1939
Quando Hitler invadiu a Polónia, o ligeiro mal-estar que se instalara em todos os consulados de Nova Iorque transformou-se num pânico genuíno e parecia que o inferno engolira o nosso escritório. Para piorar as coisas, Washington aumentou as restrições aos vistos, tornando-se quase impossível entrar nos Estados Unidos com proveniência da Europa. A França também limitou os vistos. Em novembro, desesperadas para ficarem nos primeiros lugares da fila, as pessoas enfrentavam o frio e passavam a noite em sacos-cama, sob a luz das estrelas, por baixo da janela do meu escritório. Quando abríamos, de manhã, a fila de cidadãos franceses desesperados por irem para casa serpenteava desde a zona da receção até ao corredor.
A minha grande amiga Betty Merchant escolheu um dia cinzento de finais de novembro para me visitar e deixar o seu donativo. Ouvi-a aproximar-se e pedi a Pia um chá quente que nunca chegou. Betty conseguiu abrir caminho até ao meu gabinete, vestida com um fato cintado azul índigo Schiaparellie um chapéu adornado com penas de cor púrpura e índigo e um jornal dobrado debaixo do braço. Numa mão, levava um antigo presente de casamento de um casal de New Jersey, uma árvore de dinheiro de trinta centímetros de altura, feita com sessenta notas de cem dólares, dobradas em pequeninos leques, sobre uma base de madeira. Na outra mão, balançava uma torre de caixas de sapatos, encaixadas umas nas outras.
Betty colocou a árvore do dinheiro sobre o mata-borrão da minha secretária.
– Trouxe isto para os teus bebés franceses. Deve dar para comprar algumas latas de leite.
Era bom vê-la, mas eu já estava atrasada e os processos iam-se acumulando. De acordo com a tradição francesa, o nosso escritório fechava para almoço do meio-dia e meia até às três da tarde, e aproveitava esse tempo para comer atum enlatado à secretária e organizar-me para a investida da tarde.
– Obrigada, Betty. É bom ver-te, mas...
– E caixas de sapatos, como te prometi. Escolhi as francesas para que esses bebés se sintam em casa. – O hábito que Betty tinha de comprar sapatos fornecia-me os recipientes para as caixas de presentes que enviava para o estrangeiro: era um abastecimento certo.
– É melhor fechar, por causa ali da Menina das Orelhas Grandes – anunciou Betty, fechando a porta do gabinete.
– Pia?
– Ela ouve tudo, sabes? Está ansiosa por saber onde vamos almoçar, evidentemente.
– Lamento, mas estou atulhada em trabalho e ainda por cima não tenho fome nenhuma.
– E se for só para petiscar qualquer coisa? Nada como um martíni para despertar um apetite preguiçoso.
– Como é que posso ir almoçar com esta multidão à espera? Acabei de atender um casal de Lyon que desde junho não tem notícias da filha, que está em França. Estavam ambos a chorar.
– Sinceramente, Caroline. És voluntária e nem sequer podes almoçar...?
– Estas pessoas precisam de mim.
– Aquele teu rapaz do elevador – Cuddy? –, talvez o leve ao «21». Os homens de uniforme têm qualquer coisa.
Olhou para o seu espelho de bolso, em busca de imperfeições. Como não encontrou nenhuma, encolheu os ombros, desapontada. Comparavam-na muitas vezes a Rita Hayworth, pois fora abençoada com uma cabeleira abundante e curvas capazes de fazer um idoso em cadeira de rodas levantar-se e caminhar pela primeira vez em muitos anos. Nem sempre era a rapariga mais bonita da sala, mas era difícil tirar os olhos dela – como no caso de um acidente ferroviário ou de um urso a dançar.
– Precisas de uma pausa, Caroline. Não gostarias de ser minha companheira de bridge?
– Não posso, Betty. As coisas estão uma loucura por aqui. Com Hitler a dominar tudo à sua volta, metade da França está a tentar fugir e a outra metade a tentar entrar. Tenho sessenta embrulhos de presentes para preparar. A tua ajuda é bem-vinda.
