aceitar unir seus esforços à única força que hoje luta contra o inimigo comum das liberdades argelinas e das liberdades francesas. E essa força é a FLN.
“Foi a essa conclusão que chegou Francis Jeanson, e foi a ela que eu mesmo cheguei. E creio poder dizer que hoje são cada vez mais numerosos os franceses, sobretudo entre os jovens, que decidiram traduzi-la em atos. Temos uma melhor visão das coisas quando entramos em contato com a opinião estrangeira, como fato neste momento na América Latina. Aqueles que a imprensa de direita acusa de ‘traição’, e que uma certa esquerda hesita em defender, como seria necessário, são amplamente considerados, no estrangeiro, como a esperança da França de amanhã, e sua honra de hoje. Não se passa um dia sem que me perguntem sobre eles, sobre o que fazem, o que sentem; os jornais estão prontos a abrir-lhes suas colunas. Os representantes dos movimentos de refratários da Jovem Resistência são convidados para congressos. E a declaração sobre o direito à insubmissão na guerra da Argélia, à qual dei minha assinatura, pelo mesmo motivo que cento e vinte outros universitários, escritores, artistas e jornalistas, foi saudada como um despertar da inteligência francesa.
“Em suma, a meu ver é importante apreender bem dois pontos de vista que irão desculpar-me por formulá-los um tanto superficialmente, mas num tal depoimento é difícil ir ao fundo das coisas.
“Por um lado, os franceses que ajudam a FLN não estão apenas impelidos por sentimentos generosos para como um povo oprimido, e também não se colocam a serviço de uma causa estrangeira: trabalham por eles mesmos, por sua liberdade e seu futuro. Trabalham pela instauração de uma verdadeira democracia na França. Por outro lado, não estão isolados, mas beneficiam-se de auxílios cada vez mais numerosos, de uma simpatia ativa ou passiva, que não cessa de crescer. Estiveram na vanguarda de um movimento que terá talvez despertado a esquerda, atolada numa lamentável prudência. Terá preparado melhor a inevitável prova de força com o exército, adiada desde maio de 1958.
“Para mim, evidentemente, é difícil imaginar, distante como estou, as perguntas que o tribunal militar poderia fazer-me. Suponho, entretanto, que uma delas teria por objeto a entrevista que concedi a Francis Jeanson para seu boletim Vérité pour, e a isso responderei sem rodeios. Não me lembro mais da data exata, nem dos termos precisos dessa entrevista. Mas poderão encontrá-los com facilidade, se esse texto figurar no dossiê.
“Em compensação, o que sei é que Jeanson veio procurar-me como animador da ‘rede de auxílio’ e desse boletim clandestino que era o seu órgão, e eu o recebi com pleno conhecimento de causa. Revi-o depois, duas ou três vezes. Não me escondeu o que fazia, e eu o aprovei inteiramente.
“Não penso que haja, nesse âmbito das tarefas nobres e das tarefas vulgares, atividades reservadas aos intelectuais e outras indignas deles. Os professores da Sorbonne, durante a Resistência, não hesitavam em transmitir mensagens e estabelecer ligações. Se Jeanson me tivesse pedido para carregar maletas, ou hospedar militantes argelinos, e se eu pudesse fazê-la sem risco para eles, eu o teria feito sem hesitação.
“É preciso, creio, que as coisas sejam ditas: pois aproxima-se o momento em que cada um deverá assumir suas responsabilidades. Ora, mesmo aqueles que estão mais engajados na ação política ainda hesitam, por não sei que respeito à legalidade formal, em ultrapassar certos limites. São os jovens, ao contrário, apoiados pelos intelectuais, que, como na Coreia, na Turquia, no Japão, começam a desfazer as mistificações das quais somos vítimas. Daí a excepcional importância deste processo. Pela primeira vez, a despeito de todos os obstáculos, de todos os preconceitos, de todas as prudências, argelinos e franceses, fraternalmente unidos por um combate comum, encontram-se juntos no banco dos réus.
“É em vão que se esforçam por separá-los. É em vão também que se tenta apresentar esses franceses como transviados, desesperados ou românticos. Começamos a ficar fartos das falsas indulgências e das ‘explicações psicológicas’. É importante dizer muito claramente que esses homens e essas mulheres não estão sós, que centenas de outros já se revezam com eles, e que milhares estão prontos a acompanhá-los. Um destino contrário separou-nos provisoriamente de nós, mas ouso dizer que eles estão nesse banco como nossos representantes. O que eles representam é o futuro da França, e o poder efêmero que se prepara para julgá-los já não representa mais nada.”
Toda a imprensa francesa considerou esse testemunho como um desafio que o governo tinha a obrigação de contestar. O M. Battesi, deputado do departamento de Seine-et-Marne, num documento escrito, pediu diligências contra ele. “Sartre”, escreveu P.H. Simon, “coloca o governo na alternativa de poupá-lo, isto é, de se mostrar fraco, ou de atingi-lo, isto é, de se enfraquecer entrando em conflito com uma inteligência considerável.” Por outro lado, à propósito do Manifesto dos 121, que o Express e o Humanité desaprovavam, fora aberto um inquérito contra X. Em 8 de setembro, o Paris-Presse ostentava na primeira página a manchete: “Jean-Paul Sartre, Simone Signoret e cem outros arriscam-se a cinco anos de prisão.” A embaixada francesa no Rio apregoava que ao voltar a Paris Sartre seria preso. O governo anunciou que daquele momento em diante o incitamento à insubmissão acarretaria de um a três anos de prisão; seria mais severamente punido se viesse de um funcionário. Quando deixamos o Rio, vários signatários haviam sido acusados: entre outros, Daniel Guérin, Lanzmann, Marguerite Duras, Antelme, Claude Roy. Durante um banquete, o M. Terrenoire, na época ministro da Informação, declarara: Sartre substituiu Maurras, e é uma ditadura anárquica e suicida que pretende impor-se a uma intelligentsia transviada e decadente.” Páginas inteiras dos jamais eram dedicadas à rede Jeanson, aos “121” em geral, e a Sartre em particular. Choviam insultos e ameaças.
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Com Amado, seu irmão e Zélia, aterrissamos uma manhã em Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, que outrora transbordara de ouro e diamantes. Niemeyer prometera enviar-nos de Brasília uma caminhonete com motorista: ninguém; a viagem começava mal. Enfim, o carro apareceu, dirigido por um homem bigodudo. Vimos, à beira de um lago azul, uma capela de Niemeyer e, na cidade, outra de suas obras — um belíssimo edifício que parece mover-se quando se anda em torno dele.
Passamos a tarde em Sabará, outrora povoada por exploradores de ouro; no Museu do Ouro, velha casa de estilo colonial, onde se pesava e se guardava o ouro, amostras, pepitas, instrumentos, esboços e panoramas ressuscitavam o passado. Com suas ruas estreitas, seus telhados de telha, Sabará assemelhava-se a uma aldeia da Europa. Em suas igrejas, de molduras rebuscadas, paredes vermelhas e azuis, observamos com surpresa que, nos afrescos, Deus, os anjos e os santos tinham os olhos amendoados: os pintores portugueses tinham estado em Macau.
Já havíamos visto obras menores do Aleijadinho, esse escravo de mãos roídas pela lepra, que é o maior escultor e o maior arquiteto do Brasil colonial. Subimos a rua central de Congonhas, muito estreita, cheia de detritos, de inválidos, de crianças de olhos famintos, até o terrapleno onde se ergue uma igreja que ele edificou, e doze estátuas de profetas, talhadas em pedra-sabão; muitas são belíssimas, em sua rudeza inspirada, e o conjunto impressiona. Desse adro até a base da colina, em quiosque de vidro, personagens de gesso, de tamanho maior que o natural, representam as cenas da Paixão: de cores berrantes, realistas e teatrais, eles provam que o Aleijadinho era prolífero, mas nem sempre tinha discernimento. Em Ouro Preto, sentimos seu gênio: fora ele quem concebera aquelas admiráveis fachadas, o jogo sabiamente equilibrado de suas curvas, onde a luz cai em armadilhas, e a diversidade de seus desenhos.
