Eu estava farta de morar em hotel; ficava ali mal protegida dos jornalistas e das indiscrições. Mouloudji e Lola me falaram de um quarto mobiliado onde eles haviam morado, na rua de La Bûcherie: a inquilina que lhes sucedera queria sair. Instalei-me lá em outubro; coloquei cortinas vermelhas nas janelas, comprei luminárias de bronze verde, executadas segundo ideias de Giacometti pelo irmão dele; pendurei nas paredes e na grande viga do teto objetos que trouxe das minhas viagens. Uma das minhas janelas dava para a rua do Hôtel-Colbert, que desembocava no cais; eu via o Sena, a hera dos muros, as árvores e a Notre-Dame; diante da outra janela ficava um hotel cheio de africanos da região norte, tendo no térreo uma cafeteria, o Café des Amis: brigava-se muito ali. “Você nunca vai se aborrecer”, dissera-me Lola. “Basta ir para a janela e olhar.” Realmente, de manhã, trapeiros traziam para o revendedor da esquina quilos de jornais velhos: amontoados em carrinhos de criança; mendigas e mendigos sentados numa calçada com degraus bebiam litros de vinho tinto, cantavam, dançavam, monologavam, brigavam. Bandos de gatos passeavam nas calhas. Havia dois veterinários na minha rua: mulheres lhes traziam seus bichos. Na casa, um velho palacete particular que começava a se desmantelar, ressoavam latidos que eram respondidos da clínica “patrocinada pelo duque de Windsor” à portaria, onde a porteira possuía um grande cão negro, e até do meu andar: Betty Stern, a filha do empresário, que morava em frente a mim, tinha quatro cães. Todo mundo se conhecia. A Mme D., a zeladora, uma mulherzinha viva e magra, que era sempre escoltada por um marido, um filho e um sobrinho grandes, ajudava-me na limpeza do meu quarto. Betty que fora belíssima, que conhecera intimamente Marlene Dietrich e muito bem Max Reinhardt, conversava sempre comigo: passara um ano escondida no maquis durante a ocupação. Embaixo morava uma montadora de cinema que pouco mais tarde cedeu seu apartamento aos Bost. Enfim, no andar de cima residia uma costureira a quem eu às vezes recorria. Nem a fachada nem a escada causavam boa impressão, mas eu me sentia bem na minha nova casa. Passávamos ali a maior parte de nossas noites, pois nos cafés gente demais nos importunava.
Toda semana eu encontrava no meu escaninho um envelope com selo de Chicago; fiquei sabendo por que recebi tão poucas notícias de Algren, enquanto estava na Argélia: ele escreveu para Túnis, em vez de Ténès. A carta voltou e ele voltou a enviá-la. Foi sorte ela ter se perdido, pois naquele momento me teria feito sofrer muito. Algren contava que, ao falar em comícios em favor de Wallace, apaixonara-se por uma moça que estava em processo de divórcio e pensava em casar-se com ela; ela estava fazendo análise e não queria comprometer-se numa relação antes de ter alta; quando a carta me alcançou, em dezembro, eles quase já não se viam mais. Mas ele esclarecia: “Não vou ter um caso com essa mulher, ela não representa mais grande coisa para mim. Mas o que não muda é meu desejo de possuir um dia aquilo que durante três ou quatro semanas ela representou: um lugar meu para viver, com uma mulher minha e até mesmo um filho meu. Não é extraordinário almejar essas coisas, é mesmo um desejo muito comum, só que eu nunca o havia sentido. Talvez seja porque vou fazer quarenta anos. Com você, é diferente. Você tem Sartre e também um certo tipo de vida: gente ao redor, um interesse vivo pelas ideias. Está mergulhada na vida cultural francesa e a cada dia tira uma satisfação do seu trabalho e sua vida. Ao passo que Chicago é quase tão longe de tudo quanto Uxmal. Levo uma vida estéril, centrada exclusivamente em mim mesmo: não me acomodo de modo algum. Estou preso aqui porque, como lhe disse e você compreendeu, meu trabalho é escrever sobre esta cidade e só posso fazer isso aqui. Inútil retornar a tudo isso. Mas não tenho quase ninguém com quem falar. Em outras palavras, estou preso na minha própria armadilha. Sem desejá-lo claramente, escolhi a vida que convinha melhor ao gênero de literatura que sou capaz de fazer. As pessoas que se ocupam de política, os intelectuais, entediam-me, parecem-me sem realidade; as pessoas que frequento no momento me parecem mais verdadeiras: putas, ladrões, drogados etc. Entretanto, minha vida pessoal está sacrificada com isso. Esse caso que tive ajudou-me a ver melhor as coisas entre nós; no ano passado, eu teria tido medo de estragar alguma coisa, não sendo fiel a você. Agora sei que isso era idiota, porque braços que se encontram do outro lado do oceano não têm nenhum calor, e porque a vida é curta e fria demais para que se renuncie ao calor durante tantos meses.”
Em outra carta, ele retomava o mesmo tema: “Depois daquele infeliz domingo em que comecei a estragar tudo, no restaurante do Central Park, guardei aquele sentimento do qual lhe falei em minha última carta, de querer algo meu. Em grande parte, era por causa daquela mulher que, durante algumas semanas, me pareceu tão próxima e tão cara (não é mais assim; mas isso não muda nada). Se não tivesse sido ela, teria sido outra; isso não significa que eu tenha deixado de amar você, mas você estava tão longe, eu achava que ia demorar tanto a revê-la… Parece um tanto absurdo falar dessas coisas que já passaram. Mas dá no mesmo, já que você não pode viver exilada em Chicago nem eu exilado em Paris, e porque terei que voltar sempre para cá, para minha máquina de escrever e para minha solidão, e sentir a necessidade de alguém ligado a mim, já que você está tão longe…”
Nada havia a responder; ele tinha toda a razão: nem por isso era mais consolador; eu teria sentido um arrependimento pungente se esse caso tivesse terminado naquela época. Esse fim prematuro teria reduzido a uma miragem a felicidade dos dias e noites de Chicago, do Mississipi e da Guatemala, Felizmente, pouco a pouco as cartas de Algren foram ficando mais calorosas. Ele me contava sua vida no dia a dia. Enviava-me recortes de jornais, panfletos edificantes contra o álcool e o fumo, livros, chocolate, duas garrafas de uísque envelhecido, camufladas em enormes sacos de farinha. Disse-me também que viria a Paris em junho, estava reservando passagem num navio. Tranquilizei-me, mas por vezes eu me dava conta, com angústia, de que o nosso caso estava fadado a terminar, e em breve. Quarenta anos. Quarenta e um. Minha velhice germinava. Espreitava-me no fundo do espelho. O que me deixava estupefata era que viesse a mim num passo tão decidido, enquanto nada em mim estava de acordo com ela.
***
A partir do mês de maio começou a ser publicado na Temps Modernes meu estudo sobre A mulher e os mitos. Leiris me disse que Lévi-Strauss me censurava certas inexatidões relativas às sociedades primitivas. Ele estava terminando sua tese sobre As estruturas do parentesco, e eu lhe pedi que me comunicasse esse trabalho. Fui à casa dele várias manhãs seguidas; instalava-me diante de uma mesa, lia uma cópia datilografada do seu livro; ele confirmava minha ideia da mulher como outro; mostrava que o macho permanece o ser essencial, até no seio daquelas sociedades matrilineares, que são chamadas de matriarcais. Eu continuava a frequentar a Nationale; é um prazer e um descanso encher os olhos com palavras que já existem, em vez de arrancar frases do vazio. Em outros momentos eu escrevia, de manhã no meu quarto e à tarde na casa de Sartre: da minha mesa, entre uma e outra rasura, olhava o terraço do Deux Magots e a praça Saint-Germain-des-Prés. O primeiro volume foi concluído durante o outono e resolvi levá-lo logo à Gallimard. Como chamá-lo? Pensei nisso durante muito tempo, com Sartre. Ariane, Mélusine: esse gênero de título não convinha, uma vez que eu recusava os mitos. Pensei em A outra, A segunda: já existiam. Certa noite, no meu quarto, passamos horas emitindo palavras, Sartre, Bost e eu. Sugeri: O outro sexo? Não. Bost propôs: O segundo sexo e, pensando bem, era perfeito. Comecei então a trabalhar sem descanso no segundo volume.
Duas vezes por semana, no escritório de Sartre, eu reencontrava os colaboradores habituais da Temps Modernes: Merleau-Ponty, Colette Audry, Bost, Cau, Erval, Guyonnet, Jeanson, Lefort, Pontalis, Pouillon, J-H Roy, Renée Saurel, Stéphane, Todd; muita gente para aquele pequeno cômodo que se enchia de fumaça; bebíamos aguardente que Sartre recebia de sua família da Alsácia, passávamos o mundo em revista e fazíamos projetos.
Em outubro ou novembro, Gaston Gallimard pediu a Sartre uma entrevista. No número de julho da Temps Modernes, Malraux fora tratado de um modo que lhe desagradara. Merleau-Ponty citava um artigo do New York Times que felicitava Malraux por ter-se aliado ao gaullismo, permanecendo assim fiel à sua antiga posição trotskista; reproduzia em seguida a resposta indignada da viúva de Trotski. “Malraux nunca foi simpatizante do trotskismo, ao contrário… Malraux, que aparentemente rompeu com o stalinismo, não fez outra coisa senão servir a seus antigos senhores tentando estabelecer uma ligação entre o trotskismo e a reação.” O dossiê completava-se com a carta de um americano revelando que Malraux, solicitado por Trotski em duas circunstâncias a testemunhar em favor dele, esquivara-se. Merleau-Ponty relembrava que, antes de 1939, Malraux efetivamente escolhera Stalin, entre este e Trotski; censurava-o por pretender o contrário e por associar o gaullismo ao trotskismo. Imediatamente Malraux fora procurar Gallimard, ameaçando-o de represálias se não nos despejasse. Sartre levou a coisa com bom humor, para grande alívio de Gallimard, que declarou a seus colaboradores, num tom compenetrado: “Esse é um verdadeiro democrata!” Julliard nos ofereceu hospitalidade. Malraux tentou intimidar seu associado, Laffont, que devia editar as Memórias de De Gaulle: certamente não agradaria ao general que sua obra fosse publicada pela mesma editora da Temps Modernes; era possível que ele tornasse de volta seu manuscrito… Entretanto, transportamos-nos em dezembro para o outro lado da rua de l’Université.
Sartre teve outra contrariedade. A produção de As mãos sujas em Nova York foi um fracasso. O texto fora sabotado. Boyer, que fazia o papel de Hoederer, também implicara com a réplica: “Ele é vulgar.” Fizera Jessica dizer: “He looks like a king.” (Ele parece um rei.) Haviam acrescentado uma fala sobre o assassinato de Lincoln e subverteram tudo. A peça se transformou num melodrama incrível; Sartre tentou mandar interromper as representações e moveu um processo contra Nagel, que as autorizara sem seu consentimento.
As coisas iam de mal a pior. O RPF desmoronou: é que a burguesia não precisava mais dele; novamente unida e forte, arrebatara uma triste vitória contra um proletariado dividido: este perdeu a batalha dos salários. Apesar do Plano Marshall, do crescimento da produção e de uma excelente colheita, os preços haviam dobrado entre o verão de 1947 e o outono de 1948; nunca o poder aquisitivo dos operários fora tão baixo. Em 4 de outubro, trezentos mil mineiros começaram uma greve que durou oito semanas. Jules Moch enviou de novo contra eles as CRS, que mataram dois. Dois mil foram presos e seis mil despedidos. Os estivadores e os ferroviários também pararam de trabalhar. Em vão. As esperanças socialistas de 1944 estavam completamente mortas. Em todos os pontos o programa do CNR fracassara. A classe que detinha o poder era decididamente colonialista. O veredicto de Tananarive foi dado em 5 de outubro: seis condenados à morte, entre os quais dois deputados. Na Indochina, os dirigentes montavam contra os Viet-Minh a operação Bao-Dai,74 cuja ineficácia saltava aos olhos. Desde 1947 a Temps Modernes denunciava a imbecilidade e os horrores dessa guerra. Encontrávamos com frequência Van Chi, adido cultural à delegação do Vietnã — que paradoxalmente ainda existia —, cujo presidente ele nos apresentou. Bourdet participava dessas conversações.
O bloqueio de Berlim prolongava-se. Na China, Mao Tsé-Tung arrebatava vitórias fulminantes. Nanquim desmoronava: perguntava-se se os Estados Unidos não iriam intervir. Nesse caso, pensava-se que eles concentrariam suas forças no Extremo Oriente, abandonando provisoriamente a Europa aos russos, que a invadiriam; em seguida, as duas grandes potências se confrontariam na Alemanha e na França. Um dos belicistas americanos mais desvairados, Forrestal, teve visões tão horríveis do Exército Vermelho invadindo toda a terra e Nova York e deu tantos urros que tiveram de interná-lo: ele se jogou do 16.º andar da clínica. Na França, a direita propagava conscientemente o pavor; trombeteava em duas vozes, simultâneas ou alternadas: 1.ª — o regime soviético é atroz, acarreta necessariamente miséria, fome, ditadura, assassinato; 2.ª — sem a ajuda da América não seremos defendidos: o Exército Vermelho atingirá Brest em menos de uma semana e nós sofreremos os horrores da ocupação. Foi nesse espírito de pânico dirigido que Carrefour — no mesmo número em que anunciava triunfalmente: “Thomas Dewey, 33.º presidente dos Estados Unidos, entra na Casa Branca com uma vassoura na mão” — lançava uma pesquisa: “O que você faria se o Exército Vermelho ocupasse a França?” O verdadeiro perigo era efetivamente o Pacto do Atlântico, que Robert Schumann, partidário da “pequena Europa”, se preparava para assinar: ele cortaria definitivamente o mundo em dois, e jogaria a França na guerra, se algum dia a América a desencadeasse.
Muitos movimentos pacifistas nasceram ou se desenvolveram naquele momento. O mais ruidoso foi o de Gary Davis. Aquele “homenzinho”, como então o chamavam, instalou-se em 14 de setembro sob o peristilo da ONU, considerado como território internacional; declarou em entrevistas que renunciava à nacionalidade norte-americana para tornar-se “cidadão do mundo”. Em 22 de outubro, constituiu-se em torno dele um “conselho de solidariedade”, que reunia Breton, Camus, Mounier, Richard Wright, recém-instalado em Paris; em novembro, no dia em que Davis fez um escândalo na ONU, Camus deu uma entrevista à imprensa num café vizinho, tomando o partido dele; Bourdet o apoiou num editorial, e dali em diante o Combat dedicou uma página mensal ao movimento Por um governo mundial. Em 3 de dezembro, houve na sala Pleyel uma sessão na qual Camus, Breton, Vercors e Paulhan defenderam essa ideia. Camus ficou ressentido por Sartre recusar-se a participar, e anunciou-nos, triunfante, que o comício de 9 de dezembro reunira no Vel’d’Hiv vinte mil pessoas. Sartre estava inteiramente de acordo com os comunistas ao pensar que o caso Gary Davis não tinha qualquer significação. Ríamos quando a direita acusava Davis de ser “pago por Moscou”. Sua ideia não era nova; havia um ano que se falava muito em “federação mundial”. Seu procedimento também nada tinha de espantoso: a América está cheia de excêntricos inspirados que lançam com pompa slogans simplistas. O que é significativo é que ele tenha sido levado a sério na Europa por intelectuais “de esquerda”.
Alguns dias após o comício de 9 de dezembro, no qual Camus falou a favor da paz, Van Chi apresentou-lhe uma petição contra a guerra na Indochina, que Sartre e Bourdet faziam circular. Não a assinou. “Não quero fazer o jogo dos comunistas.” Descia raramente dos grandes princípios aos casos particulares. Sartre pensava que é lutando contra todas as guerras, uma a uma, que se trabalha pela paz do mundo.
O RDR queria ligar as forças socialistas da Europa a uma política definida, o neutralismo. Sartre o encarava como um grupo restrito, mas bastante dinâmico para pesar na opinião pública e, através desta, nos acontecimentos. Rousset pretendia uma ação de massa: “Somos cinquenta mil”, dizia ele, em fevereiro (cinco mil teria sido um número mais exato). “Seremos trezentos mil em outubro, ou teremos perdido.” Tínhamos muito menos simpatia por ele do que no início. Ele era tomado por uma ambição que era ainda mais inquietante por ser vazia; sua segurança recobria abismos de incerteza e ignorância; sua complacência consigo mesmo era vertiginosa. O som da própria voz o embriagava: bastava-lhe falar para acreditar no que dizia. Evocava a imensidão da “audiência” que o movimento já tinha alcançado, sem se inquietar com as lamentáveis falhas do trabalho de organização: muitas vezes, quando vinham para uma reunião de bairro, as pessoas encontravam fechada a porta do local, e ninguém tinha a chave. Ele só gostava dos comícios: neles, declamava e se exaltava. O RDR organizou um na sala Pleyel, no início de dezembro: convidaram-se intelectuais de diferentes países para falar sobre a paz. Camus participou, assim como Rousset, Sartre, Plievier, o autor de Stalingrad, Carlo Levi e Richard Wright, cujo discurso traduzi. Houve muita gente e aplausos. Rousset fez uma violenta crítica anticomunista. Um peneiramento operava-se no seio do RDR; a maioria desejava alinhar-se com a ação social do PC; uma minoria — que compreendia a maioria dos responsáveis —, sob o pretexto de que os comunistas tratavam a Reunião com hostilidade, deslizava para a direita.
Rousset anunciou-nos que encontrara meio de obter o dinheiro de que RDR necessitava: partiria para os EUA com Altmann no início de fevereiro; iam entrar em contato com o CIO.75 Ignorávamos ainda até que ponto o CIO respaldava o governo em sua luta contra o comunismo, mas sabíamos que ele fazia colaboração de classe e Sartre não aprovou esse procedimento. O RDR era um movimento europeu: americanos podiam, como Richard Wright, simpatizar com ele, mas não financiá-lo.
O rótulo “americano de esquerda”, aliás, não representava senão uma garantia muito incerta; percebemos isso na tarde em que Wright reuniu, nos salões de um grande hotel, intelectuais franceses e americanos. Fui apresentada a Daniel Guérin, com quem discuti sobre os aspectos econômicos do problema do negro americano; conheci também Antonina Vallentin, autora de excelentes biografias de Heine e Mirabeau. Sartre e outros pronunciaram algumas palavras. O americano Louis Fischer, que durante muitos anos fora jornalista em Moscou e simpatizante dos soviéticos, tomou a palavra para atacar a URSS. Arrastou Sartre para um canto e lhe expôs os horrores do regime soviético. Continuou sua exposição enquanto jantávamos no Lipp com os Wright. Com o brilho de um fanatismo alucinado nos olhos, contava até perder o fôlego histórias de desaparecimento, traição e morte, provavelmente verdadeiras mas das quais não se entendia o sentido nem o alcance. Em compensação, gabou as virtudes da América: “Detestamos a guerra: é por isso que pensamos em soltar bombas antes.”
Sartre concebia o RDR como uma mediação entre a ala progressista da pequena burguesia reformista e o proletariado revolucionário: era nesses meios que os comunistas recrutavam adeptos. Mais claramente do que nunca, portanto, para eles Sartre era um adversário. No congresso de Wroclaw, que devia selar a aliança dos intelectuais do mundo inteiro em favor da paz, Fadéev o chamou de “chacal da pena” e acusou-o de “pôr o homem de quatro”. Com o caso Lyssenko, o dogmatismo stalinista imiscuia-se na própria ciência; Aragon, que não sabia nada disso, demonstrou em Europe que Lyssenko tinha razão; a arte não era mais livre: todos os comunistas tiveram que admirar as Marchandes de poisson de Fougeron, expostas no Salão de Outono. Lukács, de passagem por Paris em janeiro, investiu contra o “cogito decadente do existencialismo”. Numa entrevista que deu ao Combat, Sartre retorquiu que Lukács não entendia nada do marxismo. A réplica de Lukács e a segunda resposta de Sartre foram publicadas juntas num número posterior. Em Paris, em fevereiro, Ehrenbourg explicou que outrora Sartre lhe inspirara piedade: desde As mãos sujas só sentia desprezo por ele. Enfim, Kanapa fora colocado na direção da Nouvelle Critique, da qual cada número desancava o existencialismo em geral e Sartre em particular.