– Adoro os franceses. É óbvio que tu também. Vi ontem o teu novo namorado, a caminho do teatro.
Da janela, viam-se cair alguns flocos de neve. Estaria também a nevar lá em cima, na nossa casa em Connecticut?
– Ele não é meu namorado. – Infelizmente era verdade, embora o visse com frequência, naquele final de outono e princípio de inverno. Passava pelo Consulado antes dos ensaios e partilhávamos o almoço que vinha num saco de papel castanho, no jardim da cobertura do French Building, independentemente do tempo que estivesse.
– Para ele parece que consegues arranjar tempo. A mãe contou-me que te viu a entrar no Sardi’s. «Um tête-à-tête ao almoço comum europeu alto» foram as suas palavras. Toda a cidade fala disso, C. Parece que agora ele se tornou o teu melhor amigo. – Betty atirou o jornal dobrado para a minha secretária. – No Post vem um artigo sobre vocês os dois. Sabias que ele foi considerado «O Homem Mais Bonito do Mundo» pela revista Physical Culture?
Não fiquei surpreendida, mas, de certa forma, senti-me lisonjeada. Quem é que votava nessas coisas?
– Um almoço – contrapus. – Francamente. A falar do seu espetáculo...
– Mereces arranjar um amante, Caroline, mas tens de ser discreta, querida – sussurrou, inclinando-se sobre a minha secretária. – Tem de ser uma pessoa do teatro? E, ainda para mais, uma assim tão conhecida? Sei que ainda estás magoada com o David. Se eu soubesse que o meu irmão...
– Isso acabou, Betty.
– Não me quero meter na tua vida, mas quando uma reputação fica manchada, não há maneira de retirar a mancha. Evelyn Shimmerhorn é enorme. Não é possível fugir-lhe.
– Podes deixar a Evelyn em paz? Não me interessa o que as pessoas pensam.
– Quando deixarem de te convidar para encontros, vais interessar-te. Porque não me deixas ajudar-te? Sinceramente, o David pode ser meu irmão, mas Deus sabe que tem os seus defeitos. Estás melhor sem ele, mas agora não arranjes um francês apenas por despeito. Sabes, todos os homens têm uma imagem da mulher com quem irão ficar. Portanto, só precisamos de encontrar um homem conveniente, que tenha em mente a ideia de alguém como tu.
– Deves ter coisas mais importantes com que te preocupares, Betty.
A minha amiga sempre fora a minha maior apoiante desde o nosso primeiro dia na Escola Chapin, quando um rapaz, na aula de Francês, me chamou le girafon e ela lhe deu uma pisadela com toda a força.
– Por mim, tu e Paul até podiam estar nus no topo do edifício Chrysler, mas eu só quero proteger-te, querida.
Para meu grande alívio, Betty disse que tinha de se despachar. Segui-a até à receção e ela depositou a árvore do dinheiro na secretária de Pia.
– Espero que não estejam a contar que eu vá depositar isto – reclamou Pia, encostando-se para trás na cadeira, com um Gauloise na mão.
– Não quer ir dar um passeio pela 5.ª Avenida? A propósito, usa sutiã, Pia querida?
– A palavra é brassiere.
Betty atirou um dólar para cima da secretária de Pia.
– Tome lá, para comprar um. Na secção de criança são mais baratos.
Quando Betty estava a deixar a receção, Paul saiu do elevador, com um saco de papel na mão, e segurou-lhe a porta. Betty lançou-me aquele olhar «Eu avisei-te» e seguiu caminho.
Nesse dia, Paul viera resolver as questões do seu visto com Roger e eu queria estar nessa reunião. Queria mostrar-lhe o meu apoio, pois certamente conseguiria convencer Roger a ajudá-lo a ficar. O meu chefe instalara uma cama encastrável no gabinete e deixara-a aberta, com a roupa de cama numa rodilha, como usada. Não fora um sono descansado.
