Capítulo 22

KASIA

NATAL, 1943

Para Zuzanna e para mim, o Natal de 1943 foi especialmente negro. Sem a Matka e Luiza e com a minha irmã a definhar cada vez mais, não havia muita razão para celebrar. Não tínhamos recebido nenhuma carta ou encomenda do Papa. Estaria vivo?

Na tarde de Natal não tivemos Appell, para que os guardas do campo pudessem festejar. Zuzanna estava deitada ao meu lado, tão magra por causa da disenteria que era possível perceber-se a extremidade do osso da sua anca através do cobertor fino, enquanto dormia. Como médica, sabia o que estava a acontecer e tentava instruir-me para ajudá-la a melhorar, mas mesmo com a ajuda das raparigas da cozinha, que lhe arranjavam sal e água às escondidas, nada funcionava. Embora muitas das nossas companheiras partilhassem a sua preciosa comida com as Coelhas, sem as encomendas recebidas de casa tínhamo-nos tornado esqueletos vivos.

Zuzanna estava deitada de lado, com as mãos juntas por baixo do queixo e eu dormitava junto dela, com o peito encostado às suas costas, tendo a sua respiração como única felicidade. As mulheres do nosso bloco tinham votado para que ficássemos com um beliche inferior só para nós, face à nossa situação de Coelhas. Foi um gesto extraordinário, uma vez que alguns beliches tinham mais do que oito prisioneiras! As mulheres russas, muitas delas médicas e enfermeiras capturadas no campo de batalha, eram especialmente gentis connosco e tinham organizado a votação. Como prenda de Natal, Anise dera-nos um pedaço de cobertor limpo, que roubara das pilhas dos saques e enrolara-o nos pés descalços de Zuzanna.

Vi algumas raparigas polacas enfiarem umas ervas por baixo de uns trapos. Colocar palha fresca por baixo de uma toalha de mesa branca era uma tradição de Natal polaca, que seguíamos desde pequenas. Depois da refeição, as donzelas tiravam algumas palhinhas de debaixo da toalha para predizer o futuro. Uma palhinha verde significava casamento, uma totalmente seca, espera, uma amarela predizia o temível estado de solteirona e uma muito pequenina pressagiava uma morte prematura. Nesse dia, todas me pareciam muito curtas.

Com Marzenka ausente durante um bocado, algumas raparigas polacas cantaram uma das minhas canções de Natal favoritas, Zdrów bad´z Królu Anielski, «Digno de um Rei», numa voz baixa, sussurrada, uma vez que cantar ou falar em outra língua que não o alemão era proibido e podia atirar-nos para o bunker.

A canção levou-me de volta à véspera de Natal, na Polónia, com a nossa pequena árvore coberta de pingentes de papel prateado e velas. A troca de presentes com Nadia – sempre livros. O jantar da Matka, sopa de beterraba, peixe quente e doces. E a ida à igreja no dia de Natal, a nossa família no mesmo banco dos Bakoskis. Todos nós juntos com Pietrik e com a sua carinhosa mãe, como um cisne negro. Antes de conhecer o pai de Pietrik, ela fora bailarina e usava sempre o cabelo apanhado na nuca. O Sr. Bakoski alto, no seu uniforme militar, e Luiza com o seu novo casaco rosa, a aconchegar-se a mim. A sua família a sorrir, quando Pietrik me puxava para mais perto, para partilharmos o livro de orações. O seu cheiro a cravinho e canela, por ter estado a ajudar a mãe nessa manhã.

Passava mais tempo envolvida com as minhas memórias – qualquer coisa para escapar àquele bloco gélido –, mas apercebia-me da fome a ocupar o lugar de qualquer amor que sentisse. Durante a maior parte do dia só pensava em pão e em libertar-me a mim e à Zuzanna dos piolhos. Aterrada com a possibilidade de contrair tifo, Zuzanna desenvolvera uma rigorosa rotina de desparasitação para nós. Como médica, conhecia muito bem as consequências de apanhar tal doença.

