Capítulo VIII

Não foi por vontade própria, nem com o coração alegre, que deixei a guerra da Argélia invadir meu pensamento, meu sono, meu estado de espírito. Ninguém mais do que eu inclinava-se a seguir o conselho de Camus: defender, apesar de tudo, a própria felicidade. Houvera a Indochina, Madagascar, o cabo Bom, Casablanca: eu sempre conseguira recuperar a serenidade. Depois da captura de Ben Bella e do golpe de Suez, ela desmoronou: o governo ia insistir naquela guerra. A Argélia obteria a independência: mas faltava muito tempo. Naquele momento, em que eu não entrevia mais o fim, a verdade da pacificação desvendou-se inteiramente. Reconvocados falaram: afluíram informações: conversas, cartas dirigidas a mim, a amigos, reportagens estrangeiras, relatórios mais ou menos secretos difundidos por pequenos grupos. Não se sabia tudo, mas sabia-se muito, até demais. Minha própria situação no meu país, no mundo, nas minhas relações comigo mesma, sofreu uma perturbação.

Sou uma intelectual, dou valor às palavras e à verdade; tive que suportar a cada dia, indefinidamente repetida, a agressão das mentiras cuspidas por todas as bocas. Generais e coronéis explicavam que conduziam uma guerra generosa e até revolucionária. Viu-se esse fenômeno, digno de uma barraca de feira: um exército que pensava! Os pieds-noirs reivindicavam a integração, embora a simples ideia de Colégio único os fizesse pular de raiva. Afirmavam que, com exceção de alguns chefes revolucionários, a população gostava deles. Entretanto, durante a “caçada” que se seguiu ao enterro de Frogier, não fizeram qualquer distinção entre os bons muçulmanos, seus muçulmanos, e os outros: lincharam todos aqueles que lhes caíam nas mãos. A imprensa tornara-se uma empresa de falsificação. Silenciou sobre as hecatombes provocadas por Fechoz e Castille,156 mas gritou alto contra os atentados que abriram a batalha de Argel. Os paraquedistas fecharam a Casbá, o terrorismo foi reprimido: não nos informaram por que meios. Os jornais não temiam apenas as apreensões, as perseguições, mas também o desafeto de seus leitores: diziam o que estes desejavam ouvir.

Pois o país consentia alegremente nessa guerra, desde que ela lhe fosse apresentada sob disfarce. Eu não me emocionava quando os ultras se manifestavam nos Champs-Élysées; eles reivindicavam que se lutasse “até o fim”, e que se silenciasse a esquerda; quebravam, de passagem, as vidraças da agência de turismo sobre a qual fica a redação do Express. Eram ultras. O que me aterrorizou foi o fato de o chauvinismo ter atingido a imensa maioria dos franceses, e de descobrir a profundidade do seu racismo. Bost e Jacques Lanzmann — que havia voltado a ocupar meu quarto, na rua de Bûcherie — contavam-me como os policiais tratavam os argelinos do bairro: todos os dias, buscas, perseguições, saques; batiam neles e derrubavam os carros dos verdureiros ambulantes. Ninguém protestava, ao contrário; as pessoas — que nunca haviam sido tocadas por um só dedo de qualquer africano do norte — felicitavam-se por estarem “protegidas”. Fiquei ainda mais chocada, e mais desolada, quando soube com que facilidade os jovens soldados do contingente dobravam-se aos métodos pacificadores.

Tinha tão pouco prazer em me martirizar, que, quando Lanzmann me pôs nas mãos o Dossier Müller, meu primeiro impulso foi afastá-lo. Hoje, neste sinistro mês de dezembro de 1961, como muitos de meus semelhantes — suponho —, sofro de uma espécie de tétano da imaginação. Leio o depoimento de Boudot, no processo Lindon: “Certa tarde, vi homens lívidos aproximarem-se da minha mesa: eram os guardas da caserna, que acabavam de enterrar vivos quatro homens, quatro felás, cuja idade ia de vinte a setenta e cinco anos. O último, o velho, foi o último a morrer. Tinha tanto medo, disseram-me… que o suor de seu corpo subia como vapor na noite. Eles morriam à medida que o buldôzer lançava terra sobre eles.” Leio o depoimento de Leuliette. “Esses prisioneiros tinham sido pendurados pelos pés. Eu os vi de manhã, e à noite ainda estavam ali. Tinham todos os rostos negros, mas ainda estavam vivos. Gostaria de citar também o uso da corrente elétrica. Quando chegavam ao baixo ventre, era o momento em que havia mais gritos. Passavam a corrente também na boca.” Leio, e passo a outro artigo. Aí está, talvez, o fundo da desmoralização para uma nação: a gente se habitua.

Mas, em 1957, os ossos quebrados, as queimaduras no rosto, nas partes íntimas, as unhas arrancadas, as empalações, os gritos, as convulsões, tudo isso me atingia. Müller relatara publicamente sua experiência enquanto ainda era soldado na Argélia, e essa coragem lhe custara a execução por uma bala francesa: era nosso dever lê-lo e divulgá-lo. Mas precisei me forçar. Tive que me infligir vários outros relatos do mesmo tipo. Para cada manuscrito publicado pela Temps Modernes, recebíamos dez. Saíram também alguns na Esprit. Batalhões inteiros pilhavam, incendiavam, violavam, massacravam. A tortura era empregada como meio normal e essencial de obter informações; não se tratava de acidentes, de excessos, mas de um sistema: nessa guerra, em que todo um povo se levantava contra nós, cada indivíduo era suspeito. Só cessando o fogo seriam sustadas as atrocidades.