Ele não era menos esfolado pela revista que se criou em fevereiro, sob a direção de Claude Mauriac, Liberté de l’Esprit, e que se dedicava à defesa dos “valores ocidentais”. A equipe reunia gente do RPF e antigos colaboracionistas. Um recém-chegado, Roger Nimier, autor de um romancezinho de má qualidade, Les Épées, fez-se notar no primeiro número escrevendo a propósito da guerra: “Não a faremos com os ombros do M. Sartre, nem com os pulmões do M. Camus (e menos ainda com a bela alma do M. Breton).” A alusão aos “pulmões de Camus” enojou tanta gente, que Nimier teve que se desculpar. Nos números que se seguiram, os “valores ocidentais” brilhavam pela ausência, mas a cruzada anticomunista era conduzida com entusiasmo.
O antissovietismo usava tudo o que podia. Em novembro, uma russa branca, Kosenkina, jogou-se pela janela do consulado soviético em Nova York. Fez-se muito alarido em torno desse melodrama.
Em janeiro, abriu-se o processo Kravtchenko; ele atacava Les Lettres Françaises por difamação: tinha revelado que seu livro, J’ai choisi la liberté, fora fabricado pelos serviços americanos. Fui com Sartre a uma das audiências, que se revelou melancólica; no entanto, esse caso, que encheu os jornais durante semanas, tinha um enorme interesse: era o julgamento da URSS. Os anticomunistas, apoiados por M. Queuille e por Washington, mobilizaram bandos de testemunhas; os russos, por sua vez, enviaram outras de Moscou. Ninguém ganhou. Kravtchenko conseguiu uma indenização, mas muito inferior à que havia reivindicado, e saiu do processo bastante desgastado. Entretanto, quaisquer que fossem suas mentiras e sua venalidade, e embora a maioria de suas testemunhas fosse tão suspeita quanto ele, uma verdade emergia de seus depoimentos: a existência dos campos de trabalho. Lógico, inteligente, e aliás, confirmado por numerosos fatos, o relato da Mme Beuber Newmann convencia: logo depois do pacto germano-soviético, os russos tinham entregado a Hitler deportados de origem alemã. Não executavam em massa os detentos mas a exploração e os maus-tratos iam tão longe que muitos morriam. Ignorava-se a ordem de grandeza do número de vítimas. Mas nós começamos a nos perguntar se a URSS e as democracias populares mereciam ser chamadas de países socialistas. Certamente o cardeal Mindzenty era culpado: como o tinham convencido a confessar? Ele admitia tudo o que queriam. O que se passava na Bulgária? Que significava a “destituição” de Dimitrov? Os comunistas desencadeavam em todos os países uma ofensiva de paz; pensávamos que era porque tinham interesse em prolongar a trégua que lhes permitiria preparar a guerra.
Sartre continuava a refletir sobre sua situação dividida e sobre o meio de superá-la; lia e acumulava notas. Escrevia também a continuação de Com a morte na alma, que deveria chamar-se La dernière chance. Para trabalhar tranquilamente, fomos para o sul. Escolhi na costa do Estérel um hotel isolado, em forma de navio e colocado diretamente sobre a água; à noite, o barulho das ondas entrava no meu quarto e eu pensava estar no meio do mar. Mas a solenidade das refeições na ampla sala de jantar deserta nos tirava o apetite. Havia poucos passeios possíveis, já que a montanha se elevava ab-ruptamente por trás de nós. Emigramos para um lugar mais propício: Le Cagnard, em cima do Cagnes. Tínhamos quartos agradáveis, no último andar: o meu era ladeado por um terraço, onde nos sentávamos para conversar. Fumaças leves, que tinham um cheiro bom de lenha queimada, subiam dos telhados e se podia ver de longe o mar. Caminhávamos por entre as árvores em flor, fomos a Saint-Paul-de-Vence, menos sofisticada que hoje; de vez em quando, fazíamos um passeio de táxi. Sartre estava muito alegre, mas inquieto porque M. se dispunha a instalar-se na França; ele tentava dissuadi-la.
O primeiro volume de O segundo sexo ia ser publicado; eu estava terminando o segundo e queria entregar alguns extratos à Temps Modernes. Quais? Os últimos capítulos convinham, mas ainda não estavam inteiramente acabados. Optamos por aqueles que eu tinha acabado de terminar, sobre a sexualidade feminina.
Fazia algum tempo que eu pensava num romance. Muitas vezes ficava imaginando-o, enquanto rodávamos pelos bosques de pinheiros e caminhávamos em campos de lavanda. Comecei a tomar algumas notas.
Quando retornamos a Paris, ao fim de três semanas, a data prevista para a assinatura do Pacto do Atlântico — 4 de abril — se aproximava. Gilson, apoiado por Beuve-Méry, atacava-o no Monde. No Combat, Bourdet sugeriu a criação de um “bloco neutro” dotado de armamentos, decidido a defender a independência da Europa, e não bases americanas. Por outro lado, o Movimento da Paz, criado pelos comunistas, reuniu em 20 de abril, na sala Pleyel, seus “partidários” sob a presidência de Joliot-Curie. O congresso, cujo emblema foi desenhado por Picasso — a célebre pomba —, terminou com uma manifestação de massa em Buffalo.
Rousset voltou para a França trazendo da América um projeto de “jornadas de estudos” dedicadas à paz e que deviam iniciar-se dez dias após o congresso da Pleyel. Compreendemos imediatamente que ele as concebia como uma resposta ao Movimento da Paz. Altmann publicava no Franc-Tireur uma reportagem sobre os EUA. Que idílio! O regime não era socialista, não, mas também não era capitalista: era uma civilização sindicalista. A igualdade não reinava, não, havia até pardieiros: mas que conforto! Abriu-se um processo contra os comunistas, sim: mas eles falavam livremente nas ruas. Negros e brancos confraternizavam. E, em suma, eram os operários que governavam.76 Quanto a Rousset, causou-me a mais desagradável impressão. Contou como sua turnê tinha sido triunfal, as refeições que lhe haviam oferecido, a “audiência” que conseguira. Fez a apologia dos dirigentes sindicalistas, da Mme Roosevelt, do liberalismo americano. Recolhera lisonjas, algumas subvenções, e virou a casaca. (Ou talvez já tivesse virado antes…) Protestei contra o quadro que ele traçava dos EUA. Ele me apontou um dedo acusador e disse, em tom enfático: “É fácil, Simone de Beauvoir, falar mal da América hoje, na França!” Entre as pessoas cuja participação nos debates ele queria, citou Sydney Hook: eu o encontrara em Nova York; esse antigo marxista tornara-se um anticomunista encarniçado. Sartre pediu que, em vez de discutir em público com estrangeiros, fosse convocado um congresso interno, que reuniria o maior número possível de militantes da província. Faltava dinheiro — objetou Rousset. Quem é que iria financiar a “Jornada de resistência à ditadura e à guerra”? E, de resto, de que “ditadura” se tratava? Richard Wright, pressionado pela embaixada americana a participar da manifestação, disse a Sartre que achava essa insistência suspeita. Sartre perguntava-se se deveria aparecer lá para defender seus próprios pontos de vista contra Rousset, ou abster-se; pela primeira vez, dei-lhe um conselho político: sua presença seria mais notada do que suas palavras; não devia comparecer. Em 30 de abril, Merleau-Ponty, Wright e Sartre enviaram ao Vel’d’Hiv uma mensagem coletiva dirigida contra a política do State Department. Leram-se mensagens nebulosas de Gary Davis, da Mme Roosevelt. Sydney Hook e um deputado socialista holandês, Kadt, exaltaram as virtudes do Plano Marshall contra ditadura stalinista; alguém fez a apologia da bomba atômica; houve rumores na sala e trotskistas apossaram-se da tribuna. Sartre reuniu por conta própria o Congresso RDR, e a assembleia pronunciou-se contra Rousset. O movimento deixou de existir. Naquele momento achamos que o único erro de Sartre foi confiar em Rousset e em Altmann que, mais ambiciosos e mais agitados, levaram a melhor sobre homens honestos; o grupo era tão restrito que nesse nível as pequenas causas contam e sobretudo as questões relativas a pessoas; sua dissolução não provava que ele estivesse de antemão voltado para o fracasso. Sartre logo pensou o contrário: “Estouro do RDR. Golpe duro. Nova e definitiva aprendizagem do realismo. Não se cria um movimento.”77 Ele não teve a intenção de atrair as massas; mas contentar-se com um pequeno movimento era idealismo: se quatro operários do RDR participassem de um greve organizada pelos comunistas, não iriam modificar-lhe o conteúdo. “As circunstâncias só favoreciam a união na aparência. Ela atendia bem a uma necessidade abstrata, definida pela situação objetiva: mas não a uma necessidade real das pessoas. Assim, estas não a procuraram.”78
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Gostei muito do Saint-Glinglin, de Queneau: agradou-me sua linguagem, seu humor selvagem e sua visão tranquilamente horrível da existência. Admirei — embora um pouco menos do que suas primeiras obras — Pompes funèbres de Genet. O Stalingrad de Pliever era um documentário aterrorizante. Na América acabava de ser publicada a pesquisa do dr. Kinsey sobre “o comportamento do macho americano”: muito barulho por pouca coisa.
Depois de viverem em Viena e em Belgrado, minha irmã e Lionel vieram para Paris. Alugaram, em Louveciennes, um bonito palacete do século XVIII, um tanto destruído, cercado de um grande jardim cheio de flores silvestres. Vimo-nos com frequência. Fui com Olga certa noite ouvir jazz na Rose Rouge, na rua de La Harpe, dirigida por Mireille Trépel — que fora do Flore — e Nico; eles emigraram para a rua de Rennes, em frente ao imóvel onde eu passei minha adolescência. Ouvi ali os Frères Jacques: estavam muito em voga, merecidamente. No teatro dos Champs-Élysées, Boris Kochno montava um novo balé, La Rencontre; Cocteau e Bérard pediram a Sartre um texto de apresentação; assistimos a um ensaio; graciosa e aplicada, Leslie Caron, de malha preta, emprestava à Esfinge o mistério de seus quinze anos; ela conquistou o público engalanado do ensaio geral. Achamos pouco interessantes os balés de Katherine Dunham, que atraíram Paris inteira. Quanto ao Estado de sítio, de Camus, abstivemo-nos de ir, não por falta de amizade. Vimos, no Marigny, Les Fourberies de Scapin: Barrault optara por não passar de um comerciante.
Muito próximo politicamente de Bourdet — que pouco mais tarde escreveu crônicas políticas para a Temps Modernes —, Sartre me pediu certa tarde para ir ao coquetel oferecido por Ida. Ela recebia muito bem, e estava lá muita gente: demais. Senti um profundo mal-estar ao ver todas aquelas pessoas, separadas por tantas coisas, dando-se palmadinhas nas costas. Altmann, que na época eu pensava ser de esquerda, caiu nos braços de Louis Vallon; e eu mesma, quantas mãos não apertei! Van Chi errava em meio à multidão, parecendo tão infeliz quanto eu. Sorrir tão cordialmente a adversários quanto a amigos é reduzir os compromissos a opiniões, e todos os intelectuais, de direita ou de esquerda, à sua condição burguesa comum. Era esta que me impunham aqui como minha verdade e foi por isso que tive essa dolorosa impressão de derrota.
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No início de junho, enverguei o mantô branco que trouxera dois anos antes de Chicago e fui buscar Algren na estação de Saint-Lazare, à chegada do trem transatlântico. Como nos iríamos reencontrar? Tínhamo-nos separado mal; mas ele vinha. Fiquei espreitando os trilhos, o trem, o fluxo dos viajantes: não o vi; os últimos vagões se esvaziavam, estavam já vazios: Algren não estava. Esperei ainda por um longo momento; não havia mais ninguém na plataforma, quando resolvi ir embora; afastei-me lentamente, lançando ainda alguns olhares por sobre o ombro: em vão. “Virei procurá-lo no próximo trem”, disse a mim mesma, e voltei para casa de táxi. Sentei-me no meu divã, acendi um cigarro, desamparada demais para ler. De repente, uma voz americana veio da rua, um homem carregado de pacotes entrava no Café des Amis, saía de novo, aproximava-se da porta. Era Algren. De seu compartimento ele reconhecera meu mantô, mas estava tão atrapalhado com as bagagens que só desceu muito tempo depois de todos os outros viajantes.
Trazia-me chocolate, uísque, livros, fotos, um roupão florido. No tempo em que era GI, passara dois dias em Paris, no Grand Hôtel de Chicago, do lado de Batignoles. Não vira quase nada. Era estranho eu dizer para mim mesma, caminhando do lado dele na rua Moufíetard: “É seu primeiro olhar sobre Paris; como lhe parecem essas casas e essas lojas?” Estava ansiosa; não queria reencontrar aquela cara emburrada que ele às vezes fazia para mim em Nova York. Meu excesso de solicitude incomodou-o durante aqueles primeiros dias, confessou-me, mais tarde. Mas eu me tranquilizei rápido; ele parecia radiante.
A pé, de táxi, uma vez de fiacre, levei-o a passear por toda parte e ele gostava de tudo: das ruas, das multidões, dos mercados. Certos detalhes o escandalizavam: não havia escadas de emergência nas fachadas dos prédios não havia parapeito ao longo do canal Saint-Martin: “Então, se houver un incêndio, a gente é queimada viva? Começo a entender os franceses: se queimar, queimou! Se uma criança se afogar, se afogou: não se contraria o destino!” Achava os motoristas loucos. A cozinha francesa e o vinho de Beaujolais o encantaram, embora preferisse linguiça a foie gras. Gostava muito de fazer compras nas lojas do bairro; o cerimonial das conversas o maravilhava “Bom dia, senhor, como vai, bem obrigado, muito bem, e o senhor, que tempo horrivel hoje, até logo, senhor, obrigado, senhor”; em Chicago, compra-se em silêncio, dizia-me.
Fiz com que encontrasse meus amigos. Com Sartre, a conversa foi um pouco difícil, porque Sartre não sabe inglês e eu não tenho paciência para traduzir; mas eles simpatizaram um com o outro. Falamos um pouco de Tito e muito de Mao Tsé-Tung: a China era tão mal conhecida que se prestava a todas as divagações. Causava admiração que Mao Tsé-Tung escrevesse versos pois ignorava-se que lá todo general fazia um pouco de pintura; atribuía-se a esses revolucionários, que também eram letrados, uma sabedoria antiga, compondo com o marxismo uma misteriosa e sedutora aliança; contavam-se belas histórias, verdadeiras, aliás, sobre o alfabeto nos campos, o teatro nos exércitos e a liberação das mulheres. Pensava-se que a “via chinesa para o comunismo” seria mais flexível e mais liberal que a via russa, e que a face inteira do mundo socialista ia acabar mudando.
Na Rose Rouge, Bost e Algren confrontaram suas lembranças de GI e da segunda classe. Olga seduziu Algren ouvindo, de olhos arregalados, todas as histórias que ele contava: ele sabia montes delas e, quando não tinha mais, inventava. Ao jantarmos os quatro no restaurante da torre Eiffel — entupido de americanos, onde se comia e bebia mal, mas de onde se tinha uma belíssima vista —, ele falou durante duas horas de seus amigos, drogados e ladrões, e eu não conseguia mais separar a verdade da fábula; Bost não acreditava em nada, Olga engolia tudo. Organizei uma noitada na casa dos Vian: tínhamos convidado Cazalis, Gréco, Scipion. Levei Algren a um coquetel dado por Gallimard em honra de Caldwell. Íamos frequentemente beber no Montana com uns e outros. No início, os “esquerdistas” do nosso grupo — Scipion, entre outros — olhavam aquele americano com suspeita. Aborrecido com esse antagonismo, ele se comprazia em dizer paradoxos e verdades incongruentes. Mas quando souberam que ele votara em Wallace, que seus amigos haviam todos sido expulsos da rádio e da televisão por antiamericanismo e sobretudo quando o conheceram melhor, ele foi aceito. Algren tinha grande afeição por Michelle Vian, a quem chamava de Zazou, e que lhe servia conscienciosamente de intérprete, mesmo quando o calor da conversa nos arrebatava. Em 14 de julho, depois de correr em grupo os bailes do bairro, encalhamos num botequim que só fechava de madrugada. Queneau estava em plena forma, e de vez em quando eu me virava para Algren: “Ele acaba de dizer uma coisa muito engraçada!” Algren esboçava um sorriso um tanto constrangido. Michelle sentou-se ao lado dele e traduziu tudo. Ele também gostava de Scipion, por causa do riso, e achava que ele tinha o nariz mais bonito do mundo. Na biblioteca, em cima do clube Saint-Germain, encontrava Guyonnet, que tentava traduzir seu último romance e penava com a gíria de Chicago. Guyonnet convidou-o a ir lutar boxe uma manhã com ele e Jean Cau. Quando me encontrou para almoçar, no terraço da Bouteille d’Or, no cais, deixou-se cair na cadeira: “Esses franceses!”, disse. “Todos pirados.” Obedecendo a instruções de Guyonnet, entrou num quarto num sexto andar e foi recebido com clamor: “Eis o bom americano!”; pela janela, viu Cau e Guyonnet, que lhe faziam sinal para que fosse juntar-se a eles num terraço ao qual se tinha acesso pela calha. Para Algren, que sofre de vertigem, era uma aventura apavorante. O terraço era minúsculo e sem parapeito: lutava-se boxe à beira de um precipício. “Todos pirados!”, repetiu Algren, ainda meio perdido.
Para mostrar-lhe a multidão parisiense, conduzi-o à festa de 18 de junho: a avenida Orleans fora rebatizada de “avenida General Leclerc”, durante uma cerimônia presidida pelos generais. Quando caminhávamos na multidão, um homem me reconheceu: “Seu lugar não é aqui!” Seu olhar gaullista me fulminava. Vimos juntos os Van Gogh e os Toulouse-Lautrec do Jeu de Paume. Levei-o a visitar o museu Grévin; ele ficou tão maravilhado com “o palácio das miragens”, com o infinito de suas florestas, de suas colunatas, de seus astros e de suas girândolas, com os artifícios de suas luzes — sobretudo com sua “luz negra” —, que depois disse a todos os seus compatriotas que vieram a Paris para irem lá. Certa tarde, Sartre alugou um Slota; fizemos com Bost, Michelle e Scipion um grande passeio pelo subúrbio; passeamos em Clichy, no cemitério dos cães: uma pequena ilha no Sena; o visitante é acolhido pela estátua de um são-bernardo que salvou, creio, noventa e nove pessoas. Nos túmulos, inscrições afirmam a superioridade do animal sobre o homem; são guardados por cães de caça, dogues e foxes de gesso. De repente, Algren deu um pontapé enfurecido num caniche cuja cabeça rolou no chão. “Mas por quê?”, perguntamos-lhe rindo. “Ele me olhava de um jeito que não me agradou”, respondeu ele. Aquele culto aos animais irritava-o.
Pensei em diverti-lo levando-o às corridas de Auteuil, mas ele não entende nada do sistema francês de apostas e de marcação. Em compensação, interessou-se pelas lutas de boxe do Central. Deixava-me muito confusa, porque eu adquirira um pouco de respeito humano desde a minha juventude e ele não tinha nem um pingo. Em plena luta, tirava fotos utilizando flashes e refletor.
Fui com ele ao clube Saint-Germain, lançado um ano antes por Bouba para onde tinham ido Vian e Cazalis. O estilo Nova Orleans, ainda em voga no Tabou, cedera lugar ali ao be-bop. A adega estava repleta; uma mulher de barba sorria num quadro. Na Rose Rouge, ouvi de novo os Frère Jacques em Exercises de style. Algren gostou deles, mas apreciou mais ainda Montand, que cantava no A.B.C., e Mouloudji. Pela primeira vez na vida, bebo champanhe no Lido, por causa de uma atração que Sartre me recomendara: um ventríloquo chamado Winces utilizava como boneco a mão esquerda; dois botões de botinas serviam de olhos, dois dedos pintados de vermelho faziam os lábios: em cima, ele enfiava uma peruca, e embaixo ajustava um corpo; a boneca mexia a boca, distendia-a até engolir um taco de bilhar, fumava, puxava a língua — um terceiro dedo. Era tão viva que se pensava realmente ouvi-la falar e, quando se desfez, foi como se um pequeno ser insolente e encantado acabasse de morrer.
