Capítulo 12

CAROLINE

1941

À medida que a primavera se aproximava, a situação em França ia ficando cada vez mais grave. Todas as manhãs, às dez horas, a receção do Consulado já estava cheia e a minha agenda totalmente preenchida. A entrada dos nazis em Paris deixara os cidadãos franceses retidos em Nova Iorque profundamente desesperados e, muitas vezes, em terríveis situações financeiras, algo que éramos impotentes para resolver. Roger dera-me ordens rigorosas para não oferecer sequer do meu próprio dinheiro e por isso apenas podia facultar umas barras de chocolate e um ombro para chorar, mas pouco mais.

Certa manhã, pousei uma das caixas de sapatos de Betty em cima da minha secretária e comecei a preparar o embrulho para um órfão. Nunca mais tivera notícias de Paul. Tentava manter-me ocupada para afastar os pensamentos negros, qualquer coisa que pudesse aplacar a dor no meu peito.

– Tem uma agenda completa – disse Pia, enquanto deixava cair uma pilha de processos sobre a minha secretária. – Antes de mais, estão aqui umas suas amigas da alta sociedade que não aceitam um não como resposta.

– Isso não me ajuda em nada, Pia.

– Pois, não sei. É uma Pris-qualquer-coisa e a mãe.

Era Priscilla Huff, uma loura de pernas altas, que andara um ano atrás de mim em Chapin. Impecável, num fato azul Mainbocher, estava estranhamente amigável. Electra Huff, uma versão apenas ligeiramente menos elegante do que a filha, seguiu-a, fechando a porta atrás de si.

– Que escritoriozinho tão chique tem aqui, minha querida Caroline – comentou a Sra. Huff.

– Eu quero adotar uma criança francesa, Caroline – informou Priscilla, como se estivesse a pedir um châteaubriand no Clube Stork. – Podem até ser gémeos.

– Há uma lista de espera para as poucas crianças que aguardam adoção, Priscilla, mas Pia pode ajudar-te com a papelada. Precisas apenas da assinatura do teu marido.

– Como está Roger Fortier? – perguntou a Sra. Huff. – Uma pessoa encantadora, o seu patrão.

– Bem, é essa a questão, Caroline – continuou Priscilla. – Não sou casada.

– Ainda – atalhou a Sra. Huff, deitando uma olhadela às molduras prateadas na estante. – Há duas ofertas pendentes.

Coloquei um par de meias cor de aveia novas na caixa de sapatos. Duas ofertas pendentes? O que era ela, algum terreno privado de um hectare em Palm Beach?

– Para adotar são precisos os dois pais, Priscilla.

– O francês da Mãe é excelente. E eu também sou plus que fluente.

Priscilla cumpria o requisito de conhecer a língua francesa. Todos os anos me vencia no concurso de ensaios em francês. O facto de o seu cozinheiro preparar um elaborado bûche de Noël para a turma todos os natais era capaz de ter dado uma ajuda, uma vez que a nossa professora de francês, a Menina Bengoyan, única jurada, tinha uma conhecida paixão por doces. Porque me apetecia tanto um cigarro?

– Compreendo, Priscilla, mas não sou eu que faço as regras. Estas crianças chegam em circunstâncias trágicas, como deves calcular. Mesmo para dois pais pode ser difícil.

– Então envias presentes a crianças órfãs, mas declinas a possibilidade de terem uma excelente casa? Posso oferecer-lhe tudo o que há de melhor.

Talvez. Pelo menos até aparecer um novo entretenimento.

– Lamento, Priscilla, mas esta manhã tenho várias reuniões. – Dirigi-me ao armário arquivador.

– Diz-se por aí que tu vais adotar – prosseguiu Priscilla.

– Dizem-se muitas coisas – repliquei.

– Parece que há quem possa contornar os regulamentos – disse a Sra. Huff, ajustando uma luva.

– Perdi o meu pai quando tinha onze anos, Sra. Huff. Crescer assim é uma coisa terrível. Não faria isso a uma criança.

– Mais terrível do que não ter pais sequer? – insistiu Priscilla.

Fechei a gaveta do arquivador.

– Essa é realmente uma questão discutível. E não há assim tantas crianças francesas para adoção.

Priscilla fez beicinho e eu reprimi a vontade de a estrangular.

– Pensei que todos os dias chegavam navios com órfãos – observou.

– Não, na verdade são muito poucos. Depois do City of Benares...

– City of quê? – perguntou Priscilla.