Chegamos ao cair da noite à capital do ouro preto. O hotel onde dormimos era uma obra da juventude de Niemeyer: naquela época ele gostava tanto de escadas, que as colocara em todos os quartos. Pela manhã, vislumbrei abaixo da minha sacada telhados de um vermelho desbotado, ruas tortuosas, jardins, terraços, aqui e ali a mancha viva de janelas amarelas ou azuis e, à volta colinas cobertas por uma vegetação lustrosa; escadas subiam em direção a longínquas igrejas; um ar suave e leve, que recendia a campo, acariciava meus pulmões. Partimos a pé. De igreja em igreja, de praça em praça, descemos e subimos ruas e escadas, atravessamos pontes antigas; entre as velhas casas pintadas, mostraram-nos aquela em que fora preso Tiradentes, que conspirou em 1788 contra a dominação portuguesa: no Rio, ergue-se uma estátua na praça onde foi enforcado e esquartejado. Na praça principal de Ouro Preto, há um museu dedicado aos Inconfidentes, dos quais ele era o chefe. Lastimei deixar Ouro Preto: é um lugar onde eu gostaria de permanecer por muito tempo.
Na manhã seguinte, em Belo Horizonte, novamente esperamos muito tempo pelo motorista. No caminho, compreendemos a razão de seus atrasos: a mala do carro estava cheia de relógios e joias, que ele pretendia revender nas cidades onde íamos parar. Explicou a Amado que acumulava a função de motorista com a de policial, que lhe proporcionava contatos proveitosos com gente que exercia um ofício muito importante no Brasil: os contrabandistas. Ele lhes confiscava ou comprava a preço baixo mercadorias que os habitantes de Brasília, isolados do mundo, compravam a preços altíssimos. Descrevia suas tramoias com uma inocência tipicamente brasileira, disse-nos Amado, encantado.
Rodamos durante toda a manhã por uma estrada infinitamente reta, através do cerrado: matagais, arbustos espinhosos, árvores retorcidas, sem uma folha verde ou flor, a não ser de vez em quando, insólitos, enormes cachos roxos balançando-se entre galhos desnudos. Durante horas não vimos sequer uma aldeia, uma casa, mas apenas, por duas ou três vezes, um desses “animais ferozes” de que falou La Bruyère: descalço, esfarrapado, descarnado, um camponês. Apesar da resistência do motorista-tira, que não achava lugar propício para o seu comércio, paramos para almoçar, em pleno deserto, na cidade artificial que a construção de um açude fez surgir à margem do São Francisco. Operários, engenheiros, técnicos com suas famílias, cerca de quinze mil pessoas vivem nessas barracas, pousadas sobre pedregulhos e cercadas de arame farpado. Para entrar, tivemos que mostrar nossas carteiras de identidade. Um encarregado escoltou-nos, e nos fez visitar a colossal represa, ainda não terminada, que permitiria irrigar a região. Depois de almoçar na barraca que servia de restaurante, retomamos nossa monótona estrada. A cidade onde paramos à noite possuía aeroporto, mas era desprovida de eletricidade; passeamos depois do jantar, em ruas negras que tinham um cheiro de campo, e onde se empurravam, tateando, pessoas que voltavam de uma reunião eleitoral; de vez em quando brilhavam as lâmpadas de acetileno ou as velas de um botequim; bebemos cachaça, enquanto estouravam alguns fogos, sem entusiasmo. Durante mais um dia inteiro ainda, foi o mesmo mato e a mesma solidão; à noite, enfim, chegamos a Brasília.
“Uma maquete em tamanho natural”, anotei. Lamentei ficar sabendo que concordava com Lacerda: “Uma exposição de arquitetura em tamanho natural.” É essa falta de humanidade que logo salta aos olhos. A avenida principal, de cento e sessenta metros de largura e cerca de trinta quilômetros de extensão, faz uma curva tão suave que parece retilínea; todas as outras artérias lhe são paralelas, ou a cortam em ângulo reto, e cruzamentos ou trevos evitam qualquer perigo de colisão. Só se pode circular de carro. E, aliás, que interesse haveria em circular pelas quadras e superquadras de seis a oito andares, construídas sobre pilotis, e cujas variações superficiais não atenuam a sua elegante monotonia? Está previsto um bairro reservado aos pedestres, que imitará o emaranhado das calles venezianas: será preciso tomar um carro para ir andar, a dez quilômetros. Mas a rua, esse local de encontro entre moradores e transeuntes, lojas e residências, veículos e pedestres — sempre imprevista, graças a essa mistura caprichosa —, a rua, tão cativante em Chicago como em Roma, em Londres como em Pequim, na Bahia como no Rio, por vezes deserta e sonhadora, mas cujo próprio silêncio é cheio de vida, a rua, em Brasília, não existe e nunca existirá. Cada conjunto habitacional — quinze mil pessoas — possui sua igreja, sua escola, suas lojas, seus campos de esporte. Niemeyer perguntou-se diante de nós, com tristeza: “Pode-se fazer uma arquitetura socialista num país que não o é?”; e ele próprio respondeu: “Evidentemente, não.” A segregação social é mais radical em Brasília do que em qualquer outra cidade, pois há “blocos” luxuosos, outros medíocres, outros modestíssimos: seus habitantes não se misturam; crianças ricas não se sentam com as pobres nos bancos escolares; nem no mercado, nem na igreja, a esposa do alto funcionário chega a roçar a mulher do simples empregado. Como nos suburbs americanos, essas comunidades só concedem a seus membros um mínimo de privacidade: como cada um é igual a todos, nada há a ocultar a quem quer que seja. Brasília assemelha-se àquela cidade de cristal que Zamiatine imaginou em Nous autres: as fachadas são todas de vidro, e as pessoas não sentem necessidade de puxar as cortinas; à noite, a largura das avenidas permite ver, de alto a baixo, a vida das famílias nos cômodos iluminados. Certas alas residenciais, onde se alinham casas baixas, são chamados de “televisão de candango”: através das janelas do térreo, os operários de camisas vermelhas de terra contemplam os ricos que jantam, leem o jornal ou assistem à sua própria televisão. Dizem que existem empregados e secretários que adoram Brasília. Mas os ministros guardam a nostalgia do Rio, e Kubitschek teve que ameaçar demiti-los para obrigá-los a se instalarem na nova capital. Minúsculos aviões a jato lhes permitem pular de uma cidade para a outra em uma hora.
Entretanto, na Praça dos Três Poderes, todos os monumentos construídos por Niemeyer são belos: o Palácio do Governo, o Supremo Tribunal, os dois arranha-céus onde funcionam as repartições, as semiesferas invertidas que abrigam a Câmara dos Deputados e o Senado, a Catedral em forma de coroa de espinhos: tudo se harmoniza e se equilibra com sutis assimetrias e francos contrastes que enchem a vista. Niemeyer nos fez observar que os brise-soleil, tão importantes nos edifícios brasileiros modernos, desempenham o mesmo papel que outrora desempenhavam as volutas da arte barroca: resguardam da luz, evitando habilmente a linha reta. Ele nos explicou os problemas que teve de resolver para realizar certas proezas: o movimento, na horizontal, de um brise-soleil suspenso no ar espanta todos os visitantes. Graças a suas extravagâncias comedidas, naqueles palácios para funcionários, escapa-se — enfim! — ao funcional.
Muito longe, pelo menos a dez quilômetros, ergueu-se o Palácio da Alvorada, onde reside o Presidente, e ladeado de uma capela em espiral, perfeita. Reflete-se num lago onde duas ninfas de bronze ocupam-se em se pentear: conta-se que representam as filhas de Kubitschek, arrancando os cabelos porque foram obrigadas a vir para Brasília. Quando rodávamos por uma pista, através do mato, o prefeito, que nos acompanhava naquele dia, disse, em tom animado: “Ah, ai está a embaixada da França!” Virei-me; num cartaz, lia-se: embaixada da França; outros cartazes indicavam outras embaixadas.
O Brasília Palace, a um quilômetro do Palácio da Alvorada, também é obra de Niemeyer, e bonito, mas dentro dele sufoca-se; e que exílio! Mesmo de carro, comprar um vidro de tinta ou um batom era uma expedição penosa, por causa do calor e da poeira. O vento e o sol resistem às decisões dos construtores. Por toda parte, turbilhões de terra incandescente os desdenham. Na praça dos Três Poderes, seriam necessários rios de dinheiro para recobrir de asfalto a terra vermelha. Os homens tiraram do deserto a mais arbitrária das metrópoles; o deserto irá retomá-la, se algum dia a obstinação deles enfraquecer; o deserto a cerca, ameaçador. O lago artificial não refresca o olhar: essa placa de água azul parece o reflexo terrestre do céu em fogo.
Amado e Niemeyer nos levaram a Kubitschek; tivemos com ele, em seu gabinete, uma breve conversa formal. Ele considera Brasília como sua obra pessoal. Na Praça dos Três Poderes encontra-se um museu, de autoria de Niemeyer, consagrado à história da nova capital. Dir-se-ia uma escultura abstrata; é simples, inesperado e belíssimo; infelizmente, de uma das paredes surge, verde e em tamanho maior que o natural, a cabeça de Juscelino; embaixo estão gravados elogios rasgados que ele inspirou. Aos domingos, as pessoas vão em peregrinação — aonde iriam? em torno de Brasília não existe absolutamente nada — à casa de madeira onde ele passava breves temporadas na época em que as obras apenas começavam; visitam-na, bebem alguma coisa no café que fica à sombra de algumas árvores, e contemplam a estátua que tem no pedestal a inscrição O Fundador, seguida do relato de seus feitos.