Meus compatriotas não queriam saber de nada. A partir da primavera de 1957, a verdade transpirou, e se eles a tivessem acolhido com tanto zelo quanto a revelação dos campos de trabalho soviéticos, ela teria eclodido em plena luz. A conspiração do silêncio só teve êxito porque todos se fizeram cúmplices dela. Aqueles que falavam não eram ouvidos, gritava-se para cobrir suas vozes, e se alguém ouvia sem querer alguns rumores, apressava-se em esquecê-los. O livro de Pierre-Henri Simon, Sur la torture, que apresentava ao público o Dossiê Müller, foi comentado com insistência pelo Monde e pelo Express, que não são jornais clandestinos. Toda a imprensa de esquerda falou sobre a coletânea Les Rappelés témoignent, sobre a qual Sartre escreveu, na Temps Modernes, um artigo: Vous êtes formidables; os autores desses relatos eram em sua maioria seminaristas, padres, certamente não pagos por Nasser, nem por Moscou; aliás, não foram acusados de mentir; as pessoas taparam os ouvidos. Servan-Schreiber, convocado alguns meses antes como tenente na Argélia, também não estava a soldo da Liga Árabe, nem da URSS. Seu testemunho, publicado primeiro no Express e depois em livro, teve uma repercussão tal que uma “ordem de informar” foi baixada contra ele. Apesar de seu respeito pelas pessoas de categoria, e pelas tradições militares, embora aceitasse com bastante facilidade a mistificação dos “comandos negros”, relatava crimes que deveriam ter comovido a opinião pública: árabes abatidos por prazer, prisioneiros brutalmente assassinados, incêndios de aldeias, execuções em massa etc. Mas a opinião pública não se comoveu.

Os assassinos de bazuca passeavam em liberdade. Yveton, que pusera uma bomba numa fábrica vazia, tomando todas as precauções para não matar ninguém, foi guilhotinado. Por que esse francês se teria solidarizado com o povo argelino? Por que médicos, advogados, professores, padres de Argel vinham em auxílio da FLN? Traidores, dizia-se, e respondera-se. O público foi informado do “suicídio” de Larbi Ben Mihidi, encontrado enforcado numa grade de sua janela, mãos e pés amarrados. Depois do “suicídio” de Boumendjel, sequestrado e torturado pelos paraquedistas durante várias semanas, e depois atirado de uma sacada, Capitant — professor de direito na Faculdade de Paris — suspendeu seu curso, em sinal de protesto: seu gesto teve grande repercussão. Em 29 de março, o general De la Bollardière provocou um escândalo: pediu para ser substituído no comando, de tal modo reprovava os métodos do exército francês. O caso de Djamila Bouhired ficou conhecido em toda a França e no estrangeiro. A campanha conduzida pela esquerda contra a tortura não foi ignorada pela opinião pública francesa, pois incomodou o governo a tal ponto que ele criou uma “Comissão de Salvaguarda”, por trás da qual pretendia abrigar-se.

Tinham-me chamado, entre outras coisas, de antifrancesa: foi o que me tornei. Não tolerava mais meus concidadãos. Quando jantava no restaurante, com Lanzmann ou com Sartre, nós nos enfurnávamos num canto; mesmo assim, o barulho das vozes nos atingia; entre considerações malévolas sobre Margaret, Coccinelle, Brigitte Bardot, Sagan, Grace de Mônaco, uma frase, de repente, dava-nos vontade de fugir. Fui com Lanzmann ao Trois Baudets, onde Vian estava cantando. Num dos esquetes, os atores abriam jornais: unidades rebeldes fora de combate, adesão de uma mechta. Eu lia: Rivet, Oradour, e detestava os risos da plateia. Outra noite, ouvimos Greco, no Olympia. No palco, um pied-noir contou históricas de argelinos; fiquei com as mãos úmidas de vergonha. No cinema, tinha-se que engolir as Actualités, que mostravam a beleza da obra francesa na Argélia. Paramos de sair. Desse momento em diante, beber um café num balcão, entrar numa padaria, tornou-se uma provação. Ouvia-se: “Isso tudo é porque os americanos querem nosso petróleo.” Ou então: “Que estamos esperando para dar um bom golpe e acabar com isso?” Nos terraços, os clientes exibiam o Aurore, o Paris-Presse, e eu sabia o que estava em suas cabeças: a mesma coisa que aparecia no papel; eu não podia mais sentar-me ao lado deles. Eu amara as multidões: agora, até as ruas me eram hostis, e eu me sentia tão espoliada quanto nos primeiros tempos da ocupação.

Era até pior porque, querendo ou não, eu acabava sendo cúmplice daquelas pessoas com as quais não suportava mais conviver. Era isso que eu menos lhes perdoava. Ou então, seria preciso que me tivessem dado, desde a infância, a formação de um SS, de um paraquedista, em vez de me dotar de uma consciência cristã, democrática, humanista: uma consciência. Eu tinha necessidade da minha autoestima para viver, e me via com os olhos das mulheres vinte vezes violentadas, dos homens de ossos quebrados, das crianças loucas: uma francesa.

Minha irmã e o marido estavam instalados em Paris. Ele era socialista e defendia a política de Mollet: “De qualquer modo, o terrorismo foi sustado, em Argel”, dizia-me. Eu sabia — imperfeitamente, mas já o suficiente para me perturbar a tranquilidade — o que custara essa falsa paz. “A tortura não passou, afinal, de casos excepcionais”, dizia-me ele, também. Isso me dava uma raiva que eu tentava reprimir. Mas, quando o deixava, sentia nas batidas precipitadas do meu coração, no peso na nuca, no zumbido nos ouvidos que minha pressão subira.

Gostaria de romper minha cumplicidade com aquela guerra, mas como? Falar nos comícios, escrever artigos: eu não teria dito tão bem quanto Sartre as mesmas coisas que ele dizia. Eu teria achado ridículo acompanhá-lo como sua sombra à manifestação silenciosa da qual ele participou com Mauriac. Hoje,157 por menos que eu pese na balança, não poderia fazer outra coisa senão manifestar-me, usando toda a minha influência. Naquela época, eu desejava ainda, antes de tentá-lo, que um esforço não me parecesse vão.

