1942-1943
Quando Gebhardt cortou o gesso e vi a minha perna, já não parecia um membro humano. Estava inchada e larga como um tronco, coberta por manchas azuis-escuras e preto-esverdeadas. As suturas negras deformavam-se para manterem a carne ligada ao longo da incisão, desde o tornozelo até ao joelho.
Não me lembro de ter gritado, mas mais tarde as raparigas que estavam na enfermaria disseram-me ter achado que eu estava novamente a ser operada, dessa vez sem anestesia, e outras conseguiram ouvir os meus gritos no pátio, durante a Appell. O Dr. Gebhardt desenrolou uma toalha e enfiou-ma na boca, enquanto uma das enfermeiras me dava uma injeção de qualquer coisa que me deixou a dormir.
Acordei na enfermaria, com a perna bem apertada em gaze e a sensação de ter mil facas a espetarem-se na incisão. Zuzanna deslizou para fora da cama para a ver. Voltou a colocar a ponta da gaze no lugar.
– É grave? – perguntei.
– Não é bom, Kasia. Parece-me que removeram osso. E talvez também músculo.
Não fazia sentido. Porque haveriam de tirar músculo a alguém? Para que era tudo aquilo?
– É capaz de ser alguma espécie de experiência – respondeu Zuzanna. – Deram-te comprimidos, mas a algumas das outras não deram nada.
– Sinto-me tão quente – queixei-me.
– Tens de aguentar, Kasia. A Matka virá ajudar-nos em breve.
Fui operada mais três vezes e, de cada uma, o sofrimento começava novamente. As febres eram cada vez mais altas e a recuperação mais difícil, como se os médicos quisessem ver até que ponto conseguiria aguentar antes de morrer. Na última operação, perdera qualquer esperança de voltar a dançar e já só desejava conseguir andar. Passava todo o dia deitada de costas, confusa, umas vezes consciente, outras não, sonhando com a Matka, Pietrik e Nadia, pensando que estava novamente em casa.
Sentia-me cada vez mais zangada, por estar totalmente sujeita ao seu controlo. Embora fosse difícil ter a noção do tempo, sabia que estávamos no final do inverno de 1942. Tentei manter-me positiva e continuei a pensar em voltar a ver a Matka.
Enquanto ali estávamos, Regina fez-nos treinar os verbos ingleses e contou-nos histórias engraçadas de Freddie e da sua mania de trepar para fora do berço. Janina ensinou-nos francês a todas, pois aprendera muitas frases a trabalhar no cabeleireiro, em Lublin. Ensinou-nos frases como «este secador está demasiado quente», Ce séchoir est trop chaud e «quero uma permanente a frio, por favor, com caracóis médios e papelotes nas pontas». Depois de Janina nos ter ensinado, fiquei com um conhecimento profissional de francês, com especial ênfase em pedidos de ajuda em casos de caspa.
– Não posso continuar assim mais tempo – reclamei.
– Claro – disse Janina. – Vamos sair para dar uma volta de bicicleta.
– Estou a falar a sério. Tenho um plano.
– Oh, não – interveio Zuzanna.
– Acho que devemos escrever cartas secretas à nossa família.
– Como em Szatan z siódmej klasy? – Regina apoiou-se nos cotovelos. – Adorei esse livro. – Que criança não tinha lido a história de aventuras de Kornel Makuszynski, sobre um rapaz detetive?
– Sim, isso mesmo – disse. – Lemo-lo nas escoteiras.
Zuzanna levantou os olhos das bolinhas de pão que estava a enrolar para fazer um rosário improvisado. Porque não comia antes aquele pão? Há muito tempo que rezar se mostrara ineficaz. Até a minha favorita, Santa Inês, me abandonara.
– Isso é uma boa maneira de fazer com que nos matem a todas, Kasia – reprovou ela.
– O rapaz desse livro usava sumo de limão – continuou Regina. – Codificava as cartas, de maneira a que a primeira letra de cada frase contivesse uma mensagem.
– A nossa própria urina funciona da mesma forma. É ácida. – Sentei-me o melhor que consegui. – Podíamos codificar cartas escritas com urina...
– É uma ideia engenhosa – aprovou Regina.
– É uma loucura – contrariou Zuzanna. – Tira isso da cabeça.
