Capítulo 18

CAROLINE

1942

– Até ao fundo, sempre em frente – avisou a nossa nova operadora de elevador, Estella.

De sapatos ortopédicos e meias de nylon pelo joelho, Estella estava muito longe do empregado de elevador ideal de Rockfeller Junior. Desde o ataque dos japoneses a Pearl Harbour no ano anterior, os Estados Unidos tinham, finalmente, entrado na guerra, levando os jovens de todos os quadrantes da vida a alistarem-se, incluindo o nosso rapaz do elevador.

– Alguma notícia do Cuddy, Estella?

– O Exército dos Estados Unidos não me dá informações, Menina Ferriday. Agora França é que está com grandes problemas. Foi o que a Pia disse.

Estella tinha razão. Quando a Alemanha invadiu a chamada zona livre francesa, em novembro de 1942, a França de Vichy tornou-se um estado fantoche. Os campos de trânsito franceses começaram a fazer transportes para uma rede complexa de campos de concentração, na Polónia e na Alemanha. Eu ia na terceira caixa de pioneses vermelhos.

– É o que a Pia diz?

Para alguém que lidava com informação confidencial, Pia estava a agir muito levianamente.

Quando cheguei à zona da receção, segui pelo caminho mais longo para o meu gabinete, para evitar passar pela sua secretária, mas ela sentiu movimento, como uma mamba-negra.

– Roger quer falar consigo, Caroline.

– Está bem – respondi, voltando para trás. – Já agora, Pia... Tem de partilhar os nossos assuntos com Estella? É suposto ser informação confidencial...

– Quando quiser a sua opinião, peço-lha – disse Pia, fazendo-me recordar um aviso na jaula dos babuínos, no zoológico de Paris: CET ANIMAL EN CAS D' ATTAQUE VASE DEFENDRE. Em caso de ser atacado, este animal defender-se-á.

Apressei-me, a caminho do gabinete de Roger, e parei de repente, ao ver que parecia ter por ali passado um temporal, revirando todos os livros e papéis. Por baixo da janela, no rinque de patinagem do centro Rockfeller, uma fila de patinadores seguia um Pai Natal magricela, igualmente de patins. Quando ele parou de repente, todos caíram, como peças de dominó.

– Temos de duplicar as caixas de presentes para os órfãos, Roger. Tenho os novos números. Duzentas mil crianças francesas sem pais.

Centenas delas com os progenitores na clandestinidade.

– Precisamos de muitas coisas, Caroline, mas Pearl Harbor mudou tudo.

– Posso usar alguns fundos próprios...

– Conhece as regras. Importa-se de fechar a porta? – pediu, numa voz que só podia ser descrita como trémula.

– O que se passa? – abracei-me, encostada à lareira de mármore frio. Por favor, o Paul não.

– Algumas coisas. Tem muitas informações sobre Drancy?

– Seis ficheiros completos.

Drancy, um antigo complexo residencial nos arredores de Paris, tornara-se um centro coordenador dos prisioneiros dos cinco subcampos franceses, antes de saírem do país. Pelos poucos relatórios que lera, tinha percebido que era um sítio infernal, um local onde os detidos aguardavam a deportação. Estava sob o controlo da polícia francesa, mas era supervisionado pelo Gabinete da Gestapo para os Assuntos Judaicos.

– Porquê, Roger? O que descobriu?

Poderia Paul estar num sítio daqueles? Era verdade que Rena era judia, mas isso colocava-o em risco? Afinal de contas, ela era cidadã francesa, mas mesmo na supostamente livre zona de Vichy, o antissemitismo tornara-se a lei do novo estado e os judeus estrangeiros eram detidos. O espírito de uma França que defendia a liberdade de pensamento parecia ter desaparecido da noite para o dia.

– Roger, diga-me, por favor. Encontraram-no?

– Saíram vários transportes com prisioneiros franceses em direção a campos espalhados pelos vários territórios de Hitler.

– Paul?

Roger acenou com a cabeça.

– Oh, não, Roger.