Conhecíamos muito bem Francis Jeanson: ele encontrara Sartre em 1946 para lhe submeter o manuscrito de La Morale de Sartre. Durante a guerra, para unir-se aos combatentes da França livre, ele passara a fronteira espanhola: fora preso e enviado a um campo de concentração. Libertado ao fim de alguns meses, a detenção arruinara sua saúde, e, na Argélia, tivera que trabalhar num escritório. Ligou-se aos muçulmanos. Depois da libertação, voltara muitas vezes à Argélia, e acompanhara de muito perto o que se passava: assim, pudera escrever L’Algérie hors la loi. Colaborador da Temps Modernes, fora seu diretor durante quatro anos. Em 1955, publicara pela Seuil Sartre par lui-même. Poucas pessoas conheciam o pensamento de Sartre tão bem quanto ele. Depois de Budapeste, reprovara Sartre por uma atitude demasiado intransigente, e desde aí nossas relações haviam esfriado. Fomos informados por terceiros sobre a luta que travava ao lado da FLN. Nem Lanzmann, nem Sartre, nem eu estávamos ainda preparados para acompanhá-la. Na Argélia, só havia uma alternativa: o fascismo ou a FLN. Na França, pensávamos, era diferente. Achávamos que a esquerda não tinha lição a dar aos argelinos, e que El Moudjahid fizera muito bem colocando-a no seu devido lugar. Mas acreditávamos ser ainda possível trabalhar pela independência deles por meios legais. Conhecendo Jeanson, sabíamos que ele não optara por tal engajamento sem ter refletido maduramente; sem dúvida alguma, tinha boas razões. Entretanto, assustei-me. Encontrara duas pessoas que trabalhavam com ele,158 e elas me haviam chocado por sua leviandade e suas tagarelices; eu me perguntava se a ação clandestina não é um meio de eliminar complexos. Não haveria, entre aqueles que a haviam escolhido, uma vontade de se isolar da comunidade francesa, ligada a um ressentimento, talvez, ou a algum mal-estar?159 Contra a inquietante pergunta que me era imposta pela opção deles, eu me defendia com essa coisa que detesto — o psicologismo —, sem me perguntar se minha desconfiança não era ditada por motivos subjetivos. Não compreendera que, ao ajudar a FLN, Francis Jeanson não renegava suas raízes francesas. Mesmo que eu tivesse apreciado mais lucidamente sua ação, restava o fato de que, ao participar dela, qualquer um ia colocar-se, aos olhos do conjunto do país, no campo da traição: algo em mim — uma timidez, sobrevivência — impedia-me ainda de encarar essa possibilidade.

 

***

 

Terminado meu ensaio sobre a China, comecei, em outubro de 1956, a narrativa da minha infância. Era um velho projeto. Muitas vezes, em romances e novelas, eu tentara falar de Zaza. Emprestara meu desejo de contar minhas experiências a Henri, em Os mandarins. Quando, duas ou três vezes, aceitei dar entrevistas, sempre me decepcionara: gostaria que tanto as perguntas quanto as respostas fossem minhas. Nas notas que não publiquei, eu me explicava: “Sempre imaginei, dissimuladamente, que minha vida se depositava, nos mínimos detalhes, na fita de algum gravador gigante, e que um dia eu desenrolaria todo o meu passado. Tenho quase cinquenta anos, é muito tarde para trapacear; logo tudo vai desaparecer. Minha vida só pode ser fixada em largos tragos, num papel, e pela minha mão: dela farei, então, um livro. Aos 15 anos, eu desejava que as pessoas, um dia, lessem minha biografia com uma curiosidade comovida; se queria tornar-me ‘uma autora conhecida’, era nessa esperança. Desde então, muitas vezes pensei em escrevê-la eu mesma. A exaltação com a qual outrora acariciava esse sonho hoje me é bem estranha; mas guardei no coração a vontade de realizá-lo…

“…Passei os vinte primeiros anos de minha vida numa grande aldeia que se estendia do Leão de Belfort à rua Jacob, do bulevar Saint-Germain ao bulevar Raspail: ainda moro ali. Da minha mesa de trabalho, vejo passar na praça de Saint-Germain-des-Prés um grupo de colegiais: uma delas era eu. Volta para casa na hora em que se acendem os primeiros lampiões; irá sentar-se diante de uma folha em branco, traçará sinais como eu traço sinais neste papel branco. Houve guerras e viagens, e mortos, e rostos: nada mudou. No espelho, verei uma outra imagem: mas não há espelhos, não havia. Por momentos, não sei mais muito bem se sou uma criança que brinca de adulto, ou uma mulher idosa que se recorda.

“Não. Eu sei; sou eu, hoje. A meninazinha cujo futuro tornou-se meu passado não existe mais. Quero crer, às vezes, que a trago em mim, que seria possível arrancá-la da minha memória, ajeitar seus cílios desalinhados, fazê-la sentar-se, intacta, a meu lado. É falso. Ela desapareceu sem que sequer um frágil esqueleto comemore sua passagem. Como tirá-la do nada?”

Durante dezoito meses, com altos e baixos, dificuldades, alegrias, apeguei-me a essa ressurreição: uma criação, pois ela apelava para minha imaginação e para a reflexão, tanto quanto para a memória.

Sartre, no entanto, estimulado por Lissowski, examinava as relações entre o existencialismo e o marxismo; escreveu um ensaio, que se tornou pouco mais tarde Questão de método. Retomando seu entusiasmo, iniciou a obra que intitulou Crítica da razão dialética. Fazia anos que pensava no assunto, mas suas ideias não lhe pareciam ainda amadurecidas; precisou de uma solicitação exterior para decidir-se. Por outro lado, um editor lhe pediu, para uma coleção de arte, um texto sobre um pintor; Sartre sempre amara Tintoretto; interessara-se, já antes da guerra, e sobretudo a partir de 1946, pela maneira como ele concebia o espaço e o tempo. Resolveu dedicar-lhe um estudo.

Minhas Memórias me absorviam menos que meu estudo sobre a China, e eu li mais. Meus amigos emprestaram-me obras cujas conclusões convergiam, nas quais americanos analisavam sua sociedade: The Lonely Crowd, de Riesman, os ensaios de Wright Mills, The Organization Man, de Whyte, The Exurbanist, de Spectorsky. Eles descreviam, em suas causas e suas consequências, aquele conformismo que me decepcionara em 1947, e que só fizera acentuar-se. A América, tendo-se tornado uma sociedade de consumo, passara do íntero-condicionamento puritano ao êxtero-condicionamento que dá a cada um como norma, não seu próprio julgamento, mas a conduta de outrem; eles mostravam de que maneira consternadora a moral, a educação, o estilo de vida, a ciência e os sentimentos se haviam transformado com isso. Esse país, até pouco tempo tomado de individualismo, e que ainda hoje chamava com desprezo os chineses de “povo de formigas”, tornara-se um povo de carneiros; destruindo em si e nos outros toda originalidade, recusando a crítica, medindo o valor pelo sucesso, não abria outro caminho para a liberdade senão a revolta anárquica: assim se explicava a depravação da juventude, o recurso desta às drogas, suas violências imbecis. É verdade que ainda restavam na América homens que usavam os olhos para ver: esses livros, mesmo, e alguns outros, e certos filmes também provavam isto. Algumas revistas literárias, alguns jornais políticos quase confidenciais ousam tomar partido contra a opinião pública. Mas a maioria dos jornais de esquerda desaparecera. O Nation e o New Republic preservavam apenas com parcimônia certa independência de espírito. O New Yorker tornara-se tão bem-pensante quanto o Partisan Review.