Algren desejava conhecer o Velho Mundo. A Espanha nos era proibida, estava fora de cogitação pôr os pés nos domínios de Franco. Tomamos o avião para Roma: espantei-me ao abarcar num só golpe de vista a cidade, o mar e um vasto campo queimado. E que assombro partir de Paris de manhã e almoçar na praça Navona! Caminhamos muito e olhamos muita coisa. Jantamos e jogamos bocce com Carlo Levi, num boteco do Janículo; almoçamos com os Silone; assistimos à representação de Aída nas termas de Caracalla: gostei de ouvir um avião roncar por cima de uma grande ária de Verdi. Certa noite, um fiacre nos levou, sob a tempestade, através das ruas líquidas e negras. Mas havia ruínas demais e a cidade era demasiado tranquila para o gosto de Algren. Partimos de ônibus para Nápoles. Paramos em Cassino: as ruínas ardendo ao sol pareciam tão longínquas quanto as de Pompeia.
Algren gostou de Nápoles; conhecera a miséria, convivia com ela diariamente, e não sentia nenhum embaraço ao passear nos bairros populosos. Fiquei ainda mais embaraçada do que no Central, quando ele começou a tirar fotos: na verdade, as pessoas sorriam para seus flashes, e as crianças disputavam as lâmpadas ainda quentes. Acolheram-no como um amigo, quando voltou para distribuir as cópias.
Os italianos o encantavam. Ao chegar a Porto d’Ischia, onde queríamos passar alguns dias, fomos ao restaurante; ele pediu um copo de leite; não havia; o garçom, que batia na cintura de Algren, instruiu-o: “Mas não se deve beber leite! É preciso beber vinho, senhor: é assim que se fica grande e forte!” Aquele pequeno porto seco, com loureiros-rosa poeirentos e cavalos emplumados, não nos agradou. Seguimos até Forio; o hotelzinho, a pique em cima do mar, estava deserto; havia uma sala de jantar escura e um terraço; a dona nos empanzinava com lasanhas ao forno. Na praça, onde tomávamos cafés, mostraram-nos a viúva de Mussolini. Fizemos excursões de fiacre. Passávamos horas na praia. Em nossas lembranças, Ischia ficou sendo nosso paraíso. Mas também fomos felizes em Sorrento, Amalfi, Ravello, e, apesar de tudo, Algren ficou impressionado com os restos de Pompeia.
Um avião nos transportou de Roma para Túnis: os souks e a Mellah fascinaram Algren. Não sei mais como foi que encontramos Amour Hassine, um motorista que levava a família a Djerba, para festejar o fim do Ramadã: por um preço módico ele nos levou. A ilha estava uma loucura na noite em que chegamos; entre os muçulmanos do mundo inteiro, observadores espreitavam a lua; se ela aparecesse durante a noite, eles avisariam por telegrama a todos os seus correligionários e o jejum terminaria; caso contrário, este duraria ainda até a noite do dia seguinte; comendo, bebendo, dançando, fumando e perscrutando o céu, as pessoas matavam o tempo com um nervosismo que o prazo de um dia não me parecia justificar. Sentado a uma mesa de café, em meio a músicas desenfreadas, Algren fumou o narguilé com Amour Hassine; este confessou-nos que durante o ano às vezes bebia vinho, e que frequentemente desobedecia ao Corão: mas durante o Ramadã não punha uma migalha na boca, não fumava um cigarro entre a aurora e o crepúsculo: “Isso Deus não perdoaria!”, disse ele. A tensão e a fadiga daqueles dias de abstinência explicavam o frenesi impaciente da multidão. A lua permaneceu escondida. A noite seguinte foi calma, pois não havia mais incerteza: o Ramadã terminara.
Permanecemos três dias na ilha. Na aldeia judia, Algren olhou com espanto as belas mulheres de olhos escuros, com o tradicional xale negro na cabeça: “Conheço algumas exatamente iguais em Chicago”, disse-me ele. Visitamos a sinagoga, aonde chegam em peregrinação judeus do mundo inteiro. Passávamos longos momentos numa gruta, arranjada como taberna; as garrafas de cerveja estavam mergulhadas num pequeno tanque com água onde, para refrescá-las, o dono patinava descalço. Ele fez Algren fumar kiff “Você vai ver: vai voar!” Todos os clientes observavam. Algren sentiu como uma leve sacudidela que o arrancou do chão: mas logo caiu de novo.
Em casa de primos de Amour Hassine, comemos ensopados vermelhos e bebemos xaropes de violeta. Subimos de novo com ele para Túnis, por Medenin e Cairuã. Diante dos gorfa, Algren arregalava os olhos: “Realmente, não sei mais onde estou!” Amour Hassine mostrou-nos uma foto que o representava, com um fone ao ouvido: “Eu estava telefonando para Paris!”, disse-nos gloriosamente. Estava orgulhoso de conduzir um americano, mas não compreendia por que este não tinha carro. “Nem todos são ricos lá”, disse Algren. Hassine refletiu; como comprávamos muitas vezes filhós e guloseimas, perguntou: “Há ovos na América? Há leite?… Então levem-me para lá: instalamo-nos numa praça, fazemos panquecas e filhós e ficaremos ricos.” Tinha dois ódios: a França e a Israel; o primeiro ele só exprimiu veladamente, por minha causa; mas sobre os judeus, como Algren não reagisse, desabafava: “Nunca tiveram bandeira: e agora querem um país para eles!”
Depois de Túnis, foi Argel, depois Fez, Marrakech; tanta luz, cores, belezas, tantas chagas: os olhos de Algren arregalavam-se cada vez mais. Ele quis rever Marseille, onde esperara, depois da guerra, o navio para os EUA. Depois, Olga e Bost nos acolheram em sua casa de Cabris: as janelas davam para os terraços de oliveiras e para o mar longínquo. O vilarejo quase não mudara desde 1941. Certa noite, alugamos um carro para perder um pouco — muito pouco — de dinheiro no cassino de Monte Carlo. Num sótão de Antibes, para onde emigrara o clube du Vieux Colombier, ouvimos Luter; Gréco cantou “Si tu imagines” e “La rue des Blancs-Manteaux”. Algren bebeu muito; dançou com Olga e depois, muito graciosamente, com uma cadeira.
O mês de setembro, em Paris, foi magnífico. Nunca nos havíamos entendido tão bem. No ano seguinte, eu iria a Chicago: estava certa de tornar a encontrar Algren, ao deixá-lo. No entanto, tinha o coração apertado quando o acompanhei a Orly. Ele passou pelo portão da alfândega e desapareceu: aquilo parecia tão impossível, que tudo se tornava possível, até mesmo e sobretudo não revê-lo nunca mais. Voltei para Paris de táxi: as luzes vermelhas em cima dos pilones pressagiavam uma horrível tristeza.
Eu estava enganada. A primeira carta de Algren transbordava de alegria. Na escala em Gander, uma revista o fez saber que havia ganhado o prêmio Pulitzer. Coquetéis, entrevistas, rádio, televisão: Nova York festejou-o. Um amigo o levou de volta de carro a Chicago. Ele estava feliz com sua viagem à Europa, feliz por voltar para casa. Escrevia-me: “Rodamos o sábado e o domingo inteiros, e era maravilhoso rever árvores americanas, e o grande céu americano, os grandes rios e as planícies. Não é um país tão colorido quanto a França; não nos comove, como os telhadinhos vermelhos, quando chegamos a Paris pelo trem transatlântico, ou quando os sobrevoamos no avião Marseille-Paris. Também não é terrível como a luz verde-cinza de Marrakech. É apenas vasto, quente e fácil, seguro e sonolento, e não tem pressa. Fiquei contente por pertencer a ele, e como que aliviado com a ideia de que, onde quer que eu vá, esse era o país para onde poderia retornar sempre.”
Ele me repetia que me esperava, e voltei a ficar confiante.
***
O primeiro volume de O segundo sexo foi publicado em junho; em maio, saiu na Temps Modernes o capítulo sobre “a iniciação sexual da mulher”, seguido, em junho e julho, pelos que tratavam da “lésbica” e da “maternidade”. Em novembro, o segundo volume foi publicado pela Gallimard.
Eu disse como esse livro foi concebido: quase que fortuitamente; querendo falar de mim, percebi que precisava descrever a condição da mulher; considerei primeiro os mitos que dela forjaram os homens através das cosmologias, das religiões, das superstições, das ideologias, das literaturas. Tentei pôr ordem no quadro, à primeira vista incoerente, que se ofereceu a mim: em todo caso, o homem se colocava como o Sujeito e considerava a mulher como um objeto, como o Outro. Essa pretensão explicava-se evidentemente por circunstâncias históricas; e Sartre me disse que eu devia também indicar as bases fisiológicas. Estávamos em Ramatuelle; falamos disso muito tempo, e eu hesitei: não pensara em escrever uma obra tão vasta. Mas, efetivamente, meu estudo sobre os mitos ficaria incompleto se não se soubesse que realidade eles recobriam. Mergulhei, portanto, nos livros de fisiologia e de história. Não me limitei a compilar; os próprios cientistas, e dos dois sexos, estão imbuídos de preconceitos viris, e eu tentei redescobrir, por trás de suas interpretações, os fatos exatos. Em história, destaquei algumas ideias que não encontrara em nenhum lugar: relacionei a história da mulher à história da herança, o que quer dizer que ela me pareceu como um contragolpe da evolução econômica do mundo masculino.
Comecei a olhar as mulheres com um olhar novo e fui indo de surpresa em surpresa. É estranho e estimulante descobrir de repente, aos quarenta anos, um aspecto do mundo que salta aos olhos e que não era percebido. Um dos mal-entendidos que meu livro suscitou foi que se pensou que nele eu negava qualquer diferença entre homens e mulheres: ao contrário, ao escrevê-lo, medi o que os separa; o que sustentei foi que essas dessemelhanças são de ordem cultural, e não natural. Contei sistematicamente como elas se criam, da infância à velhice; examinei as possibilidades que este mundo oferece às mulheres, as que lhes são recusadas, seus limites, suas oportunidades e faltas de oportunidades, suas evasões, suas realizações. Compus assim o segundo volume: “A experiência vivida”.
Não passei mais de dois anos79 trabalhando nessa obra. Tinha conhecimentos de sociologia e de psicologia. Devia à minha formação universitária métodos de trabalho eficazes: eu sabia classificar e analisar rapidamente os livros, eliminar aqueles que não passavam de repetições ou de fantasias; fiz um inventário mais ou menos exaustivo de tudo o que fôra publicado em francês e em inglês sobre a questão; esta suscitou uma imensa literatura, mas, como em muitos outros casos, apenas um pequeno número desses estudos tem importância. Aproveitei também, sobretudo no segundo volume, aquele interesse que durante anos Sartre e eu havíamos tido pelas pessoas: minha memória: forneceu-me material abundante.
O primeiro volume foi bem recebido: venderam-se vinte e dois mil exemplares na primeira semana. O segundo também foi muito comprado, mas escandalizou. Fiquei chocada com a repercussão dos capítulos publicados na Temps Modernes. Eu menosprezara radicalmente essa “mesquinhez francesa” da qual falou Julien Gracq num artigo em que — embora ele me comparasse a Poincaré discorrendo nos cemitérios — felicitava-me pela minha “coragem”. Essa palavra espantou-me na primeira vez em que a ouvi. “Como você foi corajosa!”, disse-me Claudine Chonez, com uma admiração apiedada. “Corajosa?” “Você vai perder muitos amigos!” Se os perder, é porque não eram amigos, pensava eu. De qualquer modo, eu teria escrito esse livro como tinha vontade de escrevê-lo; mas nem por um instante pensei em heroísmo. Os homens que me eram mais próximos — Sartre, Bost, Merleau-Ponty, Leiris, Giacometti, a equipe da Temps Modernes — eram também, com relação a isso, verdadeiros democratas: eu teria antes temido, se só tivesse pensado neles, ter caído no óbvio. De resto, essa censura me foi feita: mas também acusaram-me de inventar, de fantasiar, de delirar. Reprovaram-me tantas coisas: tudo! Em primeiro lugar, minha indecência. Os números de junho-julho-agosto da Temps Modernes voaram: mas eram lidos, se ouso dizer, cobrindo o rosto. Era de se pensar que Freud e a psicanálise nunca tivessem existido. Que festival de obscenidade sob o pretexto de fustigar a minha! O bom velho espírito gaulês expandiu-se. Recebi, assinados ou anônimos, epigramas, epístolas, sátiras, admoestações, exortações dirigidas, por exemplo, por “membros muito ativos do primeiro sexo”. Insatisfeita, frígida, priápica, ninfomaníaca, lésbica, cem vezes abortada, fui tudo, até mesmo mãe clandestina. Ofereciam-se para curar minha frigidez, para saciar meus apetites de vampiro, prometiam-me revelações em termos abjetos, mas em nome da verdade, da beleza, do bem, da saúde e até mesmo da poesia, indignamente saqueados por mim. Bom. É monótono fazer pichações nos banheiros; que maníacos sexuais preferissem enviar-me suas elucubrações, eu podia compreender. Mas Mauriac, afinal! Ele escreveu a um dos colaboradores da Temps Modernes: “Fiquei sabendo tudo sobre a vagina de sua patroa”: o que mostra que, na intimidade, ele não tinha medo das palavras. Ao vê-las impressas, sofria tanto que lançou uma pesquisa no Figaro Littéraire: incitava a juventude a condenar a pornografia em geral e meus artigos em particular. O sucesso foi tímido. Embora se tivessem abafado, as respostas de Pouillon e de Cau, que voaram em meu socorro — e provavelmente muitas outras —, tive defensores: entre outros, Domenach; os cristãos não se indignavam com muita veemência e no conjunto a juventude não parecia muito escandalizada com meus transbordamentos verbais. Mauriac afligiu-se com isso. Precisamente para fechar a pesquisa, uma jovem angelical enviou-lhe uma carta que satisfazia tão exatamente seus anseios, que fomos muitos a nos divertir com a sorte. Entretanto, nos restaurantes, nos cafés — que, com Algren, eu frequentava mais do que de hábito —, aconteceu muitas vezes zombarem indicando-me com o olhar ou até mesmo com o dedo. Durante um jantar inteiro no Nos Provinces, na avenida Montparnasse, um grupo sentado a uma mesa vizinha me encarou e caiu na risada; aborrecia-me arrastar Algren a um escândalo; mas, ao sair, disse algumas coisas àquelas pessoas de bem.
A violência e a baixeza dessas reações deixaram-me perplexa. Entre os povos latinos, o catolicismo encorajou a tirania masculina e chegou a incliná-la para o sadismo; mas se entre os italianos ela se alia à malandragem, e entre os espanhóis à arrogância, a mesquinhez é bem francesa. Por quê? Provavelmente, antes de tudo, porque os homens na França sentem-se economicamente ameaçados pela concorrência das mulheres; para manter contra elas a afirmação de uma superioridade que os costumes não garantem mais, o meio mais simples é aviltá-las. Uma tradição gaiata fornece todo um arsenal que permite reduzi-las à sua função de objetos sexuais: ditos, imagens, anedotas e o próprio vocabulário; por outro lado, no terreno do erotismo, o mito ancestral da supremacia francesa está em perigo; o amante ideal, nas representações coletivas, é hoje mais o italiano do que o francês; enfim, a atitude crítica das mulheres liberadas fere ou cansa seus parceiros; suscita neles o ressentimento. A mesquinhez é a velha licenciosidade francesa, retomada por machos vulneráveis e rancorosos.80
Em novembro, houve nova manifestação de hostilidades. Os críticos caíam das nuvens; não havia problema: as mulheres sempre haviam sido iguais aos homens, jamais seriam inferiores a eles, tudo o que eu dizia já era sabido, não havia uma palavra de verdade em meu discurso. Em Liberté de l’esprit, Boisdeffre e Nimier rivalizaram com desdém. Eu era uma “pobre mulher” neurótica, uma rejeitada, uma frustrada, uma deserdada, uma mulher-macho, uma mal-fodida, uma invejosa, uma amargurada repleta de complexos de inferioridade com relação aos homens, com relação às mulheres, estava roída pelo ressentimento.81 Jean Guitton escreveu, com muita compaixão cristã, que fora penosamente afetado por O segundo sexo, porque nele se podia decifrar em filigrana “minha triste vida”. Armand Hoog superou-se: “Humilhada por ser mulher, dolorosamente consciente de ser encerrada em sua condição pelos olhares dos homens, ela recusa ao mesmo tempo esse olhar e essa condição.”
Esse tema da humilhação foi retomado por um número considerável de comentaristas tão ingenuamente imbuídos de sua superioridade viril, que não podiam imaginar que ela jamais me tivesse pesado. O homem que eu colocava acima de todos os outros não me julgava inferior a eles. Eu tinha muitos amigos homens cujos olhares, longe de me encerrar em limites, reconheciam-me como ser humano em gozo pleno de seus direitos; essas oportunidades me haviam defendido contra todo o desprezo e todo o rancor: viu-se que nem a minha infância nem a minha juventude me tinham infectado.82 Leitores mais sutis consideraram que eu era misógina e que, pretendendo tomar o partido das mulheres, eu as executava; não é verdade: não as exalto, e descrevi os defeitos engendrados por sua condição, mas também mostrei suas qualidades e méritos. Dei afeição e estima demais a um número demasiado grande de mulheres, para traí-las considerando-me como um “macho de honra”; também nunca fui ferida por seus olhares. Na verdade, só fui alvo de sarcasmos depois de O segundo sexo; antes, manifestavam por mim indiferença ou benevolência. Depois, muitas vezes foi enquanto mulher que me atacaram, porque pensavam atingir-me num ponto vulnerável: mas eu sabia muito bem que esse mau humor visava na verdade a minhas posições morais e sociais. Não; longe de sofrer com minha feminilidade, antes acumulei, a partir dos vinte anos, as vantagens dos dois sexos; depois de A convidada, os que me eram próximos me trataram ao mesmo tempo como um escritor e uma mulher; isso foi particularmente impressionante na América: nas festas, as esposas se reuniam e falavam entre si, enquanto eu conversava com os homens, que, no entanto, manifestavam mais cortesia para comigo do que para com seus congêneres. Fui encorajada a escrever O segundo sexo precisamente por essa situação privilegiada. Ela me permitiu exprimir-me com toda a serenidade. E, contrariamente ao que pretenderam, foi essa placidez que exasperou muitos dos meus leitores masculinos: eles teriam acolhido com comovida condescendência um grande grito de raiva, a revolta de uma alma ferida; não perdoando minha objetividade, fingiam não acreditar nela. Aborreci-me, por exemplo, com uma frase de Claude Mauriac, porque ela ilustrava a arrogância do primeiro sexo: “Por que ela tem raiva de mim?”, perguntou-se ele. Por nada: eu só tinha raiva das palavras que citava. É estranho que tantos intelectuais se recusem a crer nas paixões intelectuais.83
Suscitei ódios até mesmo entre meus amigos. Um deles, um universitário progressista, parou de ler meu livro e atirou-o para o outro lado do quarto. Camus me acusou, em algumas frases melancólicas, de ter ridicularizado o macho francês. Mediterrânico, cultivando um orgulho espanhol, ele só concedia igualdade à mulher na diferença, e evidentemente, como teria dito George Orwell, era ele o mais igual dos dois. Confessara-nos alegremente outrora que não suportava a ideia de ser medido, julgado por uma mulher: ela era o objeto, e ele, a consciência e o olhar; ele ria disso: mas é verdade que não admitia a reciprocidade. Concluiu com um súbito calor: “Havia um argumento que você deveria ter salientado: o próprio homem sofre por não encontrar na mulher uma verdadeira companheira; ele aspira à igualdade.” Também ele preferia um grito do coração às razões: e, como se não bastasse, proferido em nome dos homens. A maioria deles considerou como uma injúria pessoal o que eu relatei sobre a frigidez feminina; faziam questão de imaginar que distribuíam o prazer a seu bel-prazer; duvidar disso seria castrá-los.