Zuzanna foi libertada antes de mim e eu tinha imensas saudades suas. Ouvimos novas raparigas chegarem ao quarto do lado. Certa manhã, Janina fez um comentário enquanto a velha enfermeira Marschall estava no quarto, ocupada a verificar os sinais vitais, com uma toalha enrolada em volta do nariz para afastar o horrível cheiro. Foi um comentário inofensivo sobre como nos sentíamos fartas de estar ali. A enfermeira saiu do quarto com o seu ar irritado e voltou, logo a seguir, acompanhada da Dra. Oberheuser.
– Bem, se não querem estar aqui, então saiam – ordenou a médica. – Já. Saiam e voltem para o vosso bloco.
A princípio pensámos que estava a brincar, já que nenhuma de nós se sentia completamente curada. Percebemos que falava a sério quando a enfermeira nos começou a empurrar para fora da cama.
– Mas nem sequer temos sapatos... – comecei.
– Fora – repetiu a Dra. Oberheuser, com um braço estendido na direção da porta. Se não conseguirem andar, saltem ao pé-coxinho.
Tentei levantar-me, mas caí. Já não tinha o gesso, mas não conseguia suportar peso sobre a perna sem sentir uma dor lancinante.
– Levantem-se e ponham-se a andar, depressa – insistiu a Dra. Oberheuser.
Fiquei gelada ali mesmo, no chão. A Dra. Oberheuser dobrou os dedos fortes em volta do meu braço e puxou-me. Arrastou-me até à entrada da frente da Revier, como se eu fosse um tapete em dia de limpeza. Atirou-me uma muleta de madeira e deixou-me lá fora ao frio, com a escória afiada que cobria a Estrada da Beleza a espetar-se-me na pele, como vidro.
Era estranho estar novamente no exterior, quase como se estivesse na Lua. Estava frio e nublado, tudo cinzento, e não se viam pássaros no céu. Havia cinzas a voar pelo ar, como flocos de neve escuros num globo de neve sujo, e sentia-se um cheiro estranho. Os vidros das janelas dos blocos tinham um novo pormenor, já que a fuligem negra passara por ali, da mesma forma que a neve o fizera. À distância, por trás do bunker e fora dos muros do campo, duas línguas vermelhas subiam em direção ao céu, saídas das chaminés novas. O rugido daquele fogo conseguia ouvir-se de praticamente qualquer sítio do campo, uma fornalha gigantesca na boca do inferno.
Como foi bom ver, logo a seguir, Zuzanna a apressar-se na minha direção, comum a expressão profundamente preocupada! Apoiei-me nela, enquanto me ajudava a levantar e a andar. Zuzanna, que já estava nas suas novas instalações há algumas semanas, conduziu-me até ao bloco. Eu estava ansiosa por ver a Matka.
Há meses que não andava, e mesmo com a muleta era um esforço extremo, ainda para mais descalça sobre o chão de escória cortante. Parei.
– Não consigo. Deixa-me aqui. Por favor.
– Anda – insistiu Zuzanna, segurando-me. – Passos pequeninos.
O bloco 31 era a nossa nova casa. Era internacional: algumas polacas, incluindo todas as «coelhas», como entretanto ficáramos conhecidas; mulheres francesas presas por pertenceram à resistência; e enfermeiras do Exército Vermelho, todas prisioneiras políticas. Era um bloco ainda mais povoado do que o anterior.
Enquanto estivera na Revier, dera-se um novo desenvolvimento. Algumas prisioneiras, incluindo as polacas, podiam agora receber encomendas das famílias. Por essa altura, a sopa começara a ficar ainda mais rala, e por isso era fácil perceber quem recebia encomendas de casa com alimentos e quem não recebia. As que tinham essa sorte, mantinham um ar relativamente saudável. As outras estavam reduzidas a infelizes esqueletos que permaneciam deitados nos seus beliches, já sem forças para se livrarem dos próprios piolhos.
Dormitei, e acordei quando as raparigas estavam a chegar para almoçar. Zuzanna ajoelhou-se junto a mim e segurou-me na mão. A sua amiga Anise, uma mulher bonita e arguta, que parecia capaz de conseguir resolver qualquer problema, estava atrás dela.
