1940-1941
É preciso compreender a componente social que a resistência polaca representava para um jovem. Após a invasão dos alemães, as associações de raparigas e os escoteiros passaram a ser considerados organizações criminosas, e tivemos de prosseguir clandestinamente, tornando-nos conhecidos como Szare Szeregi, ou Fileiras Cinzentas. Respondíamos perante o governo polaco no exílio, em Londres, e a maior parte das Escoteiras juntou-se-lhe. Este grupo era a minha única companhia, já que Zuzanna trabalhava muitas horas no Corpo Médico de Lublin e nunca estava em casa. Além disso, era uma boa maneira de descarregarmos a frustração pela ocupação alemã.
Nas Escoteiras tivéramos uma excelente formação de primeiros-socorros, mas nas Fileiras Cinzentas continuámos a treinar e a frequentar cursos médicos secretamente. As raparigas mais velhas lutavam ao lado dos rapazes, trabalhavam como enfermeiras e costureiras e geriam orfanatos. Algumas até ajudavam a libertar pessoas das prisões alemãs, faziam explodir pontes e roubavam planos militares aos nazis.
Na minha patrulha de sete pessoas, nós, as mais novas, salvávamos livros polacos, para que não fossem destruídos pelos soldados alemães, e dávamos aulas secretas. Éramos treinadas como descodificadoras e entregávamos identidades falsas e mensagens. Fazíamos a nossa parte a sabotar os nazis, alterando os sinais nas ruas, para que os SS se perdessem. À noite, ligávamo-nos aos altifalantes dos alemães colocados nas ruas para transmissões e púnhamos a tocar o hino nacional polaco. Quanto mais sucesso alcançávamos, mais queríamos, como se fosse uma droga. Porém, precisávamos de ser cuidadosos, já que os alemães não só tinham escolhido Lublin como seu quartel-general, como os seus espiões haviam começado a identificar as nossas antigas líderes das Escoteiras e a prendê-las, por toda a Polónia.
Além disso, a lapanka ocorria cada vez mais frequentemente. A Matka vivia aterrada com essa perspetiva – uma súbita caça ao homem, executada pelas SS –, por nossa causa. As autoridades já nem sequer aguardavam pela cobertura da noite. Faziam as suas detenções, cidadãos polacos escolhidos ao acaso, à luz do dia e nos locais mais inesperados: igrejas, estações de comboio, filas de racionamento. Quem tivesse o azar de ser apanhado, era preso e levado para um «centro de confinamento». A maioria era enviada para a Alemanha, onde tinha de trabalhar até morrer. As crianças polacas de aspeto ariano também estavam em risco. Começaram a desaparecer das cidades em grande número. Um dia, um comboio cheio de crianças foi cercado e confiscado. Os guardas alemães dispararam sobre as mães, enquanto elas corriam atrás do comboio. No campo, se eram poucos os trabalhadores a denunciarem outros, os nazis queimavam aldeias inteiras como represália.
Embora Pietrik não falasse disso, o seu pai, capitão no nosso exército polaco, fora preso juntamente com os seus oficiais, ficando o filho como único homem da casa. Antes da guerra, todos os homens licenciados pela universidade haviam sido requisitados para se juntarem aos militares como oficiais de reserva e por isso agora era fácil às autoridades eliminar os que tinham mais estudos, prendendo todos os membros do Corpo de Oficiais Polacos. Pelo menos, quando a guerra começara, Pietrik ainda não fora recrutado.
Pedi-lhe mais missões importantes, como as que cabiam às raparigas mais velhas mas, como comandante do nosso grupo, arranjava sempre inúmeras desculpas.
– Diz-me que não sou boa para missões – disse-lhe uma tarde, no nosso apartamento. – Vê como fiz um bom trabalho em casa da Nadia.
Pietrik ajudou-me a lavar os poucos pincéis que a Matka não queimara. Escondera-os sob uma tábua do chão, para ainda poder pintar à noite. Não sendo uns pincéis quaisquer, mas sim uns Kolinsky de cerdas naturais, próprios para pintar com aguarelas, lavá-los era uma honra que a Matka me concedia. Herdara aqueles Stradivarius dos pincéis da sua mãe e cada um deles valia uma fortuna. Vinham embrulhados num rolo de flanela vermelha, cada um na sua própria manga, e eram feitos de pelo de marta da Rússia, mas apenas dos machos, três vezes mais valiosos por quilo do que o ouro.