Desde a guerra da Coreia, minha aversão pela América não diminuíra. A segregação era combatida pelo governo com relativo vigor, e grande parte da nação a recusava, a industrialização do sul condenava-a ao desaparecimento; nem por isso deixara de acarretar, nos últimos anos, escândalos espantosos: a execução de Mac Gee; o linchamento de Emmet Till, acusado aos quatorze anos, sem provas, de ter violentado uma branca, e a absolvição de seus assassinos; as violências cometidas no Alabama contra estudantes negros, que desejavam misturar-se aos brancos; e, além desses escândalos, eu sabia o que essa segregação implicava, tanto hoje quanto ontem. Quanto ao fanatismo anticomunista dos americanos, nunca fora tão virulento. Expurgos, processos, inquisições, depurações, e os próprios princípios da democracia eram renegados. Algren tivera seu passaporte cassado, por ter pertencido ao Comitê Rosemberg. No exterior, a América apoiava, a peso de dólares, contra as reivindicações populares, homens que lhe eram vendidos e que muitas vezes, aliás, preocupados com seus próprios interesses, serviam-na muito mal. Se alguma voz se elevava para denunciar essa política, era logo abafada: eu não ouvia nenhuma.

Que acontecera então com os escritores que eu apreciara, e que ainda viviam? E que pensava eu deles, hoje? Discutindo com Lanzmann, relendo-os com novos olhos, fiz uma revisão de muitos dos meus juízos. Os antigos romances de Wright, de Steinbeck, de Dos Passos, de Faulkner, conservavam para mim os méritos, desiguais, que eu lhes reconhecera. Mas não estávamos mais politicamente de acordo com Wright, francamente anticomunista; ele parecia desinteressar-se da literatura. Steinbeck soçobrara no patriotismo e na tolice; o talento de Dos Passos extinguira-se, desde que ele se ligara aos valores ocidentais: em vez de um mundo de profundezas conturbadas, empenhado em esconder sua decomposição com gestos e frases, ele não descrevia mais que aparências esclerosadas. Em Uma fábula, Faulkner contava, também ele, sob a capa de uma história de soldado, a paixão de Cristo: que lengalenga! Intruder in the dust demonstrava que, no sul, o racismo tem frequentemente como contrapartida riquezas e finuras que as pessoas do norte, obstinadas em seu racionalismo simplista, ignoram. Em 1956, Faulkner dissera numa entrevista que era preciso deixar aos sulistas a tarefa de resolver a seu modo o problema negro; ele se declarava solidário com os brancos, mesmo que fosse preciso ir para a rua e atirar em negros. Quanto a Hemingway, eu continuava a admirar algumas de suas novelas. Mas Adeus às armas e O sol também se levanta me decepcionaram quando os reli. Hemingway trouxera um grande progresso à técnica romanesca; mas quando a novidade desaparecia, os procedimentos, os estereótipos saltavam aos olhos. Sobretudo eu descobria nele uma concepção de vida que absolutamente não me era simpática. Seu individualismo implicava uma decidida conivência com a injustiça capitalista; esse individualismo era de um diletante rico o bastante para financiar custosas expedições de caça e pesca, e para praticar, com relação aos guias, aos empregados e aos nativos, um paternalismo ingênuo. Lanzmann me fez notar que O sol também se levanta estava impregnado de racismo; um romance é um microcosmo: se o único canalha é um judeu, e se o único judeu é um canalha, uma correspondência de compreensão ou uma relação universal se estabelece entre esses dois caracteres. Por outro lado, as cumplicidades que Hemingway nos propõe, em todas as viradas de suas narrativas, implicam em que temos consciência de ser, como ele, arianos, machos, dotados de fortuna e de lazeres, e de só termos tido a consciência do nosso corpo através do sexo e da morte. Um senhor dirige-se a senhores. A bonomia do estilo pode enganar, mas não é por acaso que a direita lhe teceu luxuriantes coroas: ele pintou e exaltou o mundo dos privilegiados.

Quanto aos jovens, eu os conhecia pouco. Gostara muito de Carson McCullers, que eu encontrara uma vez em Paris, roída pelo álcool, inchada, quase paralítica; parece que não escrevia mais. Vira também, na casa dos Wright, Truman Capote, deitado num divã, de calças de veludo azul-pálido; tinha talento, mas não o aproveitava muito. Tinham-me elogiado muito O apanhador no campo de centeio, de Salinger: encontrei ali sobretudo promessas. E, infelizmente, a poesia me escapava; eu não conhecia suficientemente bem a língua para apreciá-la, e desconfiava das traduções. Em suma, tanto na literatura como em outras coisas, nada na América me tocava mais, a não ser seu passado. Senti, com relação a ela, o mesmo enfado que a França me inspirava. Conservava uma lembrança ardente de suas paisagens, suas cidades, seus espaços, suas multidões, seus odores; amava sua língua rápida e rica, desenvolta, vigorosa, tão apta a apreender a vida em seu calor; pensava com afeição em meus amigos americanos, agradara-me a cordialidade deles, a franqueza do seu riso e seu humor ab-rupto. Mas eu sabia que, se voltasse a Nova York ou Chicago, o ar que respiraria lá seria, como o de Paris, envenenado.

O melhor momento daquele ano foram os quinze dias passados em Davos com Lanzmann: eu reencontrara ali os prazeres do sol e da neve, e experimentara o alívio de não mais ouvir vozes francesas. No início do verão, deixei novamente, com alegria, esse país onde um governo socialista suprimia os festejos do 14 de julho. Fui com Lanzmann para o sul da Itália. As estradas estavam melhores do que em 1952, os hotéis mais confortáveis; as cidades haviam crescido, muitas vezes com elegância. Mas o campo aparentava a mesma pobreza; em torno do golfo de Tarento, houvera um simulacro de reforma agrária, casinhas que ostentavam nomes de santos elevavam-se no meio dos pântanos que haviam sido repartidos entre os camponeses: faltava-lhes água e adubos, e nada brotava. Cruzávamos com os braccianti nas praças das aldeias, e a vida da província não mudara, desde que Fellini a pintara em Os boas-vidas; bebendo grappa, às onze da noite, numa rua deserta de Cantazaro, assistimos a uma cena que lembrava fielmente as cenas de seu filme: jovens corriam atrás de um topolino, agarravam-no, sacudiam-no, tapavam o cano de descarga com uma bucha de papel; ele partia de novo, a bucha saltava, em meio aos risos que pareciam bocejos; o carro dava meia-volta, e recomeçava tudo. Fomos os primeiros a cansar.