A direita só podia detestar meu livro que, de resto, Roma colocou no índex. Eu esperava que ele fosse bem acolhido na extrema esquerda. Estávamos muito mal com os comunistas; apesar disso, meu ensaio devia tanto ao marxismo, e lhe atribuía um papel tão importante, que eu esperava da parte deles ao menos alguma imparcialidade! Marie-Louise Barron, em Les Lettres Françaises, limitou-se a declarar que O segundo sexo provocaria o riso das operárias de Billancourt: é subestimar bastante as operárias de Billancourt, respondia Colett Audry, numa “revista das críticas”, que publicou no Combat. Action me dedicou um artigo anônimo e ininteligível, ilustrado com uma foto que representava o abraço de uma mulher com um macaco.
Os marxistas não stalinistas não foram muito mais reconfortantes. Fiz uma conferência na École Emancipée, e responderam-me que, feita a Revolução, o problema da mulher não se colocaria mais. Muito bem, disse eu; mas e enquanto se espera? O presente não parecia interessar-lhes.
Meus adversários criaram e alimentaram numerosos mal-entendidos en torno de O segundo sexo. Atacaram-me sobretudo por causa do capítulo sobre a maternidade. Muitos homens declararam que eu não tinha o direito de falar das mulheres porque nunca procriei: e eles?84 Nem por isso deixavam de me opor ideias preconcebidas. Eu teria recusado qualquer valor ao sentimento materno e ao amor: não. Desejei que a mulher os vivesse verdadeira e livremente, quando muitas vezes eles lhe servem de álibi e ela se aliena deles, a tal ponto que a alienação permanece quando o coração já secou. Eu teria pregado liberdade sexual; mas jamais aconselhei alguém a dormir com qualquer um, em qualquer momento; o que penso é que, nesse âmbito, as escolhas, os consentimentos e as recusas não devem obedecer a instituições, a convenções; a interesses; se as razões não são da mesma ordem que o ato que motivam chega-se a mentiras, distorções e mutilações.
Dediquei um capítulo ao problema do aborto; Sartre falou disso em A idade da razão, e eu em O sangue dos outros; acorreram pessoas ao escritório da Temps Modernes, pedindo endereços à Mme Sorbets, a secretária. Ela se aborreceu tanto, que um dia, apontando para um cartaz, disse: “Nós mesmos fazemos isso aqui.” Certa manhã eu ainda dormia, quando bateram à minha porta. “Minha mulher está grávida”, disse-me um rapaz com ar perturbado. “Indique-me um endereço…” “Mas eu não conheço nenhum”, respondi-lhe. Ele partiu amaldiçoando-me. “Ninguém ajuda ninguém!” Eu não conhecia endereço algum; e como confiar num estranho que não tinha autocontrole? Encurralam-se as mulheres e os casais na clandestinidade; se posso ajudá-los, faço-o sem hesitar. Mas eu não achava agradável ser tomada por uma alcoviteira profissional.
O segundo sexo teve defensores: Francis Jeanson, Nadeau, Mounier. Suscitou debates públicos e conferências, valeu-me uma correspondência considerável. Mal lido, mal compreendido, agitava os espíritos. Pensando bem, é talvez, de todos os meus livros, o que me trouxe satisfações mais sólidas. Se me perguntarem como o julgo hoje, não hesito em responder: sou a favor.
Oh! Admito que se critique o estilo, a composição. Eu poderia facilmente extrair dele uma obra mais elegante: descobrindo minhas ideias ao mesmo tempo que as expunha, não pude fazer melhor. Quanto ao fundo, tomaria no primeiro volume uma posição mais materialista. Iria basear a noção de outro e o maniqueísmo que ela acarreta, não numa luta a priori e idealista das consciências, mas na raridade e na necessidade: foi o que fiz em A longa marcha, quando falei da antiga servidão das chinesas. Essa modificação em nada mudaria os desenvolvimentos que se seguem. De modo geral, continuo de acordo com o que eu disse. Nunca alimentei a ilusão de transformar a condição feminina; ela depende do futuro do trabalho no mundo e não mudará seriamente senão à custa de uma subversão da produção. Foi por isso que evitei encerrar-me naquilo que se chama de “feminismo”. Também não propus um remédio para cada problema particular. Pelo menos ajudei minhas contemporâneas a tomar consciência delas mesmas e de sua situação.
Muitas delas, é verdade, reprovaram meu livro: eu as incomodava, contestava-as, exasperava-as ou amedrontava-as. Mas a outras ajudei, e sei disso através de numerosos testemunhos, e por uma correspondência que dura doze anos. Elas encontraram nas minhas exposições um auxílio contra as imagens delas mesmas que as revoltavam, contra mitos que as esmagavam; descobriram que suas dificuldades não refletiam uma desgraça singular, mas uma condição geral; essa descoberta evitou que elas se desprezassem, e algumas ali buscaram a força para lutar. A lucidez não faz a felicidade, mas a favorece e dá coragem. Psiquiatras me disseram que mandavam suas pacientes lerem O segundo sexo — e não só intelectuais, mas pequeno-burguesas, funcionárias, operárias. “Seu livro me foi de grande auxílio. Seu livro me salvou”, escreveram-me mulheres de todas as idades, e de condições diversas.
Se meu livro auxiliou as mulheres, foi porque as exprimia, e reciprocamente elas lhe conferiram sua verdade. Graças a elas, ele não escandaliza mais. Os mitos masculinos desfizeram-se durante esses últimos dez anos. E não foram poucas as mulheres escritoras que me superaram em ousadia. Um número demasiado grande delas, a meu ver, tem a sexualidade como único tema; mas ao menos, para falar nesse assunto, colocam-se como olhar, sujeito, consciência, liberdade.
Eu teria ficado surpresa e até mesmo irritada, aos trinta anos, se me tivessem dito que eu me ocuparia dos problemas femininos, e que meu público mais sério seriam as mulheres. Não o lamento. Divididas, dilaceradas, inferiorizadas, mais para elas do que para os homens, existem jogadas, vitórias, derrotas. As mulheres me interessam; e prefiro ter, através delas, uma apreensão do mundo limitada, mas sólida, a flutuar no universal.
***
Fazia ainda um tempo muito bom, com muito calor, quando voltei a Cagnes com Sartre, em meados de outubro. Reencontrei meu quarto, nossos cafés da manhã na minha sacada, minha mesa de madeira lustrosa, embaixo de uma janelinha de cortinas vermelhas. A tese de Lévi-Strauss acabava de ser publicada e fiz uma resenha dela para a Temps Modernes. Depois, dei início ao romance no qual pensava há muito tempo; queria pôr nele tudo de mim: minhas relações com a vida, a morte, o tempo, a literatura, o amor, a amizade, as viagens; desejava também retratar outras pessoas, e sobretudo contar essa febril e decepcionante história: o pós-guerra. Lancei palavras — o início do primeiro monólogo de Anne —, mas o vazio das folhas me dava vertigem. Não me faltavam coisas a dizer: mas como fazê-lo? Não era um trabalho de paciência, ah, não! Eu estava exaltada, mas amedrontada. Quanto tempo duraria essa aventura? Três anos? Quatro anos? Em todo caso, muito tempo. E onde iria chegar?
Para descansar e me estimular, eu lia o Diário de um ladrão, de Genet, um de seus mais belos livros. Passeava com Sartre. Pagniez, que passava uma temporada em Juan-les-Pins, em casa da Mme Lemaire, veio ver-nos com os filhos. A morte de sua mulher nos reaproximara. Os médicos não se haviam enganado. Ela definhou durante dois anos. Acamada, cada vez mais fraca e macilenta, era de cortar o coração ouvi-la fazer projetos. Pensava estar a caminho da cura quando morreu, durante o inverno.
Fomos de táxi a Sospel e a Peira-Cava, e tomamos chá no terraço. Tivemos a surpresa, alguns dias mais tarde, ao abrir o France-Dimanche, de encontrar ali uma reportagem sobre aquela tarde. O desenhista Soro, que mexericava nas colunas do jornal, estava passeando no Cagnard: parecera-lhe estranho recebermos um pai de família. Ele falava em tom sarcástico das minhas conversas com Sartre, sem decidir se censurava o hermetismo ou a simplicidade delas. Eu estava pouco ligando para os detalhes de todos esses mexericos, mas desagradava-me sentir-me acuada até nos meus retiros.
O terceiro volume de Caminhos da liberdade, Com a morte na alma, foi publicado pouco depois da nossa volta a Paris. Prefiro-o aos dois outros; na transparência de cada visão singular, o mundo conserva sua opacidade; tudo está fora, tudo está dentro; apreende-se o real com sua dupla face, o peso das coisas e aquilo que apesar de tudo é preciso chamar de liberdade. O romance teve, entretanto, menor sucesso que os anteriores. “É uma continuação sem ser um fim, então o público hesita em comprá-lo”, disse Gaston Gallimard, que teria desejado publicá-lo junto com o último volume. Sem dúvida, também os críticos influenciaram os leitores. Sartre chocou a direita, mostrando oficiais que desertavam, abandonando seus homens. Indignou os comunistas porque, civis e soldados, o povo francês aparecia como passivo e apolítico.
Com a morte na alma acabava em pontos de interrogação: Mathieu85 morrera ou não? Quem era esse Schneider, que intrigava Brunet? Que aconteceria com os outros personagens? La dernière chance deveria responder a essas perguntas. O primeiro episódio foi publicado no final de 1949, na Temps Modernes, com o título Drôle d’amitié. Um prisioneiro recém-chegado ao Stalag, Chalais, um comunista, reconhecia em Schneider o jornalista Vicarios, que deixara o partido no momento do pacto germano-soviético: ele fora alvo de uma advertência do PC, que o tomava por delator. Chalais afirmava que a URSS nunca entraria na guerra e que o Humanité recomendava a colaboração. Inquieto, indignado, dilacerado, Brunet, quando soube que Vicarios ia evadir-se para enfrentar seus caluniadores, decidiu partir com ele. Essa fuga comum selava a amizade que Brunet conservava por Vicarios, contra todos. Este morria, Brunet era recapturado. A continuação ficou no projeto. Brunet decidia fazer uma nova tentativa. Haviam-lhe falado de um prisioneiro que dirigia uma rede de evasões e ele o procurava; era Mathieu que, no momento em que era encontrado, participava da execução de um delator. A salvo, Mathieu, cansado de ser, desde seu nascimento, livre “para nada”, decidiu-se alegremente, enfim, pela ação. Graças à sua ajuda, Brunet escapou e alcançou Paris; ele constatava estupefato que — por uma reviravolta análoga àquela que, no fim de As mãos sujas, leva Hugo ao suicídio —, tendo a URSS entrado na guerra, o PC condenava a colaboração. Tendo conseguido reabilitar Schneider, ele retomava na Resistência suas tarefas de militante; mas a dúvida, o escândalo e a solidão lhe haviam revelado sua subjetividade: ele reconquistara sua liberdade no seio de engajamento. Mathieu fazia o caminho inverso. Daniel, que colaborava, pregara-lhe a peça de mandar chamá-lo a Paris como redator de um jornal controlado pelos alemães. Mathieu esquivava-se e entrava na clandestinidade. No Stalag, sua ação fora ainda a de um aventureiro individualista; agora, submetendo-se a uma disciplina coletiva, chegara à verdadeira participação; partindo, um da alienação à Causa e o outro da liberdade abstrata, Brunet e Mathieu encarnavam ambos o autêntico homem de ação, tal como Sartre o concebia. Mathieu e Odette se amavam, ela deixava Jacques, e eles conheciam a plenitude de uma paixão consentida. Preso, Mathieu morria torturado, heroico não por essência, mas porque se fizera herói. Philippe também resistia, para provar a si mesmo que não era um covarde e por ressentimento contra Daniel. Foi atingido durante uma batida num café do Quartier Latin. Louco de dor e de cólera, Daniel dissimulava no guardanapo uma das granadas que Philippe escondia no apartamento; comparecia a uma reunião de importantes personalidades alemãs e se fazia explodir com elas. Sarah, refugiada em Marseille, jogava-se por uma janela com o filho, no dia em que os alemães a prendiam. Boris era lançado de paraquedas no maquis. Com todos mortos, ou quase, não havia mais ninguém para pensar nos problemas do pós-guerra.
Mas eram estes que agora interessavam a Sartre; ele nada tinha a dizer sobre a Resistência, porque encarava o romance como uma discussão e porque, durante a ocupação, todos tinham sabido, sem equívoco, como conduzir-se. Para seus heróis, no fim de Drôle d’amitié, tudo estava dito: o momento crítico de sua história é aquele em que Daniel abraça arrebatadamente o mal, em que Mathieu acaba não suportando mais o vazio de sua liberdade, em que Brunet se elucida; só restava a Sartre colher os frutos delicadamente amadurecidos; ele prefere desmatar, arar, plantar. Sem abandonar a ideia do quarto livro, sempre encontrou um trabalho que o solicitava mais. Pular dez anos e precipitar seus personagens nas angústias da época atual não teria sentido: o último volume teria desmentido todas as expectativas do penúltimo. Estava ali prefigurado de modo demasiado imperioso para que Sartre pudesse modificar seu projeto, e para que sentisse prazer em se conformar com isso.
Fiquei contente pelo fato de Week-end à Zuydcoote, de Merle, ter obtido o prêmio Goncourt. Vi alguns filmes; a respeito de Ladrão de bicicleta, partilhei da opinião de Cocteau: era Roma e uma obra-prima. Com Fastes d’enfer, Paris descobriu Ghelderohde. Com Agnès Capri, representava-se Limites de la forêt, de Queneau, em que o principal papel era representado por um cão; havia outros números. Notei Barbara Laage, deliciosa, que pouco mais tarde iria rodar A prostituta respeitosa. A plateia era em grande parte composta de membros do quarto sexo: quinquagenárias cobertas de brilhantes e acompanhadas de mocinhas que visivelmente sustentavam.
Camus retornava da América do Sul, esgotara-se, parecia muito cansado na noite do ensaio geral de Les Justes; mas o calor da acolhida ressuscitou os melhores dias da nossa amizade. Perfeitamente representada, a peça nos pareceu acadêmica. Ele recebeu com uma simplicidade sorridente e cética os apertos de mão e os cumprimentos. Rosemonde Gérard, corcunda, enrugada e empetecada, precipitou-se em sua direção: “Prefiro isto às Mãos sujas”, disse ela, sem ter visto Sartre, a quem Camus dirigiu um sorriso cúmplice, dizendo: “Dois coelhos de uma cajadada!”, pois não gostava que o tomassem por um rival de Sartre.
Visitamos o ateliê de Léger; ele deu um quadro a Sartre, e a mim uma aquarela, muito bonita. Suas telas, depois da estada na América, tinham muito mais calor e cor do que antes. O museu de arte moderna apresentou uma vasta coleção delas; pouco mais tarde, vi ali esculturas de Henri Moore.
Desde que não tinha mais um teatro seu, Dullin fazia turnês que o extenuavam, pela França e pela Europa. Camille não lhe amenizava a vida, pois estava em dificuldades com a sua própria e bebia exageradamente. Reumático, exausto, foi acometido de dores tão violentas que o levaram para o hospital Saint-Antoine; abriram-lhe o ventre e o fecharam imeditamente: era um câncer. Enquanto ele agonizava, dois jornalistas do Samedi-Soir se fizeram passar por seus alunos, e forçaram a porta: “Deem o fora!”, urrou Dullin; mas eles já haviam tirado uma foto. Esse procedimento causou indignação: o Samedi-Soir defendeu-se choramingando. Depois de se debater durante dois ou três dias, Dullin morreu. Fazia muito tempo que eu não o via; idoso, enfermo, seu fim não era trágico como o de Bourla, mas eu tinha recordações comoventes dele. Todo um pedaço do meu passado desmoronava e tive a impressão de que minha própria morte começava.
Durante nosso tradicional retiro em La Pouèze, Sartre trabalhou num prefácio para as obras de Genet, que Gallimard lhe encomendara. Eu fiz a revisão do romance de Algren e me ocupei do meu. Mesmo em Paris, poucos incidentes me distraíam do meu trabalho. Tendo sabido pelo rádio que em O segundo sexo eu a chamei de hetera, Cléo de Mérode me processou; os jornais falaram do caso; entreguei a questão a Suzanne Blum e não me preocupei com ela.
Em fevereiro, os amigos e alunos organizararn no Atelier uma “homenagem a Dullin”. Fomos buscar Camille na casa dela; a deslumbrante Ariane Borg nos abriu a porta, consternada. Camille, para levantar o ânimo, bebera vinho tinto; descomposta, despenteada, em lágrimas, tivemos quase que carregá-la do táxi até o camarote onde se escondeu, soluçando durante toda a cerimônia. Salacrou e Jules Romains fizeram breves discursos: um ator leu o de Sartre. Olga, vestida a caráter, representou muito bem uma cena de As moscas. Ouviu-se a voz de Dullin gravada no monólogo de O avarento.
Em março, assisti no teatro de Poche a alguns ensaios e ao ensaio geral de duas pequenas peças de Chauffard: Le Dernier des sioux e Un Collier d’une reine. Claude Martin era o diretor. Essa jovem equipe trabalhava com harmonia e bom humor: lamentei que nunca fosse assim com as peças de Sartre! Denner86 fazia o papel do rei, Loleh Bellon era uma rainha encantadora, e Olga, que retornava enfim ao palco, brilhou; os críticos cumprimentaram-na. Sartre pretendia reprisar As moscas, quando ela estivesse inteiramente bem.
Havia, ao lado da minha casa, um vendedor de jornais com quem eu conversava com frequência. “Eu sou Martin Eden”, disse-me certo dia. Ele lia, seguia cursos de Bachelard. Decidira ajudar todos os autodidatas do bairro: “Porque eu sofri demais para chegar a isso.” Deu um jeito de organizar numa sala da rua Mouffetard uma espécie de clube e pedia a intelectuais que ali fizessem conferências. Sartre fez uma sobre teatro, Clouzot, sobre cinema. Eu falei sobre a condição da mulher: era a primeira vez que entrava em contato com um público popular, e percebi que, contrariamente ao que dizia a Mme Barron, ele se mostrava inteiramente interessado nos problemas que eu abordava.
***
As tentativas neutralistas haviam fracassado. Com o pretexto de se solidarizar com um indivíduo que se recusava por princípio a cumprir suas obrigações militares, Moreau, Gary Davis rasgava seus documentos e fazia, em seu próprio benefício, uma campanha publicitária que enojou seus partidários. O RDR acabava de desmoronar. Entre os dois blocos, definitivamente não havia mais um terceiro caminho. E a escolha continuava impossível. Contra a República Popular da China proclamada em 1.º de novembro, o State Department continuava a apoiar Chang Kai-Chek, refugiado em Formosa. Concedera apoio financeiro a Franco: para a Espanha era O fim da esperança, segundo o título de um ensaio publicado na Temps Modernes. Na Grécia, em conivência com a Inglaterra, fez a reação triunfar: os comunistas e todos os opositores agonizavam no campo de Makronissos. Mas não se podia optar sem reserva pela URSS, quando tantos dramas públicos e tenebrosos sucediam-se nos países stalinistas. Ainda se tinha os ouvidos cheios das confissões do cardeal Mindzenty, quando Rajk começou também a confessar tudo — traição, conspiração —, antes de ser enforcado em 15 de outubro, em Budapeste. Kostov não confessou nada e foi enforcado em Sófia, em dezembro. Através desses dois “criminosos” que na verdade pagavam por Tito, Stalin denunciava o “cosmopolitismo” e os “cosmopolitas”.
Sartre aderiu a um comitê para a revisão do processo de Tananarive, mas praticamente renunciou a qualquer atividade política. Ocupava-se com Merleau-Ponty da revista, que aliás estava regredindo: quatro anos antes, éramos amigos de todo mundo, e agora éramos considerados por todos como inimigos. Ele iniciou duas obras sem qualquer relação com as circunstâncias: La Reine Albemarle et le dernier touriste devia ser, de certo modo, A náusea, de sua idade madura; ali ele descrevia caprichosamente a Itália, ao mesmo tempo em suas estruturas atuais, sua história, suas paisagens, e refletia sobre a condição de turista.87 Por outro lado, seu prefácio sobre as obras de Genet tornou-se um grande livro no qual tentava, muito mais profundamente do que em seu Baudelaire, delimitar um homem. Reaproximou-se ao mesmo tempo da psicanálise e do marxismo e parecia-lhe agora que as situações limitavam estreitamente as possibilidades do indivíduo; sua liberdade consistia em não sofrê-las passivamente, mas, pelo próprio movimento de sua existência, interiorizava-as e ultrapassava-as em direção a significações. Em certos casos, a margem de escolha que lhe era deixada tendia a zero. Em outros, a escolha estendia-se por anos; Sartre contava a escolha de Genet; examinava os valores que suas opções punham em jogo — a santidade, o demoníaco, o bem, o mal — em sua ligação com o contexto social.