Quando se necessita de uma passagem de avião, de um medicamento ou de qualquer outra coisa, é necessário percorrer uns vinte quilômetros para chegar à “cidade livre”, onde a construção não está regulamentada. Assim que foram traçados os planos de Brasília, construíram-se às pressas barracas de madeira que se transformavam em lojas, hotéis, restaurantes, agências e habitações. Dir-se-ia uma cidade do faroeste, mas, em vez de cavalos e charretes, eram carros, caminhonetes e caminhões que sulcavam as ruas vermelhas, num ruído ensurdecedor; as lojas irradiam músicas estrepitosas, os carros de publicidade berram slogans. Nas calçadas, uma multidão; pisam em nossos pés, a poeira avermelha nossos sapatos, entra nos ouvidos, irrita as narinas, arranha os olhos; o sol nos castiga: no entanto, sentimo-nos felizes, porque nos reencontramos na terra dos homens. Frequentemente há incêndios; com a secura, a maderia inflama-se rapidamente; pouco antes da nossa chegada, um quarteirão inteiro ardera; não houve vítimas, mas por toda parte viam-se escombros, destroços, móveis enegrecidos, sucata, colchões rasgados. Esquecíamos aquela tristeza vendo os candangos na rua, batendo nos ombros um do outro, e rindo. Eles não riam em Brasília. De dia, trabalhavam; à noite, por vezes, perambulavam com um ar melancólico por aquele mundo que construíam e que não era para eles.
Para compreendê-los, eu precisava lembrar-me dos bichos humanos encontrados na estrada, dos pardieiros de Recife, e de tudo quanto sabia do Nordeste. Acabara de ler Seara vermelha, onde Amado narra um antigo êxodo através da caatinga; naquela época, os camponeses atingidos pela fome — os flagelados — partiam a pé para o sul, e bem poucos sobreviviam. Agora, amontoam-se em caminhões que são chamados de “paus-de-arara”. Abarrotados, levados por um motorista que exagera na cachaça, muitas vezes capotam, e os jornais noticiam discretamente umas vinte ou trinta mortes. Por vezes, disseram-me que foi o que aconteceu em Brasília, quando um empreiteiro tem necessidade de mão-de-obra, paga ao motorista uma pequena quantia por cada recruta. Uma vez na obra, os homens não têm alternativa senão aceitar os salários e as condições de vida que lhes são impostos. Os operários de Brasília amontoavam-se em “cidades-satélites”, favelas gigantes, a vinte ou trinta quilômetros de seu trabalho. Observei que os motoristas dos caminhões que os transportavam pela cidade tratavam-nos com uma incrível brutalidade: não diminuíam a marcha nas paradas, e os candangos tinham que saltar do caminhão em movimento, e muitas vezes caiam no chão; disseram-me que as vezes feriam-se e até morriam.203
Ouvi inúmeras discussões sobre Brasília. Há cerca de cem anos os dirigentes do Brasil pensam em transportar a capital para o interior, e esse projeto sempre foi popular. Sim, mas Brasília não ocupa o verdadeiro centro do país: no limiar de imensas extensões inexploradas, é um posto da “última fronteira”. E passará muito tempo até que esses matos sejam recuperados pela civilização. Um agrônomo alemão a quem se perguntou sobre a possibilidade de cultivá-los respondeu: “Muito bem. Mas seria preciso importar milhares de buldôzeres, caminhões, tratores. E depois, toneladas de adubo… E terra, também.” Não existe nenhum recurso agrícola, mineral, nem industrial em torno de Brasília. A cidade se arrisca a permanecer durante muito tempo um subúrbio distante de São Paulo e do Rio, tendo por ligação uma única estrada — a quem havíamos percorrido — e aviões. Kubitschek nos disse justamente que a existência de Brasília obriga a criar uma rede rodoviária que unificará o país: começou-se a construir através da floresta virgem a estrada que ligará Belém a Brasília. Os adversários respondem que as obras já custaram em cruzeiros e em vidas humanas um preço que nenhuma vantagem prática compensara: a estrada só irá facilitar a passagem do contrabando de Belém — carros americanos, perfumes etc. — para São Paulo e Rio. O fato é que o Nordeste não tem necessidade de escoadouros, pois não produz quase nada; ao contrario, corre o risco de que seu pobre artesanato — a manufatura de sapatos, por exemplo — seja arruinado pelo afluxo das mercadorias paulistas. Os capitais tragados por Brasília poderiam ter servido para dotar o Nordeste de uma rede local de estradas, para irrigá-la e para implantar indústrias. Amado reconhecia que Brasília era um mito: mas dizia que Kubitschek só conseguira adesões, créditos e sacrifícios porque se apoiava num mito; a nação teria recusado tudo isso a empreendimentos mais racionais, mas menos fascinantes. Talvez. Guardo a impressão de ter visto nascer um monstro cujo coração e cujos pulmões funcionam artificialmente graças a processos de custo mirabolante. Em todo caso, se Brasília sobreviver, a especulação vai apoderar-se dela. Os terrenos que beiram o lago e que deviam, na concepção de Lucio Costa, permanecer propriedade pública, já começaram a ser entregues pela municipalidade e compradores particulares. Está ai mais uma das contradições brasileiras: a cidade número um desse país capitalista foi planejada por arquitetos ligados ao socialismo. Eles fizeram belas obras e construíram um grande sonho, mas não podiam ganhar.
Eu desejava ver índios. Amado nos disse que se podia encontrá-los a cerca de oitocentos quilômetros, numa ilha fluvial imensa e quase deserta, onde Kubitschek acabava de fundar uma nova cidade, a mais ocidental do Brasil. O administrador da ilha nos convidou a visitá-la. Amado, que decididamente não gostava muito de avião, ficou em Brasília. Seu irmão e Zélia embarcaram conosco no pequeno aparelho posto à nossa disposição; estávamos sozinhos com o piloto e um comissário. Sobrevoamos cerrados de um verde-escuro cambiante, ainda virgens. Ao cabo de duas horas, o rio apareceu, estreitando entre seus braços gigantes uma ilha cujo fim não se distinguia. “Os índios estarão no aeroporto”, disse o piloto, rindo. Não estava brincando. Pudemos vê-los ao longe, quase nus, penas na cabeça, arcos na mão, com os cabelos duros emoldurando os rostos pintados de vermelho e preto. “Querem ir até eles, ou preferem que venham a vocês?”, perguntaram-nos, quando saímos da cabine. Fomos até eles. Saudaram-nos com gritos desprovidos de convicção. Atrás deles estavam mulheres vestidas com os farrapos cotidianos, filhos nos braços, aparência abatida. Sentíamo-nos terrivelmente constrangidos com aquela palhaçada e com nosso papel idiota. Troca de sorrisos, apertos de mão; eles nos deram — como lhes fora prescrito — armas, flechas, diademas de penas, que tivemos que colocar na cabeça. Depois, sob um calor infernal, visitamos sua aldeia: num cercado de bambu, grandes tendas cheias de mulheres e crianças, deitadas no chão, ou em redes. Protegidos pelo governo, os índios pescam, cultivam alguns pedaços de terra, fabricam, com o barro, bonecos e vasos que são vendidos em seu benefício, ou que eles dão de presente aos visitantes — os quais, em troca, doam à fundação uma quantia em dinheiro. Trouxemos taças de terracota, decoradas com motivos negros e vermelhos, e bonequinhos: mulheres sentadas ou em pé, ninando os filhos ou trabalhando. Na sombra das tendas, notei pobres papagaios depenados: haviam tirado de suas costas os adornos que nos ofereceram. Lavados de sua cerimoniosa maquiagem, alguns homens tinham a aparência robusta e serena; as mulheres, embora tivessem, segundo nos disseram, muita influência na comunidade, pareciam degeneradas. Arrancados de sua condição natural, sem serem assimilados como os das “reservas” do Novo México, aqueles índios levavam uma vida tão artificial quanto a dos animais de um zoo. O piloto propusera levar-nos para ver uma tribo menos domesticada, num local que ficava a uma hora de avião: eu esperava que pudéssemos ir, depois de um rápido almoço.