Descemos para a Sicília; ela nos surgiu ao cair da noite, numa curva da estrada, salpicada de luzes, franjada de bruma; paramos; um carro parou atrás de nós: “Estão olhando a vista?”, disse o motorista. “Eu também, toda vez que passo aqui, paro para olhar.” Era policial. Varreu o espaço com a mão, e declarou, com ênfase: “É a segunda mais bela vista do mundo.” “Ah?”, exclamei. “E qual é a primeira?” Ele hesitou: “Isso eu não sei.” Visitei de novo a Sicília; revi Ragusa, austera e próspera, com suas belezas barrocas cercadas de edifícios novos muito bonitos. Fugimos rapidamente das Lipari, com suas águas negras de óleo diesel, e infestadas de turistas franceses. Depois de uma parada no cabo Palinuro, que alguns anos antes Darina Silone me recomendara, subimos novamente para Roma. Transportamos para lá um desertor iugoslavo que nos deteve ao sairmos de Éboli; ele obtivera permissão de deixar por alguns dias o campo italiano onde são internados seus compatriotas em situação irregular, a fim de ir procurar trabalho, mas não tinha um tostão no bolso, e arriscava-se a sanções se chegasse com atraso: mais uma dessas situações inextricáveis, que encontrei com frequência, ao acaso das estradas.

Permaneci mais de um mês em Roma com Sartre. Nossos amigos comunistas mantiveram-se distanciados, e nós vimos pouca gente, mas eu me sentia bem no hotel da Inglaterra, perto da praça da Espanha, e trabalhava bem. Sartre queria descansar da Crítica. Estivera em Veneza para rever os Tintoretto, e começou a escrever sobre pintura. Fez também um prefácio para O traidor, de Gorz.160 

Eu desejava respirar durante duas ou três semanas um ar menos citadino que o de Roma. Sartre propôs irmos a Capri. Os jornais romanos diziam que uma gripe vinda da Ásia devastava Nápoles; mas Capri não é Nápoles, e a epidemia provavelmente iria subir para o norte: partimos. Em Capri, lemos nos jornais de Nápoles que a gripe asiática devastava Roma. Cada cidade aumentava à vontade o mal que atingia a outra.

Eu temera que Capri estivesse entupida de turistas e esnobes; realmente eles despencavam todos — como em Veneza, em Florença, em toda parte — nos mesmos lugares, nas mesmas horas. Nós os evitávamos sem dificuldade. Estávamos hospedados num hotel sem graça, em pleno centro; mas, na região onde nenhum carro pode penetrar, era a solidão e o silêncio. Percorríamos a costa, contemplávamos os Faraglione, que Sartre apreciava tanto quanto as esculturas de Giacometti; passávamos acima da villa de um vermelho berrante, legada por Malaparte aos escritores da China Popular, que não sabiam o que fazer dela; por vezes, subíamos até o palácio de Tibério; muitas vezes parávamos mais embaixo, em qualquer taberna deserta, onde almoçávamos um doce ou um sanduíche, com uma taça de vinho branco, enquanto contemplávamos os efeitos do sol sobre os rochedos e sobre a água. Quando estava escrevendo Le Dernier touriste, Sartre informara-se sobre todos esses lugares; ele conhecia também muitas anedotas e mexericos sobre a vida de Capri. Consegui fazer com que se decidisse a subir, no teleférico, de Anacapri até o alto do monte Solario; ele foi muito menos sensível que eu aos encantos dessa gloriosa ascensão, mas ficou satisfeito por abarcar, num só olhar, a ilha e suas formas engenhosas.

Pela manhã, para tomar nosso café, e todas as noites, depois do jantar, sentávamo-nos num terraço do salotto, ainda não invadido, ou evacuado, pelos Führungen. Depois da meia-noite, só restava um público esparso, ao pé da escada nobre e distante como um cenário de teatro; sozinhas, aos pares, em bandos, pessoas subiam, desciam, paravam no alto, sentavam-se num degrau, ou então desapareciam na sombra que se abria no fundo:161 pareciam representar uma comédia misteriosa e belíssima; seus gestos, suas atitudes, as cores de seus trajes, nas quais encontrávamos o mesmo rosa das telas de Tintoretto, eram comandados pela necessidade; e, num relâmpago, ressuscitava uma ilusão há muito tempo perdida: nossa vida tinha a plenitude e o rigor das histórias que se contam. Sartre me falava de seu livro: trabalhava sem pressa, atento às suas frases: havia algumas que ele me repetia com deleite, através do silêncio aveludado da noite. Em Capri, nesse verão, as pedras eram belas como estátuas, e as palavras por vezes cintilavam.

Minha irmã não morava mais em Milão, onde só passamos um dia. Lanzmann veio encontrar-nos lá. Passando pelo desfiladeiro de Tende, fomos para Nice, e dali partimos para dormir em Aix. Quando rodávamos pela noite estrelada, vimos no céu o brilho acobreado de um meteoro: o Sputinik! No dia seguinte, os jornais confirmavam sua passagem naquela hora, e naquele lugar. Pensávamos com carinho naquele pequeno companheiro efêmero, e contemplávamos com um olhar novo a velha lua, aonde os homens iriam chegar, talvez quando ainda estivéssemos vivos. Contra todas as previsões, o primeiro satélite fora enviado pela URSS: isso nos enchia de alegria. Os adversários do socialismo demonstravam o fracasso deste alegando o atraso industrial e técnico da Rússia: que desmentido! A América falou em “Pearl Harbour científico”. A façanha dava aos russos uma superioridade militar pela qual nos felicitávamos: se o país que tem menos interesse em fazer a guerra tem mais chances de ganhá-la, a paz está favorecida. Os “antipartidos” estavam desprestigiados; o espírito do 20.º Congresso afirmava-se. Nossas esperanças de coexistência pacífica iriam fortalecer-se quando, em abril, Moscou suspendeu as experiências nucleares.