– Tenho de tirar Rena de França – explicou Paul.
Roger retirou uma máquina de barbear de uma gaveta e colocou-a em cima do mata-borrão da secretária.
– Podemos tentar. Os vistos para os Estados Unidos estão muito concorridos. Viu a fila. Até os cidadãos franceses com vistos para cá estão presos em França. Há tão poucos navios.
– O pai de Rena é judeu – disse Paul. – Isso irá complicar as coisas?
Fui até à cama e endireitei a roupa.
– Desde que Washington alterou as quotas de imigração, em 1924, tudo se tornou mais difícil – elucidou Roger.
– Ela contentar-se-ia com um visto para turista.
– É capaz de deixar essa cama sossegada, Caroline? Perguntou Roger, fechando a gaveta. – Todos os que estão ali na fila se contentariam com um visto de turista, Paul. Rena precisa de dois responsáveis.
– Eu posso ser uma – interferi, ajeitando a almofada da cama. Aquilo era batom? Vermelho rockette.
– Obrigado, Caroline – agradeceu Paul, com um sorriso.
– Não devia estar a ajudar a Pia lá na frente, Caroline? – inquiriu Roger.
Enfiei a ponta do cobertor por baixo do colchão.
– A Rena reservou um bilhete? – prosseguiu Roger.
– Sim, mas sem o visto o bilhete expirou. Voltará a fazer a reserva assim que tiver um novo visto.
Roger ligou a máquina de barbear e começou a usá-la, barbeando os pelos dispersos. Se fossem deixados à vontade, aquela barba acabaria por tomar conta de todo o seu rosto.
– Não posso prometer nada. Estão previstas mais restrições aos vistos.
– Mais? – perguntei.
– Sabe que não é decisão minha – continuou Roger.
Levantei a cama encastrável e recolhi-a para o armário de parede.
– Não podemos acelerar as coisas? Não parece justo. Paul é um cidadão francês proeminente, um embaixador para...
– Estou nas mãos do Departamento de Estado, Caroline. Uma caixa de champanhe é só uma pequena ajuda.
– Posso ir a França para uma visita – disse Paul.
– Se for, já não conseguirá voltar – explicou Roger.
– Porque não esperar até à primavera? – Aproximei-me da cadeira de Paul.
– Na primavera a situação já será muito diferente. Se quer mesmo ir, Paul, acho que o melhor é fazê-lo agora.
– Claro que quero mesmo ir – confirmou, endireitando-se.
Quereria mesmo? Eu dera-lhe os formulários para a reentrada e ele perdera-os, duas vezes. Não que eu quisesse que ele partisse.
– Então tem de fazer um requerimento – informou Roger.
– Posso preencher os formulários por si – sugeri.
Paul esticou-se e apertou-me a mão.
– Deve estar ansioso por ver a sua mulher – continuou Roger.
– Claro – confirmou Paul.
– Fica ao seu critério, mas se estiver no seu quarto no Waldorf quando Hitler decidir avançar para França, não vai conseguir regressar. – Roger levantou-se.
A reunião terminara. Paul levantou-se também.
– Caroline, pode ficar mais um minuto? – pediu Roger.
– Vejo-a lá em cima – disse Paul, à porta, e subiu para o jardim no topo do edifício.
– Espero que saiba no que se está a meter – suspirou Roger, fechando a porta.
– Já me responsabilizei por dez requerentes...
– Sabe do que estou a falar. Com Paul.
– Não há nada entre nós – respondi. Mantém-te calma... Um Roger cansado significava problemas.
– Se não fosse a Caroline, ele já teria partido. Eu vejo o que está a acontecer.
– Não é justo, Roger.
– Acha? Ele tem uma família, Caroline. Não é estranho que não se apresse em voltar? – Agarrou no processo de Paul e folheou-o.
– O seu novo espetáculo...
– É mais importante do que a sua mulher?