– Sentimos a tua falta – disse Anise. – Temos uma nova Blockova. Marzenka. É durona.
– Também senti a vossa falta – respondi. – Que cheiro é o que vem de lá de fora?
– Construíram um crematório. São fornos. – Zuzanna apertou-me a mão.
– Para quê?
– Para queimar... – Zuzanna hesitou. Não conseguiu acabar. Claro que eu percebi. Para queimar aquelas de nós que tinham a infelicidade de morrer ali.
– Lamento dizer-te isto, mana, mas já todas sabem da Luiza – continuou Zuzanna. – Acho que é melhor que o saibas por mim. Uma das raparigas norueguesas disse-me que a viu na sala que usam como morgue...
– Não, só pode ser engano.
A minha pobre e doce Lou, que nunca fizera mal a ninguém. Pietrik nunca me perdoaria.
– Não é engano. Ela disse que ficou com o coração despedaçado ao ver ali uma menina tão nova. E o mesmo aconteceu com a Alfreda.
Luiza e Alfreda estavam mortas? Era difícil compreender. Porque haveriam de matar aquelas crianças encantadoras?
– Não penses mais nisso – disse Zuzanna. – Concentra-te em ficares melhor. Pelo menos, esta semana não tens de trabalhar. A enfermeira Marschall passou-te um cartão para poderes ficar na cama.
– Que querida – respondi.
– Todo o campo está furioso com o que vos fizeram – explicou Anise. – Operaram mais de cinquenta raparigas polacas e consta que se preparam para operar mais. As escoteiras organizaram-se... e estão muito mais fortes agora.
– Chamamo-nos Mury – esclareceu Zuzanna. Muros. – Alguém encontrou um emblema das escoteiras numa roupa que voltou do muro dos fuzilamentos e agora fazemos o juramento com ele.
– Juntaram todo o género de coisas boas para ti – disse Anise. – Tanto pão! E as raparigas francesas escreveram uma peça sobre todas vocês, intitulada As Coelhas.
– A minha mãe viu-a?
Anise e Zuzanna entreolharam-se. Anise apertou-me a mão.
– Oh, Kasia.
– O que se passa? – Porque tinham todas um ar tão assustado? – Digam-me. Zuzanna, por favor.
– Ninguém vê a Matka desde que nos levaram para as operações – respondeu Zuzanna. Os seus olhos pareciam vítreos. Como podia estar tão calma? Tentei sentar-me, mas uma punhalada na perna empurrou-me de novo para baixo. – Talvez a tenham enviado para um campo satélite, ou talvez esteja no bunker.
– Não, Kasia – disse Anise. – Ela nunca lá esteve. Achamos que desapareceu no primeiro dia das vossas operações.
Como era possível? Deveria haver algum engano.
– Ela desapareceu, Kasia – reforçou Zuzanna.
– É impossível. Ninguém viu nada? Ela sempre foi boa a brincar às escondidas. Lembras-te? Daquela vez que se escondeu debaixo da minha cama?
– Kasia... – insistiu Zuzanna.
– E passámos toda a manhã a tentar encontrá-la e ela tinha acabado por adormecer ali?
– Não me parece, Kasia.
– Provavelmente está com as raparigas da Bíblia – sugeri. – Se calhar o Suhren pô-la a cortar cabelos.
– Não, Kasia.
– Vocês não viram com atenção – insisti, dirigindo-me a Zuzanna.
– Claro que vimos. – A minha irmã enfiou o seu rosário improvisado na minha mão.
– Nunca a amaste tanto como eu. – Atirei-o para o chão. Uma mancha escura cresceu sobre o meu rosto, penetrando nos meus olhos e nariz e levando-me consigo. – Não admira que tenhas desistido.
Zuzanna apanhou o rosário.
– Vou fingir que não disseste isso, Kasia. É apenas a febre e o choque que te fazem falar assim.
– Não finjas. É o que eu penso. Vou já voltar à Revier para a procurar. Não me importa que me matem.
Tentei sair da cama, mas Zuzanna impediu-me. Irritei-me com ela, até que perdi todas as forças. Adormeci. Quando voltei a acordar, senti-me ainda mais profundamente desesperada.