– Bem, se é de dinheiro que precisa... – A Sra. Huff pegou na mala. – Ouvi dizer que a Caroline e a sua mãe tiveram de deixar o Club Meadow...

– Vendemos a casa de Southampton, Sra. Huff. – Voltei a sentar-me na cadeira. – Agora passamos o verão em Connecticut, portanto não precisamos do clube e não, não se pode comprar uma criança, Priscilla. Se lesses um jornal de vez em quando, saberias que o City of Benares era um navio de passageiros britânico que transportava cem crianças inglesas enviadas para o Canadá pelos pais, para escaparem aos bombardeamentos em Londres. De passagem de Liverpool para Halifax, Nova Escócia...

A Sra. Huff colocou as duas mãos sobre a minha secretária e inclinou-se.

– Estamos interessadas numa criança francesa, Caroline.

– Com quatro dias de viagem, as crianças, com idades entre os quatro e os quinze anos, já de pijamas vestidos e preparadas para irem para a cama... – senti as lágrimas a assomar.

– O que tem isso a ver com a adoção de um francês... – Priscilla cruzou os braços à frente do peito.

– Um submarino alemão afundou o navio, Priscilla. Afogaram-se setenta e sete das cem crianças a bordo. Em consequência, e por agora, todos os programas de evacuação de crianças foram abruptamente interrompidos. Assim sendo, lamento imenso que hoje as senhoras não possam comprar nenhuma criança. E agora tenho de lhes pedir que saiam imediatamente. De momento estou muito ocupada, caso não tenham reparado como a zona da receção está atulhada.

– Não precisas de ser rude, Caroline. Só queremos ajudar. – Priscilla verificou as costuras das meias.

Pia bateu à porta, entrou por uma fração de segundo e indicou-lhes a saída. Desencontraram-se com Roger, que veio colocar-se à minha porta.

– Vai ficar contente por saber que passará a ter o mais alto nível de acesso de segurança, Caroline.

– Para quê? – Abri uma gaveta e organizei uma fila de novas barras de chocolate Hershey, esperando que Roger não reparasse como as minhas mãos tremiam.

– Já sabíamos há algum tempo que há campos de trânsito por toda a zona livre. Têm reunido os estrangeiros. Especialmente judeus, mas não em exclusivo. Agora há notícia de transportes para fora, para campos na Polónia e em outras zonas. Estava a questionar-me se a Caroline poderia tratar disso.

Voltei-me para olhar para ele.

– Tratar do quê, ao certo?

– Precisamos de saber para onde estão a levá-los. Quem e quantos são. Por que razão foram presos. Estou cansado de dizer às pessoas que não sei o que aconteceu às suas famílias.

– Claro. Eu trato disso, Roger.

Teria acesso a informação confidencial, um lugar na primeira fila para o que estava a acontecer na Europa. Não teria de esperar mais pelo New York Times para saber as novidades. Talvez surgisse alguma nova informação sobre Paul.

– É difícil pedir-lhe uma coisa destas sem uma remuneração em contrapartida.

– Não se preocupe com isso, Roger. A Mãe e eu estamos bem. – Na verdade, o Pai deixara-nos uma situação confortável, mas mesmo assim tínhamos de controlar os nossos gastos. Dispúnhamos de alguns pequenos rendimentos e bens que poderíamos vender. E havia sempre as pratas.

Assim que fechámos para almoço, corri escadas abaixo para a Librairie de France, junto aos Channel Gardens, pedi emprestados todos os atlas que tinha, regressei ao escritório e mergulhei num novo mundo de informação confidencial. Fotografias de reconhecimento britânicas. Documentos secretos. Pia despejou ficheiros sobre a minha secretária e eu perdi-me em pesquisas sobre os campos de trânsito existentes na zona livre. Gurs. Le Vernet. Argelès-sur-Mer. Des Milles. As fotografias de vigilância eram perturbadoras, pormenorizadas e voyeuristas, como alguém a espreitar o quintal de outra pessoa.

Organizei os campos por pastas e, pouco depois, descobri uma nova classificação para acrescentar à dos campos de trânsito. Campos de concentração. Colei um mapa na parede do meu gabinete e crivei-o de pioneses, à medida que íamos tomando conhecimento de novos campos. Roger fornecia-me as listas e eu ia atualizando a informação. Em breve a Áustria, a Polónia e a França tinham pioneses vermelhos a assinalar vários pontos, como se estivessem doentes com escarlatina.