– Um grupo de homens franceses foi levado para Natzweiler-Struthof, Caroline. Há fortes probabilidades de que Paul esteja entre eles.

Puxei uma cadeira da mesa de reuniões e sentei-me. A humidade das palmas das minhas mãos deixou duas marcas prateadas sobre a madeira polida, que desapareceram de imediato. Natzweiler. Eram notícias terríveis, mas apesar de tudo davam-me esperança, porque, pelo menos, estava vivo.

– Como podem ter certeza?

– Havia poucos homens nesse transporte processado em Drancy, e todos foram para Natzweiler.

– Nas montanhas Vosges?

Natzweiler-Struthof era o único campo de concentração permanente em França e ficava situado a cinquenta quilómetros a sudoeste de Estrasburgo. A minha mente antecipou de imediato os trabalhos forçados e os castigos corporais.

– Perto de uma pequena vila que os meus avós costumavam visitar. – Roger acenou afirmativamente. Pitoresca, mas isolada. – Atirou um envelope pardo para cima da mesa. Procurei por entre os documentos, em busca de alguma coisa sobre os captores de Paul.

Pela fotografia de reconhecimento da Força Aérea Britânica parecia ser um campo pequeno, apenas com vinte filas de casernas e quatro outros edifícios, implantados numa zona murada rodeada por uma floresta densa e coberta de neve. Tanta neve. Iria Paul gelar até morrer, enquanto eu estava sentada num gabinete quente? Observei atentamente a fotografia, forçando a vista para tentar descobri-lo no meio dos grupos de prisioneiros reunidos no exterior.

– Obrigada, Roger. Vou pedir a Pia que faça uma pesquisa sobre isto.

– Não há mais pesquisas, Caroline. Washington cortou oficialmente relações diplomáticas com França. – Roger pousou uma mão sobre a confusão de papéis em cima da sua secretária.

– Como é isso possível? Tem de telefonar...

– Telefonar a quem, Caroline? A embaixada em Paris já não existe. E este escritório está oficialmente encerrado. Preste atenção. Ordenaram-me que destruísse tudo o que pudesse ser comprometedor.

– O que vamos fazer? – perguntei.

Levantou-se e olhou para os patinadores pela janela.

– Disseram-me para contornar a situação através do Consulado Suíço.

– Por favor. Eles estão nas mãos dos alemães.

– Temos de tirar a bandeira. Vou deixar as luzes acesas enquanto for possível, mas não vai ser fácil. Até novas notícias, não serão transferidos mais fundos para aqui.

– Pelo menos conseguimos contactar com França?

– Espera-se que consigamos receber encomendas da França Livre em Londres, mas vai ser muito complicado encontrar barcos dispostos a trazê-las. Os suíços devem conseguir passar e os britânicos são de confiança.

– Gostava muito que ajudasse a localizar Paul, Roger.

– Bom, há mais uma coisa, Caroline. Sobre Paul.

Abracei-me. Que más notícias poderia ainda haver?

– Encontrei o nome da sua mulher na lista dos falecidos. Auschwitz-Birkenau. Rena Rodierre.

– Rena? Oh, não, Roger. Não pode ser.

– De tifo. Pelo menos, é o que diz. Lamento, Caroline.

Fiquei atordoada. Como era possível? Pobre Rena. Certamente Paul não sabia. Paul. Como reagiria à morte de Rena? Era tudo demasiado horrível.

Peguei numa lupa e observei a fotografia. Se estivesse vivo, haveria de encontrá-lo. Nem que tivesse de atravessar o Atlântico a nado.

Fiz mais viagens à Snyder and Goodrich nos dias que se seguiram. O pouco dinheiro que o Sr. Snyder me pagara ajudava-me a manter ativo o meu Fundo para as Famílias Francesas e Roger parecia nem reparar. Porém, o espectro de fechar o Consulado por falta de fundos era bem real. Sem contacto oficial em Paris e com o resto da França num caos, o encerramento fazia sentido. Mas fechar, precisamente na altura em que as pessoas mais precisavam de nós, não era justo. Além disso, era a única ligação a Paul.

