NATAL, 1943
Quando o Natal de 1943 chegou, o ânimo entre o pessoal de Ravensbrück estava bastante em baixo. Nesse ano, as tropas alemãs haviam luta do arduamente em Estalinegrado, apesar de mal agasalhadas e mal apetrechadas, e tinham capitulado. Nós enfrentávamos também um aumento dos bombardeamentos em Berlim, mas as nossas tropas retaliaram sobre a Grã-Bretanha, e assumimos o controlo no norte de Itália, resgatando Mussolini, que fora preso pelos militares italianos. Portanto, ainda tínhamos razões para celebrar.
No entanto, à medida que a guerra se arrastava, a vida em Ravensbrück tornava-se mais difícil. Novos transportes chegavam ininterruptamente, carregados com prisioneiros infetados dos territórios conquistados pelo Führer.
Sem Halina, a Revier parecia uma casa de doidos, repleta de doenças vindas de todos os países. Não tinha muito tempo para ter saudades de Fritz ou da Mutti. Passava a maior parte dos dias no meu gabinete, que precisava de ser organizado. Os médicos do campo, em especial, necessitavam de uma pausa e recebemos uma sob a forma de uma excelente comemoração natalícia. Por toda a Alemanha, os cidadãos sofriam com rações reduzidas, mas o pessoal do campo continuava a desfrutar de café verdadeiro, salame, vodca polaca e bom champanhe.
A nossa festa começou com um desfile. Binz e as guardas chegaram à cantina vestidas de anjos, com peças de cetim branco atadas na cintura com cordas douradas. Convencera-me a vestir-me também assim, o que até deu jeito, já que as mangas em forma de sino cobriam alguns cortes nos meus braços, evitando perguntas e olhares embaraçosos. Cortar-me era uma fase, um típico escape à tensão em que vivia, nada de surpreendente dado o stresse das minhas funções.
Binze cada um dos anjos do seu pessoal usavam um adereço brilhante na cabeça, com uma cruz a emergir na frente, e levavam uma vara alta com uma suástica pintada de dourado em cima, que quase raspava o teto baixo. À medida que ia entrando, cada uma acendia uma vela na árvore, ao canto, enfeitada com velas em cada ramo e com as habituais fitas prateadas. De seguida, entraram os homens das SS, vestidos como pastores e com adornos na cabeça de um material azul cintilante. Na cauda da procissão seguia o Comandante Suhren, o nosso Pai Natal sobre andas. Envergava um vestido vermelho e comprido de feltro, adornado com peles brancas, e levava uma vara na mão. Inclinou o chapéu pontiagudo para a frente, para conseguir passar pela porta.
– Quem é que se portou mal ou foi desobediente? – gritou, com uma piscadela de olho.
Pouco depois, o Pai Natal largou a vara e abriu o seu saco de doces. Como conseguira arranjar tudo aquilo em tempo de guerra? Cerveja, a bebida de eleição do grupo, fluía livremente. Até o Pai Natal tinha uma caneca.
Ao início, quando a nova religião, desencadeada pelo nacional-socialismo, apareceu, parecia estranha, mas as pessoas acabaram por se adaptar. De acordo com o Führer, podia ser-se alemão ou cristão, mas não as duas coisas. Sugeriu que nós mesmos fôssemos Cristo, o que parecia uma solução prática.
Muitos alemães resistiram a esta mudança, mas todos os membros das SS se converteram à nova religião. Gradualmente, os aspetos religiosos do Natal foram substituídos por símbolos do orgulho nacionalista e celebrávamos o solstício de inverno, ao invés do nascimento de Cristo. Em breve, até o Pai Natal foi substituído por Odin, o Homem do Solstício. A Mutti irritava-se com isso, pois fora criada como protestante devota e o meu pai como católico, mas até ela acabou por ter uma «Árvore do Povo», com um sol germânico no topo, a par da tradicional árvore de Natal. Esta nova religião até me parecia bem, porque me libertava de questões teológicas incómodas.
Sentei-me sozinha e fiquei a ver os anjos e os pastores divertirem-se a dançar. O Commandant Suhren aproximou-se da minha mesa, com a barriga de Pai Natal, feita com uma almofada, a balouçar enquanto caminhava.
– Não está a comer, Fräulein Oberheuser. – Pousou o seu prato de carne e batatas com manteiga na mesa.