– Não tenho nada para ti, Kasia – argumentou Pietrik. – As coisas agora estão calmas.
Para um rapaz de mãos tão grandes, era delicado com os pincéis. Mergulhou um na espuma de sabão e passou os dedos, suavemente, desde a parte metálica até às cerdas.
– Se passar mais um dia nesta casa, endoideço.
– Conheces as regras. Ainda não tens idade suficiente. Lê um livro. – Pousou o seu pincel ao lado do meu, sobre o pano da louça.
– Mas eu sou capaz de mais...
– Não, Kasia.
– Não há nada que saiba melhor do que lutar contra eles, Pietrik. Manda-me fazer qualquer coisa. Não precisa de ser muito importante.
– Se alguma vez fosses apanhada, não te serviria de nada seres linda. Matam tão facilmente uma rapariga bonita como outra qualquer.
Linda? Eu? Bonita?
– Se não me deres uma missão, vou trabalhar para a Imprensa Livre. Ouvi dizer que precisam de mensageiros.
– Estás mais segura comigo.
– Ora aí está.
Finalmente, algum progresso! Pietrik virou-se para mim, sério.
– Bem, há uma coisa. Uma missão complicada, por isso tens de prestar atenção.
– No gueto? – perguntei.
Acenou afirmativamente. Senti medo de imediato, mas não me atrevi a mostrá-lo. Um único olhar assustado seria o fim das minhas missões.
– Tens de ir à farmácia Z. – Fez uma pausa. – Não, pensando bem, é melhor não.
– Mas quem há melhor do que eu? Costumava comer gelado de chocolate na Zaufanym com Nadia. O Sr. Z vai à nossa igreja.
Apesar de ficar no gueto, não havia nada que impedisse os cristãos de comprarem na Z. Todo o tipo de pessoas fazia ali as suas compras, até mesmo os SS, uma vez que o farmacêutico e dono, conhecido como o Sr. Z, era praticamente um médico e tinha todos os remédios armazenados, mesmo com a guerra a decorrer.
– Podes lá estar amanhã exatamente às duas?
– Já alguma vez me atrasei?
– A patrulha muda nessa altura, por isso tens precisamente cinco minutos, quando não houver guardas que te possam deter. Evita o máximo possível os camisas negras. Têm mais patrulhas.
– Compreendido – respondi, com um sorriso, apesar da sensação de que todo o sangue do meu corpo parara de correr. Sentia uma impressão no estômago que parecia dizer «Pensa duas vezes antes de te meteres nisto», mas fui em frente.
– Entras e vais direita à porta nas traseiras da loja – continuou Pietrik.
– Para a cave?
– Sim. Desces as escadas. – Agarrou-me na mão e olhou-me nos olhos. – Assim que fizeres o contacto, ficas apenas cinco minutos. Vais receber um embrulho importante, Kasia. Compreendes?
Acenei. Esforçando-me por manter a voz calma, perguntei:
– Há alguma coisa que possa explodir?
– Não, mas ao saíres não fales com ninguém. Regressa ao teu turno normal no cinema. A desculpa é que foste comprar aspirina.
Estava extremamente sério enquanto me dava instruções. Uma desculpa. Era uma verdadeira missão e, apesar de ter as mãos a tremer, iria executá-la na perfeição. Cinco minutos para recolher umas coisas era uma eternidade.
Nessa noite mal consegui dormir, a pensar ininterruptamente no que poderia correr mal. O gueto. O simples facto de estar no sítio errado poderia levar-nos à prisão. Todos os dias se ouvia falar de vizinhos e amigos que eram levados para o quartel general da Gestapo, «Por Baixo do Relógio», o edifício de escritórios de ar inocente, com celasna cave ou, pior ainda, para o castelo de Lublin, onde os prisioneiros eram fuzilados no pátio.
Na tarde seguinte, dirigi-me à farmácia Z, com as pernas a tremer. Estava um dia cinzento e o vento empurrava nuvens pesadas pelo céu. Não era preciso ter medo. Era isso que nos fazia sermos apanhados. Os nazis conseguiam cheirar o medo.