– A esforçar a vista dessa maneira vai dar cabo da retina – disse Roger uma noite, ao sair, a pasta numa mão, o chapéu na outra.

– Eu estou bem – respondi, a esconder a minha frustração. – É terrível saber que os nossos aviões da marinha já estão a bombardear os submarinos alemães, no estuário de Long Island. E agora estas notícias sobre Paul.

– Eu sei, C. Vai à festa dos Vanderbilt? Tem de sair daqui e divertir-se um bocado.

Roger tinha razão. Não serviria de nada ficar exausta e esgotada. Corri para casa e mudei para o meu melhor vestido preto, enfiei por cima o casaco do smoking do Pai, agora adaptado para mim, e apanhei o cabelo. Não me fazia mais alta? Soltei-o novamente. Para quarenta anos, eu estava bastante bem.

Quando cheguei à casa de pedra castanha dos Vanderbilt, na 5.ª Avenida com a Rua 51, mesmo na esquina em relação ao nosso apartamento, já estava com vontade de vir embora, ainda que isso significasse ver Betty, que provavelmente fingiria não me conhecer. Estremeci com a ideia de ver Jinx Whitney, já que herdara do Pai uma forte antipatia pelos imbecis dos Whitneys. Bastar-me-ia evitar Jinx e voltar a ligar-me aos meus antigos amigos. Não devia a mim mesma estar, pelo menos, de boas relações com a sociedade? Não podia estar sempre a trabalhar.

A casa dos Vanderbilt erguia-se antiga e encantadora, um dos últimos redutos da Era Dourada, e era uma pena irem deitá-la abaixo, mas de certa forma aquela área passara de moda e a «Rainha da Quinta Avenida» precisava de reduzi-la, depois da morte do marido. Reduzira o pessoal de trinta para dezoito e mudara-se para uma mansão ainda mais encantadora. A Sra. Vanderbilt aproveitou a ocasião para dar uma última festa na casa, para angariação de fundos. Era uma curiosa mistura de campeonato de bridge, baile e banquete, tudo por vinte e cinco dólares, revertendo as receitas para a caridade.

Era o primeiro e último convite público para entrada naquelas salas e muitos ficavam especados a olhar. Um jovem casal, ainda de chapéu e com os casacos vestidos, passeava pelo primeiro andar, boquiaberto. Olhavam encantados para os trabalhos em madeira com ouro incrustado e acariciavam os pilares de ónix. Na entrada, um grupo admirava um fresco de Pompeia. Só aquele átrio poderia albergar uma dezena de famílias carenciadas.

– Merle Oberon chegou – disse um homenzinho, de chapéu na mão.

Os jogadores de bridge encaminharam-se para a biblioteca e tomaram os seus lugares nas mesas de jogo, por baixo dos lustres de cristal. As equipas eram organizadas de acordo com o grupo: a Liga Júnior, a Escola Chapin, a Collegiate, a Universidade de Princeton. O grupo da Chapin era um dos maiores.

Em frente à lareira – tão grande que eu quase poderia ficar de pé lá dentro – dois empregados de libré tomavam nota dos nomes num enorme quadro de pontuações, parecido com a máquina de apostas mútuas, em Hialeah. Os pontos da bússola designavam os jogadores. Norte e sul. Este e oeste.

Enquanto a jeunesse dorée ocupava os seus lugares nas mesas de bridge, eu vagueava pela sala de jantar, atraída pelo cheiro divino de costeletas assadas e popovers*. Sobre uma toalha de damasco branco, viam-se travessas de carnes frias e marisco em meias conchas, um centro de mesa com lírios e uma taça de prata de syllabub*, suficientemente grande para alguém tomar banho. A orquestra tocava Cole Porter e Irving Berlin, enquanto um empregado ficava de guarda. Estaria a contar as pratas?