Os meus pensamentos foram interrompidos quando o velho eletricista de Fürstenberg veio trabalhar na instalação elétrica do nosso bloco. Era uma visita frequente e a sua presença era muito aguardada. Entrava, curvado e de cabelo branco, carregando o seu saco de lona com as ferramentas e um banco de madeira dobrável, os ombros e as mangas do seu casaco de tweed escurecidos com as manchas da chuva. Sacudiu a água do chapéu amarelo-mostarda e depois fez uma coisa extraordinária, que fazia sempre.

Fez-nos uma vénia. Uma vénia! Há quanto tempo ninguém nos fazia isso? A seguir, foi até ao centro da divisão e abriu o banco. Pelo caminho, viu Zuzanna, a dormir ao meu lado, e sorriu. Por alguma razão, parecia gostar especialmente dela. Ela tinha esse efeito nas pessoas. Lembrá-lo-ia da sua própria infância? Numa visita anterior, dera-lhe, à socapa, um cubo de açúcar, embrulhado em papel branco, que fizéramos render durante dias, acordando à noite para lhe dar pequenas lambidelas. De outra vez, deixara cair «acidentalmente» uma saqueta de pó para as dores de cabeça junto do seu beliche.

Porque haveriam raparigas esfomeadas de ficar contentes ao verem este alemão? Porque Herr Fenstermacher não era um trabalhador vulgar. Era um homem culto e gentil, com uma voz como melaço quente. Mas isso nem sequer era o melhor: ele cantava-nos em francês. Não eram umas canções quaisquer. Eram as suas próprias canções, feitas com os títulos dos jornais do dia. Sim, sabíamos alguma coisa da guerra, porque conseguíamos ouvir, ao longe, o som abafado das bombas, a sul do campo. Porém, Herr Fenstermacher trazia-nos, sob granderisco pessoal, um presente mais precioso do que ouro. Notícias de esperança. O seu nome, Fenstermacher, em alemão, significava «construtor de janelas» e ele era a nossa janela para o mundo.

Começava sempre da mesma maneira. Subia para o banco, remexia na lâmpada e cantava: «Recueiller près, les filles, et vous entendrez tout ce qui se passe dans le monde.» Juntem-se, meninas, e ficarão a saber tudo o que está a acontecer no mundo.

Nesse dia de Natal, cantou que as tropas americanas estavam a entrar em solo europeu; a reunião de Estaline, Roosevelt e Churchill em Teerão; o sucesso do bombardeamento de Berlim pela Royal Air Force britânica. Então tinham sido eles a voar sobre as nossas cabeças! Imaginei os pilotos ingleses, jovens e bonitos, nos seus aviões, fazendo soar a sirene de ataque aéreo e deixando Binz e as suas Aufseherinnen em pânico. Esses pilotos saberiam sequer que estávamos ali embaixo, à espera de sermos libertadas?

As que sabiam francês sussurraram as traduções para as restantes. Sentíamo-nos tão felizes com este presente. O eletricista terminou com um «Feliz Natal, queridas senhoras. Que Deus nos ajude a todos em breve». Voltou a fechar o saco das ferramentas e a colocar o chapéu na cabeça. As lágrimas faziam-me arder os olhos. Não apanharia uma constipação com aquele tempo? Fôramos esquecidas por todos. Saberia que era o nosso único aliado?Passou pelo nosso beliche e tirou o chapéu. Por favor, tenha cuidado, pensei. É o nosso único amigo.

Fiquei contente por Zuzanna ter continuado a dormir. Um dia de descanso, sem ter de se levantar e ficar durante horas sob o granizo, enquanto Binz e as guardas nos contavam, iria ajudá-la a recuperar. Só quando Herr Fenstermacher já estava do lado de fora da porta é que vi o que deixara aos pés do nosso beliche: o mais bonito par de meias feitas à mão! Peguei nelas e nem conseguia acreditar na sua suavidade. Acariciei o rosto com elas. Pareciam as penas da Psina. E a cor! Azul pálido, como o céu do início de verão. Passei-as por baixo do queixo de Zuzanna, entre as suas mãos juntas e o queixo. Um milagre de Natal.