Ia a meio caminho do Portão Grodzka, a entrada oficial para o gueto, quando vi algo que me fez parar. Era a Matka, que vinha a sair do Deutsche Haus, o restaurante onde todos os alemães comiam, o que tinha o letreiro enorme onde se lia proibido a polacos! na porta. Os SS gostavam especialmente daquele sítio, já que sabiam que a comida era segura e quase de graça e que não tinham de se sentar ao lado de um polaco. Dizia-se que o restaurante estava cheio de fumo de cigarros e que as doses de comida eram tão grandes que muito ficava por comer, mas eu não conhecia ninguém que lá tivesse estado dentro, ou assim julgava. Pelo menos, ninguém vivera para o contar, já que havia a proibição. Não eram permitidos polacos. Mesmo na semana anterior, o nosso merceeiro havia sido apanhado na cozinha, quando fora entregar batatas, e tinha sido preso. Nunca mais regressou.
Estas detenções começavam a tornar-se um acontecimento comum. Lera nessa manhã, no jornal da resistência de Zuzanna, que em apenas três meses de guerra tinham sido apanhados e assassinados cerca de cinquenta mil cidadãos polacos, sete mil dos quais judeus. Eram, na sua maioria, líderes da comunidade – advogados, professores e chefes religiosos, e quem quer que quebrasse regras ou se opusesse às forças ocupantes. Os nazis consideravam a igreja católica uma inimiga perigosa e havia uma longa lista de padres presos. Os cidadãos eram muitas vezes indevidamente acusados de crimes e enviados para fora ou executados em praças públicas, e o som dos tiros acordava-nos de noite.
Por isso, quando vi a Matka a sair do Deutsche Haus a segurar junto ao peito um embrulho castanho que não era maior do que uma pequena fatia de pão, tive desaber o que estava ela alia fazer. Era hora do almoço e as pessoas enchiam os passeios, de cabeças baixas para se protegerem do vento. Ela seguia para casa, na direção oposta à minha.
Furei por entre a multidão, para conseguir chegar junto dela.
– Matka! – chamei.
Virou-se e, ao ver-me, parecia que a mão gelada de um espírito lhe tinha tocado.
– Kasia. Não estás no cinema? Vou levar-te a tua sanduíche mais logo.
– Hoje fiquei com um turno mais tarde. – Eu trabalhava na bilheteira do cinema perto de nossa casa, desde que Zuzanna mo deixara como legado.
Passámos ao lado de uma fila de racionamento de água que dava a volta ao quarteirão.
– Foi ao Deutsche Haus? Os polacos não podem lá entrar.
– Eu sou considerada alemã.
Senti-me um bocado indisposta só de pensar nela naquele lugar. Aquilo dos cigarros era verdade! Sentia-lhes o cheiro nela.
– Como foi capaz?
– Não sejas histérica, Kasia. Só fui lá deixar...
Descemos ambas do passeio para deixar passar um casal alemão, conforme determinavam os regulamentos.
– Deixar o quê?
Apertou mais o saco de papel e pude sentir um aroma forte – escuro e exótico – de palmeiras e do calor do Brasil. Café.
– Pode contar-me, Matka. – Respirei com força para afugentar o pânico. – Isso é alguma nova eau de toilette?
– Não te metas, Kasia. – Ela voltou a subir para o passeio e retomou o passo.
Já vira as suas novas meias de seda na gaveta inferior, enfiadas por baixo de saias dobradas,moles como peles de cobra. Tudo à minha volta me fazia perceber o que se estava a passar.
– Não pode fingir que não tem importância. Tem de ir confessar-se.
Ela voltou a parar e puxou-me para si, falando em voz baixa.
– Perdoe-me, Pai, pois eu tomei café com um SS? O Lennart é...
– Lennart? – Ri-me. – Esse nome significa corajoso, Matka. Lennart, o Corajoso, matou a nossa Psina com uma pá.
O sol rompeu por entre as nuvens e reparei numa pequeníssima mancha preta na concavidade da sua face apanhada pela luz, iridescente. Carvão.
– Tens andado a desenhá-los. – Inspira...