Em toda a América do Sul germinavam revoltas contra o imperialismo americano. Falou-se muito dos rebeldes cubanos quando, dois dias antes do grande prêmio automobilístico de Havana, eles raptaram, no saguão de um hotel, o célebre corredor Fangio, que liberaram depois da corrida. Seu chefe, Castro, um advogado exilado no México por Batista, voltara de barco, com alguns companheiros. Descreviam-no como uma espécie de Robin Hood barbudo. No pequeno exército que mantinha a luta com ele, havia mulheres, o que provocava galhofa entre os burgueses franceses; ele parecia ter o apoio da população — dos estudantes e intelectuais, entre outros; mas era difícil acreditar nele, quando anunciava que, através de greves, motins e ataques, iria derrubar Batista dentro de pouco tempo.

 

***

 

A esquerda francesa reabilitava-se mal de Budapeste. A severidade das sanções que haviam atingido os insurretos — entre outros, Tibor Déry, condenado a nove anos de prisão — indignou os não comunistas, enquanto o PC continuava a afirmar sua solidariedade a Kadar. L’Étincelle foi suspensa. Vercors, que fora um amigo zeloso do partido, explicou num livrinho bastante divertido, P.P.C., que estava farto de fazer papel de enfeite, e que deixava a cena. Mais grave do que essas dissensões de intelectuais era a inércia política do proletariado. No fim de outubro, depois do sucesso da greve do gás e da eletricidade, a CGT e a CFTC desencadearam outras. Em Saint-Nazaire, elas explodiram com tanta violência, que um operário foi morto, e o jornalista Gatti, ferido. Os operários da Renault paralisaram o trabalho, assim como os membros do corpo docente e os funcionários. Mas o próprio fato de esses movimentos terem sido desencadeados em plena crise ministerial indicava que eram apolíticos. Nem os partidos nem os sindicatos os ligaram a uma luta contra a guerra da Argélia. A direita, entretanto, agitava-se; falava-se em complôs. O Express criou foros regionais para lutar contra a ameaça fascista.

O “último quarto de hora” de Lacoste estava durando mais de um ano, e os métodos pacificadores permaneciam os mesmos. Mostrando a amigos o sumário de um número da Temps Modernes, Daniel, colaborador do Express, concluiu: “E depois, é claro, há a ração habitual de torturas.” Era monótono, concordo; geladeiras, banheiras, enforcamentos, queimaduras, estupros, fornos de cal, empalações, unhas arrancadas, ossos quebrados; voltava-se sempre a tudo isso. Mas não víamos razão para mudar o disco, enquanto o exército e a polícia não trocassem os seus.

Um universitário, Audin, fora preso na Argélia em 1.º de junho: não tivéramos mais notícias suas. O pessoal do Liceu Jules-Ferry solicitara uma investigação: em vão. No início de dezembro, um amigo defendeu, em seu lugar, sua tese de matemática na Sorbonne: tratava-se de uma cerimônia fúnebre, à qual assistiram, em grande número, professores e escritores.

Até os leitores do Figaro foram informados por Martin-Chauffier162 de casos de detenções arbitrárias, desaparecimentos e torturas. No Monde apareceu, após semanas de subterfúgios, o relatório da Comissão de Salvaguarda. O relator começava por declarar: “Atos que, em outros tempos e em circunstâncias normais, poderiam parecer exorbitantes são na Argélia perfeitamente legais.” Portanto, não era preciso denunciá-los. As pessoas limitavam-se a assinalar os fatos que, mesmo no seio dessa “exorbitante” legalidade, pareciam abusivos. Estes eram suficientemente numerosos e graves para provocar um escândalo. Culpou-se muito o Monde por essa divulgação; quanto aos acontecimentos em si, a opinião pública pouco se deteve neles.

Em 10 de dezembro, abriu-se o processo de Ben Saddok. Alguns meses antes, ao sair do estádio de Colombes, ele abatera Ali Chehkal, antigo vice-presidente da assembleia argelina, e o mais importante dos colaboracionistas muçulmanos. Seu defensor, Pierre Stibbe, citou como testemunhas de defesa intelectuais de esquerda, entre os quais Sartre. Sartre estava emocionado quando nos dirigimos ao Palácio da Justiça; nas conferências e nos comícios as palavras não têm tanto peso, mas naquele dia um homem jogava sua vida. Se ele a salvasse, dali a alguns anos a anistia faria dele novamente um homem livre: a alternativa entre a morte e a vida era muito mais extrema do que nos processos comuns. Daí a angústia das testemunhas, cada qual podendo pensar que seu depoimento poderia influir definitivamente na decisão dos jurados.

Encerraram Sartre com os outros num lugar afastado dos debates. Quanto a mim, sentei-me no meio de um público numeroso, ao lado de jovens advogados. Junto ao tribunal, a Mme Ali Chehkal, oculta por longos véus de luto, representava a parte civil. Olhei o homem jovem, de rosto franco, que ocupava o lugar dos acusados: realizara um ato análogo aos que, durante a Resistência, eram chamados de heroicos; no entanto, os franceses iam talvez fazê-lo pagar por ele com a própria vida.

Companheiros de Saddok falaram de suas qualidades de homem, de trabalhador, de amigo; velhos parentes choraram. Depois, professores, escritores, um padre, um general e jornalistas explicaram o ato de Saddok alegando a condição imposta a seus irmãos argelinos, e descreveram essa condição. “Muito bem!”, disseram, em tom afetado, dois jovens advogados sentados perto de mim. “Somos nós que estamos sendo processados: estão nos explicando que tudo o que nos acontece na Argélia é bem merecido!” A acusação convocara Soustelle. Ele chegou com os olhos circundados de negro, vestido com um elegante sobretudo; sem olhar para ninguém e precipitadamente, fez o elogio do defunto. Depois, amparada por parentes, uma jovem que andava com pernas mecânicas adiantou-se: fora mutilada no atentado do cassino da Corniche.163 Começou a gritar aos arrancos, com voz estridente: “Basta de horrores! Vocês não sabem o que suportamos! Basta de sangue! Basta! Basta!” O mal-estar que ela provocou logo voltou-se mais contra a acusação, que pusera em cena aquele melodrama, do que contra Saddok. Com os cabelos inteiramente brancos, frágil, trôpego, o velho Emile Kahn reivindicou, em nome da Liga dos Direitos do Homem, da qual era presidente, que se reconhecessem amplas circunstâncias atenuantes para Saddok. Um pastor leu uma carta de seu filho, convocado para a Argélia; o jovem contava como vira uma unidade territorial — isto é, pieds-noirs — torturar um velho árabe; apoiado por alguns companheiros, tivera que ameaçar com suas armas os agressores para lhes arrancar a presa. Esse relato — enforcamento, pancadas, torturas — caiu num silêncio de morte: não se ouviu um suspiro, nem de surpresa nem de repulsa; todo mundo sabia. Mais uma vez essa evidência me gelou o coração: todo mundo sabia e estava pouco ligando, ou então consentia.