– «Doutora», Herr Commandant. – Virei o rosto para não sentir o cheiro da carne ensanguentada.
– Tem de manter-se forte. Sabe que a carne tem proteínas e ferro. – Nunca lhe teria passado pela cabeça não dar lições de nutrição a médicos? – Contamos consigo. Sei que não é fácil sem Fritz e com o Dr. Gebhardt fora, a dar tantas palestras. E com o incidente...
Porque é que todos se referiam ao que acontecera com Halina como «o incidente»?
– Eu estou bem, Herr Commandant. – Era verdade. A insónia crónica era um problema comum entre os funcionários dos campos de concentração.
Enquanto Suhren deitava uma pitada de sal nas batatas, Binz e o namorado, Edmund, beijavam-se a um canto. Parecia um anjo a fazer ressuscitação boca-a-boca a um pastor. Binz, que fora recentemente promovida a guarda adjunta do campo, não deixava que a sua nova posição atrapalhasse a sua vida amorosa.
– Ficaria melhor se conseguíssemos gerir a situação das Coelhas, Commandant – acrescentei.
– De momento, tenho muita coisa a tratar. Setenta subcampos, todos com os seus próprios problemas. A Siemens queixa-se de que os prisioneiros estão a morrer nos postos de trabalho. Além disso, estou de mãos atadas quanto à questão das Coelhas, Fräulein. Desde que Berlim me deu um puxão de orelhas, nem sequer recebo relatórios sobre o que se passa no meu próprio campo. E Gebhardt não comunica.
Suhren protestara contra as operações sulfa, reclamando que precisava das raparigas polacas como trabalhadoras. Gebhardt apelara para os seus amigos em posições influentes e Suhren fora ultrapassado. Tinha sido forçado a pedir pessoalmente desculpas a Gebhardt, ao que parecia um golpe humilhante para o seu ego.
– Então quais são as últimas novidades?– perguntou Suhren, rolando uma batata com o garfo. Sem dúvida que vira tudo do seu gabinete. Para que precisava da minha versão?
– Bem, depois de as Coelhas marcharem em protesto...
– Marcharem? Metade delas nem sequer conseguia andar.
– Foram levadas para a praça e exigiram ver Binz.
– Ouvi uma parte dessa história.
– Entregaram-lhe o seu manifesto, exigindo, por escrito, que se parasse com as operações.
– Tiveram sorte por isso não ter provocado um tumulto. Então e operaram, mesmo assim?
– Desta vez no bunker. Aí não podíamos usar anestesia, mas precisávamos da segurança adicional. Todo o campo se tornou bastante protetor em relação a elas.
– Como é que posso ajudar?
– Berlim ouviu falar dos protestos e está a analisar a situação. Gebhardt diz que não haverá mais Coelhas no muro de fuzilamento até novas indicações.
– E então?
Suhren olhava para Binz e Edmund, no canto. Estava a ficar desatento.
– Se não conseguirmos fazer desaparecer os resultados destas experiências, podemos ficar com a batata quente na mão. O Fritz foi embora. O Gebhardt está a viajar.
Isso chamou-lhe de novo a atenção.
– Lamento, mas não posso passar por cima do Gebhardt. Ele fala todos os dias com Himmler.
– Bem, alguma coisa tem de ser feita e rapidamente. Se isto transpirar...
– A nossa segurança é quase perfeita. – Suhren afastou essa ideia. – Apenas três fugas e duas das fugitivas apanhadas. O próprio Himmler felicitou os nossos censores. Eles não deixam passar nada.
Aquilo era uma mentira descarada. Eu já ouvira todo o tipo de coisas que passavam pelos censores. Binz encontrava provas disso diariamente. Um frasco de tinta para o cabelo numa caixa de flocos de aveia. Antibióticos num tubo de pasta de dentes.
– Além disso, as cirurgias foram realizadas em segredo e com as pacientes de olhos tapados. Nenhuma poderá identificá-la.
– Mas...
– Paciência, minha querida. Eu farei com que o problema seja resolvido. Deixe o assunto comigo.
Suhren levantou-se e deixou o guardanapo enrolado sobre o prato, o que fez com que o sangue da carne impregnasse o tecido de linho. Enquanto o coro de anjos disformes de Binz se reunia para cantar um medley de canções populares alemãs, senti o meu primeiro arrepio de medo por tudo aquilo. Sabia demasiado bem que as pontas soltas tendiam a desfiar-se.