Nesse ano, Sartre abandonou sua moral propriamente dita, porque convenceu-se de que “a atitude moral aparece quando as condições técnicas e sociais tornam impossíveis as condutas positivas. A moral é um conjunto de truques idealistas para ajudar-nos a viver o que a penúria dos recursos e a carência das técnicas nos impõem.”88 Tratou sobretudo de história e de economia. O jovem filósofo marxista Tran Duc Thao propôs-lhe entrevistas que seriam reunidas em volume: ele aceitou.
No mês de novembro, Roger Stéphane veio procurar Sartre; tinha em mãos o “código soviético do trabalho corretivo”, que acabava de ser publicado novamente na Inglaterra,89 e que, no início de agosto, constituíra objeto de discussão na ONU; ele permanecia ignorado na França. Confirmava revelações feitas durante o processo Kravtchenko sobre a existência dos campos de trabalho forçado. Desejaria Sartre publicá-lo na Temps Modernes? Sim. Sartre, como eu já disse, acreditava no socialismo. Acreditava no que exprimiu alguns anos mais tarde, em Le Fantôme de Staline: tomado em seu conjunto, o movimento socialista “é o juiz absoluto de todos os outros, porque os explorados encontram a exploração e a luta de classes como sua realidade e como a verdade das sociedades burguesas… ele é o movimento do homem que está se fazendo; os outros partidos creem que o homem já está feito. Para apreciar um empreendimento político, o socialismo é a referência absoluta”. Ora, a URSS, apesar de tudo, era e permanecia sendo a pátria do socialismo: a tomada de poder revolucionária estava realizada. Ainda que a burocracia aí se estivesse estratificado, ainda que a polícia abarcasse enormes poderes, e embora crimes tivessem sido cometidos, nunca a URSS recolocara em questão a apropriação dos meios de produção; seu regime diferia radicalmente daqueles que visam a estabelecer ou a manter a dominação de uma classe. Sem negar os erros de seus dirigentes, Sartre pensava que, se davam tanta margem às críticas, era, em parte, porque recusavam o álibi que as pretensas “leis econômicas” fornecem aos políticos burgueses; eles assumiam a responsabilidade de tudo o que acontecia ao país.
A Revolução, dizia-se, foi inteiramente traída e desfigurada. Não, respondia Sartre: ela se encarnou, isto é, o universal desceu ao particular. Realizada, ela caía logo em contradições que a distanciavam de sua pureza conceitual: mas o socialismo russo tinha, sobre o sonho de um socialismo sem mácula, a vantagem imensa de existir. Sartre já pensava sobre a época stalinista o que escreveu recentemente, num capítulo ainda inédito da Crítica da razão dialética: “Era bem o socialismo na URSS, mas caracterizado pela necessidade prática de desaparecer ou de se tornar o que é, por meio de um esforço desesperado e sangrento… Em certas circunstâncias, essa mediação entre contradições pode ser sinônimo de inferno.” Em Le Fantôme de Staline, ele também escreveu: “Deve-se chamar de socialismo esse monstro sangrento que se dilacera a si próprio? Respondo francamente que sim.”
Entretanto, apesar desse essencial privilégio que ele atribuía à URSS, recusava o ou isto ou aquilo em que tanto Kanapa como Aron pretendiam encerrá-lo; convidava os franceses a salvaguardarem sua liberdade: ela implica que se enfrente, em todo caso, a verdade. Estava decidido a nunca mais enfeitá-la, não por um princípio abstrato, mas porque ela tinha a seus olhos um valor prático. Mesmo que estivesse ainda mais próximo da URSS, teria igualmente escolhido dizê-la, pois o intelectual não tem a seus olhos o mesmo papel do político: ele deve não certamente julgar o empreendimento segundo regras morais que lhe são exteriores, mas zelar para que ele não contradiga em seu desenvolvimento seus princípios e seu fim. Se os métodos policiais de um país socialista comprometiam o socialismo, estes deviam ser denunciados. Sartre combinou com Stéphane que, no número de dezembro da Temps Modernes, publicaria e comentaria o código soviético.
Mas, em 12 de novembro, Le Figaro Littéraire ostentava em letras garrafais: “Apelo aos deportados dos campos nazistas. Socorro aos deportados nos campos soviéticos.” Era Rousset que lançava esse grito. Citava os artigos do código que autorizavam “o internamento administrativo”, isto é, as prisões e deportações arbitrárias. Com a colaboração do Figaro, montava uma admirável máquina antissoviética. Os números seguintes do Littéraire e toda a imprensa de direita exploraram-na intensamente. Que fanfarra! Centenas de narrativas, relatórios e testemunhos saíram das gavetas e foram impressos em toda parte. Viram-se também terríveis fotos de trens blindados e de “muçulmanos” parecendo, sem tirar nem pôr, fotos de trens e de campos nazistas: era isso mesmo; haviam retocado velhos clichês. A mistificação foi descoberta, mas uma mentira a mais ou a menos não perturbava ninguém. Perfeitamente indiferentes aos quatrocentos mil mortos de Sétif, aos oitenta mil malgaxes assassinados, à fome e à miséria da Argélia, às aldeias incendiadas da Indochina, aos gregos agonizantes nos campos, aos espanhóis fuzilados por Franco, os corações burgueses partiram-se de repente, diante das desgraças dos presos soviéticos. Na verdade, respiravam aliviados, como se os crimes colonialistas e a exploração capitalista fossem anulados pelos campos siberianos. Quanto a Rousset, arranjara um emprego.
Pouco importa, o fato estava ali: a administração tinha um poder discricionário, nada defendia os indivíduos contra o arbítrio de suas decisões. Em janeiro, a Temps Modernes publicou o relato dos debates da ONU sobre o trabalho forçado e um editorial, redigido por Merleau-Ponty, assinado por ele e por Sartre, no qual esclareciam a situação.90 Segundo verificações e cálculos sérios, o número de deportados estava avaliado em dez milhões:91 “Não há socialismo quando, em cada vinte indivíduos, um está no campo”, declaravam. Censuravam a má-fé dos comunistas. Viu-se sucessivamente e quase simultaneamente Wurmser afirmar nas Lettres Françaises: não há campos! E Daix proclamar: os campos são o mais belo título de glória da URSS. Merleau-Ponty investia depois contra Rousset: exigindo a abertura de uma comissão de inquérito, este não fazia mais do que continuar suas manobras anticomunistas. Dava ênfase ao que lhe parecia válido nas respostas dadas à ONU pelo delegado russo, que opunha aos campos os milhões sem trabalho do mundo ocidental; quando dizia: “As colônias são os campos de trabalho das democracias”, o russo não trapaceava; os sistemas: socialismo russo e capitalismo ocidental deviam ser considerados em sua totalidade; não era por acaso que o segundo implicava o desemprego e a superexploração colonialista.
Esse artigo desagradou a todos, ou quase. Não melhorou nossas relações com o PC. De qualquer modo, os intelectuais comunistas acabaram provocando-nos até nojo. Sua atitude com relação a O segundo sexo e os ataques reiterados a Kanapa irritavam-nos menos do que o ódio com que Aragon perseguia Nizan. Em seu romance Les Communistes, ele o retratou como um traidor. Orfilat, assim como Nizan, estava encarregado da política externa do Humanité; filósofo como ele, tinha, como ele, desmascarado Brunschwig e os ideólogos burgueses; escreveu, como ele, um estudo sobre um filósofo grego (sobre Heráclito; o de Nizan era sobre Epicuro); dele, assim como de Nizan, os não comunistas diziam: “É o único marxista inteligente, o único com quem se pode conversar.” Tendo-o caracterizado assim, sem equívoco, Aragon mostrava Orfilat-Nizan, depois do pacto germano-soviético, soluçando de pavor diante da ideia de partir para o front e depois indo mendigar um emprego no Ministério das Relações Exteriores, onde um honesto liberal lhe censurava a traição. A nulidade literária desse retrato não atenuava sua perfídia. Por sua vez, Elsa Triolet lançou “a batalha do livro”; em Marseille, e depois nos subúrbios parisienses, os escritores comunistas fizeram conferências nas quais gabavam sua mercadoria e cobriam de merda a literatura “burguesa”: Breton, Camus, Sartre.
O escândalo das divisas, que estourou no início de 1950, descobriu a verdadeira face da “guerra suja”, como a chamava Beuve-Méry. Era um negócio que, para um pequeno número de pessoas, rendia muito. Nem por isso a guerra deixou de prosseguir. A vitória de Mao Tsé-Tung mudou a situação. Reconhecido pela China e pela URSS, Ho Chi Minh saiu da semineutralidade em que se recolhera até então, com relação aos dois blocos. A guerra da Indochina foi desde então apresentada pela propaganda francesa como um momento da “cruzada anticomunista”. O Ocidente morria de medo desde que, em 12 de outubro de 1949, o general Bradley anunciou que o dia do “átomo vermelho” chegara; a URSS possuía bombas atômicas. Começou-se a falar de uma arma muito mais poderosa, cuja fabricação Truman ordenou em janeiro de 1950 — a bomba H. Descreveram-se minuciosamente seus efeitos; o Match indicou complacentemente, numa fotografia, o que aconteceria se ela caísse em Paris: 80km2 aniquilados. O medo que suscitou tornou-se cósmico: na América e na França, assinalaram-se discos voadores no céu e, por vezes, nos campos; algumas pessoas tinham chegado a ver marcianos. Os jornais alimentavam esse pânico. Só líamos com simpatia o Combat, mas Bourdet o deixou, porque Smadja, que o financiava, pretendia intervir em sua redação. Daí em diante, Rousset e Sérant se espalharam. Bourdet, apoiado por Stéphane, criou L’Observateur: naquele momento, não passava de um semanário exíguo, de leitura enfadonha, e que atraiu poucos leitores.
***
No verão anterior eu não tinha feito nenhuma viagem com Sartre. Organizamos uma na primavera. Leiris, etnógrafo especializado na África Negra, sugeriu a Sartre que fosse ver o que estava acontecendo lá. Os colonos haviam tentado em vão fazer revogar a lei Houphouet, que fora votada em 1947 pela Constituinte e que suprimia o trabalho forçado; vencidos no plano legal, arranjavam-se para suscitar, a cada período de contrato, incidentes que desorganizavam o sistema.92 O RDA esforçava-se, através dos sindicatos, para proteger os pequenos produtores africanos; mas as grandes companhias exigiram que a administração agisse contra ele. Desde dezembro de 1949, o terror reinava na Costa do Marfim. Haviam detido, torturado e abatido numerosos dirigentes do RDA; membros do Conjunto, simpatizantes e suspeitos haviam sido massacrados ou presos; em fevereiro, houve de novo distúrbios cuja repressão fez — oficialmente — doze mortos e sessenta feridos. Entrar em contato com o RDA, informar-se e divulgar os fatos seria um trabalho útil. Esse projeto desagradou — Leiris foi informado enquanto tentava executá-lo — ao partido comunista, ao qual pertenciam numerosos dirigentes do RDA: mas pensamos que estes últimos seriam menos intratáveis que seus colegas franceses. Como eu desejava ver o Saara, estabelecemos um plano que nos conduzia de Argel ao Hoggar, depois a Gao, Tombuctu, Bobo-Diulasso, Bamaco, onde membros do RDA encontrariam Sartre e o convidariam para ir à Costa do Marfim. Corri às agências de turismo. Os caminhões que vão de Gardhaia a Tamanrasset transportavam em suas cabines alguns viajantes: reservei dois lugares.
Desta vez — era minha terceira tentativa — viajei sem problemas de Argel a Gardhaia; a cidade merecia minha perseverança: era um quadro cubista magnificamente construído: retângulos brancos e ocre, azulados pela luz, dispunham-se em pirâmide; na ponta da colina estava fincada de viés uma tenacota amarela que se diria saída, gigantesca, extravagante e soberba, das mãos de Picasso: a mesquita. As ruas formigavam de mercadores e mercadorias: cenouras, alhos-porós, repolhos de folhas tão brilhantes e lisas que pareciam frutos, e não hortaliças. Gordos, com a fisionomia descansada, os mozabitas pareciam bem-alimentados: a maioria dos merceeiros da Argélia eram originários do M’Zab, para onde retornavam depois de fazer fortuna. No alto, na grande praça, homens magros e bronzeados que vinham do deserto agitavam-se entre os camelos ajoelhados.
O hotel nos agradou, e ali permanecemos durante alguns dias; havia um grande pátio, e, em toda a volta, uma galeria para a qual davam os quartos; eu trabalhava no terraço, de manhã; por volta das onze horas, o céu flamejava e eu me refugiava na sombra. À tarde, passeávamos em outras cidades mozabitas próximas de Gardhaia, mais provincianas mas igualmente belas: Benis-Isguen, Melika. Teríamos gostado de saber pintar, para ter um pretexto para ficar plantados diante delas durante horas. Oficiais pediram a Sartre uma conferência, e ele aceitou. Éramos contra o sistema colonialista, mas não tínhamos prevenção a priori contra os homens que administravam os negócios locais ou que dirigiam a construção das estradas.
Eu estava emocionada quando me instalei, de madrugada, na cabine do nosso primeiro caminhão: é raro um começo de verdade, mesmo em viagem. Nunca esqueci aquela grande lua laranja, por trás de Engina, no momento em que nosso barco deixava o Pireu em direção às ilhas. Agora, nesta manhã, quando o caminhão escalou o penhasco que barra o vale, uma enorme groselha subiu da terra: um sol ingênuo como uma recordação de infância. Sartre contemplava-o com o mesmo júbilo que eu. Brilhavam no céu, maravilhosamente frescas, ainda intactas, todas as alegrias que íamos colher juntos. Também esse sol ficou incrustado na minha memória como um brasão das felicidades de antanho.
Dez quilômetros adiante, passamos por dois jovens alemães de chapéus brancos na cabeça, sentados ao lado de sua pesada bagagem, sob um sol mortal: pediam carona. “Loucos!”, disse o motorista. O caminhão estava cheio de mercadorias e de homens, não cabia mais nem um colibri; a estrada podia permanecer deserta durante todo o dia; se por acaso um carro passasse, certamente estaria inteiramente lotado: no Saara, o imprevisto é tão cuidadosamente medido, que não sobra margem para a aventura; mas há loucos de sobra, disse-nos o motorista.
Almoçamos num bordj e tivemos dois pneus furados; foram paradas agradáveis. Os árabes pulavam no chão, desencavavam sarças entre as pedras, e num piscar de olhos tinham acendido um fogo e posto em cima dele uma chaleira; a água que tiravam de um odre pendurado do lado do caminhão cheirava a sebo, mas o chá que nos ofereceram em copos pintados era excelente. Assim que se trocava o pneu, eles pisoteavam o fogo e escondiam seus apetrechos.
Lentamente, o dia estendeu-se por trezentos e vinte quilômetros. Até Tamanrasset viajamos ainda por mais três dias; todos semelhantes, e fizemos duas paradas de vinte e quatro horas em El-Goléa e em In Salah. Nunca o tempo nos pareceu longo; estávamos conhecendo um mundo. Em primeiro lugar, a estrada: descobrimos com surpresa que não passava do eixo ideal em torno do qual serpenteava a pista carroçável; havia homens trabalhando nela, rolos compressores esmagavam-na, mas nunca era utilizada: ou melhor, em alguns quilômetros a estrada tinha sido refeita recentemente, e não devia ser estragada; ou então — o que era mais frequente — não passara por nenhum reparo: estava tão esburacada, corcovada, socavada, ondulada e arrebentada, que em cinco minutos que por ela passasse, o veículo mais resistente se desmantelaria. Isso não impedia que a engenharia militar se agitasse com grande zelo por aqueles mil quilômetros; nem impedia que “a estrada” fosse um objeto de orgulho. “A estrada sou eu”, disseram-no sucessivamente o comandante de El-Goléa (que dirigia o grosso das obras), alguns oficiais que administravam os detalhes, engenheiros que haviam feito os cálculos, empreiteiros e até mesmo um ou dois contramestres. Só os operários se calaram: vimos um grupo deles de perto — um deles acabava de ser mordido por uma cobra —, mas não se gabaram de nada.
A não ser durante a travessia de uma hammada cor de carvão, onde não havia literalmente nada para ver — ao sair de El-Goléa —, o Saara era um espetáculo tão vivo quanto o mar. A coloração das dunas mudava ao longo das horas e segundo a inclinação da luz: de longe, douradas como abricós, adquiriam tons de manteiga fresca quando chegávamos perto delas; atrás de nós, tornavam-se rosadas; da areia à rocha, os materiais variavam tanto quanto as nuanças; sinuosas ou duras, suas formas inodulavam interminavelmente a falsa monotonia do erg. De longe em longe palpitava uma miragem de reflexos metálicos, fixava-se, volatilizava-se; simuns elevavam-se, solitários, rodopiavam furiosamente sobre si mesmos, sem abalar a imobilidade do mundo.
Cruzamos com duas ou três caravanas: o deserto tornava-se mais imenso, medido no passo balanceado dos camelos; pelo menos o número de homens, animais e bagagens estava de acordo com seu tamanho. Mas de onde vinha, para onde ia aquele homem que surgia de lugar nenhum e que caminhava a passos largos? Nós o seguíamos com os olhos até que fosse de novo absorvido na grande ausência que nos envolvia.
Nos últimos dias, rodamos nas gargantas, ao pé de cidadelas gigantescas, de ameias, de muros colossais, negros como lavas; atravessamos planaltos de areia branca eriçados de agulhas e de rendas negras: a atmosfera fora soprada, a terra transformara-se em lua. “Incrível!”, dizíamos; entretanto, uma pintura, ou mesmo uma fotografia dessa paisagem nos teria espantado ainda mais: estávamos dentro, logo ela se tornava natural; o fantástico só existe em imagem: materializando-se, ele se destrói. É por isso que é difícil contar uma viagem: transporta-se o leitor para longe demais, ou perto demais.
Sedentos, poeirentos, atordoados, meio quebrados, era agradável chegar à noite onde quer que fosse. Em El-Goléa, quando entrei, o hotel, com sua profusão de tapetes matizados, suas lanternas de cobre e todo o seu bricabraque saariano, pareceu-me um palácio de As mil e uma noites. No gramado, americanos haviam organizado um grande méchoui em honra da Shell. Retornei ao meu século. Pela manhã, passeamos na cidade, vimos o mercado e o antigo bairro dos escravos, onde ainda habitavam os negros. Almoçamos na casa do chefe da engenharia: sua mulher, que lia nossos livros, viera convidar-nos com muita graça; ofereceu-nos um almoço à francesa, com frutas temporãs, e o marido nos falou da “sua estrada”.
Em In Salah, assim que chegou, Sartre fechou-se no quarto para trabalhar; parti para as dunas orladas de caniços (ou, talvez, palmas retalhadas); a noite caía; a areia onde me deitei era macia como uma carne tenra: eu quase esperava senti-la roçar o meu rosto. Passaram por um atalho, em fila indiana, grandes negras envoltas em túnicas azuis, com os rostos descobertos: argolas de ouro balançavam-se em suas orelhas; vinham dos campos, silenciosas e seus pés descalços não faziam nenhum ruído; na paz do crepúsculo, aquele cortejo tinha algo pungente. Comovi-me também, no dia seguinte de manhã, ao me debruçar na janela; dava para uma grande praça — ou melhor, um terreno baldio — que homens e mulheres atravessavam a passos rápidos ou passos lentos, cada qual absorto no seu próprio caminho; eu conhecia quadros onde se exprimia esse encantamento do espaço que separa reunindo: mas ali me pareceu surpreendê-lo ao vivo. As casas de In Salah eram de terra, vermelhas e com ameias; a areia as engolira pela metade, apesar das barreiras e dos obstáculos erguidos obliquamente nas ruas. No mercado, encontrei de novo belas mulheres negras vestidas de azul.