Desde que os japoneses haviam atacado Pearl Harbor, parecia que todos os jovens de Nova Iorque se tinham alistado. Alguns universitários tinham vindo a casa por altura das férias de Natal, entrando ao serviço logo de seguida. De um dia para o outro, as instalações militares haviam ficado cheias de soldados que se preparavam. A Sra. Vanderbilt deu aos militares o livre acesso para a festa e era impressionante vê-los a todos de uniforme. Os pilotos navais da Floyd Bennett Field, com os seus casacos azul-marinho com rebordos dourados, discutiam a estratégia de guerra com os militares na reserva.

A maior parte do grupo treinava no encantador arsenal de Park Avenue, naquele grandioso salão com reminiscências das grandes estações de comboio europeias. Era sempre possível distinguir aqueles rapazes dos outros, já que as suas fardas eram quase sempre feitas por medida pelos melhores alfaiates de Nova Iorque. Desde que seguissem o protocolo em relação a uniformes, podiam usar nas suas fardas as melhores lãs e sedas e os mais requintados botões de metal ou de carapaça de tartaruga.

– Não joga, Caroline? – perguntou-me a Sra. Stewart Corbit Custer, grande amiga da Mãe.

Os meus lábios tocaram o suave pó de arroz na sua face. Ficava muito bem, vestida de chiffon verde-azulado. Ela e a Mãe adoravam contar a história de como o Pai ficara zangado quando as duas me tinham levado a uma exposição de aves de capoeira no Madison Square Garden, poucas semanas depois de eu nascer. Tinham-me levado para casa, em Southampton, numa alcofa por cima de um monte de sacos de ração, no banco de trás do carro.

– A tentar dar uma oportunidade às outras raparigas? – questionou a Sra. Custer. – Ainda bem, querida. Ia certamente dar cabo delas.

Pelo que se via no quadro das pontuações, as equipas de bridge eram formidáveis. A Sra. M. Field e a Sra. Cushing. A Sra. Noel e a Sra. Dykman. A Sra. Tansill e a Sra. Auchincloss.

– Tenho pena que a Mãe não tenha podido vir – disse.

– Também eu, querida. Importa-se de fazer a contagem por mim? Geralmente, é a sua Mãe quem a faz e tenho a certeza de que a menina é a pessoa mais honesta nesta sala.

– Com todo o gosto, Sra. Custer.

– Estamos a estabelecer duas horas como tempo limite. Junte as contagens quando o gongo tocar e traga-me o vencedor. Claro que já viu como se faz milhares de vezes.

Coloquei em cada mesa um bloco de folhas para registo das pontuações e uma caixa de pequenos lápis verdes e deparei com Betty na biblioteca, acompanhada de Prudence Bowles, uma prima Vanderbilt doce, com olhos de corça, Jinx Whitney, uma prima Rockfeller não tão doce e Kipper Lee, uma rapariga apagada, com um sorriso que deixava ver as gengivas, uma das grandes irritações de Jinx.

Estavam as quatro juntas – algo entre uma formação de râguebi e um sínodo papal –, enquanto Jinx contava uma história. Betty ainda estaria zangada comigo? De certeza que a sua atitude suavizaria se eu também fizesse um esforço.

– ... E então eu disse-lhe, o homem é o membro, não podemos abrir exceções. Não me interessa se o pai dela era o presidente dos Estados Unidos. Estamos cheios.

Ao ver o olhar das companheiras desviar-se para mim, Jinx virou-se. Assemelhava-se a um frigorífico, tanto na forma, como na cor, e parecia estar casada com o dinheiro.

– Oh, Caroline – exclamou. – Meu Deus, estás com roupa de teatro?

– Prazer em ver-te, Jinx.

– E não é que ficas encantadora de preto? – prosseguiu.

– Sim, estás muito bonita – concordou Pru. – Para usar cores escuras, é preciso ter um certo tom de pele.

– É verdade – disse Jinx. – A minha avó usou esse mesmo tom no seu velório. Todos disseram que estava muito natural.

– Estás realmente encantadora, Caroline – insistiu Pru. – Afinal de contas, foste a escolhida como Poppy Girl*.