Um jipe nos transportou ao centro — cantina, dormitório, dispensário — onde moravam as pessoas da fundação. Havia um jovem médico que desprezava cegamente os índios, e dois barbudos que, amando-os, desprezavam muito lucidamente os outros brancos. Recentemente, quase tinham sido massacrados por uma tribo de Mato Grosso, mas isso em nada mudara seus sentimentos. Poderiam ter-nos informado sobre essa aldeia, mas como detestavam os turistas que vêm olhar homens como se fossem animais curiosos, viraram-nos as costas com uma indelicadeza muito simpática. Ficamos sentados na varanda, olhando o perigoso Mato Grosso, do outro lado do grande rio que corria num nível mais baixo. Finalmente ouvimos o roncar de um avião: o governador e o abastecimento. O administrador cumprimentou-nos, esvaziou uma garrafa de cerveja sem oferecer a ninguém, e se deitou numa rede. Começaram a amontoar, em jipes e em barcos a motor, mesas, cadeiras, caixas de louça, víveres: íamos comer na nova cidade de Kubitschek, a quilômetros dali. Quando? Eu tinha fome, sede e calor, e aquela expedição me parecia idiota. Um antigo cacique veio fumar seu cachimbo perto de nós, e falou conosco em português. Alguém nos contou que, quando fora indicado como cacique, um primo seu disputara com ele essa honra, e fora queixar-se a Vargas, que viera visitar a aldeia. “Que ganhe o melhor”, dissera o Presidente, sugerindo que lutassem. O primo venceu. Censurou-se muito Vargas por ter posto em discussão a decisão da tribo. Por volta de três horas tomamos uma canoa. O sol martelava-me a cabeça, e o próprio rio lançava chamas. Um dos barbudos banhava-se perto do embarcadouro, com precaução, pois as águas são infestadas de pequenos peixes carnívoros de dentes ágeis. Não se juntou ao nosso grupo. “Onde está a cidade?”, perguntei. Mostraram-me um hotel destinado ao turismo, mas que ainda não estava mobiliado. Belo exemplo do blefe brasileiro! O lugar era importante: praias de areia branca, o rio cor de aço, e o infinito dos planaltos cobertos de mato, sob um céu metálico. Mas que nudez tórrida! Refugiamo-nos na casa, entre as estacas — o único local com sombra —, e, enquanto mulheres punham a mesa, o médico pôs para tocar discos de Carlos Gardel. Zélia arrancou das mãos do administrador uma garrafa de cerveja, e bebemos. Enfim foi servido o arroz de camarão; eu estava tão faminta que não tinha mais fome. Sartre esforçava-se por conversar: “Trèèès intéressant”, respondia ao que o administrador dizia. “O hotel certamente irá atrair jovens casais em lua-de-mel.” “Trèèès intéressant.” Chegou mesmo a fazer perguntas: “Haverá aviões para trazê-los?” Seu excesso de boa vontade desencadeou em Zélia um tal ataque de riso, que ela saiu da mesa, fingindo ir admirar um arbusto de flores felpudas; um dos convivas precipitou-se para indicar-lhe o toalete.
Não se cogitou mais de ir ver a outra aldeia; aliás, também administrada por brancos, ela não nos forneceria maiores informações. As únicas tribos interessantes são inacessíveis e perigosas. Muitos marginais escondem-se na região, usam armas e se divertem em matar os “selvagens”: as autoridades mandaram executar um desses assassinos diante dos índios; mas isso não bastou para tranquilizá-los; quando avistam um branco, atacam.
Eram seis horas quando o barco nos trouxe de volta ao centro. O médico ficara no hotel, com o jipe. “Se não partirmos imediatamente, teremos que passar a noite aqui”, disse o piloto. O aeroporto de Brasília não é iluminado à noite, e é proibido aterrissar nele após o pôr do sol. Sartre deu um salto: “Vamos a pé!” Apesar da nossa carga de objetos de barro, percorremos a pé o quilômetro que nos separava do aeroporto. Já estávamos instalados, as hélices já rodavam, quando o médico apareceu, completamente bêbado, agitando os braços. Içaram-no, ele caiu deitado e adormeceu. Suspiramos de alívio quando nos vimos reunidos, os quatro.
Poucos dias depois, os Amado partiram para o Rio. Eu estava comovida ao deixá-los. Íamos subir novamente para o norte, e partiríamos de Manaus para Havana: fôramos convidados para ir lá, e as passagens deviam estar à nossa espera numa agência; caso contrário, tomaríamos um avião em Recife para voltar a Paris. Depois de seis semanas de tão bom relacionamento, era difícil imaginar que só os reveríamos muitos anos depois; ou talvez nunca mais.
O reitor de Fortaleza, que encontráramos em Recife, fizera-nos um convite. Tão perto do equador, era espantoso o frescor do vento; que prazer reencontrar o movimento do mar e uma verdadeira cidade! Ali estavam novamente as jangadas de velas brancas, um mercado coberto cheio de odores fortes, de estreitas ruas comerciais — tecidos, sapatos, roupas, farmácias —, praças caprichosas, jardins cercados, quiosques e uma efervescência humana. Sartre deu uma conferência, houve um almoço oficial num clube à beira-mar e um coquetel nos jardins da reitoria, onde o coral dos estudantes cantou músicas folclóricas. Mas restaram-nos longos lazeres. Sentávamo-nos à noite sob as folhagens luzidias de um jardim, no terraço de um café-restaurante onde soldados vinham beber com jovens putas; pescavam-nas na zona dos bordéis, que ficava próxima: um pedaço da fervilhante favela que se esmagava contra o mar; nos botequins muito abertos e nas aleias, homens e mulheres riam e conversavam, aproximados, além da venalidade do seu comércio, pela pobreza comum. Certo dia, ao cair da noite, atravessei um outro pedaço da favela: aqueles crepúsculos eram emocionantes pela rapidez; mal a luz da tarde esmaecia, já o horizonte flamejava, e já era noite. As jangadas encalhadas na praia pareciam grandes pássaros mortos; homens e mulheres, que tinham vindo a pé ou no lombo de burros, compravam o peixe trazido pelos pescadores; quase não falavam e, na suavidade do dia agonizante, aquele silencioso intercâmbio entre deserdados tinha a simplicidade das trocas primitivas. Quando voltei pelo mesmo caminho, lamparinas luziam nos barracos da favela.
No pequeno café do jardim, um disco tocava repetidamente uma música que louvava Jânio. Este último desembarcou certa tarde em nosso hotel, com sua comitiva. Foi uma loucura, à noite. Bandos de jovens percorriam as ruas berrando e dançando, com vassouras na mão. Uma hora antes do seu discurso, a grande praça estava coberta de pessoas armadas de vassouras. Alto-falantes, fogos, gritos e risos. A vitória de Jânio parecia certa, e Sartre até gostaria de encontrá-lo: mas nossos amigos, que votavam em Lott com a morte na alma, ficariam constrangidos.
Depois de tanto ouvir falar, desejávamos ver a caatinga — a floresta branca. Um professor nos confiou ao chefe da polícia local, que falava francês e possuía terras na região. Quinquagenário, calvo, ele comentou como amador o Cyrano, de Rostand, enquanto saíamos da cidade. A princípio a paisagem foi dominada por altas palmeiras espinhosas — as carnaúbas; com seus troncos, fabricam-se cercas e paredes, cobrem-se tetos com suas fibras, comem-se seus frutos e seu miolo; e sobretudo recolhe-se a cera que protege suas folhas contra a seca, impedindo-as de respirar, exportando-a para a fabricação de filmes, discos, velas e fósforos. Pertencem a grandes proprietários que se opõem, segundo ouvi dizer, à irrigação da região. Logo desapareceram; só se viram arbustos mirrados, lenhosos e espinhosos, de insípidas folhas acinzentadas; e cactos: em forma de círios, candelabros com múltiplos braços, alcachofras gigantes, raquetes, polvos, rosetas, ouriços-do-mar. Foi nessa ingrata natureza que floresceram os iluminados e os cangaceiros, que punham sua esperança em Deus, ou sua confiança nas armas para transformar a sua interminável agonia em vida humana. Santos e bandidos extinguiram-se. Para combater a fome, agora só se conta com os açudes, onde se armazena a água das chuvas: a maioria secou. Vimos um, do tamanho de um lago, onde homens vinham com burricos encher pequenos tonéis que levavam, muitas vezes para muito longe; graças à essa reserva, seria possível fertilizar numa vasta região um solo que, uma vez molhado, produz: mas nenhum sistema de canalização fora esboçado. Economistas pretendem que todo programa de irrigação do “polígono” é utópico; a única solução seria transportar a população para o sul. Outros acham que, com bastante dinheiro, seria possível tornar essa zona cultivável; outros pensam que, desde já, a condição dos camponeses seria mais suportável se eles explorassem a terra por conta própria, e segundo suas necessidades; mas uma verdadeira reforma agrária exige uma revolução, bem improvável.204 Provavelmente por muito tempo ainda, as crianças do polígono continuarão a comer, na falta de alimento, a terra que, nutrindo-as, causa a sua morte. O policial, entretanto, queixava-se de que no Brasil tudo andava depressa demais; tinha-se abolido prematuramente a escravidão, e agora pretendia-se prematuramente despertar e instruir os camponeses. Uma pane interrompeu suas considerações. Demos alguns passos, na vã esperança de nos abrigarmos à sombra de uma casa: o sol me esfolava.