A última parada durou apenas uma noite; nós a passamos ao fundo das gargantas de Arak, ao pé de uma fortaleza de granito negro; havia ali uma pousada onde se encontravam leitos, mas nada para comer; dois jovens estavam acampados no terraço e seu rádio tocava músicas de um outro mundo. Viajavam de jipe, sem escolta, quando em princípio nenhum veículo tinha o direito de se arriscar sozinho nas pistas. “É perigoso”, disse-nos o motorista. Como havíamos interrompido por duas vezes essa viagem, aquele era o nosso terceiro chofer; ele era mais loquaz que os anteriores e convencido, como eles, de que os turistas são loucos. Mostrou-nos na estrada a carcaça de um furgão. “Atravessar o Saara com isso! O carro pegou fogo!” O calor do sol bastara, na sua opinião, para incendiá-lo. Contou-nos outras histórias, enquanto almoçávamos, à sombra de um arbusto espinhoso: o único do percurso; a sombra cobria apenas metade de nossas cabeças, mas havia água nas redondezas, e algumas ervas cresciam, frescas como um prado normando. “Assim que chove, isso fica coberto de relva e flores”, disse-nos o chofer, acrescentando que as chuvas eram raras, mas geralmente diluvianas. Um Dodge ficara imobilizado, um ou dois anos antes, por uma dessas tempestades. Passado o prazo regulamentar, ele fora mandado de caminhão, em socorro; percebera o carro, perdido como uma arca, no meio da água: antes de atingi-lo, atolara; não se tinham preocupado logo com seu atraso: assim, os turistas haviam passado uma semana, e ele, cinco dias sem nada para comer, nada para beber, a não ser uma água lamacenta. Enquanto ele falava, um soldado, com ar desnorteado, atirava em latas de conserva que jogava para o ar; este, por sua vez, relatou-nos dramas sombrios; nossos companheiros de viagem e as pessoas que encontrávamos ao acaso das paradas tinham todos muitos relatos extraordinários e terríveis; desmentiam aqueles que ouvíamos antes: “Conheço o sujeito que lhe contou isso — é um pirado”, diziam; e nos garantiam que suas próprias histórias eram garantidas. Certamente, entre tantas, havia algumas verdadeiras: mas quais?
À noite, chegamos ao fim dessa primeira viagem: Tamanrasset e o pequeno hotel da SATT. Impossível escolher outro: a SATT monopolizava o transporte dos turistas e sua hospedagem; além disso, com o pretexto de garantir seu salvamento em caso de necessidade, exigia dos viajantes autônomos pesadas cauções. Eu ouvira muitas vezes protestos contra esses privilégios; em Tamanrasset, comentava-se que a ausência de concorrência encorajava o dono do hotel a agir como um déspota. Risonho, de olhar esperto, ele parecia efetivamente não duvidar de seus direitos; mas administrava bem sua tenda, alimentada por caminhões e aviões. “No Natal, tivemos ostras: um piloto as trouxe direto do mar!”, disse-nos, orgulhosamente. Afinal de contas, era um lugar de vilegiatura ideal. A mil e quinhentos metros de altitude, as manhãs eram suficientemente frescas para que eu trabalhasse no jardim, diante do maciço negro e fendilhado Hoggar; pedaços de camelo secavam, pendurados nos galhos das árvores, e eu me regozijava por não os servirem aos hóspedes. Não tivemos vontade de subir a montanha: teria sido uma verdadeira expedição, com guias e camelos. Contentamo-nos com alguns passeios de carro e com magníficos crepúsculos que banhavam os picos cor de tinta.
A sociedade de Tamanrasset era muito fechada; as mulheres dos oficiais e dos funcionários viviam como em Romorantin; usavam chapéus, vigiavam-se, mexericavam. Soubemos que não nos viam com simpatia. Um capitão nos obsequiou com uma breve visita e acabou por aí. Mas tivemos a sorte de receber a ajuda dos professores, a Mme e o M. B., e do explorador Henri Lhote. O M. e a Mme B. tinham, como alunos, franceses e tuaregues; estes, disseram-nos, eram inteligentes, mas nervosos e instáveis, e seus pais só os mandavam para a escola irregularmente. Em certas aldeias da montanha, a dois ou três dias de caminhada, as crianças não recebiam qualquer instrução; criara-se uma escola ambulante: exatamente naquele momento, um professor estava acampado no alto da montanha.
Henri Lhote corria o Hoggar, em busca de gravuras e pinturas rupestres; trouxera uma grande coleção de fotos e croquis, cuja autenticidade era, então, um tanto contestada. Seus relatos também inspiravam algumas dúvidas; escapara de morrer cem vezes, em peripécias dramáticas e extravagantes; certo dia, por exemplo, agonizando de sede, chegara à beira de um poço onde se espelhava um pouco de água: a corda que amarrava o balde era demasiado curta! Ele fabricara uma com suas roupas e, tendo saciado a sede, partira novamente, nu, através do erg: perguntava-se como não morrera queimado pelo sol. Mas pouco importava: havia em suas invenções um lirismo que nos encantava.
Quando íamos à casa dos B., sempre encontrávamos ali rapagões de véu, que jogavam cartas, tagarelavam, dormitavam: os filhos do Amenokal, seus primos e amigos; iam ali como a um clube; a não ser um ou dois bordeis onde à noite se divertiam, Tamanrasset não lhes oferecia nenhuma outra distração. Agora que as grandes badernas e os saques lhe eram proibidos, e que era proibida a exploração de escravos, esse povo de guerreiros levava vida ociosa, vazia e quase miserável. Seu principal recurso era a criação de carneiros e sobretudo a mina de sal de Amadror, não longe de Tamanrasset. De julho a setembro, vindos de um grande número de aldeias, extraíam o sal a machadadas. De outubro a fevereiro, subiam em caravana ao Sudão, onde trocavam sua mercadoria por sargo e artigos manufaturados. Mas esses tráficos eram indignos dos grandes chefes e suas famílas. Comprei da Mme B. camelos feitos de barbante trançado: “É o filho mais velho do Amenokal que os fabrica”, disse-me ela. “Isso lhe rende algum dinheiro, mas ele não quer de modo algum que se saiba.” Outrora os chefes empanturravam de tal modo as esposas, que, para fornicar com aqueles sacos de banha, precisavam do auxílio de vários servos. Esses tempos estavam longe. “Levem uma libra de chá”, disseram-nos os B., na noite em que nos levaram de carro para visitar o Amenokal; essas visitas representavam para ele uma fonte de renda nada desprezível. Sua tenda erguia-se, cercada de algumas outras, a uns quinze quilômetros da aldeia; forrada de tapetes, mobiliada com arcas, era bastante luxuosa, mas demasiado pequena para abrigar-nos a todos; sentamo-nos fora, em torno de um fogo que mal nos aquecia: com cobertas jogadas sobre os ombros, tremíamos ao beber nosso chá; mas eu saboreei o insólito da minha presença sob aquelas estrelas novas, naquele acampamento que tanto espaço e tanto tempo separavam de mim. Libertada das servidões da opulência, magra, nervosa, de rosto duro e altivo, a mulher do Amenokal dirigia a recepção com cortesia e autoridade: era ela, disseram-nos, o verdadeiro chefe. Ao partir, a Mme B. fez com a mão um gesto largo, indicando o infinito do deserto: “Vocês podem perceber a vida que esses rapazes levam!” Com efeito, poucas pessoas me pareceram mais mal-adaptadas ao mundo de hoje do que aqueles jovens príncipes orgulhosos e pobres. Eles tinham uma bela aparência, em suas vestes índigo; acima do litham, brilhavam olhos sombrios. Uma tarde, a Mme B. pediu ao filho do Amenokal que descobrisse o rosto: “Seja bonzinho, só um minuto, afaste o véu, Chéri.” (Ele se chamava Chéri, e era engraçado ouvir aquela mulher pacata admoestá-lo: Chéri, Chéri…). Ele fez uns trejeitos, riu e levantou o véu: um grande nariz adunco desfigurava-o; todas as vezes que surpreendi o rosto de um Targui, encontrei esse nariz, essa feiura decepcionante sob os olhos de um brilho negro. As mulheres eram um pouco mais felizes. Aliás, não era fácil encontrá-las: Henri Lhote não encontrou outro jeito senão convidar uma noite as putas do lugar; a maioria tratava a sífilis no hospital; ele conseguiu que as deixassem sair por algumas horas e, sentados num tapete, no jardim da escola, tomamos chá lado a lado.
Passamos mais de uma semana em Tamanrasset; puseram-nos a par de todos os mexericos que circulavam entre Laghouat e o Hoggar. Os europeus dispersos por mais de mil quilômetros, no meio de espaços vertiginosos, conheciam-se, vigiavam-se, detestavam-se, caluniavam-se e matraqueavam com tanta minúcia e vivacidade, como se tivessem morado numa cidade do interior. Esses mexericos “a longa distância” tinham para nós muito sabor. Na noite que precedeu nossa partida, mantiveram-me acordada até muito tarde. Depois do jantar, subimos para um terraço para ver o Cruzeiro do Sul. Depois Sartre foi se deitar. Fiquei em pé junto ao balcão do bar, bebendo e conversando com o dono e dois motoristas de caminhão, um dos quais era louro e belo como Jean Marais aos vinte anos. Falaram das pessoas que eu encontrara desde Gardhaia, e em particular de um hoteleiro que, mediante “o resto”, oferecia gratuitamente aos motoristas bom jantar e boa hospedagem; cada qual acusava alegremente o outro de ter-se aproveitado da pechincha. Depois começaram a me contar suas vidas. Eu me interessei, e a crueza de suas palavras não me embaraçava; eventualmente eu podia falar aquela mesma linguagem. Cada um de nós, inclusive o patrão, ofereceu várias rodadas, e eu fui me deitar, alegre, por volta das três da manhã. Estupefata, percebi que abriam minha porta: era o patrão murmurando propostas. Fiquei ainda mais chocada porque sua mulher parecia muito pouco tolerante. Na manhã seguinte, ele se precipitou para mim com um grande sorriso e um cesto de laranjas; em Tamanrasset era uma fruta rara, e compreendi que ele estava comprando meu silêncio. Negócio fechado: eu nunca tivera a intenção de fazer um escândalo. Quanto a ele, falou, não de sua tentativa de sedução, mas das minhas orgias etílicas e verbais: ao abrir o Samedi-Soir alguns dias mais tarde, encontrei lá uma notícia sobre a bebedeira. Diziam que minhas conversas de caserna faziam corar os motoristas de caminhão; havia outras gentilezas de que me esqueci,93 mas com as quais, no momento, me preocupei. Dada a minha solidariedade com Sartre, quando me respingavam esterco, visavam tanto a ele quanto a mim: fiquei com raiva de mim mesma por ter dado essa oportunidade. Mas então, eu deveria viver permanentemente na defensiva, vigiar minhas falas e os copos que bebia? “A vantagem da nossa posição”, disse-me Sartre, “é que podemos fazer tudo o que quisermos: nunca será pior do que aquilo que vão contar”.
Três horas de avião; do alto, a diversidade do Saara esmaecia, ele parecia monótono; mas a uniformidade, tão insípida quando indica a repetição de um esforço humano, fascina-me quando nela descubro um dos aspectos originais do nosso planeta: assim, as neves eternas, um céu de um azul sem mácula, um campo de nuvens sob a carlinga de um avião, um deserto. Durante toda a travessia, fixei o olhar na cor avermelhada do solo. Não estava enfastiada: sobrevoar o Níger pareceu-me milagroso; era uma vasta estrada de água cinzenta, mas, quando o avião descia e virava, divisei uma pequena ilha cor de coral pálido em frente a uma praia de areia dourada: nesse lugar, o rio era um esmalte azul. “Que sorte”, dizia a mim mesma, “viver justamente hoje e ver essas coisas com meus olhos!”. Entretanto, a terra me decepcionou; não era mais um puro mineral: ervas raquíticas e arbustos agressivos sujavam-na. Pousei o pé no aeródromo, e o sol me abateu de um só golpe; refugiamo-nos sob um hangar. No entanto, o céu estava cinzento como o rio. Tinham-nos prevenido: “Lá, nada de azul: é uma estufa.” Uma calota de vapor, sem atenuar a violência do sol, abafava-lhe a luz. Quando descemos do ônibus, a dona do hotel exclamou: “Vocês precisam de chapéus ou à noite estarão mortos!” Apesar de nossa repugnância pela fantasias turísticas, fomos até o bazar que ela nos indicava: ao atravessar aqueles poucos metros, pensamos que fôssemos desmoronar. Na sombra, o termômetro marcava quarenta graus. “É suportável, porque aqui é seco”, disseram-nos; era seco, mas não parecia assim tão fácil de suportar. De acordo com nossos planos, devíamos ter chegado três semanas mais cedo a Gao, mas Sartre ficara retido e pensáramos: “Três semanas a mais ou a menos!”; na verdade, nesse lugar, três semanas contavam; o tráfego pelo Níger acabava de ser interrompido por vários meses.
Devidamente enchapelados, demos uma volta pelo mercado que havia na grande praça, bem em frente ao hotel. De repente, enfim, em vez dos fantasmas de véu das cidades árabes, mulheres: belas negras, envolvidas em tecidos brilhantes, com andaimes de tranças na cabeça, descobriam os rostos, os ombros, os seios e os risos; pele trigueira, dentes brancos, as jovens resplandeciam; patinada, seca, a nudez das velhas nada tinha de chocante; elas tagarelavam entre si, discutiam com os homens. E que variedade de silhuetas, de tipos, de roupas! Havia Pehuls tão belos e tão belas, com seu fino perfil, a postura da cabeça e o corpo esbelto; as mulheres enfeitavam o pescoço, os pulsos e os cabelos com pequenas conchas, cauris, que também serviam de moeda. Alguns negros usavam bubus de cores violentas, outros, shorts, chapéus de feltro e óculos escuros. Alguns tuaregues, azuis e de véu, atravessavam a multidão. Muitas tribos acotovelavam-se em Gao, no dia da feira, e a própria população estava extremamente misturada: tamanha variedade parecia luxuriante. Essa impressão esvaiu-se quando constatamos a tristeza das mercadorias que se trocavam: pão de má qualidade, tecidos lamentáveis, lataria. Nessa região — informaram-nos mais tarde — tudo faltava aos nativos: distribuíam-lhes cereais, do contrário nada teriam para comer.
A cidade era construída em taipa, no estilo sudanês; casas cúbicas, coladas umas às outras, vielas estreitas. A grande atração era o Níger. Fomos vê-lo por volta das cinco da tarde: liso como um lago, pálido, banhava-se num falso crepúsculo que me lembrava a luz de Abisko à meia-noite; seguimos por ele em piroga: dir-se-ia uma paisagem nórdica, mas carregada de uma angústia que só se encontra nos países quentes. Um povo inteiro acampava às suas margens: acendiam fogueiras, cozinhavam, preparavam-se para dormir. Voltamos de manhã e vimos seu despertar: tuaregues, com um espelho na mão, sem véu, verificavam vaidosamente seus rostos; ao nos aproximarmos, apressavam-se em recolocar o litham. Quanto tempo iriam ficar naquelas margens? De que viviam?
Gao nos desconcertou com suas tristezas e alegrias. Perambulando pelas ruas, à tarde, ouvimos um tantã e procuramos descobrir de onde vinha; chegamos perto de uma casa cujo pátio estava cheio de risos e canções: um casamento; um grupo de negros, diante da porta, olhava a festa e, durante um bom tempo, olhamos com eles, cativados pela exuberância das danças e das vozes.
Teria sido preciso conhecer pessoas para compreender um pouco esse país. Não vimos quase ninguém. Fomos convidados por um jovem geólogo entediado com a geologia; ele nos recebeu no seu terraço, e tomamos chá com os muçulmanos que lhe alugavam o quarto; enquanto falava, contemplei a cidade embaixo de mim e uma paisagem incerta, que já não era o deserto e ainda não era a savana. Ele pediu a Sartre que olhasse seus quadros: seu pai era um pintor conhecido e ele gostaria de pintar. Mostrou-nos telas, ainda muito indecisas, mas Sartre quase não hesitou: “Se tem realmente vontade de pintar, siga em frente”, disse-lhe. O jovem seguiu o conselho.
Jantamos na casa do administrador; jovem, solteiro, amável, ele acabava de perder uma leoa que criara com amor. Sobre os nativos, deu-nos poucas informações. Disse-nos, entretanto, que a religião agravava ainda mais sua miséria: àqueles que habitavam as margens do rio, ela proibia o peixe; subalimentados, eles não pescavam. Pôs um carro à nossa disposição, no dia seguinte. Ao longo do Níger, vimos algumas aldeias miseráveis. O campo me pareceu decididamente ingrato; a única curiosidade eram as casas de cupim que o eriçavam; se alguém adormecesse à sua sombra, acordaria sem um fio de cabelo sobre o corpo, afirmou o chofer.
Um dos lugares que eu mais desejava conhecer era Tombuctu, a quatrocentos quilômetros de Gao: de Paris, a distância não parecia muito grande; na falta de barco, certamente se encontrariam caminhões para percorrê-la. Informei-me, e riram na minha cara: com aquele calor, a pista — pouco frequentada em qualquer estação — era impraticável. Resignei-me com uma facilidade que me surpreendeu. Depois isso se repetiu por mais de uma vez: um lugar que me parecera, no início, o principal atrativo de uma viagem perdia sua importância quando eu me aproximava dele; de longe, seu nome simbolizava um país inteiro: no lugar, o país se apresentava de muitas outras maneiras. Na feira de Gao, às margens do Níger, eu vira se materializarem as imagens que eu forjara de Tombuctu.
Talvez o cansaço também tivesse diminuído meu pesar: não tinha força para desejar fazer doze horas de caminhão naquele sol. Durante o dia inteiro o calor era violento; na hora da sesta, o ventilador no nosso quarto revolvia um ar ardente e não se podia fechar o olho. A ducha era um balde que se virava: a água caía sobre o corpo de uma só vez e não era muito mais fresca que o ar. Ao cair da noite, grandes pássaros a que chamavam gendarmes começavam a agitar-se nas árvores: esvoaçavam e cantavam. Mas o calor não diminuía. Todo mundo dormia fora; instalavam nossas camas, abrigadas por mosquiteiros, num canto isolado do terraço; eu gostava de adormecer sob as estrelas, mas a noite era tão pesada que não se suportava nem mesmo o peso de um lençol. Por volta das quatro da manhã, uma leve brisa agitava as musselinas: “Enfim, o vento de popa”, pensava eu, através das brumas; durante alguns minutos eu navegava num lago de frescor; uma luz suave gotejava do céu, era um instante delicioso: o único do dia; o sol se tornava muito rapidamente brutal. Descíamos para o nosso quarto; casais jaziam, de olhos fechados, no pátio interno, mais unidos em seu sono do que na vida diurna; na noite anterior, ao jantar, o ajudante e sua mulher haviam brigado asperamente: agora a cabeça da esposa repousava sobre o ombro nu do marido.
Dois dias depois de nossa chegada, Sartre ficou prostrado. Chamei o médico: “Quarenta graus de febre.” Receitou quinina; Sartre entupiu-se de remédio, a ponto de perder o senso de equilíbrio, a audição e a visão. Ficou dois dias de cama. A dona do hotel dava de ombros: “Quarenta de febre! Tenho isso toda semana; não me impede de encerar o assoalho.” Eu aguentava firme, mas sofria de um mal tão desagradável quanto o nome: borbulha; na concavidade dos joelhos, dos cotovelos e entre os artelhos, o suor faz porejar uma espécie de líquen avermelhado; apesar da coceira, é preciso, sobretudo, não tocar; um arranhão, a menor infecção bastam para que apareçam os crocro, que são verdadeiras chagas facilmente purulentas. Passei duas tardes duras nesse quarto onde Sartre jazia quase inconsciente; às três horas, sentada à minha mesa, eu trabalhava: que mais poderia fazer? As venezianas estavam fechadas; fora, um siroco furioso sacudia as árvores; a sombra e o ruído do vento evocavam o frescor: mas o vento era uma chama e o termômetro na parede marcava quarenta e três graus.