– Cala-te, Kasia. – Puxou-me para ela. – Gostam do meu trabalho e isso permite-me aproximar-me...
– É perigoso.
– Achas que eu gosto disto? É tudo pelo Papa. Tê-lo-iam fuzilado, Kasia.
– Se eu tivesse um marido como o Papa, preferia morrer a ser-lhe infiel.
Ela continuou a andar, furando pelo meio da multidão, empurrada por pessoas que se apressavam em todas as direções.
– Como poderias compreender? – questionou.
Puxei-lhe a manga do casaco. Sacudiu-me a mão.
– Chamam-lhe conspurcação racial, Matka. Um polaco e um alemão. Juntos.
Voltou-se, para ficar de frente para mim.
– És capaz de te calar? O que se passa contigo? – O seu hálito cheirava a café e a chrusciki de pera.
Eu nem conseguia chorar. Como podia ela ser tão imprudente?
– Vão levar-nos a todos. Ao Papa também.
– Vai trabalhar – ordenou, com um ar zangado. Atravessou a rua a correr, quase sendo apanhada por um elegante carro descapotável ocupado por um casal, que lhe buzinou e gritou qualquer coisa em alemão. Quando subiu para o passeio, voltou-se. Teria remorsos por se ter zangado comigo? – Levo-te a sanduíche ao cinema – gritou-me, com a mão em concha junto à boca. – Vou deixá-la mais cedo!
Quando não respondi, apertou mais o saco de café de encontro ao peito e foi-se embora, engolida pela multidão.
Fiquei ali a tremer. A quem poderia contar? Ao Papa não. Ele mataria Lennart, o Corajoso, e seríamos todos fuzilados. Olhei novamente para o Deutsche Haus e vi Lennart a descer as escadas com outros três homens, enfiando um palito entre os dentes. Como podia a Matka encontrar-se com semelhante homem?
Levei os meus pensamentos de volta para a missão. Qual era o nosso lema de Escoteiras? «Estar atenta!» Era importante manter-me concentrada, para poder executar a missão para Pietrik sem qualquer percalço. Contaria a Zuzanna mais tarde. Ela ajudaria a Matka a recuperar o juízo.
Prossegui em direção ao gueto, passei pelo Portão Grodzka e continuei até à farmácia Zaufanym, em tempo recorde. Fora muito fácil. Já lá estivera milhões de vezes com Nadia mas, desta vez, enquanto descia pela calçada, não conseguia afastar a impressão de que descia ao Inferno de Dante.
Em tempos, a Cidade Antiga fora a zona comercial mais ativa de Lublin. Era sempre divertido ir com Nadia ver as lojas e no Hanukkah deleitarmo-nos com donuts quentes polvilhados com açúcar e vermos as ruas com carroças atulhadas de nabos e batatas. Grupos de crianças brincavam ali, enquanto os donos das lojas, de chapéus pretos e batas de mangas largas, ficavam a falar com os clientes à frente da porta bem aberta, de forma a mostrar os seus produtos: sapatos e chinelos. Vassouras e ancinhos. Gaiolas de galinhas barulhentas e de patos.
Nessa altura, homens com os seus xailes de oração pretos e brancos por cima dos ombros entravam e saíam da enorme sinagoga Chewra Nosim, na Rua Lubartowska. Viam-se muitos a abandonaremos balneários, enquanto o vapor enchia as ruas.
Contudo, desde que os alemães tinham chegado, uma pessoa ficava com uma disposição terrível e triste quando atravessava o gueto. Requisitado pelos nazis como principal prisão, o castelo de Lublin dominava toda aquela área e vigiava as sinuosas ruas empedradas, lá em baixo, que agora já não estavam cheias de comerciantes nem de crianças a brincar. Os nazis tinham igualmente requisitado os homens mais novos para um projeto de construção, tendo de limpar a terra para iniciar a obra do que diziam ser um novo campo de trabalho chamado Majdanek, nos limites de Lublin, a sul da cidade. Em consequência, muitas das lojas fecharam e os poucos vendedores que mantinham as portas abertas não tinham muito para oferecer. Os SS patrulhavam por todo o lado e os adolescentes com idade para trabalhar que não tinham ainda sido recrutados pelos nazis reuniam-se em grupos, com um ar preocupado. Vi mulheres apinhadas em volta de uma bandeja com restos de carne pousada no chão e um rapaz que vendia braçadeiras brancas, que tinha presas no braço, cada uma com a estrela de David estampada. A sinagoga estava fechada com tábuas, com avisos escritos em alemão pregados às portas e dos balneários não saía um som, nem se via vapor algum pelo ar.