Consertando o carro, passamos por um casal que levava pela mão um meninozinho vestido de franciscano; mais adiante, uma família descansava numa vala, sob uma lona. A festa de São Francisco estava próxima e, naquele dia, uma imensa peregrinação invadiu a pequena cidade onde paramos. Os batedores de carteira entram em ação durante a festa, e nosso policial acabava de garantir que o serviço de policiamento estava em ordem. Almoçamos num albergue protegido pela sombra; a proprietária não aceitou um tostão; o mesmo aconteceu com o dona do café onde bebemos alguma coisa, no caminho de volta: a amizade do chefe de polícia bem que valia alguns presentinhos.
Na rua, vendiam-se horríveis imagens do santuário dedicado a São Francisco; ele era tão feio quanto elas. Mas o galpão dos ex-votos era ainda mais extraordinário que a sacristia do Senhor do Bonfim. No meio, amontoavam-se objetos de madeira que todo ano são queimados numa fogueira: bonecas feiticeiras, braços, pernas, pés, mãos, cabeças, sexos, muletas; o monte chegava quase ao teto. Nas paredes, fotos, desenhos e pinturas representavam os acidentes dos quais o fiel escapara, ou as doenças curadas por são Francisco: úlceras, chagas, tumores, lupas, bócios, pústulas, dartros, aleijões, deformações. Os órgãos ou membros doentes eram representados em gesso ou em cera: fígados, rins e inúmeros sexos; o tempo fizera mofar e apodrecer esses simulacros: chegava a dar nojo ter um corpo.
Ao voltarmos, na clemência da tarde, a caatinga parecia menos implacável. Atravessamos uma aldeia onde bandeirolas, guirlandas e cestos anunciavam uma festa; passamos por velhos carros apinhados de jovens, e por bandos e marcha; os rapazes usavam vistosas camisas verdes, e as moças vestidas de cores vivas; elas traziam os sapatos nas mãos, para não sujá-los e para descansar os pés.
Sartre não estava com muita vontade de ir à Amazônia, onde ninguém nos convidara. Mas Bost fizera recentemente, na Temps Modernes, uma descrição de Manaus que despertara minha curiosidade; Alejo Carpentier e Lévi-Strauss a tinham reavivado. “Sim, vocês devem ir a Amazônia”, dissera-me Cristina T., “as pessoas têm uma outra maneira de se entediar”. Assim, aterrissamos uma noite em Belém. Era novo e agradável não sermos esperados, mas não havia táxis, e na sufocante umidade do aeroporto sentimo-nos um pouco desamparados. Acabamos por encontrar um, que nos levou ao hotel. Os quartos eram estufas; no bar com ar-condicionado, tremíamos de frio. Mal saíamos, um calor úmido envolvia-nos languidamente, cortando-nos a respiração. Agora só tínhamos dinheiro francês; o hotel o recusou, assim como o banco ao qual me dirigi; indicaram-me um outro, o único que aceitava trocar moeda estrangeira: dólares americanos, exclusivamente. Que fazer? Discuti em inglês com o funcionário, que acabou por telefonar a um conhecido seu. Era um vendedor de curiosidades — serpentes empalhadas, adornos de plumas, cerâmica indígena —, que me comprou francos pela metade do seu valor. Indaguei sobre um avião para Manaus: não havia lugar antes de três dias. Parece muito tempo, quando o clima e as circunstâncias impedem qualquer atividade. No entanto, guardei uma boa lembrança de Belém. Nos cais do Amazonas, no mercado, entre os cestos amontoados uns sobre os outros, perambulavam negros, estrangeiros, contrabandistas, aventureiros, toda espécie de pessoas que se divertiam, enchendo também as tabernas. A foz do rio, de trezentos e cinquenta quilômetros de largura, encerra uma ilha maior que a Suíça, cuja vegetação úmida podíamos distinguir, muito além das águas maciças. A velha cidade portuguesa quase intacta: igrejas, casas em estilo colonial, praças plantadas de árvores frondosas e decoradas de azulejos. Longe do centro, em grandes avenidas que na verdade eram terrenos baldios, palhoças banhavam-se na exuberância das bananeiras; palmeiras projetavam-se, soberbas, para o céu turvo; do limo amarelado emergia um odor de estufa, de verdura agonizante e de terra arada. Diante do hotel estendiam-se jardins; num quiosque exoticamente decorado, tomávamos sorvetes exóticos, vendo passar os reluzentes carros americanos introduzidos por contrabando, enquanto no Rio e em São Paulo eles quase não eram encontrados. É tal a reputação de Belém, que São Paulo envia para lá perfumes que são vendidos como importados clandestinamente de Paris. Durante o dia inteiro, alto-falantes ambulantes exortavam os eleitores a votarem em Jânio, e à noite estouravam mil fogos. Em compensação, o dia das eleições foi muito calmo.
Certa manhã, no bar do hotel, um jornalista abordou Sartre: “Fui eu o primeiro a anunciar sua morte”, disse. Alguns anos antes, durante uma considerável bebedeira, ele telegrafara a seu jornal, comunicando que Sartre acabava de morrer num desastre de automóvel, nos arredores de Belém. Um jornalista parisiense batera à porta da rua Bonaparte, e perguntara a mãe de Sartre se ele estava no Brasil, naquele momento. “Não”, disse ela, “ele está aqui.” “Ah, bem! É porque estão anunciando que ele sofreu lá um acidente de automóvel…” Ela pensara que fosse desmaiar; abrira a porta do escritório para certificar-se de que Sartre estava lá. Essa fantasia valera a seu autor uma certa notoriedade. “Não vá morrer num desastre de avião, pois desta vez ninguém acreditaria em mim…”
Sobrevoei o Amazonas e a infinita rede de seus afluentes, através do verde infinito de suas florestas, ao mesmo tempo encantada e despeitada, pois sabia que não voltaria a ver nada daquelas coisas. Todo mês parte um avião de Manaus para reabastecer os armazéns longínquos, onde os índios vão comprar víveres: mas não íamos visitar suas aldeias e, de qualquer maneira, não cogitávamos permanecer mais de três ou quatro dias em Manaus. Haviam-me dito que era um lugar surpreendente. Transformada em opulenta capital no fim do século XIX, graças à invenção da borracha, arruinou-se em poucos meses quando, a partir de 1913, as sementes roubadas pelo inglês Wickam deram origem a inigualáveis plantações de seringueiras no Ceilão e em Java. Quase todos os habitantes abandonaram a cidade, sobrando apenas uma carcaça, que logo começou a se decompor; a implantação de pequenas indústrias trouxe uma população de cento e setenta mil almas que, por entre os vestígios de um esplendor extinto, vegetam entre a floresta impenetrável e o rio Negro, a única via de acesso, excetuando o avião.
Do hotel Amazonas, um belo edifício prismático, construído há poucos anos, veem-se estreitos rios, esmagados por uma abóbada de verdura, por onde deslizam barcas carregadas de turistas risonhos, que empunham fuzis. Reproduzidas em prospectos, essas imagens atraíram, há cerca de dez anos, jovens ricos de São Paulo, que vieram gozar dos prazeres da caça, da pesca e do mistério. Voltaram sem nada ter visto e sem dar um tiro sequer, e clamaram seu desapontamento. O hotel estava quase deserto. Ao contrário do que acontecera em Belém, ficávamos gelados nos quartos e transpirávamos no bar e no restaurante. Quando estávamos fora, virávamos farrapos gosmentos. Às seis horas, quando o sol se extinguia como uma vela, uma nova onda de calor subia do solo, tão densa quanto a noite, que nenhuma luz penetrava: não havia eletricidade em Manaus (em todo caso, o hotel possuía gerador). A saliva secava em nossas bocas, e era impossível comer. As ricas moradas de outrora — mármore importado da Itália, pedra talhada — haviam-se arruinado sem graça, e o mato as invadia; só o porto tinha vida, com seus barcos carregados de passageiros e de mercadorias, suas docas flutuantes, suas casinhas que avançavam para a água, e o correr do rio negro.