Jinx voltou-se. Ainda não tinha recuperado por eu lhe ter ganho no concurso para Poppy Girl, em 1921. Fora uma grande honra ter sido escolhida de entre todas as debutantes desse ano. Aos dezanove anos, tornei-me o rosto do esforço poppy, patrocinado pela American and French Children’s League com a minha fotografia em todos os jornais e revistas, para promover a venda de boutonnières de papoila feitas de seda, com o objetivo de ajudar militares americanos feridos na Grande Guerra e crianças francesas doentes, em França.

– Evidentemente, metade desse dinheiro das papoilas reverteu para França – objetou Jinx.

– Para ajudar crianças tuberculosas. Foi um esforço recíproco, Jinx. Metade das receitas das papoilas vendidas em França foi usada para gravar as sepulturas dos soldados americanos.

– Quem está pronta para o bridge? – perguntou Jinx, na direção de Betty.

– Alguém está a precisar de uma parceira? Betty? – sugeri.

– Vou jogar com a Pru – respondeu Betty, subitamente interessada na pedra do seu anel de noivado.

– É uma pena, mas já estamos completas para o bridge– cortou Jinx, fazendo um beicinho. – As equipas estão formadas há semanas, querida. Lamento imenso.

– A Caroline tem estado muito ocupada no trabalho – esclareceu Betty.

– Por quem estão vocês a jogar? – perguntou Jinx, aproximando-se mais de Betty.

– Não faço ideia – respondeu ela. – Mas como também não vamos ganhar...

Tinha razão. Ela e Pru eram uma desgraça no bridge.

– Eu e a Kipper estamos a jogar pelos American Soldier Services – explicou Jinx.

– Encantador.

– Tens algum problema com isso, Caroline? – perguntou-me Jinx.

– Bem, é que a maior parte desse dinheiro vai para festas.

– Alguém tem de apoiar as nossas tropas – prosseguiu ela.

– Claro. Se chamas apoio aos civis a beberem gim enquanto as tropas estão a lutar, então está bem.

– Betty, vamos jogar juntas da próxima vez – Jinx mudou de assunto. Brincou com a echarpe plissada no seu pescoço, que me lembrou de imediato as estrias de um cogumelo venenoso. Por diversão, imaginei como seria apertar-lhe a echarpe em volta do pescoço. Decerto a maioria daquelas pessoas acharia engraçado alguém fazer algo que elas próprias já tinham imaginado.

– Onde está a tua mãe, Caroline? – perguntou Jinx. – Ainda costuma vir à cidade ou fica no campo, sozinha naquela casa enorme?

– O cozinheiro também lá está.

– Sozinha com o Chef russo? – Jinx sorveu a sua gasosa através de uma palhinha fina.

– Tenho mesmo de ir andando – respondi.

– E aquele jardineiro negro? Bem, os tempos são outros.

– O Sr. Gardener tem sido um amigo extraordinário da nossa família, mesmo ao longo dos momentos mais difíceis, Jinx. E seguramente mais amigo do que muitos outros da chamada sociedade educada.

– Caroline, eu enviei um cheque para as tuas crianças francesas – lembrou Pru, pousando uma mão no meu braço. Estaria a tentar aliviar a tensão? Ela tinha qualquer coisa de encantadoramente felina e dava a impressão de que, num ambiente propício, seria capaz de se enrolar no colo de alguém e ronronar.

– Obrigada, Pru. A tua doação vai ser-nos muito útil.

– Sabes que esta noite, aqui, não é permitida a angariação de fundos – comentou Jinx. – Até vem escrito no programa. Fiquei satisfeita com isso. Há limites para a caridade.

– Em tua casa, há certamente – disse eu.

– Não podemos pregar-nos a todos na cruz, Caroline. Como a tua mãe, que veste sempre a camisola. Não está contente a não ser quando a usa para ajudar os necessitados.

Betty agitou-se, mudando o peso do corpo de um pé para outro. Desconfortável, por causa dos sapatos de pele de crocodilo, ou por causa de estarem a dizer mal da minha mãe?

– Como está a GrandeLiz? – perguntei. Jinx chamava-se Elizabeth por causa da mãe, que passara a ser a Grande Liz – um nome que lhe assentava bem – para se distinguirem. – Já veio do rancho? Sabes que agora já vendem cursos Slenderella para a boa forma física e dieta por correio?