– Acho que eles estão, de certa forma... separados.
– Lá vamos nós – Roger lançou a pasta para cima da secretária. – A Pia diz que vocês almoçam no jardim da cobertura.
– Não precisa de dramatizar, Roger – encaminhei-me para a porta. Mal sabia ele que eu e Paul tínhamos percorrido Manhattan juntos muitas vezes, comido chop suey e bolos de arroz na Rua MacDougal, em Greenwich Village, ou passeado pelo jardim japonês, em Prospect Park.
– Ouça, Caroline, percebo que se sinta um pouco só...
– Não precisa de me insultar. Só estou a tentar ajudar. Não está certo que ele e Rena tenham de sofrer desta maneira. Veja tudo o que Paul tem feito para ajudar a França.
– Oh, por favor. Quer que tire Rena de lá para que ele possa ficar. E depois? Três é demais, Caroline, e adivinhe quem irá ficar de fora... Como cidadão francês, ele tem de cumprir o seu dever e regressar a casa.
– Temos de fazer aquilo que está certo, Roger.
– Não temos de fazer nada. Tenha cuidado com o que deseja, Caroline.
Apressei-me a regressar ao meu gabinete, evitando uma bola de pétanque perdida. Paul ainda estaria à espera?
As palavras de Roger ficaram a pairar no ar. Talvez me sentisse atraída por Paul. Esperava que Betty tivesse razão sobre os homens e as suas imagens. Paul gostaria da minha? Havia coisas piores na vida.
Embora estivéssemos extremamente ocupados no Consulado, a Mãe insistiu para que me voluntariasse para estar no chá dançante que ela e as amigas iam organizar no Plaza. Se nunca foi a um, um chá dançante é uma relíquia de tempos passados, um encontro casual durante a tarde, onde são servidas sanduíches leves e a dança é encorajada.
Havia um milhão de sítios onde preferiria estar nesse dia, mas o chá dançante da Mãe era em benefício dos seus Russos Brancos, os antigos membros da aristocracia russa, agora exilados, que tinham apoiado o czar na Guerra Civil Russa. Ajudar estes antigos aristocratas era a causa de estimação da Mãe havia anos e eu sentia-me obrigada a ajudar.
Ela reservara o Grande Salão de Baile neorrococó do Plaza, uma das salas mais bonitas de Nova Iorque, com as suas paredes de espelhos e os seus lustres de cristal, e contratara uma orquestra russa de balalaica para tocar. Seis dos antigos músicos da corte do czar, de gravata branca, estavam sentados, muito direitos, sobre um estrado num dos lados do salão. Cada um deles segurava sobre o joelho a sua balalaica triangular de três cordas, aguardando um sinal da Mãe. Apesar de estes músicos de classe internacional se verem agora reduzidos a tocar em chás dançantes, pareciam contentes com o trabalho. As assistentes, membros da comissão que a Mãe pressionara para estarem presentes, e algumas das minhas amigas da Junior League*, circulavam pelo salão com vestidos tradicionais russos. Ela conseguiu até convencer a carrancuda Pia a juntar-se às nossas fileiras.
Para além destas minhas companheiras assistentes, não disse a mais ninguém que me voluntariara para estes encontros, já que era demasiado humilhante ver-me vestida com estas roupas russas. Como atriz, não tinha problemas em vestir qualquer tipo de indumentária, mas isto era demais, já que incluía até um sarafan, um vestido comprido em forma de trapézio, bordado com riscas verdes e vermelhas brilhantes e uma blusa branca com mangas de balão, adornada com flores bordadas a lã. A Mãe insistiu também para que todas usássemos o particularmente embaraçoso kokoshnik, o enorme enfeite de cabeça em ouro e prata, pedras semipreciosas e longas fiadas de pérolas de rio. Como se eu não fosse já alta o suficiente, aquele enfeite fazia-me ficar apenas ligeiramente mais pequena do que o Empire State Building, mas enfeitada com pérolas.