Senti-me aliviada por conseguir chegar à farmácia. Era um dos poucos locais abertos e nessa tarde estava bastante concorrida. Constava que o Sr. Z subornava qualquer nazi para poder continuar com o negócio, já que era a única loja não judaica no gueto.
Através das vidraças da frente da loja, espreitei mesas com homens de chapéus pretos, ocupados com os seus jogos de xadrez. O Sr. Z estava ao balcão de madeira que ocupava todo o comprimento da farmácia, a atender um casal por causa de um remédio.
Girei a maçaneta de cristal polido. A porta rangeu ao abrir e alguns dos homens levantaram os olhos dos seus jogos. Enquanto avançava, seguiam-me comum olhar curioso. Apesar de eu conhecer o Sr. Zaufanym da igreja, ele não me reconheceu quando entrei. Ao contornar as mesas, fui apanhando bocados de conversas, a maior parte em iídiche, algumas em polaco. Quando cheguei à porta no fundo da sala, agarrei na maçaneta e girei-a, mas ela não se mexeu. Estaria trancada? Tentei de novo, com a mão a escorregar no metal. Continuei a não ter sorte. Deveria desistir da missão?
Virei-me para olhar para o Sr. Z. Ele desculpou-se junto dos clientes e caminhou na minha direção.
Precisamente nessa altura, um nazi de camisa castanha, um dos bandidos de Hitler, de arma presa ao peito, apoiou as duas mãos sobre as vidraças e espreitou lá para dentro. Estava a olhar para mim! Até alguns dos homens que estavam nas mesas repararam e endireitaram-se, observando com atenção. Repeti o juramento na minha cabeça: Servirei as Fileiras Cinzentas, salvaguardarei os segredos da organização, obedecerei a ordens e não hesitarei em sacrificar a minha vida.
A parte do «sacrificar a minha vida» estava a tornar-se demasiado real.
O Sr. Z chegou junto de mime acompanhou-me ao balcão. As minhas pernas tremiam de tal maneira, que estava a ver que não conseguia lá chegar.
– Precisa de aspirina? – perguntou-me.
– Sim. Tenho uma dor de cabeça horrível.
Assim que o camisa castanhas e afastou, o Sr.Z levou-me até à porta. Abanou a maçaneta e deixou-me passar, da maneira mais natural.
Consegui descer as escadas, bati com os nós dos dedos na porta de madeira e fiquei por baixo da lâmpada. O meu corpo foi percorrido por um arrepio. Talvez dissesse a Pietrik que esta iria ser a minha última missão.
– Quem é? – ouviu-se uma voz de mulher perguntar.
– Iwona – respondi.
A porta abriu-se.
– Enviaram-me uma criança? – admirou-se a mulher, falando do meio das sombras. Entrei e ela fechou a porta atrás de mim.
Uma criança? Tinha dezoito anos e diziam-me muitas vezes que parecia mais velha.
– Estou aqui por causa da aspirina. Só tenho cinco minutos.
A mulher observou-me durante um longo momento, como quem olha para o último bocado de peixe no mercado, e depois dirigiu-se a um quarto contíguo. Avancei mais, percorrendo a cave. Tinha o dobro do tamanho do nosso apartamento e era escura, com papel preto a tapar as janelas. Ali, o cheiro a mofo e a meias sujas era forte, mas estava bem apetrechada, comum sofá grande, uma mesa de cozinha e cadeiras, para além de um alegre candeeiro azul e vermelho pendurado no teto, e um lavatório, na parede mais distante. Da torneira caíam longas gotas prateadas. Vindos de cima, ouviam-se os sons de passos e de cadeiras a arrastar no chão. Onde se metera a mulher?