Os meses foram passando, sem qualquer outra carta de Paul. Com os nazis a avançarem brutalmente sobre França era difícil não imaginar o pior. Roger ia-nos passando notícias vindas do estrangeiro. A princípio, os franceses tinham adotado uma atitude de «esperar-para-ver» em relação aos alemães. Quando os oficiais nazis requisitava mas mesas dos melhores restaurantes, os parisienses faziam os possíveis por ignorá-los. Afinal de contas, Paris já fora ocupada anteriormente. Pareciam estar à espera que tudo acabasse depressa.

Nunca tendo sido particularmente bons a compreender uma indireta, os nazis começaram a requisitar para si próprios a melhor charcutaria e vinho e anunciaram o seu plano de transferir toda a indústria da moda parisiense para Hamburgo. Depois de tudo isto, e uma vez que começaram também a prender cidadãos franceses sem culpa formada, recebemos informação de que, aqui e ali, em Paris, começavam a tomar forma pequenos grupos de resistência, distribuindo panfletos antialemães e criando as bases para uma rede de informações eficaz. Menos de uma semana após recebermos estas primeiras notícias, verificou-se um drástico aumento da atividade clandestina por toda a França.

Tinha o meu trabalho com os órfãos para me manter ocupada e a Mãe era uma parceira incansável para a causa. Uma noite, tirei tudo dos armários do quarto de hóspedes em busca de roupas que pudéssemos cortar e transformar em vestuário para crianças, enquanto a Mãe cosia as poucas peças decentes de material que tínhamos.

O quarto de hóspedes era uma curiosa combinação dos meus pais, porque em tempos fora o escritório dele e conservava um certo ar masculino, com o papel de parede às riscas e uma escrivaninha em ébano, mas posteriormente tornara-se o quarto de costura da Mãe e tinha ainda restos dos seus projetos: pedaços de tecido âmbar com padrões espalhados; manequins acolchoados de diversos tamanhos, infelizmente com menos cintura de vespa com o passar dos anos.

Vasculhei por entre os sacos das vendas de beneficência da Mãe e as nossas lãs de inverno, em busca de materiais macios. Eu nunca mostrara aptidão para a costura, atividade ainda por cima péssima para uma boa postura, mas a Mãe era uma excelente costureira. Sentava-se à máquina de costura, com a cabeça inclinada sobre a velha Singer preta, o cabelo branco sob a luz do candeeiro. Quando o Pai morreu, o seu cabelo acastanhado tornou-se da cor dos sais Epsom quase da noite para o dia. Cortara-o bem curto, começara a usar quase sempre roupas de equitação e pusera de lado o rouge. Sempre adorara os seus animais e sentia-se mais confortável com uma escova para cavalos na mão do que com a sua escova de prata, mas era triste ver uma mulher tão bonita desistir assim de si mesma.

Enquanto trabalhávamos, ouvíamos as notícias da guerra.

19 de abril, 1941. Enquanto Belfast, na Irlanda do Norte, varre os destroços após um forte ataque da Luftwaffe, Londres sofreu um dos mais pesados raides aéreos da guerra, até à data. Com o avanço das tropas alemãs para a Grécia, o Primeiro-Ministro grego, Alexandros Koryzis suicida-se e os britânicos deixam o país.

– Oh, desliga isso, Caroline. Há tão poucas notícias positivas.

– Pelo menos, já metemos um pezinho na guerra.

Ainda que, oficialmente, os Estados Unidos se mantivessem neutros, começaram, por fim, a patrulhar o Atlântico norte.

– Só de pensar em Hitler a circular pelo meio do que restou do Partenon – disse a Mãe. – Onde é que isto vai parar?

Coloquei o abridor de casas no balde creme de lata que a Mãe usava para guardar carrinhos de linhas e tesouras e senti metal a arranhar. Ainda tinha areia no fundo, da praia junto à casa de Gin Lane, em Southampton. Uma praia encantadora. Lembrava-me dos meus pais lá – ela, de fato de banho preto, ele, de fato e gravata, a lutar com o jornal contra o vento, e eu com o ar salgado a picar-me os pulmões. À noite, na semiobscuridade da ampla sala de estar, com a cara encostada ao fresco sofá de linho, via-os jogar gin rummy, a rirem e a beberem um com o outro.

– Vamos para Southampton, Mãe. Uma mudança far-nos-ia bem. – Já tínhamos vendido o chalé de Gin Lane, mas Betty ainda aí conservava a sua casa.

– Oh, não, agora está cheia de gente de Nova Iorque.

– A Mãe também é de Nova Iorque.

– Não vamos discutir, querida. – Ela evitava a praia. Também lhe trazia memórias do Pai.