A Mãe fez deslizar para a mesa da frente uma taça russa dourada, em esmalte, para os donativos. Pousou uma mão sobre a minha manga bordada, libertando uma encantadora onda de perfume na minha direção – um que o seu amigo, o Princípe Matchabelli, ele próprio um nacionalista da Georgia refugiado, fizera só para ela, com as suas notas favoritas de lilás, sândalo e rosas. Ele e a sua mulher atriz, a Princesa Norina, enviavam à Mãe cada uma das suas fragrâncias, o que resultava numa colorida paisagem de frascos com tampa de coroa e cruz sobre o toucador.
– Vai haver pouca participação – disse-me ela. – Pressinto-o.
Embora me sentisse relutante em dizer-lho, era inevitável uma reduzida participação, já que os americanos se vinham a tornar cada vez mais isolacionistas. Os números das sondagens mostravam que o nosso país, ainda abalado com o enorme número de baixas na I Guerra Mundial e na Grande Depressão, não queria ver-se arrastado para um novo conflito. Os nova-iorquinos não estavam com disposição para chás dançantes que beneficiassem alguém além dos seus quarenta e oito estados.
– Com a guerra na Europa, os seus Russos Brancos deixaram de ser uma prioridade, Mãe.
– Pois, pensa em todos aqueles europeus deslocados. – Sorriu. Olhava para oportunidades de caridade como alguns olham para uma bandeja com bolos.
Serge, o nosso cozinheiro, atravessou o salão com o seu chapéu de pregas na cabeça e a bata de chef suja de farinha. Transportava nos braços uma tigela prateada de tvorog, um prato russo camponês de queijo artesanal com uma infusão de xarope de amora. Nascido Vladimir Sergeyevich Yevtushenkov, Serge descendia de uma certa nobreza russa, em relação à qual a Mãe sempre fora vaga. Ter Serge a viver connosco era como ter um irmão muito mais novo e de sotaque forte, que passava todas as horas do dia a pensar em novas coisas para flambear, para a Mãe e para mim.
O aparecimento de Serge levou Pia a aproximar-se, como um crocodilo a deslizar na água, de taça de cristal com ponche na mão.
– Isso parece delicioso, Serge – elogiou-o.
Ele corou e limpou as mãos no avental. De cabelo cor de areia e magricela, Serge poderia seduzir qualquer rapariga que quisesse em Nova Iorque, mas nascera com uma timidez paralisante que o prendia na cozinha, preferindo ocupar-se alegremente a queimar com um ferro próprio o seu crème brûlée.
– Talvez tenha sido um erro reservar o Grande Salão, Mãe – disse eu.
As hipóteses de encher de foliões uma área com mais de 350 m2 eram reduzidas. Roubei um bocado do khachapuri da Mãe, um pão amanteigado cortado em triângulos.
– Mas tu colocaste um anúncio no Times. As pessoas virão.
A orquestra tocava uma versão apaixonada da canção popular russa «A Velha Tília», incompatível com qualquer tipo de dança dos tempos modernos.
A Mãe segurou-me no cotovelo e puxou-me para o lado.
– Nós vendemos chá russo e cigarros, mas não lhes mexas. A Pia diz que tens andado a fumá-los com o teu amigo francês.
– Ele não é...
– A tua vida social é contigo, mas nós temos de obter lucro.
– Sei que não aprovas o Paul, mas somos apenas amigos.
– Não sou o teu padre, Caroline, mas ambas sabemos como são as pessoas do teatro. Especialmente atores casados que estão longe de casa. Mas tu és uma mulher de trinta e cinco anos...
– Trinta e sete.
– Não precisas da minha aprovação, mas se me perguntares, há um ou dois da orquestra que poderiam dar bons namorados. – A mãe fez um gesto com a cabeça na direção da orquestra. – Já foram a coqueluche da aristocracia russa.
– Não há nenhum com menos de sessenta anos.
– O passarinho exigente passa fome, querida.