Ela apareceu logo a seguir com um pacote espesso. Enfiei-o na minha mochila e dei uma olhadela ao relógio. Tinha-me despachado em menos de um minuto, apesar de a Sra. Lesma ter demorado imenso tempo. Foi então que reparei na rapariga no sofá. Estava sentada na sombra, com a cabeça baixa.
– Quem é? – perguntei.
– Ninguém que te interesse. Tens de ir.
Aproximei-me mais.
– Magoou-a?
– Claro que não. A Anna vai viver com uma família católica. Os pais acham que estará mais segura lá.
– Assim vestida? – A rapariga vestia um casaco escuro sobre uma camisola tricotada à mão, botas pretas e meias e tinha o cabelo apanhado por baixo de um lenço aos quadrados preto e vermelho, apertado como um turbante. Evidentemente, eu sabia muito bem como se vestiam as raparigas católicas, já que eu própria o era e, graças à Matka, era também a primeira a chegar à missa todos os domingos. Com aquelas roupas, a rapariga não chegaria longe.
– Nenhuma rapariga católica se vestiria assim – disse eu, virando-me para me ir embora.
– Podes ficar um momento e dizer-lhe o que deve vestir? – perguntou a mulher.
– Não sei... – comecei. Agora, que precisava de alguma coisa, a mulher já era simpática para mim? Eu já tinha os meus próprios problemas: transportar embrulhos secretos pelas ruas.
– Seria muito importante para ela – reforçou a mulher. – Está completamente sozinha.
– Talvez – concordei.
Aproximei-me da rapariga e sentei-me ao seu lado, no sofá.
– Chamo-me Kasia. – Coloquei as mãos sobre as dela, que estavam ainda mais frias do que as minhas. – Anna, que nome tão bonito. Sabes que significa «preferida de Deus»?
– O meu verdadeiro nome é Hannah – respondeu, sem sequer olhar para mim.
– Antes de mais, se vais viver com uma família católica, tens de deixar esse lenço.
Hannah hesitou e olhou-me com uma expressão furiosa. A minha vontade foi pôr-me a andar e deixá-la ali. Lentamente, ela retirou o lenço e o cabelo negro caiu-lhe em volta dos ombros.
– Muito bem. Agora, também convém que não uses meias pretas nem botas. Olha, troca comigo. A rapariga não se mexeu.
– Não posso fazer isso – recusou.
– Hannah...
– Só mais três minutos – avisou a mulher, que esperava à porta.
– Tens de te despachar – insisti.
– Mudei de ideias – disse Hannah.
– Então está bem. Vou embora. – Levantei-me e sacudi a saia.
– O meu namorado disse-me que, se o fizer, estarei morta para ele.
Voltei a sentar-me. Os namorados podiam trazer muitos aborrecimentos!
– Não podes deixar tudo depender de um rapaz.
– De qualquer forma, agora ele já me odeia. Diz que estou a abandonar os meus pais.
– Os teus pais querem que o faças e o teu namorado acabará por perceber que é o melhor.
– Têm de acabar – avisou-nos a mulher, aproximando-se.
– Só estão a levar os homens – continuou Hannah. – Talvez seja melhor eu ficar em casa...
– É melhor viver com uma nova família do que ser enviada para trabalhar em qualquer outro sítio. Se prosseguires conforme planeado poderás arranjar comida para eles...
– Impossível.
– As pessoas estão sempre a fazer isso. Agora, tens de te animar. Nada de olhos tristes. Os SS reparam nisso.
Ela limpou o rosto e sentou-se mais direita. Um recomeço! Era uma rapariga bonita, com sardas espalhadas sobre o nariz.
– Fica com os meus sapatos. Depressa.
– Dois minutos – avisou a mulher, junto à porta.
– Oh, não posso – declarou Hannah.
– Tens de fazê-lo. As tuas botas são uma denúncia fatal. Troca comigo.
E se me mandassem parar? Eu tinha documentos autênticos e, de qualquer forma, o Papa ajudar-me-ia. Hannah despiu os collants pretos e trocou-os pelas minhas meias curtas brancas. Fiquei com as suas botas – que eram apenas um pouco mais pequenas do que os meus sapatos.
– Pronto. Ora vira-te. – O mais rapidamente que pude, fiz-lhe uma trança grossa com o cabelo negro, que lhe descia pelas costas. – As raparigas católicas que não são casadas usam uma trança. Sabes a oração do Senhor?