– Acho que, de qualquer forma, agora não poderíamos ir. Os orfanatos vão precisar desesperadamente de roupas quentes, assim que o tempo arrefecer.

– Ainda consegues enviar as tuas caixas de presentes por correio?

– Os alemães encorajam as pessoas a enviar ajuda para os órfãos e até para aqueles que se encontram em campos de trânsito. Reduz as suas despesas.

– Que amáveis, estes boches. – A Mãe usava a expressão francesa boche, que significava «cabeça quadrada», para se referir aos alemães, o seu pequeno gesto de desafio.

Voltei-me para a cama e reuni uma série de casacos de lã do Pai.

– Podemos cortar estes... – disse, puxando a manga de um deles.

– Não vamos cortar as coisas do Pai. Além disso, precisamos é de tecidos que as crianças possam vestir por cima da pele. – Afastei os casacos do seu alcance.

– Ele já morreu há mais de vinte anos, Caroline. O pelo de camelo é um doce para as traças.

– Na verdade, estava a pensar aproveitar os casacos do pai para mim.

Após algumas alterações, os casacos ficar-me-iam bem. Tinham sido feitos com uma dupla camada da melhor caxemira, vicunha ou espinhados, cada botão de pele uma obra de arte. Os bolsos eram forrados com cetim tão espesso, que colocar uma mão dentro de um era como mergulhá-la em água. Além disso, usar um casaco do meu pai era como manter um pouco dele junto de mim. Por vezes, quando estava numa esquina a aguardar que a luz do semáforo mudasse, encontrava restos de tabaco para cigarros em alguma prega mais funda ou um rebuçado velho de mentol embrulhado em papel celofane descorado, num bolso escondido.

– Não podes conservar todas as suas coisas antigas, Caroline.

– Poupamos dinheiro, Mãe.

– Ainda não estamos falidas. Da forma como falas, parece que vamos ficar pobrezinhas, a cantar «Nearer My God to Thee». Sempre nos desenvencilhámos.

– Talvez devamos cortar no pessoal.

Depois de o Pai ter falecido, a Mãe colecionava bocas para alimentar, da mesma forma que algumas pessoas colecionam colheres ou porcelana chinesa de exportação. Não era raro descobrir alguma pobre alma sem-abrigo a viver no quarto de hóspedes, envolvida num edredão de penas de ganso, a ler As Vinhas da Ira, com um copo de xerez na mão.

– Não temos criados de libré, querida. Se estás a falar de Serge, ele é como se fosse da família. Mais, é o melhor Chef francês nesta cidade e não bebe, como a maioria.

– E o Sr. Gardener? – perguntei.

Aquela pergunta nem sequer precisava de resposta. O nosso jardineiro, curiosamente chamado Gardener, também era quase da família. De olhos bondosos e pele castanha e suave, estava connosco desde que fizéramos o jardim em Bethlehem, na Pensilvânia, antes de o Pai falecer. Dizia-se que o seu povo viera da Carolina do Norte para o Connecticut, viajando clandestinamente pelo caminho-de-ferro até a uma paragem outrora localizada na antiga Bird Tavern, do outro lado da rua da The Hay. Para além de um enorme talento para cultivar rosas, o Sr. Gardener era capaz de dar a vida pela Mãe e ela por ele. Ficaria connosco para sempre.

– E umas empregadas a dias não nos levam à bancarrota – prosseguiu a Mãe. – Se queres poupar dinheiro, faz com que o Consulado te pague o envio das caixas para os órfãos.

– O Roger divide os custos comigo, mas desta vez não vou ter muitas para enviar. Já nem sequer há restos de tecidos para comprar.

– Porque não promover um espetáculo de beneficência? Certamente irias gostar de estar outra vez em palco, querida, e ainda tens os fatos.

Os fatos. Metros de material a desfazer-se num velho baú, sem utilidade para ninguém, mas perfeito para todo o tipo de roupas para criança.

– Mãe, é um génio.

Corri para o meu quarto e tirei o baú do armário. Ainda tinha postos os autocolantes de recordação de todas as cidades onde atuara. Boston. Chicago. Detroit. Pittsburgh. Reboquei-o até ao quarto de hóspedes, ofegante. Tinha de deixar de roubar cigarros a Pia.

Quando entrei, a Mãe endireitou-se na sua cadeira de coser.

– Oh, não, não. Não faças isso, Caroline.

Abri a tampa do baú, de onde se libertou um maravilhoso aroma a cedro, seda envelhecida e maquilhagem de palco.

– Que ideia fantástica, Mãe.