Decidíramos que, assim que Sartre pudesse ficar de pé, partiríamos. Mas eu saí desapontada da agência de turismo: os aviões só chegavam e decolavam muito irregularmente; impossível fixar uma data. Eu detestava me sentir presa naquela fornalha.
Finalmente, comunicaram-me que um avião partia no dia seguinte para Bobo-Diulasso: a febre de Sartre baixara e nós o tomamos. Olhei com nostalgia a floresta embaixo de nós e as estradas vermelhas que não percorreríamos. Houve escala em Uagadugu: no saguão do aeródromo, um negro vendia figurinhas de chumbo, um tantã, feiticeiros, veados. Comprei um sortimento.
“Bobo é insalubre, é úmido”, tinham-me dito em Gao. Entretanto, ao aterrissar, a umidade do ar me pareceu repousante. Um homem lívido e balofo esperava-nos; em Gao, as pessoas ainda tinham a pele bronzeada do saariano; aqui, todos os rostos assemelhavam-se a peixe cozido e as pessoas eram cozidas no vapor. “Vou conduzi-los ao hotel”, disse o desconhecido, fazendo-nos entrar em seu carro. Era um funcionário que viera receber-nos em nome da administração. Fomos para a cidade: “Bobo-Diulasso”, dissera-me um amigo, “é como a Normandia”. Com efeito, a região era ondulada e verde: mas de um verde suspeito, e seu odor de terra decomposta não se assemelhava ao dos prados franceses; baixas, longas, cobertas de palha escura, era evidente que as casas situavam-se nos trópicos; algumas flores brotavam nos jardins. Nosso guia deixou-nos em frente a um hotel. O quarto ainda não estava livre, e nos sentamos na varanda, em poltronas confortáveis, diante de um pequeno dancing ao ar livre. O subadministrador, B., encontrou-nos lá e nos transmitiu um convite de seu superior para jantar. Depois, levou-nos a um campo de feira em torno do qual espalhavam-se os diferentes bairros típicos; apontou um deles: “Desse lado é ruim: é reduto RDA. Não vão passear por aí, de jeito nenhum!” Não nos mostrou grande coisa: “Vamos tomar um aperitivo”, propôs. Voltamos ao aeródromo, cujo bar era ponto de encontro da elite europeia, porque dali se dominava a cidade a alguns metros e porque se dizia que a temperatura era menos tórrida: ela me pareceu tão sufocante quanto embaixo. A impressão de alívio que eu sentira no primeiro momento dissipara-se inteiramente. Antes do almoço, colocamos nossas malas no quarto: mesmo sistema de ducha que em Gao: tinha cheiro de desinfetante, era uma estufa; deixamos aberta a porta que dava para o pátio e fomos almoçar. Um desconhecido nos abordou cordialmente: era um fazendeiro da Guiné; ofereceu-nos um aperitivo; já tínhamos tomado um, mas ele insistiu: “Aqui é preciso beber, beber muito!”, e nos contou a história de uma jovem coquete que, para manter a linha, bebia muito pouco: em algumas semanas morrera, desidratada, “os lactentes precisavam beber líquidos da manhã à noite, do contrário ressequiam-se e morriam; engolimos então duas ou três groselhas com água. Durante o almoço caiu uma tempestade ligeira, mas forte. Quando entramos no nosso quarto para a sesta, as camas estavam encharcadas; do cano da ducha saíam baratas que se espalhavam pelo chão e pelo teto. Fugimos e fomos perambular na vila. Ravinas ab-ruptas, quase secas, fendiam as colinas de alto a baixo. As mulheres lavavam roupa ali, em poças d’água, e crianças brincavam entre os rochedos amarelos. Mas a não ser esses entalhes, cada bairro formava um bloco compacto que nos pareceu hostil; as casas viravam para nós muros sem janelas e nas ruelas não se via quase ninguém. Impossível infiltrar-se ali sem conhecer moradores. Nossa chegada fora noticiada pela imprensa local e Sartre esperava encontrar no hotel uma mensagem do RDA: não havia nada.
Jantamos em casa do administrador com B. e sua mulher, uma descendente de europeus nascida na Martinica muito bonita, que se queixava porque o marido queria levá-la naquele verão a Paris, que ela não conhecia. “Faz tanto frio!”, dizia, com voz amedrontada. “Em agosto faz calor”, assegurei-lhe. “Mas agosto é quase setembro; em setembro pego uma pneumonia e não sobrevivo.” Sentada no terraço, depois da refeição, procurei no céu o Cruzeiro do Sul: “Em Gao me mostraram.” “Com certeza era o falso: é sempre o falso que mostram.” B. nos falou das últimas eleições. “Eu tive os votos necessários”, disse, com uma piscadela que não punha em dúvida nossa cumplicidade. Saímos cedo e bebemos um trago com o fazendeiro no dancing iluminado; diante da porta, um macaco fantasiado dava cambalhotas amarrado a uma corrente. Estávamos caindo de sono; mas tivemos dificuldades em adormecer; Sartre quase não fechou os olhos; sua cama ainda estava molhada, o jazz o ensurdecia e, sobretudo, havia o medo das baratas que passeavam pelo teto. Ele passou a noite lendo uma vida da Mme Roland.
De manhã, um carro fornecido pelo administrador nos transportou até a floresta. Vimos sob uma árvore o fetiche de uma aldeia: uma grande bola eriçada de penas muito sujas; as mulheres, vestidas com uma tanga, usavam à guisa de ornamentos ossinhos de marfim incrustados no queixo (aquilo me lembrou o dente que um dia eu extirpara do meu queixo); altas, robustas, cabelos besuntados de manteiga de cacau de cheiro nauseabundo, duas delas moíam grãos num pilão; nos degraus de uma escada (algumas das choças, miseráveis, tinham dois andares), entre outras crianças todas nuas, estava sentado um pequeno albino; sua pele descorada não parecia natural; parecia que um ácido a descascara e que ela não bastava mais para protegê-lo. Estávamos bem perto da cidade e, no entanto, aquela população parecia perdida no fundo de matagais onde o tempo parara. Ao partir, cruzamos na estrada com rapazes de bicicleta, vestidos à europeia, com o ar vivo, que também moravam na aldeia: em alguns anos, as crianças nuas se tornariam adolescentes adaptados a este século. Teríamos gostado bastante de saber como os jovens ciclistas viviam essa dupla dependência.
Mas, para grande desapontamento de Sartre, naquele dia, o RDA também não se manifestou. Tivemos que nos contentar em interrogar os brancos, durante um coquetel que nos foi oferecido; Sartre falou com dois futuros administradores que demonstraram muito boa vontade: insistindo um pouco, percebia-se que eles já se preparavam para moldar suas ideias à sua situação. A viagem tornava-se burlesca e desagradável. Partíramos para ver os negros que lutavam contra a administração: não os encontrávamos e éramos muito honrosamente recebidos pelos administradores. Teríamos melhor sorte, talvez, em Bamaco? Tomamos um avião naquela mesma noite.
Sartre pegara novamente uma febre alta; tremia quando aterrissamos, bastante tarde da noite. O hotel principal estava lotado; mandaram-nos para o hotel da estação; um rapaz apoderou-se das bagagens de Sartre, e o arrastou com autoridade, enquanto outro me levava não menos imperativamente na direção oposta. Encontrei-me sozinha, numa espécie de gaiola, mobiliada com uma cadeira e um catre, que dava para as plataformas da estação: felizmente passavam poucos trens, mas do outro lado da grade metálica que barrava minha janela, por trás da vidraça que protegia as vias férreas, o ar estava carregado de fumaça e fuligem; eu ignorava o número do quarto de Sartre e, ao imaginá-lo doente numa prisão semelhante à minha, fui tomada de angústia; passei uma noite detestável.
No dia seguinte Sartre estava melhor e o hotel central nos reservara um quarto: lá também a gente sufocava, apesar dos enormes ventiladores, mas pelo menos podia-se dormir na sacada: era um espetáculo espantoso, de manhã, aquela sacada cheia de corpos seminus. Comia-se bem: serviram-nos até morangos. O que nos tornou a estada realmente agradável foi a cordialidade do comandante de aviação C. Ele pertencera à esquadrilha Normandia-Niemen e passara algum tempo em Moscou, de modo que não tinha prevenção contra os escritores de esquerda; também não lhe inspirávamos muita curiosidade. “Eu estava em Gao ao mesmo tempo em que vocês”, disse ele a Sartre. “Disseram-me: ‘Simone de Beauvoir acaba de chegar com Pierre Dac’; depois eu soube que era você…” Ele não tivera vontade de nos ver. Mas tinha sentimentos calorosos por uma jovem que lia muito, e ela o incitara a vir falar conosco. Ele a chamava de Juju: era uma bela moça, de espírito vivo, cuja inteligência, cultura e intrepidez ele admirava perdidamente. Era casada com um oficial da aviação, que naquele momento não estava em Bamaco. C. tinha uma mulher e filhos que passavam o verão numa praia da Guiné. Mas logo nos pareceu evidente que ambos estavam decididos a se divorciar e a se casar — o que fizeram pouco mais tarde. Nas pessoas que não têm o coração ressequido, o amor predispõe a amar todo mundo: aproveitamos essa benevolência e também nos beneficiamos do espanto deles, pois mais tarde nos confessaram que esperavam encontrar monstros e não seres humanos; foram censurados por se comprometerem conosco: essa reprovação criava entre eles uma cumplicidade a mais.
Juju e C. moravam na entrada da cidade, em casas quase idênticas, grandes, circundadas de uma varanda, dotadas de banheiros da última moda: o piso e móveis leves davam uma impressão de frescor. Sobre uma mesa, Juju colocara um tantã, parecido com o que eu comprara, porém maior; ela possuía outros bibelôs da terra, bem-escolhidos. Todas as noites tomávamos aperitivo no seu terraço, e ela nos mostrava, ao longe, o local do grande hotel ultramoderno que em breve seria construído. Muitas vezes, um amigo deles, V. — também ele aviador —, bebia conosco; sua vitalidade nos revigorava. “A gente se habitua rápido ao clima; quando estou com quarenta graus, arranco no meu jipe, vou caçar búfalo, isso mata a febre.” Admitia que a borbulha era desagradável: “Quando a gente se deita, é preciso mergulhar sob o lençol de uma vez só”, e imitava o movimento do nadador heroico que se joga na água gelada. A caça aos grandes animais — ao búfalo e mesmo ao leão — ocupava um espaço importante na vida deles; Juju atirava tão bem quanto um homem; muitas vezes acompanhava os amigos de avião ou em suas expedições de jipe.
Na primeira manhã, passeáramos sozinhos, de fiacre, pela cidade europeia — bastante bonita, com suas casas coloniais de estilo antigo — e pela cidade típica que mal vimos porque o cocheiro recusara-se a parar. Mas depois não largamos mais nossos novos amigos. Eles nos levaram ao mercado; a população era menos variada do que em Gao; mas as mercadorias nos pareceram mais abundantes e mais alegres; vendiam-se em profusão os tecidos que enfeitavam as mulheres: percal fabricado na Alsácia, mas cujos estampados ousados eram então uma exclusividade africana; comprei várias peças. À tarde, o comandante C. nos conduziu de jipe até a barragem do Níger, através de uma natureza mediocremente arborizada e sem beleza; na estrada, de laterita vermelha, compreendi o que ouvira dizer, sem acreditar muito: um carro só resiste à ondulação dura se ultrapassar 80km por hora, do contrário as trepidações o quebram. Prisioneiros negros trabalhavam à beira da estrada, sob a vigilância de guardas armados; mostraram-nos dois, condenados por antropofagia. Todos os rostos pareciam petrificados de desespero e ódio.
Em Bamaco e arredores, grassavam doenças horríveis: há vermes compridos que se infiltram na pele pela sola dos pés e abrem cavernas; para extirpá-los é preciso pegar uma extremidade, enrolando-a num fósforo; todos os dias dá-se uma volta no palito: se se tenta arrancar o parasita de uma só vez, ele se parte e não se consegue mais extirpá-lo. Descreveram-nos também os horrores da elefantíase e os da doença do sono. Um dos flagelos mais comuns era a lepra e havia em Bamaco um enorme hospital de leprosos.
O médico que o dirigia nos recebeu cordialmente: falou-me de O segundo sexo, que aprovava. Percorremos com ele uma grande aldeia: choças, mercados onde vendedores ambulantes ofereciam diversos produtos; leprosos viviam ali com suas famílias, pois não se considerava mais seu mal como fatalmente contagioso; além disso, atacada bem no início, a doença podia ser facilmente sustada. O médico nos mostrou o dispensário onde se tratavam os casos benignos: apenas uma ligeira descoloração no braço direito indicava o estado da jovem negra em quem um enfermeiro dava uma injeção: “Ela pode viver até vinte e quatro anos sem que a doença progrida”, disse-nos o médico. Usava-se ainda, para sustar o mal, o óleo de cholmogra, um velho remédio hindu; mas acabava-se de descobrir o asiaticoside, que permitiria — esperava-se — fazer a doença regredir e até mesmo curá-la completamente. Entretanto, alguns homens e mulheres, tardiamente hospitalizados, estavam em estado de degradação avançada; visitamos o dormitório onde jaziam, e eu pensei que fosse desmaiar; primeiro por causa do cheiro, e depois por causa dos rostos “leoninos”, nos quais a boca se transformara num focinho, narizes roídos, mãos mutiladas. “Mesmo esses não morrerão diretamente da lepra”, disse-nos o médico. “Ela progride muito lentamente, só que enfraquece o organismo: basta uma gripe e o leproso vai embora.” Havia enormes quantidades de leprosos no mato e muitos eram os que passeavam em Bamaco: com certeza cruzáramos com alguns no mercado. Mas só havia perigo de contaminação ao se andar descalço.
O comandante C. nos apresentou a um negro amigo seu: um médico muito idoso, que comunicou a Sartre um volumoso trabalho sobre a farmacopeia local. Não nos falou de política. Todos os dias Sartre esperava impacientemente que o RDA entrasse em contato com ele; todos os dias decepcionava-se. Esse silêncio era evidentemente sistemático e isso o afetava ainda mais. Depois de uma última noitada com Juju e C. num dancing ao ar livre, partimos para Dacar.
Dacar fazia parte dos meus mitos; era a colônia: homens de chapéus brancos, de tez amarela, sob um calor sufocante, engoliam o dia inteiro uísque que lhes minava o fígado e a razão. A gente de Bamaco via ali um oásis de frescor. “Em Dacar, dorme-se de lençol”, tinham-me dito, com nostalgia. Antes da aterrissagem, o piloto nos convidou para ir à sua cabine e girou longamente ao redor da cidade para nos mostrar o porto, o mar, a ilha de Goreia. Pousamos, e, pela primeira vez desde Tamanrasset, senti-me bem: vinte e cinco graus. No hotel, deixamos nossos chapéus e partimos para a rua.
Não se viam negros nos terraços dos cafés, nada de negros no luxuoso restaurante com ar-condicionado onde almoçamos; oficialmente, a segregação não existia; o peneiramento econômico da sociedade a substituía; nenhum ou quase nenhum negro tinha meios de frequentar os lugares onde se encontravam os brancos. A cidade europeia era banal e a costa, que percorremos de táxi por alguns quilômetros, lamentável, apesar do esplendor do oceano: palmeiras raquíticas, choças sem alegria, um solo sujo de detritos vegetais. Achamos encanto na ilha de Goreia, com sua velha fortaleza portuguesa, avermelhada e desmantelada. Mas nosso interesse só despertou mesmo à noite, quando fizemos um passeio pelos arredores; era nosso primeiro contato com nativos proletarizados; as ruas lamacentas, ladeadas de palhoças, tinham uma rusticidade aldeã, mas eram largas, longas e retilíneas; a multidão negra que nelas se comprimia era composta de operários, e evocava — de um modo para nós paradoxal — o mato e Aubervilliers, ao mesmo tempo. Não conseguíamos imaginar o que se passava por trás daqueles rostos na maioria belos, calmos, mas fechados; como os adolescentes que voltavam de bicicleta para uma aldeia fetichista, aqueles homens pertenciam a duas civilizações: como elas se conciliavam neles? Deixamos Dacar sem ter a resposta. Essa breve passagem pela África Negra fora um fracasso. Em Paris, o que suspeitávamos confirmou-se: palavras de ordem comunistas haviam influenciado todos os membros do RDA, e eles haviam evitado deliberadamente encontrar Sartre.
Para nos refazermos do nosso cansaço e para trabalhar em paz, passamos duas semanas no Marrocos. Paramos um pouco em Mequinez e bastante tempo em Fez. Dessa vez era primavera, as árvores estavam em flor, o céu, leve e o palácio Djalnai abrira suas portas. Instalaram-me no quarto da sultana, decorado de tapetes e de mosaicos, que dava para um pátio delicioso; eu deixava a porta aberta quando trabalhava e, muitas vezes, visitantes entravam e davam a volta à minha mesa, como se eu fosse uma peça de museu. Da sala de jantar envidraçada, dominava-se a brancura da cidade: encontramos Rousset e cumprimentamo-nos sem entusiasmo.
Desde o mês de junho, minha irmã e o marido moravam em Casablanca; passei alguns dias com eles; demos um passeio de carro pelo Médio Atlas, até Marrakech, de onde vi cintilarem, muito além das muralhas vermelhas, as neves dos altos picos.
***
Boris Vian foi condenado a pagar multa de cem mil francos por ter escrito J’irai cracher sur vos tombes. Atribuía-se aos seus livros e aos de Sartre a responsabilidade de um bom número de suicídios, de delitos, de assassinatos, e, em particular, do “crime dos J3”. Quando Michel Mourre subiu no púlpito de Notre-Dame, imputou-se também esse “sacrilégio” ao existencialismo.
O pensamento de Sartre, como eu disse, despojava-se do idealismo; mas não renunciava às evidências existenciais e continuava a reivindicar, no seio da práxis, uma síntese dos dois pontos de vista. Num prefácio ao Portrait de l’aventurier, de Stéphane, Sartre desejava que o militante herdasse virtudes daqueles homens que Stéphane chamava de aventureiros. “Um ato tem duas faces: a negatividade, que é aventureira, e a construção, que é disciplina. É preciso restabelecer a negatividade, a inquietude e a autocrítica na disciplina.” Uma mesma preocupação inspira o estudo no qual ele apresentava o livro de Dalmas sobre a Iugoslávia. O objetivismo stalinista, dizia ele, anula o subjetivismo dos oponentes fazendo-os passar, muitas vezes com sua confissão, por traidores objetivos. O caso de Tito era único: ele fora bem-sucedido e tornava então impossível essa recuperação. Sua oposição restabelecia no seio da Revolução a presença do subjetivismo. Contra o stalinismo, a tarefa de uma ideologia verdadeiramente revolucionária deveria ter sido devolver à subjetividade o seu lugar.
Tito era a pedra no sapato dos comunistas. Eles haviam in-sultado Bourdet, Mounier, Cassou e Domenach, que haviam tomado partido a favor dele, e os dois últimos tinham sido mesmo excluídos do Movimento da Paz. O prefácio de Sartre lhes deu motivo para mais um ressentimento contra ele. Sartre não tinha chance com eles. Julgou suas entrevistas com Thao tão fracas que se opôs à publicação; Thao, recorrendo sem nenhuma vergonha à justiça burguesa, moveu um processo contra ele, e Domarchi, que assistira às conversações sem abrir a boca, a não ser para aprovar Thao, juntou-se a este para exigir um milhão de indenização. Os processos recentes e os campos de trabalho nos haviam impelido contra o stalinismo a ponto de — foi um erro — desprezarmos o apelo de Estocolmo, que reunia na França, em fins de junho, oito milhões de assinaturas. Entretanto, vomitávamos “O Ocidente”: soubemos com pesar que Silone participava, junto com Kœstler, do congresso “pela defesa da cultura”, que o movimento Liberté de l’esprit reuniu em Berlim.
Sartre tinha preocupações particulares. Em 1949, viajara com M. para o México, para a Guatemala, e vira também Cuba, Panamá, Haiti e Curaçao. Eles já não estavam se entendendo bem. Apesar das resistências de Sartre, ela se fixara em Paris. Brigaram e acabaram rompendo.