Acenou afirmativamente.
– Ótimo. É bom que aprendas também o hino nacional polaco. Agora costumam perguntar por ele. E lembra-te, se alguém te oferecer vodca, nada de beber golinhos. Bebe de uma só vez ou recusa-a, simplesmente.
– Está na hora – disse a mulher.
Admirei o meu trabalho. Sobre a mesa estava pousada uma pequena Bíblia branca.
– Ora aqui está uma bonita Bíblia. – Entreguei-lha. – Tens de forçar a lombada. Fazer com que pareça usada. E na igreja, ajoelhas-te assim, com o joelho direito no chão, e fazes o sinal da cruz assim – mostrei-lhe como fazê-lo. – Não, com a mão direita. Sim. Imita os outros. E não mastigues a hóstia. Deixa-a derreter na boca.
– Vou ter de comer porco? – inquiriu, agarrando-me o braço.
– Podes dizer que uma vez ficaste doente por causa disso e que desde então não aguentas nem vê-lo...
– Obrigada – agradeceu Hannah. – Eu não tenho nada para te dar.
– Iwona, por favor – insistiu a mulher.
– Não te preocupes com isso. E, acima de tudo, não te aflijas. O teu polaco é tão bom como o de qualquer outra pessoa. Só mais uma coisa... – Abri o fecho do meu colar com uma cruz de prata e pu-lo no pescoço dela. A rapariga olhou para o peito.
– Para ti, pode ser difícil usá-lo, mas todas as raparigas católicas têm um.
Pietrik iria compreender. Dirigi-me para a porta e parei, para olhá-la uma vez mais. Hannah levantou-se, de Bíblia na mão, semelhante a qualquer outra rapariga católica, a caminho da missa, ao domingo.
– Já passaram mais de cinco minutos – disse a mulher. – Não será melhor esperares até anoitecer?
– Não há problema – repliquei. Pietrik estaria à minha espera.
Subi as escadas, atravessei a farmácia e saí para a rua. Sabia bem apanhar ar fresco e deixar o trabalho bem feito. Vai ser a minha última missão durante uns tempos, pensei, enquanto me dirigia ao cinema. Dei uma olhadela ao relógio e vi que ainda era cedo para o meu turno. O meu patrão iria ficar contente. Só queria chegar em segurança. Pietrik estaria lá, se eu precisasse de ajuda.
Avancei a bom ritmo mas, ainda antes de sair da Cidade Antiga, senti que alguém me seguia. Dobrei-me para apertar a bota da Hannah, com o embrulho de papel a farfalhar no meu saco, e olhei para trás. Ali estava o camisa castanha que me vira na Z, ocupado a dispersar um grupo de jovens. Ter-me-ia visto descer para a cave? Afastei os maus pensamentos e corri.
Cheguei cinco minutos antes do meu turno. O cartaz anunciava O ETERNO JUDEU. Como o cinema fora requisitado pelos nazis, todos os filmes eram enviados para o seu quartel-general, «Por Baixo do Relógio», e não era permitida a entrada a polacos. Só pelo nome, percebia-se que era um filme de propaganda nazi. À frente da bilheteira começava já a formar-se uma fila e os clientes alemães tinham a expressão expectante dos apreciadores da sétima arte. Uma das coisas que agora vigorava era a música patriótica, difundida através de altifalantes no exterior do cinema. Durante toda a noite – e mesmo enquanto o filme era exibido! – a canção de Horst Wessel*, o hino do partido nazi, uma marcha de estilo fúnebre, completada com trompetes, ressoava na praça empedrada.
«A bandeira erguida!», cantava o coro alemão. «As fileiras cerradas! As SA marcham com passos firmes e calmos.»
Esgueirei-me através da porta da bilheteira e tentei recuperar o fôlego. Era uma divisão minúscula, que não tinha sequer o tamanho de uma pequena casa de banho, com uma bilheteira com um estore de papel e um banco alto. Ter-me-ia alguém seguido? Liguei as luzes e toquei na caixa do dinheiro, fria e polida, para me acalmar. Precisava de manter a cabeça fria, organizar o dinheiro e, durante mais uns momentos, manter o estore corrido.