Tampouco em Manaus, nenhum banco se encarregava dessa perigosa especulação: trocar francos; mas um velho joalheiro alsaciano nos forneceu cruzeiros ao câmbio normal, e sem problemas. Seu amigo, o agente consular, outro velho francês estabelecido havia cinquenta anos na Amazônia e muito acolhedor, nos fez percorrer de carro a estrada que atravessa a floresta, por alguns quilômetros. A Tijuca tinha muito mais atrativos; aqui, sabíamos que estávamos cercados por um oceano de clorofila, mas só víamos duas cortinas de árvores; não tínhamos a impressão de estar num lugar especial. A excursão do dia seguinte nos deixou ainda mais desambientados. A Amazônia deposita hoje suas esperanças no petróleo, e a Petrobras faz prospecções. Num barco da Companhia, com o cônsul e um técnico suíço, descemos o rio: suas vagas castanhas com reflexos avermelhados separam-se do Amazonas branco por uma linha tão nítida que parece traçada à mão sobre um terreno sólido. Pescadores sentados em barcos lançavam suas redes nas águas onde pululam peixes carnívoros. Subimos um rio até acampamentos flutuantes onde estavam os refeitórios e dormitórios dos operários e técnicos do petróleo; com partilhamos sua refeição; depois, num caminhão descoberto, agredidos pelo sol, chegamos a uma torre; de cada lado do caminho e em torno da clareira, a hermética espessura dos bosques detinha nosso olhar. Estávamos longe dos glaucos mistérios evocados por Alejo Carpentier. Voltei para o hotel extenuada. Pela manhã, o cônsul nos fez admirar o mais absurdo dos florões de Manaus: o teatro, todo de mármore, encimado por uma cúpula policroma, onde dançaram e cantaram os mais famosos artistas do mundo. Eu não me aguentava mais em pé, a terra tinha febre, eu estava banhada no suor dela e no meu próprio suor, sentindo-me também febril. Deitei-me. “Vamos partir, de qualquer maneira?”, perguntou-me Sartre. Sim! Ah, sim! Ao aspecto sinistro da cidade e ao meu cansaço juntava-se a angústia de nos sentirmos isolados do mundo. Não havíamos encontrado passagens para Cuba, e não conseguíramos comunicação com o Rio. Tentávamos em vão trocar telegramas com os Amado. No Brasil, só funciona bem o serviço telegráfico americano, cuja rede não se estende até Manaus: um telegrama do Rio leva uma semana para chegar, disse-nos a cônsul, se chegar. Estavam acontecendo coisas em Paris; a companhia telefônica comunicou-me uma ligação pela qual esperei duas horas: a voz de Lanzmann estalava ao longe, dizendo-me para não voltar à França enquanto não recebesse carta sua; ele não me ouvia, e sua voz extinguiu-se no meio de uma palavra. Eu tinha pressa de voltar a Recife e a Paris. O cônsul nos acompanhou à noite ao aeroporto, comentando as eleições. A apuração dos votos exige semanas, de tal modo o país é vasto e mal aparelhado: mas Jânio já disparara tanto, que sua vitória estava assegurada. O governo de Manaus, entretanto, votara em Lott: era de esquerda, e honesto. “Há duas espécies de governadores”, explicou o cônsul: “os maus, que põem todo o dinheiro no bolso e nada fazem; e os bons, que põem dinheiro no bolso e fazem alguma coisa.”
Dezoito horas de viagem; aterrissávamos a cada duas horas, e eu sufocava nos pequenos aeroportos. Quando chegamos, por volta de oito horas da noite, o fiscal de Alfândega pretendeu revistar nossas bagagens: qualquer um que chegue da Amazônia é suspeito de contrabando. A irritação de Sartre e a intervenção de Cristina T., que viera buscar-nos, nos liberaram. Apesar do meu cansaço, acompanhei os dois ao restaurante, pois no Nordeste é indecoroso um homem sair sozinho com uma moça. Pelo mesmo motivo, participei no dia seguinte do passeio planejado por Cristina. Estávamos felizes por revê-la. Havia em suas revoltas tanta profundidade quanto entusiasmo, e uma grande generosidade: não as dirigia contra o conformismo — para ela constrangedor — do seu meio, mas contra a injustiça. A palavra “comunista” assustava-a; Cristina chegara há suas posições atuais através de numerosos preconceitos: e era isso que garantia a sua sinceridade e sua solidez. Além disso, transbordava de vida, era alegre e bem-humorada, com um fundo de melancolia, pois sentia-se muito só. Mas eu realmente me sentia muito mal. Arrastei-me pelos lúgubres mercados dos lúgubres vilarejos cuja miséria ela queria mostrar-nos. Durante dois meses eu amara o Brasil; ainda o amo, através das minhas recordações: mas naquele momento, de repente, senti-me inteiramente farta da seca, da fome e de toda aquela angústia.
Durante toda a noite ardi em febre — a tal ponto que de manhã cometi a imprudência de pedir um médico. Um amigo do dr. T. — irmão de Lucia e Cristina — diagnosticou: tifo; mas o deles se curava em alguns dias. Uma injeção de penicilina fez baixar minha febre. Mesmo assim, ele fez com que me internassem no hospital de doenças tropicais.
Nunca esquecerei aqueles dias, com seu gosto infernal de eternidade. Eu tinha um quarto só para mim, com banheiro, e enfermeiras muito gentis. Mas estava justamente bastante forte e bastante enfraquecida para que esse retiro me parecesse insuportável. Tarde da noite, os doentes e o pessoal do hospital tagarelavam; a cada quarto de hora soava o carrilhão de um relógio; quase tive uma crise de nervos, no primeiro dia, quando me acordaram de madrugada, pois mal acabara de fechar os olhos. Depois habituei-me ao barulho; desde as cinco horas eu me sentava na cama e pensava desfalecer a ideia de todo aquele dia que teria de atravessar. Tinha preocupações. À noite, Sartre engolia melancolicamente um ou dois uísques no bar do hotel, e ia deitar-se às dez horas; para dormir, entupia-se de gardenal. O farmacêutico brasileiro não exige receita: “Em comprimidos, ou injetável?” — é a única coisa que pergunta. (Pois os brasileiros tomam injeções — de penicilina, ou de qualquer outra coisa — com uma facilidade espantosa.) Mesmo assim, aconteceu-lhe acordar às duas horas da manhã e se aborrecer tanto, que foi barbear-se. Ao sair da cama, pela manhã, cambaleava à minha cabeceira, e um dia em que me injetavam soro, quase derrubou o aparelho. Desde o outono de 1958, ao menor alarme, a morte me atormenta: eu esperava Sartre e o deixava com medo; e os romances policiais em inglês que ele comprava para mim na única livraria da cidade quase não serviam para me distrair, pois eu já lera quase todos.
Além do mais, a carta anunciada por Lanzmann não chegava; e não tínhamos jornais franceses. A embaixada, no Rio, fazia correr, cada vez com mais insistência, o boato de que Sartre iria para a cadeia ao voltar. A colônia francesa em Recife insinuava que minha doença era diplomática, e que estávamos com medo de voltar. Na verdade, tínhamos pressa de ser acusados, como nossos amigos. Eu detestava sentir-me prisioneira naquele hospital, comendo implacavelmente, de manhã e de noite, a mesma canja de galinha. Da minha cama, avistava coqueiros erguidos para o céu de um azul muito claro; via canaviais, bambus, verduras um pouco murchas e, no horizonte, a cidade; debruçava-me à janela e olhava palhoças e mulheres que se ativavam em torno de pequenos fogareiros. Houve algumas chuvas, violentas e breves, e muitas vezes um vento pesado e lento. Enfeitiçada por essa paisagem demasiado calma, por seu silêncio úmido, eu me sentia vítima de um feitiço: jamais partiria dali. Na paz dissimulada de uma madrugada em que o mundo ainda dormia, vi um jovem negro escalando descalço o tronco de um coqueiro: jogou cocos no chão; ágil, gracioso, tão perto e tão longe de mim, sua presença e a minha puseram-me lágrimas nos olhos. As noites eram belas, com as luzes verdes e vermelhas de Recife ao longe, mas eu sentia um aperto na garganta ao pensar em mais essa noite a vencer, em pesadelos a afastar e no outro dia que eu teria de recomeçar.