Mal Herr Fenstermacher acabara de sair, a porta do bloco abriu-se novamente e Marzenka arrastou-se para dentro, sacudindo a lama das botas. Que inveja tínhamos delas. Pés descalços em tamancos de madeira demasiado grandes no meio do inverno era mais uma tortura que nos era infligida.

Marzenka tinha os braços carregados de encomendas. O meu coração bateu ao vê-las. Seria pedir demasiado... Uma encomenda para nós, no Natal, depois de termos esperado tanto tempo. Foi avançando ao longo do bloco, chamando os nossos nomes e atirando embrulho se cartas para cima de alguns beliches. Que estranho, pensei, podermos receber encomendas sendo prisioneiras políticas. Felizmente para nós, o Commandant Suhren era uma pessoa prática. Uma prisioneira receber comida e roupa da família poupava dinheiro ao campo. Significava que eram precisos menos fundos para manter um trabalhador vivo.

Quando Marzenka chegou ao nosso beliche, já só levava duas encomendas.

Por favor, que uma seja para nós .

– Feliz Natal – disse, abrandando ao passar pelo nosso beliche, com um raro esboço de sorriso. Até mesmo ela se tornara mais simpática com as Coelhas.

Atirou uma das encomendas para cima do nosso colchão de palha, que aterrou com um som seco. Sentei-me e peguei-lhe. Sentia-me um pouco tonta e segurei a caixa embrulhada em papel pardo durante uns instantes, para assimilar tudo aquilo. Um embrulho. Pequenas gotas de chuva tinham manchado o papel, dando-lhe um aspeto de pele de animal, e esborratado a tinta do remetente, mas era dos Correios de Lublin.

Papa.

Teria decifrado a mensagem e passado a carta a ferro? Seria melhor acordar Zuzanna para a abrirmos juntas? A embalagem já estava meio aberta, por ter sido examinada pelos censores, por isso resolvi continuar e rasguei o papel pardo. Encontrei-me perante uma velha lata de bombons, fria ao toque. Levantei a tampa e o cheiro do chocolate rançoso chegou-me ao nariz. Oh, chocolate. Já me esquecera do que era chocolate. Mesmo rançoso, fazia-me crescer água na boca.

A lata continha três pacotes embrulhados em panos. Desembrulhei o primeiro, revelando o que restava de um bolo de sementes de papoila. Mais de metade! Habitualmente, os censores ficariam com o bolo todo. Estariam a ser generosos por ser Natal? Provei um bocadinho e agradeci a Deus por ter criado as papoilas e depois voltei a embrulhá-lo apressadamente, pois tinha de guardá-lo para Zuzanna. Um bolo polaco ia fazer-lhe bem.

O embrulho seguinte tinha uma pasta de dentes. Quase me ri. Há muito que ficáramos sem escovas de dentes, mas era maravilhoso ver algo tão familiar, vindo de casa. Rodei a tampa e inalei o cheiro da hortelã-pimenta. Enfiei-a por baixo do colchão. Se soubesse regatear, semelhante tesouro valeria uma semana de pão extra.

O último volume era pequeno e estava embrulhado num pano branco de cozinha da Matka, no qual ela bordara em ponto de cruz dois pássaros que se beijavam. Ao vê-lo, não pude conter o choro e atrasei o meu progresso, mas finalmente consegui soltá-lo, com as mãos a tremer de tal maneira que mal conseguia desatar o nó. Quando o pano se abriu no meu colo, fiquei a olhar para o seu conteúdo.

Era um carrinho de linhas vermelho.

«Alegria» é uma palavra excessivamente usada, mas foi o que senti nesse dia, ao saber que o Papa compreendera a minha carta secreta. Controlei-me, para não ir para o meio do quarto, a gritar de felicidade. Em vez disso, beijei o pequeno carrinho de linhas e meti-o entre as mãos juntas da minha irmã, que continuava a dormir.

Foi o melhor Natal da minha vida, pois agora sabia que já não estávamos sozinhas.