Onde estava a Matka? Já devia ter chegado com a sanduíche de queijo que me prometera. Como antiga enfermeira, fora pressionada a voltar ao serviço, no Hospital da Cidade Antiga. Porque estaria atrasada, precisamente quando eu estava mais esfomeada? O cheiro dos doces dos alemães deixava-me louca de fome.
Afastei o estore para o lado e espreitei pela janela da bilheteira. Senti uma descarga elétrica percorrer-me. Seria possível? O camisa castanha que me vira na farmácia Z estava na fila, a falar com duas Hausfrauen mais velhas.
Fiquei felicíssima quando vi Pietrik entrar na bilheteira e ocupar o seu habitual lugar no chão, aos meus pés, por baixo da janela e de costas contra a parede. As suas faces coradas faziam sobressair o azul dos olhos. Luiza, a sua irmãzinha, estava mesmo atrás dele. Encostou-se à parede e sentou-se junto dele. Era quase o completo oposto de Pietrik. Ele tinha olhos claros, os dela eram escuros. Ele era sério. Ela ria muito. Com quinze anos, ela tinha metade do seu tamanho.
– Como correu a tua visita à Z? – perguntou-me.
Sentei-me no banco e compus a saia, para permitir a melhor apresentação possível das minhas pernas.
– Relativamente bem, com uma pequena ponta solta...
Deitou-me uma olhadela rápida, um aviso para não falar em frente a Luiza.
– Estou à procura do meu maior talento – disse a rapariga. – Qual achas que é, Kasia?
Porque tinha Luiza de vir com os assuntos mais tolos numa altura como aquela? Afastei novamente o estore e olhei para a fila. O camisa castanha ainda ali estava, agora em conversa animada com dois homens. Falaria sobre mim?
– Não sei, Luiza – respondi. – És boa padeira...
– Isso é uma coisa que qualquer pessoa pode fazer. Quero algo único.
Olhei novamente para fora. Alguma coisa estava errada. Não sejas paranoica, pensei, enquanto separava o dinheiro e percorria mentalmente a minha lista:
Cartões com os preços dos doces? Feito.
Dinheiro da caixa separado? Feito.
Agora que a audiência do cinema era, na sua maioria, alemã, precisava de ser extremamente organizada, pois o meu patrão levaria uma tremenda reprimenda no caso de haver queixas pelo meu mais pequeno deslize.
– Kasia, porque estás tão branca? – inquiriu Zuzanna, que chegara à bilheteira, fechando a porta atrás de si.
– Não viste um camisa castanha lá fora?
– Que belo cumprimento – comentou, atirando a mala para um canto. – Estive no campo a tratar de doentes, em troca de ovos para o teu pequeno-almoço, minha querida irmã.
Voltei a afastar o estore e lá estava ele. Mudara de sítio, agora para falar com uma mulher jovem que também estava na fila.
– Acho que ele me seguiu. Desde a Z. Vai embora. Já. – Virei-me para Pietrik. – Tu e Luiza também. Se vos encontrarem aqui comigo, levam-nos a todos.
– Pelo menos até há pouco, não tinha saído nenhuma lei que dissesse que a Z estava interditada... – riu-se Zuzanna. – Apesar de todos os dias surgirem leis sobre outras coisas...
Voltei a verificar a fila. A mulher acenava e apontava um dedo na direção da porta da bilheteira. O meu corpo ficou gelado.
– Está a fazer perguntas sobre mim – disse, sentindo-me como se estivesse a ser sugada para um ralo gigantesco. – Estão a dizer-lhe que estou aqui.
O meu coração apertou-se com o que vi a seguir: a Matka, no final da fila, a abrir caminho na nossa direção, com um cesto no braço.
– Continua com esse ar culpado e vais mesmo ficar em sarilhos – aconselhou-me Zuzanna, tirando-me o estore da mão.
Mal conseguia respirar.
Não venha, Matka. Vá embora, antes que seja demasiado tarde.
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* Durante o Terceiro Reich, a Horst Wessel Lied tornou-se um dos hinos oficiais da Alemanha. Após a queda do regime nazi, em 1945, a canção foi proibida no país. (N. da T.)