A eternidade durou sete dias. Recebi a carta de Lanzmann. O processo de Jeanson terminara em 4 de outubro, com um veredicto odioso. As acusações contra os “121” — cuja lista alongara-se muito — continuavam a chover. Os signatários não tinham mais direito de se apresentar no rádio, na televisão, nem mesmo de ter seus nomes citados no decorrer dos programas. Vidal-Naquet fora suspenso, Barrat preso. Em Metz, num discurso, Debré denunciara os “121” e suas “agitações ao mesmo tempo medíocres e horríveis”. Em 1° de outubro, realizaram investigações e prisões na Temps Modernes, na Esprit, na Vérité et Liberté; Domenach, Péju e vários outros haviam sido retidos durante horas pelas polícia. O número de outubro da Temps Modernes fora apreendido. Durante uma manifestação, sobre a qual a imprensa falara muito, cinco mil antigos combatentes haviam desfilado nos Champs-Élysées, gritando: “Fuzilem Sartre.” Em nome de todos os amigos, Lanzmann nos pedia que ficássemos em Barcelona, onde viriam nos pôr a par da situação.
Eu disse ao médico que desejava partir: ele objetou que eu estava com tifo, e que o hotel me recusaria. As irmãs T. que, com a família, moravam naquele momento numa casa de praia, ofereceram-me sua casa de Recife. Passei três dias num quarto à antiga, que um aparelho de ar-condicionado, primitivo e barulhento, mal conseguia refrescar: o verão anunciava-se, e por trás das vidraças o calor me sitiava. De manhã cedo, as primas das T., que moravam numa casa em frente, mandavam trazer-me o café da manhã. Certa vez, fiquei espantada ao ouvir a voz de Sartre, às seis horas, vinda do jardim. Ele se entediava tanto por não conseguir mais dormir, que se levantara. O jovem dr. T. veio examinar-me, certa noite; estava demorando, e eu disse a suas irmãs e a Sartre que fossem jantar sem o esperar; elas recusaram: não se pode deixar um homem sozinho com uma mulher, mesmo com a minha idade, numa casa. Elas não partilhavam esses preconceitos, mas na rua inteira primos as vigiavam. O doutor autorizou-me a pôr o nariz do lado de fora. Ao cabo de quinze minutos de caminhada por ruas onde o ar me pareceu espesso como um xarope, com Sartre vacilando ao meu lado, desabei, meio desfalecida, no terraço de um café; desmaiei dois dias mais tarde, no Rio, no primeiro almoço em companhia dos Amado, numa churrascaria que nos era familiar.
O encarregado de negócios cubano, desistindo de conseguir alcançar-nos por telefone, fora a Recife: Havana insistia para que ali passássemos alguns dias; a única maneira de ir até lá era descer de novo até o Rio, a mil e seiscentos quilômetros. O prazer de rever os Amado e Copacabana me foi estragado pelo cansaço; além disso, eu sentia saudade da minha terra, embora Lanzmann me tivesse repetido ao telefone que os ultras queriam a cabeça de Sartre.
Na noite de nossa partida para Cuba, um vendaval varria o aeroporto; molhava as palmeiras que ficavam em vasos, no hall de entrada, e fazia rodopiarem os papéis. Durante horas, bestificados, sonolentos, esperamos que acalmasse. Finalmente, embarcamos. Os motores cuspiam fogo demais; era uma dessas noites em que o pior parece inevitável; quando aterrissamos em Belém, em meio a trevas pegajosas, o absurdo de me encontrar de novo ali confirmou meu pressentimento: aquele continente era uma armadilha da qual não escaparíamos. Só serenei quando descobri, de manhã, um planalto estrangulado entre uma penedia e um mar azul-turquesa: Caracas estava a nossos pés. Pousamos. Tomando café no bufê, contemplei, cintilante, com todas as suas vigias refletindo ao sol, o avião que nos arrancaria, dali a uma ou duas horas, daquelas terras de miséria: uma velha passava entre as mesas, recolhia pedaços de pão, ossos de costeletas, restos de clara de ovo, embrulhando-os num papel para dar de presente à família. Estudantes pediram que Sartre se detivesse por alguns dias em Caracas: eles nos eram simpáticos, e havia agitação na Venezuela. (Houve uma manifestação de estudantes naquela tarde mesmo, e poucos dias depois a polícia matou vários.) Mas éramos esperados em Cuba, e estávamos impacientes por voltar lá.
Um funcionário do aeroporto aproximou-se: “Tem passagem de volta? Sua passagem para Paris? Não? Então não podem partir. Ordens de Havana.” “Mas somos convidados”, disse Sartre. “Provem.” Não tínhamos mais um tostão no bolso para pagar passagens de volta, e nenhum documento oficial. O reluzente avião ia decolar sem nós! Sartre telefonou à embaixada cubana e enfrentou os funcionários do aeroporto com uma fúria que acabou por vencer. No último minuto, deixaram-nos subir. Jamais iríamos compreender as razões desse contratempo: os cubanos não tomavam nenhuma medida contra a imigração.
Enfim, a costa ficou para trás! Enfim! Sobrevoamos a Jamaica, e até parecia que, com um breve voo, alcançáramos a Inglaterra: gramados verdejantes, mansões ladeadas de piscinas. Sartre, que já estivera ali, disse-me que não havia no mundo colônia mais sinistra. E logo chegamos a Havana, onde nos esperavam nossos amigos — menos Franqui e Arcocha, que naquele momento estavam em Moscou — e músicos fantasiados, que dedilhavam guitarras.
Havana mudara; não havia mais boates, nem jogo, nem turistas americanos; no hotel Nacional, meio vazio, milicianos muito jovens, rapazes e moças, realizavam um congresso. Por toda parte, nas ruas, nos telhados, milicianos faziam exercícios. Sabia-se, por diplomatas guatemaltecos, que tropas de imigrados cubanos e de mercenários americanos se exercitavam na Guatemala. Tentariam tomar a ilha e, em nome de um governo fantoche, chamariam os EUA em seu auxílio. Diante dessas ameaças, Cuba endurecia; a “lua de mel da revolução” terminara.
Oltuski não era mais ministro. Trabalhava no Instituto que Guevara acabava de criar para a industrialização do país, o qual nos fez visitar. Os dirigentes não nos ocultaram suas dificuldades: careciam de quadros; certos engenheiros trabalhavam, cada um, no planejamento de três ou quatro indústrias diferentes; e, no entanto os capitais destinados à renovação de fábricas não puderam ser empregados em sua totalidade.
Visitamos, perto de Havana, uma manufatura de tecidos: uma instalação já antiga, com oficinas bem arrumadas, cercada de árvores e de relva, com confortáveis casas para o pessoal de nível superior e para os operários. O parque estava em festa: os operários com suas mulheres, decotadas e enfeitadas, seus filhos, vendedores de sorvetes e balas. De um quiosque, no meio do gramado, Sartre falou de sua amizade por Cuba. Interrogaram-no sobre a França, e por sua vez ele fez perguntas: que vantagens os trabalhadores da manufatura haviam tirado da mudança de regime? Alguns operários iam responder: um dirigente sindicalista os deteve, e respondeu em seu lugar.
Durante nosso encontro com os intelectuais, Rafael e Guillén, que em abril não haviam aberto a boca, falaram muito alto. A propósito da poesia, Guillén declarou: “Considero toda busca formal como contrarrevolucionária.” Exigiam a submissão às regras do realismo socialista. Alguns escritores nos disseram em particular que, a despeito de si mesmos, eles começavam a fazer uma autocrítica, e cada um se perguntava: “Serei realmente um revolucionário?”
Menos alegria, menos liberdade; mas, sob certos aspectos, grandes progressos. A cooperativa que visitamos apresentava um enorme avanço sobre todas as que víramos antes. Cultivava sobretudo arroz, mas com métodos intensivos, embora tivesse recuperado terrenos onde cresciam tomates e diversos legumes. Os camponeses estavam acabando de construir uma aldeia, com a ajuda de pedreiros vindos da cidade: casas confortáveis, um cinema, escolas, campos de esporte. Uma loja do Estado vendia quase a preço de custo os produtos de primeira necessidade. Uma fábrica de calçados e uma outra, de conservas de tomates, trabalhavam diretamente para a cooperativa; realizava-se assim, em escala modesta, aquilo a que as comunas chinesas visaram: uma ligação da agricultura com a indústria. Os camponeses pareciam mais ligados do que nunca ao regime, mas estavam febris. A aldeia ficava perto do local onde se previa um desembarque. O chefe da cooperativa, excitadíssimo, de revólver no cinto, disse-nos que esperava com impaciência o momento de lutar.