Eu me correspondera durante o ano inteiro com Algren. Ele se desencantara bastante, desde que voltara para a América; o país mudava muito rapidamente. A caça às bruxas atingia muitos amigos seus. Em Hollywood, para onde o levara o prêmio Pulitzer, todos os cineastas de esquerda estavam na rua; muitos emigravam para a Europa; John Garfield não pudera rodar O homem do braço de ouro. Ao voltar da Califórnia, Algren comprara uma casa no lago Michigan: passaríamos ali dois meses. Eu me alegrei com a ideia de ter com ele uma verdadeira vida em comum.
Justamente no momento em que eu ia levantar voo, os coreanos do norte invadiram a Coreia do Sul; imediatamente a aviação e depois a infantaria americanas intervieram. Se a China atacasse Formosa, estouraria a guerra mundial; o apelo de Estocolmo recolheu em alguns dias três milhões de assinaturas suplementares. Todos falavam da ocupação da França pelo Exército Vermelho. O Samedi-Soir indagava, em manchete: “Deve-se ter medo?”, e concluía que sim. Apesar da vontade que eu tinha de rever Algren e da minha repugnância em decepcioná-lo uma vez mais, hesitei muito em deixar a França: “Vá”, disse-me Sartre. “Você sempre poderá voltar. Eu não acredito na guerra.” Dava-me os argumentos que me repetiu numa carta do mês de agosto; naquele momento, em Paris havia pânico, o ouro subira de três mil e quinhentos para quatro mil e duzentos, fazia-se fila diante das mercearias para estocar conservas e açúcar, as pessoas esperavam de um dia para o outro o Exército Vermelho e depois as bombas. Mas Sartre continuava a me tranquilizar: “De qualquer modo, minha opinião é esta: a guerra sangrenta é impossível. Os russos não têm bombas atômicas e os americanos não têm soldados. Portanto, matematicamente, ela só poderá ocorrer daqui a vários anos, donde se conclui que também vai ser matematicamente preparada. Então, de duas, uma: ou o estado de guerra é declarado sem guerra real, por um gesto inábil de um ou de outro: então, as tropas soviéticas vêm até Brest e são três ou cinco anos de ocupação russa antes do conflito; ou então espera-se armando-se: nesse caso, é o estado de espírito mitológico de guerra que se instala em toda parte, a censura, a ‘espionite’, o maniqueísmo e, admitamos, a ocupação americana disfarçada. Escolha. Eu acredito na segunda hipótese…”
Parti, mas com o coração cheio de uma angústia que tornou ainda mais pesada a tristeza da chegada. Meus primeiros dias em Chicago assemelharam-se muito àqueles que, em Os mandarins, Anne passa com Lewis, quando se encontram pela última vez. Durante o ano inteiro, Algren escrevera-me cartas alegres e ternas; e de repente dizia-me que não me amava mais. Não amava nenhuma outra, nada acontecera: simplesmente não me amava mais. “Mesmo assim, passaremos um verão muito bom”, garantiu-me, com uma leviandade premeditada. E no dia seguinte levou-me às corridas, com desconhecidos. Perambulei no meio daquela multidão estranha, engolindo um copo atrás do outro. Não pensava em voltar para a França, a não ser que houvesse um perigo claro: primeiro, eu precisava compreender com meu coração e meu corpo palavras que nem mesmo tinha conseguido fazer entrar na minha cabeça; que cansaço em perspectiva! Já era um grande trabalho costurar num todo os pedaços do tempo. Na pequena casa de Wabansia, o calor sufocante e a presença de Algren esmagavam-me. Eu saía: as ruas me eram hostis. Num pequeno salão de cabeleireiro do bairro polonês, a funcionária que lavava meu cabelo perguntou-me em tom duro: “Por que vocês são todos comunistas na França?” Uma francesa: isso significava uma suspeita, uma ingrata, quase uma inimiga. Por outro lado, fora, eu fundia como o asfalto; nos bares não se pode ler nem chorar. Eu não sabia literalmente o que fazer de mim.
Enfim, um amigo nos levou de carro a Miller e o tempo recomeçou pouco a pouco a passar: uma rotina benéfica enchia os dias. Eu dormia num quarto meu, onde trabalhava ao lado da janela protegida por uma grade metálica; ou então, depois de passar repelente no corpo para espantar os mosquitos, deitava-me na relva com o Lincoln, de Sandburg; lia muitas obras sobre a literatura e a história americanas; e o dilacerante Crack-up, de Fitzgerald; e também novelas de ficção científica, muitas vezes decepcionantes, mas que por vezes lançavam inquietantes luzes sobre este século. O jardim descia até um açude e, dos lados, bosques espessos abrigavam-me dos olhares; à minha volta, grandes esquilos cinzentos corriam, e pássaros cantavam. Por volta do meio-dia, atravessávamos o açude de barco; escalávamos e descíamos as dunas que nos queimavam os pés; chegávamos à beira do lago Michigan, grande e agitado como o mar: ninguém na praia arenosa e infinita, onde ciscavam aves brancas, empoleiradas em suas patas. Eu tomava banho e me bronzeava. Na água, tomava muito cuidado para não ir para o fundo, pois não sabia nadar. Certo dia, entretanto, depois de algumas braçadas, procurei o fundo com a ponta dos pés e não encontrei; afobei-me, afundei; chamei Algren, que me sorriu de muito longe; chamei mais alto: “Socorro!”; ele continuou a rir; mesmo assim, minha agitação o inquietou; quando me pegou, eu já estava com a cabeça debaixo d’água e, disse-me ele, um sorriso totalmente idiota nos lábios; acrescentou que tivera muito medo porque nadava muito mal. Voltamos correndo, bebemos grandes tragos de uísque e, na euforia desse salvamento, acendeu-se a amizade entre nós, tão viva como se tivesse sido limpa das escórias de um amor perdido.
Essa amizade tinha suas doçuras: à noite, passeávamos na praia; ao longe, os altos-fornos de Gary cuspiam suas chamas; uma grande lua avermelhada refletia-se no lago e nós divagávamos sobre os primórdios ou o fim do mundo; ou então víamos televisão: antigas e célebres lutas de boxe que Algren comentava para mim, velhos filmes e, no sábado à noite, um excelente espetáculo de variedades. Mas com muita frequência, sem razão aparente — talvez por medo de que um de nós se deixasse levar por essa ilusória harmonia —, o rosto de Algren fechava-se; ele se afastava, calava-se. Um dia, tínhamos ido de novo às corridas, e eu me aborrecera: no carro, na volta, o rádio anunciou com estardalhaço que a guerra era iminente. Ter-me afastado da França para viver esse desastre particular pareceu-me tão odiosamente absurdo que comecei a soluçar. “É propaganda, isso não significa nada”, dizia-me Algren, que não acreditava na guerra. Mas eu caíra no fundo de um abismo do qual precisei de horas para sair. Outra noite, Algren estava em Chicago: eu apreciava e temia o silêncio implacável desses dias solitários; desde a manhã remoera muitos pensamentos desolados, quando me sentei diante da televisão. Representavam Brief encounter, e eu encharquei as almofadas de lágrimas.
Ao fim de um mês, Lise veio a Miller. Eu a revira em 1947: como outrora, brigáramos muito, mas também tínhamo-nos entendido muito bem. Caímos alegremente nos braços uma da outra. Ela conservara toda a sua beleza e sua acidez barroca; no meio convencional onde vivia, seu comportamento, que se recusara a modificar, dava motivo a um monte de histórias que contava com graça; entretanto, sombras toldaram nosso encontro. Algren reagira mal à ideia de hospedar uma estrangeira e também a casa era pequena demais: ele conseguira para Lise um quarto a quinhentos metros dali e ela zangou-se. Decidira permanecer duas semanas: eu ia voltar para a França dali a um mês e, pela própria dificuldade das minhas relações com Algren, sentia necessidade de ficar sozinha com ele. Contra a franqueza de Lise, eu só tivera sempre uma arma: franqueza igual; usei-a, ela me chamou mais uma vez de “relógio numa geladeira”. Apesar do jeito expansivo e carinhoso dela, Algren achou Lise gélida; e depois, dizia-me ele, ela parece estar sempre esperando que eu ande de cabeça para baixo; realmente, a atitude natural de Lise era uma desconfiança irônica; para vencê-la, era preciso destacar-se com proezas. Algren chegou a me dizer, certa manhã, que ia embora para Chicago. Decidimos finalmente que era eu que iria instalar-me lá com Lise, por dois ou três dias.
Os sentimentos que ela tinha por mim eram ambivalentes; na sua opinião, eu me ocupara dela menos do que deveria, durante os anos da guerra; ainda tinha raiva de mim por tê-la sacrificado ao meu trabalho e esse rancor voltava-se contra o que eu escrevia; repetia-me de maneira indireta, mas transparente: “É tão triste ser um escritor de segunda categoria!” Esse mau humor refletia também suas próprias relações com a literatura: ela queria e não queria escrever: “Para que, quando se vai receber uma bomba na cabeça?”, dizia-me. Na verdade, estava hesitante porque era dotada, mas não tinha vocação; seu talento manifestava-se em novelas e contos que haviam sido publicados em revistas, e sobretudo em suas cartas; tinha a arte da síntese e escolhia as palavras com felizes imprecisões; mas quando se via sozinha diante de um maço de folhas em branco, faltava-lhe coragem; acho que não tinha suficiente interesse pelos outros para ter a longa paciência de lhes falar em páginas seguidas.
Sua vida estava capenga; viera para os EUA, porque amava um homem, e para comer; o amor se gastara e ela ia divorciar-se; quanto a comer, já se acostumara. Esperara compensar com a maternidade as tristezas de sua juventude, mas essas tristezas não a haviam preparado para mimar uma menina com quem se identificava muito, e de maneira insatisfatória. Era grata à América por tê-la adotado, mas não encontrava ali o tipo de relações humanas e intelectuais que conhecera em Paris. Preparava-se para o professorado e brilhava, mas descontentava muitos de seus mestres com sua agressividade. Ao mesmo tempo desdenhosa e facilmente fascinada, separada das pessoas por aquele gelo que Algren percebera, lançava-se em aventuras complicadas ou impossíveis. Naquele momento, estava obcecada por um casal de homossexuais e muito ligada ao mais velho, Willy; tentava convencê-lo, em nome do existencialismo, de que não se é pederasta: tratava-se de uma escolha sempre revogável. Ele tinha muita afeição por ela, mas ela não se contentava com isso. Lembro-me de um passeio penoso, em Chicago. Mostrei-lhe a casa de Algren, tinha recordações tristes no coração; ela repetia-me, com a paixão escolástica de um doutor da Idade Média, que Willy podia manifestar sua liberdade amando-a; eu silenciosamente, ela em voz alta, monologávamos através de um calor opaco, as ruas alongavam-se indefinidamente sob nossos pés, e não avançávamos um passo.
Ela me antecedera em Chicago, onde Willy e seu amigo Bernard, que viajavam de carro, haviam combinado encontrá-la. Na manhã em que fui juntar-me a eles, como o ônibus que devia transportar-me para a estação de Gary não chegasse, Algren parou um carro e me confiou ao motorista. Este, logo que soube que eu era francesa, atacou: “É verdade que vocês são todos comunistas? E que no seu país as brancas dormem com pretos?” Fingi não entender o inglês. Senti simpatia por Willy e Bernard, mas o trio que eles formavam com Lise incomodou-me. Quiseram ir a bares abomináveis onde mulheres se despiam, e detalhavam a nudez com chacotas nas quais se podia perceber uma espécie de ressentimento contra toda a humanidade.
Voltei sozinha para Miller. Algren, que revira alguns meses antes em Hollywood sua antiga mulher, disse-me que pensava em casar-se de novo com ela. Tudo bem. Afinal, o desespero esvaziara-me inteiramente, e eu não reagia mais. Era o Indian summer, eu caminhava ao redor do açude, ofuscada pela beleza das copas cor de ouro vermelho, ouro verde, ouro amarelo, de cobre e de fogo, com o coração entorpecido, não acreditando nem no passado, nem no futuro. De repente despertava, jogava-me na relva: “Acabou, por quê?” Era um desespero infantil porque, como as crianças, eu esbarrava no inexplicável.
Voltamos a Chicago, por pouco tempo. Por discrição, passamos nossa última tarde nas corridas: Algren perdeu todo o dinheiro que tinha. Para jantar, telefonou a um amigo que ficou conosco até o momento em que pegamos um táxi para o aeroporto. Algren não parecia aborrecido com isso. Chicago cintilava sob finas musselinas cinzentas, nunca me parecera tão bela. Eu andava como sonâmbula entre os dois homens, pensando: “Nunca tornarei a vê-la. Nunca…” De novo no avião, entupi-me de belergal, sem conseguir conciliar o sono, com a garganta dilacerada pelo grito que não dei.
***
Sartre continuava a ser copiosamente insultado. Um certo Robichon, em Liberté de l’Esprit, declarou que era preciso arrancar da sua perniciosa influência uma juventude que, aliás, dizia, no mesmo tom, ele não influenciava mais, de modo algum. “Deve-se queimar Sartre?”, indagou ironicamente o Combat, onde conserváramos alguns amigos. Sartre publicara na Temps Modernes grandes fragmentos de seu estudo sobre Genet: provocaram interesse. Mas que escândalo também! Embora um ano antes, a propósito de Haute surveillance, Mauriac tivesse reconhecido o talento de Genet, escreveu no Figaro um artigo irado sobre o “excrementalismo”. Por outro lado, amigos espantavam-se com o fato de a revista ainda não ter dedicado nenhum artigo à guerra da Coreia. O Observateur deplorou que ela não se interessasse mais pela atualidade. Merleau-Ponty, que na prática a dirigia, fora convertido ao “apolitismo” pela guerra da Coreia: “Os canhões falam, não temos outra coisa a fazer senão nos calarmos”, disse-nos, em resumo.
A segunda das hipóteses de Sartre verifica-se. Os americanos ocupavam suavemente a França. Ajudavam De Lattre, que sofrera na Indochina sérios reveses, a estabilizar a situação. Em troca, Pleven admitiu publicamente o princípio do rearmamento da Alemanha e consentiu no estabelecimento de bases americanas na França; em vão os comunistas se manifestaram quando Eisenhower instalou-se em Paris, em janeiro. A França aceitava a ideia de uma Europa apoiada pelos EUA e pronta a lutar por eles. Beuve-Méry foi chamado de “assexuado” por Brisson, por ter mais uma vez defendido o neutralismo. “A questão se resumirá então em ser ou não ser macho?”, perguntou Beuve-Méry. A questão fez estardalhaço, mas inutilmente. Tendo Gilson aceitado uma cátedra em Toronto, foi acusado de abandonar seu país à invasão vermelha, e essa “partida preventiva”94 causou indignação.
Falava-se muito, efetivamente, de uma ocupação russa. Depois da passagem do paralelo 36 pelas tropas americanas, depois da entrada de um exército de “voluntários” chineses na Coreia do norte e do arrasamento de Piongiang pela aviação americana, os EUA anunciaram que a mobilização era iminente. MacArthur queria lançar bombas sobre a China; a URSS então interviria: distribuíram-se na América cinquenta milhões de placas resistentes às radiações, que permitiriam identificar as vítimas. Truman decretou estado de emergência. Em caso de guerra, o Exército Vermelho não tardaria a invadir a Europa até Brest: e então? “Quanto a mim”, disse-nos Francine Camus, ao sairmos juntas de um concerto organizado pelos comunistas, no qual ouvíramos danças folclóricas de Bartok, “no dia em que os russos entrarem em Paris, mato-me com meus dois filhos”. Numa turma de um liceu, adolescentes apavorados com as profecias dos adultos firmaram um pacto de suicídio coletivo, no caso de uma ocupação vermelha.
Não pensei no problema antes da conversa que tivemos no Balzar com Camus: “Você já pensou no que lhe acontecerá quando os russos estiverem aqui?”, perguntou ele a Sartre, acrescentando em tom apaixonado: “Não fique!” “E você, pensa em partir?”, disse Sartre. “Farei o que fiz durante a ocupação alemã.” Fora Loustaunau-Lacau, membro do Comitê Secreto de Ação Revolucionária, que lançara a ideia de “resistência armada e clandestina”; mas nós não discutíamos mais livremente com Camus: a raiva ou pelo menos a veemência interferia com demasiada rapidez. Sartre objetou apenas que jamais aceitaria lutar contra o proletariado. “O proletariado não deve tornar-se uma mística”, disse enfaticamente Camus; e censurou os operários franceses pela indiferença com relação aos campos soviéticos. “Eles já são suficientemente aporrinhados para se preocuparem com o que se passa na Sibéria”, disse Sartre. “Seja”, disse Camus. “Mas assim mesmo eu não lhes daria a Legião de Honra!” Estranhas palavras; tanto Camus quanto Sartre haviam recusado a Legião de Honra que, em 1945, amigos que estavam no poder tinham querido conceder-lhes. Sentíamo-nos muito longe dele. No entanto, aconselhava Sartre com verdadeiro calor: “Parta. Se você ficar, não vão tomar-lhe apenas a vida, mas também a honra. Morrerá no exílio; dirão que está vivo e irão obrigá-lo a recomendar a demissão, a submissão, a traição e os outros acreditarão neles.” Fiquei abalada e nos dias seguintes retomei por conta própria os argumentos de Camus. Talvez não tocassem em Sartre: com a condição de que ele se calasse; aconteceriam coisas — não tínhamos mais o direito de duvidar — que ele não aceitaria em silêncio, e sabíamos o destino que Stalin reservava aos intelectuais indóceis. Num almoço no Lipp, perguntei a Merleau-Ponty o que ele pretendia fazer: não pensava em partir. Suzou virou-se para Sartre: “Você decepcionaria muita gente se partisse”, disse ela, com uma mistura de inocência e provocação. “O que esperam de você é um suicídio.” Num outro dia, Stéphane suplicou a Sartre: “Em todo caso, Sartre, prometa-me que nunca confessará!” Essas perspectivas heroicas não me agradavam de modo algum; eu voltava à carga. A aliança com os fascistas contra os operários franceses, nunca; dizer sim a tudo também estava fora de cogitação; e a oposição aberta equivaleria ao suicídio. Sartre me ouvia com ar obstinado; recusava até a medula a ideia do exílio. Algren, convencido agora de que uma cabeçada de MacArthur podia desencadear a guerra, convidava-nos a ir para Miller. Mas nós nunca havíamos detestado tão profundamente a América. Em agosto, Sartre aborrecera-se — menos que Merleau-Ponty, mas, mesmo assim, um pouco — com o fato de os coreanos do norte terem sido os primeiros a atravessarem a fronteira e a imprensa comunista negar. Sabíamos agora que eles tinham caído numa armadilha; MacArthur quisera esse conflito, esperando aproveitar-se dele para devolver a China ao lobby chinês, e, por outro lado, os feudais do sul tinham interesse na indústria do norte. Caça ao homem, bombardeios, saques, os GI conduziam uma guerra tão atrozmente racista quanto nossas tropas na Indochina. Se partíssemos, só nos conviria um país neutro. “Acabar no Brasil como Stefan Zweig, imagine só!”, dizia Sartre. Estava convencido de que alguém que se exilasse, por melhores que fossem as razões, perderia seu lugar na terra e nunca mais o reencontraria totalmente. E nós pensávamos em fugir de um regime no qual, apesar de tudo, encarnava o socialismo! Estávamos na mesma canoa das pessoas de direita: eles não se contentavam com palavrório; usavam suas fortunas e relações para garantir navios e aviões. Almoçamos com os Clouzot; Vera estava vestida com uma negligência estudada: de calças, toda de preto, uma pulseira de ouro no tornozelo, os cabelos soberbos espumando e cascateando sobre os ombros; estava lá também André Gillois com a mulher: durante a refeição, a conversa girou sobre as possibilidades práticas de uma partida. Sartre não aceitava a ideia de ser jogado de repente nesse campo: “Entre a baixeza americana e o fanatismo do PC, não se sabe que lugar nos resta no mundo”, escrevia eu a minha irmã. Sartre percebeu com clareza e revolta que os comunistas, tratando-o como inimigo, acuavam-no a se comportar como se realmente o fosse. Nunca acreditou numa ocupação russa;95 mas, ao imaginá-la, sentiu com acuidade o paradoxo da nossa situação; a indignação que sentiu desempenhou papel importante na sequência de sua evolução.