Foram precisos alguns dias para interiorizar que a Matka não ia regressar. De início, esperava que a nossa rede polaca tivesse falhado na sua procura e que ela estivesse escondida em algum sítio seguro ou tivesse sido transferida para outro campo. Quando pedi às raparigas do bloco para me ajudarem a encontrá-la, elas foram gentis e acederam, mas, após alguns dias, ficou claro que todas achavam que a Matka tinha morrido. Não haveria funeral. Nenhuma cruz de bétula. Nenhum pano preto pregado na nossa porta.
Antes de aprender a usar a muleta, dependia de Anise e de Zuzanna para me levarem à latrina. Janina também precisava de ser acompanhada. As nossas ajudantes eram generosas, mas eu detestava ser um fardo. Imaginava a minha própria morte. Que morte maravilhosa e rápida seria se me atirasse contra a vedação elétrica. Evidentemente, ninguém me levaria até lá.
Até essa altura, e desde a nossa prisão, a chegada ao campo, e até mesmo as operações, sempre encontrara coisas boas em que pensar e o otimismo polaco para me apoiar, mas sem a Matka já não me conseguia arrancar da escuridão. Sentia-me como um peixe sobre o qual lera quando era criança, o saltador-do-lodo africano. Todos os anos, na altura das secas, enfia-se na lama e aí fica a viver durante semanas, nem vivo nem morto, esperando o regresso das chuvas para regressar à vida.
Depois de termos sido libertadas da Revier, a vida continuou como de costume: o despertar brutal, as horas de Appell intermináveis e a terrível fome que nos consumia, a nossa mais fiel companhia. Aúnica coisa que interrompia este padrão era o terror que acompanhava a nossa Blockova quando lia os nomes das que, no nosso bloco, iam ser executadas.
O procedimento raramente variava. Era antecedido de avisos das prisioneiras-trabalhadoras na receção de que o correio chegara de Berlim com uma ordem de execução e que os guardas masculinos que serviam de carrascos iriam receber quantidades extra de aguardente. A seguir, a Binz ordenava que certos blocos fossem fechados. Quando a sopa do meio-dia chegava, antes de ser servida, a Blockova lia os números das «peças a ser chamadas». As infelizes contempladas preparavam as suas coisas e, logo a seguir, Binz e as suas amigas apareciam para as levar. A minha reação também raramente variava: o medo gelado de que chamassem o meu nome; o alívio por não o terem chamado; as terríveis pontadas de tristeza ao ver uma companheira de bloco fazer a sua última caminhada.
No dia em que foram anunciadas as primeiras execuções das Coelhas, ficámos à espera, mal respirando, sentadas nos bancos da mesa de refeições, bem juntinhas umas às outras – Zuzanna à minha direita, Regina à esquerda. Aquelas de nós que tinham sido operadas, acabavam agora de voltar a comer à mesa, um grande acontecimento, já que significava que a nossa sopa já não tinha de ser levada aos beliches. Corriam muitos rumores de que o comandante programara a nossa execução. Liquidar-nos eliminaria as provas dos crimes, mas poderíamos dar ouvidos a boatos? Havia sempre um novo, como o de que os americanos vinham a caminho para nos salvarem ou de que havia bife na sopa.
– Atenção! – disse Marzenka, enquanto duas raparigas russas carregavam a panela da sopa para o bloco. – As Häftlinge cujo número seja chamado acabam aqui, recolhem as suas coisas e aguardam por mais instruções.
Marzenka retirou um quadrado de papel do bolso do casaco e desdobrou-o, sendo esse o único som na sala.
– Número 7649.
À minha esquerda, Regina ficou rígida. Marzenka leu os números de três outras Coelhas, todas elas ainda em recuperação na Revier.
– Não – exclamou Zuzanna. – Deve haver algum engano.
Agarrei o braço de Regina.
– Nada de histerias – ordenou Marzenka.
– Podemos lutar contra isto, Regina – sussurrei-lhe ao ouvido.
Ela não respondeu, limitando-se a colocar a colher dentro da tigela e a entregá-la a Zuzanna.
– Quero que fiques com isto – pediu.
Zuzanna pegou na tigela, com os olhos cheios de lágrimas. Que presente!
– Janina, podes arranjar-me o cabelo? – Levantou-se Regina.