Na noite que precedeu nossa partida, Sartre deu uma entrevista coletiva; justamente quando ia iniciá-la, um jornalista nosso amigo cochichou-lhe que estavam desembarcando tropas na região de Santiago. Nem por isso Sartre deixou de declarar a imprensa escrita, de rádio e de televisão, que não acreditava numa intervenção imediata da América; estavam em pleno período eleitoral, e o Partido Republicano não ia comprometer as possibilidades de Nixon, assumindo a responsabilidade de uma aventura incerta. Fomos cear com os jornalistas do Revolución, no bar-restaurante do antigo Hilton, que se tornara Habana Libre. Era lúgubre aquele amplo local deserto cuja decoração lembrava a Polinésia. A todo instante nossos amigos se levantavam da mesa e telefonavam: a notícia da invasão confirmava-se. “Nós a repeliremos”, diziam eles, com voz sombria. No dia seguinte, o boato foi desmentido: mas era apenas um adiamento, pensavam todos os cubanos.
Não víramos Castro. Fomos visitar Dorticós no dia de nossa partida; era aniversário da morte de Camillo Cienfuegos, quase tão idolatrado quanto Castro, cujo avião, um ano antes, caíra no mar. Cortejos de estudantes, de operários, de funcionários, de mulheres e de crianças desfilavam nas ruas levando ramos de flores e coroas que jogavam ao mar. Enquanto conversávamos com o Presidente, Jimenez telefonava à secretária de Castro: ele se encontrava nos arredores de Havana, e nos pedia para esperá-la. Impossível: eram seis horas, e o avião decolava às oito. Jimenez conduziu-nos ao hotel, e subimos para buscar nossas malas; para descer, apertamos o botão do elevador: este chegou, a porta se abriu e Castro precipitou-se, seguido de quatro barbudos e de Edith Depestre. Nada perdera de sua alegria, nem de seu calor. Embarcou-nos em seu carro. O que víramos? o que não víramos? A circulação estava difícil: cortejos bloqueavam as ruas, e a multidão parava o carro, aos gritos de “Fidel! Fidel!” “Vou mostrar-lhes a Cidade Universitária”, disse Castro, quando enfim saímos de Havana. Murmurei: “Mas o avião decola às oito horas…” “Ele esperará!” O maior quartel de Havana fora transformado num conjunto de pavilhões, de construções e de campos de esporte. Demos uma rápida olhada em tudo, e depois, a pretexto de encurtar caminho, o motorista nos fez passar por obscuras estradas de terra, cortadas por barrancos: o avião já decolou, dizia a mim mesma. No aeroporto, levantaram-se barreiras, e o carro nos deixou junto ao avião, que estava sendo revisado por mecânicos: ainda iam demorar muito. Ignorando os avisos, Castro mastigava seu grande charuto a alguns metros dos motores. “O desembarque é certo”, disse-nos ele. “Mas também é certo que os rechaçaremos. E se vocês ouvirem dizer que fui morto, não acreditem.”
Ele partiu. Jimenez, Edith, Otero, Oltuski e outros amigos nos levaram para jantar no bufê. O aeroporto estava cheio de pessoas que nos olharam sem amizade: “Estão esperando o avião para Miami e não voltarão.” Suas roupas revelavam sua classe. Quando o alto-falante chamou: “Passageiros para Miami”, precipitaram-se para a saída.
Decolamos. Houve uma aterrissagem nas Bermudas; eu previa mais uma nos Açores: demorou. “Chegamos!”, pensei, quando avistei o continente. Mas aquelas ilhas não acabavam mais. E me pareceu reconhecer a cor da terra, seu relevo, seus recortes, e o verde daquele rio: o Tejo; era a Espanha, com a crosta nevada das sierras; chegáramos a Madri em quatorze horas, mas o dia já terminava. Outro avião nos transportou até Barcelona.
Marcáramos encontro com nossos amigos no hotel Cólon; o que eu conhecera outrora não existia mais, disseram-nos os jornalistas que nos abocanharam à chegada. Mas outro com o mesmo nome, muito agradável, fora aberto junto à catedral. Ali encontramos na manhã seguinte Bost e Pouillon. Eles nos contaram minuciosamente o que se passara desde setembro. O processo Jeanson e o manifesto dos “121” haviam levado as juventudes comunistas, as juventudes socialistas, os sindicatos, o PC e o PSU a ações contra a guerra. Sindicalistas e universitários haviam lançado um apelo por “uma paz negociada”. Os sindicatos haviam apoiado a manifestação organizada em 27 de outubro pela UNEF, que fora um enorme sucesso, apesar do tumulto e da pancadaria. As sanções aplicadas aos “121” haviam provocado uma quantidade de protestos. Os atores da televisão haviam entrado em greve em solidariedade a Évelyne, expulsa de um programa. Entretanto, haviam demitido Schwartz de sua cátedra na Escola Politécnica; os professores haviam sido suspensos, assim como Pouillon e Pingaud, secretários-redatores da Assembleia. O marechal Juin fizera assinar um manifesto contra “os professores de traição”. A União Nacional dos Combatentes exigia “sanções impiedosas contra os inconscientes, e sobretudo contra os traidores”. O Comitê Central UNR estigmatizava a ação dos “pretensos intelectuais”. A União Nacional dos Oficiais da Reserva pedia que se tomassem medidas. A lista dos “121” estava afixada em todas as salas de oficiais etc. Sartre era o mais visado. Seu testemunho lhe valera ódios apaixonados. Por telefone, Lanzmann, retido em Paris, pediu-nos, assim como seus amigos, que voltássemos de carro: se tomássemos um avião, Sartre seria acolhido ruidosamente no aeroporto, haveria tumulto, ele certamente iria responder aos jornalistas de uma tal maneira que a polícia o prenderia. Penso hoje que teria sido melhor dar aos “121” toda a publicidade possível; mas nós ouvimos nossos amigos, cuja solicitude compreendo, pois é leviano temer pouco por outrem. Passeamos em Barcelona, que Sartre não reviu com mais prazer do que Madri; quanto a mim, sentia-me feliz nos Ramblas. Contemplamos a catedral extravagante e para sempre inacabada de Gaudi; subimos ao Tibidabo, visitamos o Museu de Arte Catalã e, no dia seguinte à tarde, dirigimo-nos para a fronteira.
Fazia dois meses que a imprensa insultava Sartre tão copiosamente — traidor, antifrancês etc — que pensávamos sermos muito mal-recebidos na França. A noite caíra quando chegamos à Alfândega. Bost levou os quatro passaportes à polícia e voltou. O comissário queria ver-nos: em tom de desculpa, explicou-nos que devia prevenir Paris sobre a nossa passagem. Mandou um de seus subordinados comprar jornais para nós, ofereceu-nos pacotes de cigarros e charutos — provavelmente confiscados de turistas — e, despedindo-se, pediu que assinássemos seu livro de ouro. Recomendou que nos apresentássemos à polícia assim que chegássemos. Passamos a noite em Béziers. Depois de tantos esplendores estrangeiros, emocionei-me de manhã, ao reencontrar, sob um céu azul pálido, a ternura dourada dos plátanos, as vinhas avermelhadas pelo outono e, em vez de barracos espalhados em terrenos baldios, aldeias de verdade. Poderia eu, algum dia, voltar a amar esse país?
Em Paris, nosso primeiro cuidado foi o de nos fazer incriminar; tomamos como advogado Roland Dumas, que defendera os acusados do processo Jeanson, e que se encarregou das providencias necessárias. Os policiais levaram a polidez ao ponto de vir à minha casa: o mais jovem, arrogante e constrangido, ao datilografar nossos depoimentos feriu o dedo, que sangrou sobre as teclas. O comissário M. ajudou-nos a redigir nossas declarações e a diversificá-las. A obstinação dos “121” em se comprometer o mais possível espantara-o, no início; agora, ele sorria. “Com isso, fiquem tranquilos, vão obter a sua incriminação”, concluiu ele, em tom encorajador. Mas não. Na véspera do dia em que nos convocara, o juiz ficou doente. Um novo encontro foi marcado; no último instante, foi novamente adiado sine die, sob o absurdo pretexto de que o tribunal guardava o processo que nos dizia respeito. Anunciou-se que a série de incriminações estava fechada. Sempre cioso de sua grandeza, o poder achava bom privar funcionários de seu pão, mas não aparecer aos olhos do mundo como perseguidor de escritores conhecidos. Esperava também quebrar a união dos “121” poupando uns e mantendo suspensa uma ameaça sobre a cabeça de outros.
Para enfrentar esse jogo, Sartre convocou uma reunião de imprensa; diante de uns trinta jornalistas franceses e estrangeiros reunidos no meu apartamento, explicou-se sobre o manifesto e expôs a situação atual. Thierry Maulnier, sentado no tapete, quis fazer uma pergunta: “Eu não gostaria de deformar seu pensamento…” “Seria a primeira vez que o senhor teria esse escrúpulo”, respondeu Sartre. A imprensa reproduziu apenas sumariamente suas declarações. E o incidente foi encerrado.