Sartre foi um dos últimos a depor. Nada demonstrou sua perturbação, a não ser o fato de ter chamado o morto de Ali Chacal, ao falar dele com uma deferência compassada. Comparando sua atitude à de Ben Saddok, ele explicou que os jovens não podiam aceitar a paciência dos mais velhos, pois só conheciam da França um aspecto sanguinário. Sublinhou, em seguida, que o ato cometido por Saddok era um assassínio político, e não devia ser associado a um atentado terrorista. Fazia um enorme esforço para falar uma linguagem que não chocasse o tribunal, e este último pareceu aliviado com sua moderação.

Depois, depuseram Massignon e Germaine Tillon; a França, constatou esta, impelira a juventude ao ódio. Um professor propusera a seus alunos — muçulmanos de uns dez anos — o seguinte tema de redação: “O que fariam vocês se fossem invisíveis?”; ela leu algumas das composições: todos haviam respondido, através de diversos fantasmas: “Eu mataria todos os franceses.”

Deixei a sala. Nos corredores, o general Tubert clamava contra os franceses da Argélia. Todas as testemunhas louvavam a imparcialidade do presidente, e a liberdade que ele lhes concedera. Comentavam com rigor a ausência de Camus. Sua voz teria muito mais peso, uma vez que acabara de lhe ser concedido o Prêmio Nobel. Stibbe lhe pedira apenas que dissesse bem alto o que escrevera num recente ensaio em que condenava a pena de morte: ele se recusara a comparecer ao julgamento, e até mesmo a enviar uma mensagem ao tribunal. Para reivindicar a indulgência do juiz, várias testemunhas o haviam citado, por vezes não sem malícia.

Jantei na Palette com Sartre e Lanzmann. Saddok salvaria ou não sua cabeça? Estávamos ansiosos. Para se consolar da tensão à qual fora submetido durante todo o dia, Sartre bebeu uísque: fazia algum tempo que ele não suportava o álcool, e sua agitação aumentou; logo caiu num mau humor violento: “E dizer que fiz o elogio de Chehkal! E falei contra o terrorismo: como se eu condenasse o terrorismo! Tudo isso para agradar aos poujadistas do júri! Imaginem só!” A revolta e a raiva lhe punham lágrimas nos olhos. “Tudo isso para poujadistas!”, repetia. Fiquei amedrontada com a violência de sua emoção: ela não se explicava unicamente pelo nojo das concessões feitas; fazia semanas, meses, que ele tinha os nervos à flor da pele.

Na manhã seguinte, a leitura dos jornais nos deprimiu. Ao relatar os depoimentos, eles levantavam, sem querer, um excelente requisitório contra a guerra: o público, de maneira inesperada, ia ser informado. Mas tomavam violentamente partido contra Saddok. Uma das manchetes dizia: “Que belo rapaz é o assassino de Chehkal!” A imprensa acusava as testemunhas de terem sujado a França, e parecia que só a lâmina da guilhotina poderia lavá-la. Temíamos que os jurados fossem influenciados por esses artigos.

Foi com alívio que, à noite, soubemos do veredicto. Prisão perpétua: mas no fim da guerra as prisões se abririam. Em primeiro lugar, ficamos felizes por Saddok; mas também nos reconfortava ver que na França ainda havia homens capazes de julgar de acordo com a própria consciência, diante de um argelino.

Na Argélia, essa noção não tinha mais valor; apontavam-se ao acaso bodes expiatórios: seis muçulmanos confessaram sob tortura o assassinato de Frogier; escolheu-se um deles, e, embora não se tivesse nenhuma prova contra ele, Coty recusou-se a indultá-lo.

Em fins de janeiro de 1958, a Mme Bruguier me pediu um atestado de moralidade em favor de Jacqueline Guerroudj, que fora, em Rouen, uma das minhas melhores alunas. Professora na Argélia, ela se casara com um professor muçulmano, e era, como ele, membro dos grupos urbanos da ALN; ela levara a Yveton a bomba que este colocara nos locais do EGA. Os dois, assim como um de seus companheiros, Taleb, também acusado, foram condenados à morte em dezembro de 1957. A esquerda levantou uma campanha em seu favor, e eu me associei a ela da melhor maneira possível. Conseguimos seu indulto. Mas Taleb, reconhecido como culpado apenas de ter preparado explosivos, e negando qualquer participação neste atentado, foi decapitado.

O bombardeio de Sakiet chocou grande parte da direita francesa: todo dia se repetia Oradour, como disse um cabo.164 Mas cair em cima de uma aldeia tunisiana era uma gafe. Para justificá-la, a Actualités passou um filme que mostrava soldados da ALN acampados na Tunísia: outra gafe; uniformizados e disciplinados, eles constituíam um exército, e não uma associação de malfeitores.

Contavam que, tendo a alma piedosa e escrupulosa, Massu fizera questão de experimentar os instrumentos de tortura, e que declarara: “Muito duro; mas suportável, para um homem corajoso.” Um livro veio lembrar a insuportável verdade da tortura: La Question, de Alleg. Sartre comentou-o num artigo, “Une victoire”, publicado no Express e censurado. O livro, entretanto, foi vendido às dezenas de milhares de exemplares e traduzido no mundo inteiro.