Afastou-se para ir angariar donativos e eu continuei a acabar de preparar a sala. Estava em cima de uma escada a ajustar uma luz de forma a incidir sobre a orquestra, consciente de que estar numa posição tão alta só aumentava a atenção sobre mim, quando Paul apareceu à porta do salão de baile. Encaminhou-se diretamente para a escada.
– Roger disse-me que a poderia encontrar aqui.
O grande salão adequava-se bem a Paul, com as suas paredes cremes com uns pontos dourados, num agradável contraste com o seu belo tom moreno. Senti um aperto de douleur, uma das muitas palavras francesas que não têm tradução em inglês e que significa «a dor por querer alguém que não se pode ter».
– Maravilhoso – disse eu, descendo as escadas, com as pérolas a balouçar. Pelo menos, podia tirar aquele sorriso da cara.
– Estou a caminho do teatro, mas preciso da sua assinatura para o pedido de visto para a Rena. Se for má altura, eu...
– Claro que não.
A Mãe aproximou-se e a orquestra acelerou o ritmo.
– Mãe, posso apresentar-lhe Paul Rodierre?
– É um prazer conhecê-lo – cumprimentou-o. – Já sei que está no The Streets of Paris.
– Um entre cem. – Paul presenteou a Mãe com um dos seus melhores sorrisos.
Ela parecia ser-lhe imune. A uma vista menos treinada, a Mãe estava a ser perfeitamente cordial, mas após anos a vê-la comportar-se em sociedade, eu conseguia detetar-lhe a frieza.
– Agora, se me desculpa, preciso de ir ver se trato do khachapuri. Parece que alguém o comeu todo.
– Khachapuri? É o meu favorito – perguntou-lhe Paul.
– Lamento que seja só para os convidados que pagam – cortou a Mãe. – Não que me pareça que venham muitos desses esta noite.
De maneira formal, Paul fez-lhe uma pequena vénia.
– Se as senhoras me perdoam, tenho de ir andando. – Sorriu-me e saiu pela mesma porta por onde entrara. Tão depressa?
– Bom trabalho, Mãe. Conseguiu enxotar o nosso único convidado.
– Os franceses conseguem ser tão sensíveis.
– Não pode esperar que as pessoas venham para aqui. Os nova-iorquinos prefeririam morrer a ter de comer tvorog e, além disso, oferecer álcool também teria sido uma ajuda, sabe?
– Para a próxima vez, vendemos feijoada com entrecosto. Se fosse por ti, sairíamos todos para um jantar convívio, com um jarro de whisky de milho em cima da mesa.
Concentrei-me em pendurar as grinaldas de pinheiro por cima das portas, ajudada por uma Pia mal-humorada. Enquanto trabalhava, ia fazendo mentalmente uma longa lista das coisas que estava a deixar para trás. Relatórios para Roger. As minhas caixas de presentes. Porque haveria a Mãe de ser tão teimosa? Tinha de se adaptar ao século XX. Senti o olhar fixo de alguém e voltei-me para ver um dos membros mais idosos da orquestra, de balalaica na mão, a piscar-me o olho.
Uma hora mais tarde, até a Mãe aceitou a derrota. Os nossos únicos potenciais clientes tinham sido uns hóspedes do Plaza, um casal de Chicago que entrara por engano e saíra rapidamente, como se tivesse deparado com uma colónia nudista.
– Bem, isto foi um fracasso – concluiu a Mãe.
Retirei uma grinalda da parede.
– Eu disse-lhe...