Janina acenou em concordância e seguimos Regina até à camarata, levando connosco a sua tigela cheia, já que se a deixássemos ali seria roubada em segundos.
– Sabem qual era a primeira coisa que os Espartanos condenados à morte faziam, antes de serem executados? – perguntou Regina. – Arranjavam o cabelo.
Janina tirou-lhe o lenço sujo da cabeça. Habitualmente, arranjar o cabelo a alguém era uma ofensa punível. A regra era o cabelo estar penteado para trás, seguro com um lenço regulamentar, mas Binz afrouxava a obrigatoriedade quando a prisioneira estava prestes a morrer. O cabelo de Regina crescera, espesso e escuro, enquanto ela estava a recuperar da operação. Janina penteou-o para trás e para cima, num belo twist francês. Alguém de um beliche superior lhe deu um gancho que provavelmente trocara por um pouco de pão.
– Kasia, quero que fiques como meu livro de frases em inglês – disse Regina. – O trabalho de casa desta noite são as preposições. E se um dia conseguirem entregar o meu Tróilo e Créssida*ao meu Freddie, quando tudo isto acabar...
Acenei com a cabeça.
– Vou recusar a bebida – decidiu. Todas sabíamos que davam uma bebida com um sedativo às que eram levadas para o muro, para tornar as coisas mais fáceis para todos. – Acham que terei coragem suficiente para gritar «Viva a Polónia»?
– Não tem importância... – Segurei-lhe a mão.
– Tem, Kasia. Sabes que eles detestam isso.
As prisioneiras enfrentavam a morte de formas diferentes. Algumas gritavam e enfureciam-se. Outras, ficavam silenciosas ou rezavam. Regina aproximou-se do seu beliche e leu-nos a sua parte favorita de Tróilo e Créssida, tentando preparar-se o melhor possível, antes de Binz chegar:
Oh, bravo Tróilo! Olhai bem para ele, sobrinha; vede como a sua espada está cheia de sangue e o seu capacete mais marcado do que o de Heitor... E como ele olha, e como anda... Oh, juventude admirável! Ainda nem com vinte e três anos.
Enquanto Reginalia, beliscávamos-lheas faces para lhes dar alguma cor. Uma rapariga que trabalhava na cozinha tinha um pouco de sumo de beterraba e Janina passou-lho pelos lábios.
Binz e as suas guardas nem chegaram a demorar cinco minutos a aparecer no bloco. Regina inclinou-se junto a mim, com o livro apertado contra o peito.
– Conta a todos o que está a acontecer – disse.
– Entrega-o – ordenou Binz, arrancando-lhe o livro. – Porque estás tão preocupada? Foi o próprio comandante que disse que ias ser libertada.
Seria possível? Era certamente mais uma mentira.
Janina desenrolou a corda que tinha presa à própria cintura e prendeu-a à volta da de Regina, tornando o uniforme mais semelhante a um verdadeiro vestido.
– Fora, fora – ordenou Binz, empurrando Janina com o bastão de borracha.
Regina coxeou até à porta, com a perna ainda não totalmente sarada. Ali, entregou os seus óculos de leitura a Zuzanna e virou-se, sorrindo para nós. Estava com um novo resplendor, um novo tipo de brilho, e tinha as faces coradas.
Binz atirou o livro a uma Aufseherin e empurrou Regina para a rua. Nenhuma das prisioneiras que a viu partir conseguiu aguentar as lágrimas. Como era corajosa. O nome Regina significava «rainha», o que se adequava, pois nesse dia o seu ar era régio. Se não fosse o andar irregular, poderia ter sido uma estrela de cinema ou uma modelo de moda, alta e orgulhosa, descendo pela Estrada da Beleza.
De corações despedaçados, Zuzanna e eu partilhámos com Janina a sopa da nossa amiga. Sentíamo-nos culpadas ao fazê-lo, mas ela não quereria que desperdiçássemos aquela sopa. Partilhámos a cenoura doce e pequena, um verdadeiro pitéu. Iria ficar forte com a sopa de Regina e sobreviver para contar ao mundo sobre tudo aquilo.
Pouco depois, Zuzanna e eu fomos mandadas para a Strickerei para tricotar, mas passámos a tarde atentas, esperando não ouvir tiros. Talvez Binz estivesse a dizer a verdade e libertassem as raparigas...? Seriam enviadas para um subcampo?