A tortura era, no momento, um fato tão aceito, que a própria Igreja tivera que se pronunciar sobre sua legitimidade. Muitos padres a repeliam, com palavras e atos; mas também havia capelães para encorajar os corpos de elite; quanto aos bispos, a maioria levava bem longe a tolerância, e nenhum se aventurava muito na acusação. Entre os leigos, quantos silêncios aprovadores! O de Camus me revoltava. Ele não podia mais argumentar, como fizera durante a guerra da Indochina, que não queria fazer o jogo dos comunistas; então resmungava que a metrópole não compreendia o problema. Quando foi a Estocolmo receber o Prêmio Nobel, revelou-se ainda mais. Louvou a liberdade da imprensa francesa: nessa semana, o Express, o Observateur e o France-Nouvelle foram apreendidos. Diante de um grande público, ele declarou: “Eu amo a Justiça; mas defenderei minha mãe antes da Justiça” — o que equivalia a alinhar-se do lado dos pieds-noirs. O embuste estava no fato de ele fingir, ao mesmo tempo, manter-se acima da confusão, fornecendo também uma caução àqueles que desejavam conciliar essa guerra e seus métodos com o humanismo burguês. Pois, como diria um ano depois, sem rir, o senador Rogier: “Nosso país… tem necessidade de colorir todas as suas ações com um ideal de universalidade e de humanidade.” E realmente meus compatriotas faziam de tudo para manter esse ideal, ao mesmo tempo que o esmagavam com os pés. Todas as noites, no teatro Montparnasse, um público sensível chorava sobre as desgraças antigas da pequena Anne Frank; mas nada queria saber sobre todas aquelas crianças que estavam agonizando, morrendo ou enlouquecendo numa terra que se dizia francesa. Se alguém tentasse despertar a piedade daquela gente para essas crianças, seria acusado de desmoralizar a nação.

Eu não suportava essa hipocrisia, essa indiferença, esse país, minha própria pele. Aquela gente nas ruas, tolerante ou atordoada, era carrasco dos árabes: todos culpados. E eu também. “Eu sou francesa.” Essas palavras dilaceravam-me a garganta como se fossem a confissão de uma tara. Para milhões de homens e mulheres, velhos e crianças, eu era a irmã dos torturadores, dos incendiários, dos saqueadores, dos degoladores, dos que causavam a fome; eu merecia seu ódio, já que podia dormir, escrever, aproveitar um passeio, ou um livro: os únicos momentos dos quais eu não tinha vergonha eram aqueles em que não podia fazer nada disso, aqueles em que preferiríamos ser cegos a ler o que lemos, ou surdos a ouvir o que nos contam, ou mortos a saber o que sabemos. Parecia-me carregar uma dessas doenças cujo sintoma mais grave é a ausência de dor.

Algumas vezes, à tarde, paraquedistas instalavam no átrio de Saint-Germain-des-Prés uma espécie de barraca. Eu sempre evitava aproximar-me, e nunca soube o que eles traficavam: em todo caso, faziam sua própria propaganda. Da minha mesa, eu os ouvia tocar melodias militares; discutiam, pediam esmolas e creio que exibiam fotos selecionadas de suas campanhas. Eu reconhecia aquele bolo na minha garganta, aquele nojo impotente e raivoso: era o que eu sentia quando via um SS. Os uniformes franceses de hoje causavam-me o mesmo arrepio que outrora as cruzes gamadas provocavam. Eu olhava aqueles jovens fardados que sorriam e se pavoneavam, com os rostos bronzeados e as mãos limpas; aquelas mãos… Aproximavam-se pessoas interessadas, curiosas, amistosas. Sim, eu morava numa cidade ocupada, e detestava os ocupantes com mais angústia ainda do que detestara os ocupantes dos anos 1940, devido aos laços que me uniam aos atuais.

Sartre defendia-se escrevendo furiosamente a Crítica da razão dialética. Não trabalhava como habitualmente — com pausas, rabiscos, rasgando páginas, recomeçando-as; durante horas a fio ia em frente, de folha em folha, sem reler, como se estivesse tragado por ideias que sua pena, mesmo a galope, não conseguia reter; para sustentar esse entusiasmo, eu o ouvia mastigar comprimidos de coridrama: engolia um tubo por dia. No fim da tarde estava extenuado; com a atenção relaxada, acabava tendo gestos incertos, e muitas vezes trocava as palavras. Ficávamos à noite em minha casa; assim que ele bebia um copo de uísque, o álcool lhe subia à cabeça: “Basta”, eu lhe dizia; mas não bastava; a contragosto, eu lhe estendia um segundo copo; ele pedia outro; precisava de muito mais, dois anos antes; mas, naquele momento, seu andar e suas palavras perturbavam-se rapidamente, e eu repetia “Basta”. Por duas ou três vezes fiquei com muita raiva e atirei o copo, que se espatifou no ladrilho da cozinha. Mas eu ficava esgotada quando discutia com ele. E depois, sabia que ele precisava desabafar, isto é, destruir-se um pouco; geralmente, eu só protestava no quarto copo. Se cambaleava ao me deixar, eu me censurava. E me vinham preocupações, quase tão agudas como em junho de 1954.

Eu esperava que a neve me trouxesse um pouco de alegria. As duas semanas que passei em Courchevel me decepcionaram. Pensara rejuvenescer quando, dois anos antes, calçara novamente esquis: minha idade revelava-se na minha falta de progressos. Lanzmann me acompanhava raramente às pistas: estava escrevendo para a Temps Modernes um artigo sobre o padre de Uruffe. Era uma espantosa história a desse padre que assassinara a mulher que ele engravidara, abrindo-lhe o ventre para batizar o feto, tocando o sino, denunciando o crime e ajudando os paroquianos a procurar o assassino. O processo fora ainda mais espantoso; Lanzmann esclarecia o sentido, com malícia e rigor: “A razão da Igreja” exigia que as pessoas se recusassem ao mesmo tempo a compreender o padre e a puni-lo. O sacerdote salvara a cabeça, enquanto os assassinos de Saint-Cloud, não menos dignos de indulgência — dois rapazes meio retardados, que passaram a infância em orfanatos —, haviam sido condenados à morte.165 Os hóspedes do hotel achavam inteiramente natural que eles fossem guilhotinados; eu não podia me esquivar de ouvir o que diziam durante as refeições. Foi sobretudo por isso que essa temporada foi pouco agradável: tínhamos ficado na França. Eu estava mergulhada em toda essa burguesia da qual sempre fugia, em Paris. O casal que lamentava não se ter mais direito de bater nos negros no Congo era belga; mas os franceses compreendiam sua aflição. Quando, em abril, eu quis viajar por alguns dias com Lanzmann, escolhemos a Inglaterra: a costa sul, a Cornualha. Os únicos franceses que me inspiravam simpatia coletivamente eram jovens; estudantes de esquerda me pediram para fazer na Sorbonne uma conferência sobre o romance, e eu aceitei: vivia tão reclusa que fiquei espantada quando, ao entrar no anfiteatro, constatei, diante da acolhida que o público me fez, que eu não lhe era desconhecida. Sua amizade me reanimou o coração: ele tinha necessidade disso.