– Ela está a adorar Southampton – respondeu Jinx. – Os Murrays convidaram-na para ir a Gin Lane. Esventraram aquilo tudo, a tua Mitchell Cottage. Melhoraram-na consideravelmente. Achavam que era tão lúgubre, com o telhado praticamente a cair e tudo isso.

– Fico contente por eles.

– Foi uma pena teres de abdicar daquele sítio – continuou. – E tudo por causa dos teus pobres e jovens pulmões.

– Não precisas de ir para a mesa de jogo, Betty? – perguntei.

– Pobrezinha, não poderes respirar o ar de Southampton. Adoro aquele ar salgado que vem do Atlântico. E já vem de África.

– Jinx, para – interrompeu Betty.

– E por isso os teus pais acabaram por ir para Connecticut por tua causa, não foi, Caroline?

O que aconteceria se lhe desse uma bofetada ali mesmo, em frente a toda a gente? Ia saber-me bem – a minha mão assente naquela bochecha gorda.

– Sim – respondi.

– Sinceramente, Jinx – indignou-se Betty –, já chega.

– Irónico porque, afinal de contas, os pulmões do teu pai é que não aguentaram. Muito trágico.

– Lamento a tua perda – interveio Kipper.

– Foi há muitos anos, Kipper, mas obrigada – respondi.

– Nem consigo imaginar os remorsos, com ele ali deitado no vosso apartamento, sem se poder fazer nada – acrescentou Jinx, com uma expressão de preocupação dolorosa que conseguia fingir tão bem. – Odeio a palavra «pneumonia» e imagino que tu também, querida. É uma palavra horrível.

Pelo menos, Betty era suficientemente educada para olhar para outro lado.

– Agora se me perdoam, preciso de...

Passei a maior parte do jogo a comer mais camarão do que era socialmente aceitável e depois a fingir prestar atenção a um advogado comercial que discutia as dificuldades da sua mulher com a empregada – que se vestia melhor do que ela –, enquanto pensava em formas de deitar abaixo a Jinx Whitney.

Por fim, o gongo tocou. Dirigi-me à biblioteca e recolhi os resultados. Na sala, a tensão era palpável, pois não havia ninguém mais competitivo do que aqueles grupos de bridge – a não ser os corretores de Wall Street e os adversários de jiu-jitsu brasileiros. Pelo menos estes últimos tinham banido os golpes nos olhos.

Os convidados reuniram-se junto do quadro de pontuações, empurrando-se uns aos outros, mas tentando parecer descontraídos, enquanto aguardavam os resultados. Jinx levantou-se juntamente com Kipper,

Betty e Pru. Depois daquelas extenuantes rondas de bridge parecia mais amarrotada do que um catálogo da Bergdorf numa reunião na Faculdade Smith.

– Que tal correu, Betty? – perguntei, tentando fazer as pazes.

– Bem, a Pru teve sorte num slam.

– Acho que vos derrotámos, Pru – atalhou Jinx.

– Veremos – cortei, abanando o meu monte de papelinhos com as pontuações.

– És tu que vais fazer a contagem? – perguntou Jinx. – É bom que alguém confirme as tuas contas. Ia detestar se te enganasses.

– Não te preocupes, Jinx – respondi. – Quem poderá ficar à frente, a não ser tu e a Kipper?

Levei o monte de papéis até ao toucador, decorado em tons dourados e com as torneiras do lavatório com cabeças de cisne igualmente douradas – que Marie Antoinette teria apreciado – e contei os pontos. Jinx e Kipper estavam à frente, tendo derrotado Betty e Pru.

O gongo para as pessoas se reunirem voltou a tocar e apressei-me a regressar à biblioteca. A Sra. Custer estava com a Sra. Vanderbilt, ao lado do quadro das pontuações. Resplandecente com os seus diamantes, a Sra. Vanderbilt estava encantadora de tafetá cinzento aço e turbante a condizer. Seria o champanhe ou o empenho do noblesse oblige que a deixava tão corada?