Mais tarde, nesse dia, ouvimos um camião guiar em direção ao lago e quatro tiros abafados, um a seguir ao outro. Rezámos em silêncio para nós mesmas, já que rezar era uma ofensa punível. A Anise contou-me depois que ouvira as raparigas que trabalhavam na cozinha – adjacente ao muro dos fuzilamentos – dizer que Binz levara as quatro Coelhas para serem executadas. Uma delas tivera de ser transportada, já que as feridas não tinham sarado o suficiente para que a perna aguentasse o seu peso.
– Chorámos quando as quatro gritaram «Viva a Polónia!», no final – contaram-lhe.
Depois disso, não podia limitar-me a ficar zangada e a não reagir. Seríamos as próximas a ser executadas? Quem restaria para poder contar ao mundo? Iria pôr em prática o meu plano, mesmo que isso fizesse com que me matassem.
Nesse domingo, enquanto Zuzanna dormia, tentando afastar um problema grave de disenteria, soltei as tábuas por cima de um beliche superior e consegui passá-las para o que chamávamos o Anexo, uma espécie de sótão, onde por vezes as raparigas iam fumar cigarros. Por causa da minha perna doente, o simples facto de subir para lá já constituía uma provação. Ali, a iluminação era muito escassa para se conseguir ver e os meus olhos tiveram de ajustar-se à escuridão, enquanto eu reunia as minhas ferramentas para a missão secreta.
1. Uma carta que escrevera em alemão, numa única página de papel timbrado do campo, na qual a primeira letra de cada linha tinha outra «letra escrita com urina».
2. O palito pelo qual pagara meia ração de pão.
3. A minha caneca de água, na qual depositava a minha tinta secreta morna.
As primeiras tentativas deixaram pequenas poças na folha, mas rapidamente fui ficando melhor a escrever entre as linhas e denunciei as operações e os nomes das Coelhas que tinham sido executadas. Primeiro Regina e depois Romana Sekula, Irena Poborcówna e Henrika Dembowska. Era bom poder contar ao Papa sobre o pelotão de fuzilamento e as operações e pedir-lhe para passar palavra a todas as pessoas que conhecia. Por essa altura, já setenta de nós tinham sido operadas. Seriam precisas muitas mais cartas para lhe fazer chegar todos os nomes. Pedia-lhe para me enviar um carrinho de linha vermelha como sinal de que tinha recebido e compreendido a nossa carta secreta.
Na manhã seguinte acordámos com um chuvisco gelado e apresentámo-nos na Appell alinhadas, lado a lado, com dez por fila, aguardando que viessem recolher as nossas cartas, antes de irmos trabalhar para a Strickerei. Mantive a minha carta seca, por baixo da manga do casaco. Quando Marzenka chegou à nossa fila para apanhar as cartas, tirei-a para fora e passei-lhe um dedo por cima. Estava ligeiramente deformada nos sítios em que o papel tinha urina. Ela notaria? E os censores?
A Blockova aproximou-se e esticou o braço, com a palma da mão virada para cima. Senti um aperto na garganta quando a carta deslizou e flutuou para o chão.
– Trapalhona – disse ela.
Estiquei-me para a apanhar ao cair, mas acabou por aterrar na lama.
– Eu não vou pegar nisso – reclamou.
Apanhei a carta, limpei a lama com a bainha do vestido e entreguei-lha.
– Por favor, Senhora Blockova.
– Porquê tanta preocupação por causa de uma cartinha? – Agarrou-a com dois dedos e semicerrou um olho. Levantou a carta em direção à luz, por cima da cabeça.
Eu mal conseguia respirar.
– Endereçaste-a ao posto de correios de Lublin. Toma-a de volta... – Devolveu-ma.
Mantive as mãos entrelaçadas atrás das costas.
– Ao cuidado de Adalbert Kuzmerick. É onde o meu pai trabalha, Senhora Blockova.
– Oh – respondeu. Colocou-a sobre a sua pilha e seguiu caminho.
Desejei que aquela carta viajasse em segurança até ao seu destino. Tem cuidado com ela, Marzenka. É a nossa única hipótese.
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*Troilus and Cressida é uma tragédia de William Shakespeare. (N. da T.)