– Como é que podes fazer isso, querida?

Colecionáramos adereços e fatos de todo o género. Um corpete de seda do século XIX aqui, um leque Tiffany de seda e osso ali, mas a Mãe fizera a maior parte dos fatos que eu usara no palco, desde a peça Noite de Reis, na Chapin, até à Victoria Regina, na Broadway. Não me foi permitido manter os conjuntos completos, mas ainda tinha os trajes do liceu e, muitas vezes, a Mãe fazia uns sobressalentes dos conjuntos da Broadway. Ela usava os veludos melhores e mais ricos, as sedas mais brilhantes e os algodões mais macios. Acabava cada um com botões em madrepérola, que fazia com as conchas de mexilhões que encontrava na praia, em Southampton. Um botão cosido uma vez pela Mãe ficava cosido para sempre.

O Mercador de Veneza – disse eu, puxando para fora um casaco e umas calças de veludo azul para o disfarce de caramujo, forrados com seda cor de mostarda. – Duas camisas de criança ali. O que podemos fazer com o forro?

– Cuecas? – sugeriu a mãe, desiludida.

– Excelente, querida – aquiesci, segurando um vestido de cetim rosa coral, com o corpete bordado com pequenas pérolas. Noite de Reis.

Não estás, sequer, um bocadinho nostálgica?

– De maneira alguma, Mãe, e se resistir corto-as eu mesma.

– Nem penses nisso, Caroline. – Tirou-me o vestido das mãos. Tirei outro vestido de veludo, cor de xerez, uma capa de falso arminho branco e um vestido de seda escarlate.

All’s Well That Ends Well– recordei, segurando o vestido. – Alguma vez a minha cintura foi assim tão estreita? – Com a capa, conseguimos fazer seis camisas de noite e com o vestido, dois casacos. A pele dará para fazer uma data de luvas.

Trabalhámos pela noite fora. Abri costuras e cortei, as lâminas da minha tesoura a abrirem caminho por entre veludos e cetins.

– Alguma notícia sobre o teu amigo Paul? – perguntou a Mãe.

– Nem uma palavra. Já nem sequer recebemos jornais franceses no escritório.

Muito embora em relação a Paul a Mãe só soubesse o estritamente necessário, de alguma forma ela compreendera como ele se tornara importante para mim. Com os mais recentes desenvolvimentos em França, parecia quase tão preocupada com ele como eu.

– A mulher dele tem uma loja de roupa?

– Na verdade, é uma loja de lingerie. Chama-se Les Jolies Choses.

Lingerie? – surpreendeu-se, como se lhe tivesse contado que Rena fazia malabarismos com machados em chamas.

– Sim, Mãe. Sutiãs e...

– Eu sei o que é lingerie, Caroline.

– Não faça julgamentos, Mãe, por favor.

– Bem, mesmo que Paul saia inteiro desta guerra, sabes que não se pode confiar nos homens.

– Eu só quero ter notícias dele, Mãe.

– E sabes como são os franceses. – Rasgou a costura de um forro de cetim lilás.

– Lá, as amizades com homens casados são bastante comuns, mas...

– Só quero receber outra carta, Mãe.

– Esta guerra há de acabar e ele virá bater-te à porta, vais ver. Os alemães devem ter-lhe arranjado um lugar especial. Afinal de contas, ele é famoso.

Não tinha pensado nessa hipótese. Os nazis tratá-lo-iam de maneira diferente, dada a sua celebridade?

De manhã, tínhamos deixado a cama de hóspedes repleta de uma requintada variedade de roupa para criança. Casacos macios e calças. Camisolas e chapéus. Levei tudo aquilo para o trabalho e deixei-o sobre a secretária de Pia, embora não a tivesse visto em lado nenhum.

* * *

Semanas mais tarde, tinha três gerações da família LeBlanc acampadas à porta do meu gabinete, revezando-se para se ir em lavar no lavatório da casa de banho do Consulado quando, subitamente, Roger apareceu e entrou, com uma mão na ombreira da porta do meu gabinete e o rosto da mesma cor cinzenta da camisa. Senti um aperto no estômago. Estava com a sua cara de más notícias, o sobrolho franzido e a boca apertada numa linha estreita. Desde que ele não fechasse a porta, estava tudo bem. Passou os dedos pelo cabelo.

– Caroline...

– Diga-me, Roger.

– Tenho novidades.

– Diga... – Segurei-me ao arquivo de madeira.

– São más. Lamento, C.

– Devo sentar-me? – perguntei.

– Devia ter calculado – disse Roger, fechando a porta.