– Venha, querida, quem são os vencedores?– perguntou a Sra. Custer. – Receio que não haja tempo para escrever tudo no quadro.

Entreguei-lhe a pilha de papéis, com o vencedor no cimo. A Sra. Custer mostrou-o à Sra. Vanderbilt e ambas sorriram. Enquanto me dirigia ao fundo da sala, a Sra. Custer fez soar o gongo e os convidados, vindos de todas as zonas da casa, aproximaram-se. Os homens de fatos de cerimónia davam passagem aos de uniforme e todos esticavam o pescoço para ver melhor.

– É com grande prazer que anuncio os vencedores do torneio de bridge desta noite – começou a Sra. Vanderbilt. – O meu falecido marido consideraria a angariação de vinte mil dólares para a Cruz Vermelha uma despedida adequada da nossa antiga casa.

A multidão aplaudiu e gritou e Jinx e Kipper encaminharam-se para a frente da sala.

– E mais cinco mil para uma obra de caridade com sorte. Sei que estão todos ansiosos para conhecer os nomes dos talentosos vencedores que podem considerar-se os melhores dos melhores. Assim, sem mais delongas, a equipa vencedora é...

A orquestra tocou umas notas em antecipação. Jinx deu a mão a Kipper e juntas caminharam até junto do quadro.

– A Sra. Elizabeth Stockwell Merchant e a Sra. Prudence Venderbilt Aldrich Bowles.

A Sra. Custer atirou os restantes papéis para a lareira, enquanto Betty e Pru abriam caminho por entre a multidão. A Sra. Vanderbilt entregou o cheque a Betty, que parecia perplexa com tudo aquilo.

– E a favor de que obra de caridade jogaram as meninas esta noite? – perguntou a Sra. Vanderbilt.

– Uma que está próxima do meu coração – respondeu Betty, com a mão no peito. – O Fundo para as Famílias Francesas, de Caroline Ferriday.

A multidão bateu palmas, a princípio educadamente e depois em crescendo, enquanto a Sra. Vanderbilt limpava uma lágrima. O sorriso de Betty deixou-me feliz e percebi que a ferida da nossa relação estava a sarar. Os convidados rodearam Betty e Pru e eu avancei até à porta, ansiosa por respirar o ar da noite. Pelo caminho, passei por Jinx e Kipper.

– Lamento a vossa perda – disse.

– A matemática nunca foi o teu ponto forte – declarou Jinx. – Não penses que não vou espalhar a notícia.

– Obrigada, Jinx. Espero que o faças.

Saí e procurei repelir o peso da minha consciência. Fui desonesta, mas foi em favor de um amigo. Tentei concentrar-me em tudo o que Roger e eu poderíamos fazer de bom com cinco mil dólares. Segui para casa sentindo-me mais leve, pois essa noite permitira-me soltar qualquer coisa em mim, algo que há muito deveria ter libertado. Finalmente, vi aquele grupo pelo que era, com algumas exceções – uma série de gente ociosa e de dorminhocos, muitos com as contas bancárias a descoberto ou, pelo menos, com grandes reduções nos rendimentos, apenas interessados em saber quem não conseguiu entrar no Maidstone Club, que taco vão usar no buraco quinze em Pebble Beach ou ainda sempre prontos a repreender o pessoal por causa de um bocado de casca na lagosta dos canapés com que se atafulhavam. Jinx fizera-me um favor, libertando-me de fidelidades que ainda pudessem persistir para com a sociedade de Nova Iorque, eliminando o meu medo de ficar do lado mau.

Estava desonerada de ter de levar a minha vida a agradar-lhes, livre para seguir sozinha.

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* Uma espécie de pãezinhos leves, feitos com leite, ovos, farinha, um pouco de manteiga e açúcar. (N. da T.)

*Mistura de leite ou natas coalhadas com uma bebida ácida (como vinho ou cidra), geralmente adoçada e servida como bebida ou topping, podendo ainda ser apresentada como sobremesa depois de engrossada com gelatina. (N. da T.)

* Rapariga Papoila. (N. da T.)