Nem acabei a frase, com a algazarra que começou a ouvir-se no corredor, fora do salão de baile, e que quase nos impedia de nos ouvirmos uma à outra. As portas escancararam-se e uma multidão entrou – todo o tipo de pessoas imagináveis, de uma ponta à outra na escala social, todas elas bastante maquilhadas e com vestuário francês dos anos 1920. Viam-se mulheres vestidas com conjuntos de cintura descida e cabelos ondulados. Algumas tinham vestidos sem cintura e cortes de cabelo à Louise Brooks*. Criaturas maravilhosas, com vestidos em cetim próprios para usar à tarde, enfeitadas com contas e pedras e o cabelo com um corte Eton, liso e curto, à moda de Josephine Baker. Os homens usavam fatos vintagee chapéus de coco. Uma série de músicos de smoking preto ocupava a retaguarda, com violinos e saxofones nas mãos. A Mãe parecia prestes a explodir de felicidade, enquanto fazia sinal aos músicos para se juntarem à orquestra.
– Temos khachapuri para todos – anunciou. – Deixem os vossos casacos com a nossa querida Pia.
A seguir a todos, entrou Paul.
– Meu Deus, o que é tudo isto? – perguntou, espremendo-se por entre duas mulheres que transportavam uma bateria, com os seus chapéus cloche bem puxados sobre os olhos. Reconheci-os, evidentemente.
– Acho que sabe, Paul. Como é que conseguiu trazer todo o espetáculo para aqui?
– Sabe como são as pessoas do teatro. Já estavam vestidas para uma festa. Carmen estava com dores de cabeça, por isso hoje não haveria matinée. Estamos livres até à hora de subir o pano, às seis.
A orquestra do The Streets of Paris integrou-se bem com a orquestra russa da Mãe e descobriram que «Love Is Here to Stay» era a ponte musical entre as nações. Assim que os dançarinos reconheceram a canção, foram para a zona de dança, mulheres dançando foxtrot e swing com mulheres, os homens com homens.
A Mãe correu na nossa direção, endireitando o seu enfeite de cabeça.
– É um grupo bonito, não é? Eu sabia que acabaríamos por ter uma multidão.
– Mãe, foi o Paul que arranjou isto. São do seu espetáculo. Todo o elenco.
Ela pestanejou, momentaneamente perplexa, e a seguir virou-se para Paul.
– Bem, o Comité Central Americano para Auxílio aos Russos agradece-lhe, Sr. Rodierre.
– Há alguma possibilidade de esses agradecimentos incluírem uma dança? Nunca dancei Gershwin ao som de balalaicas.
– Bem, não podemos privá-lo dessa oportunidade – respondeu a Mãe.
Assim que transpirou a notícia de que Paul Rodierre estava no chá dançante, apareceu o hotel em peso e Serge teve de repor o tvorog três vezes. Entretanto, consegui perder o meu enfeite de cabeça e todos estavam a divertir-se imenso, incluindo os amigos da orquestra da Mãe, que tinham comprado vodca russa para animar o chá gelado.
Quando Paul foi embora, os seus bolsos iam atulhados de cigarros russos, que a Mãe insistira em oferecer-lhe, e a tigela dos donativos para o Comité Central Americano para Auxílio aos Russos estava a transbordar.
– Estás à vontade para arranjares todos os amigos franceses que quiseres, querida – disse-me a Mãe quando parou junto de mim para recuperar o fôlego entre duas danças. – Eu tinha saudades da gente do teatro, e tu? É uma mudança tão refrescante.
Ao sair, e depois de um trabalho bem feito, Paul acenou-me um adeus, enquanto levava o elenco de volta ao teatro, para a subida do pano. A sua gentileza não poderia ter encontrado alguém mais grato do que a minha mãe. Ela não dançava assim desde que o Pai morrera. Como poderia eu não lhe estar imensamente grata?
Betty tinha razão. Realmente, ele era o meu melhor amigo.
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* As Junior Leagues são organizações não lucrativas e de caráter caritativo, compostas por mulheres, a primeira das quais foi fundada em 1901, em Nova Iorque. Em 1921, as Ligas juntaram-se numa associação, hoje conhecida como The Association of Junior Leagues International, Inc. (N. da T.)
* Penteado mais conhecido por cabelo à garçonne. Louise Brooks, atriz e dançarina norte-americana, consolidou o seu lugar na cultura pop e na moda, ao popularizar um corte de cabelo curto.