1945
Quando fevereiro de 1945 chegou, a Estrada da Beleza já não tinha nada de belo. Os alemães haviam usado as floreiras e muitas tílias como lenha. A escória escura do caminho estava coberta de lama gelada e ainda havia neve empilhada por todo o campo, com uma camada de cinzas por cima – caída das fornalhas. A gaiola de animais exóticos há muito desaparecera.
Desviei-me de grupos de mulheres que desafiavam o frio, algumas em bandos, outras vagueando sozinhas. Aos domingos, a Estrada da Beleza fervilhava de gente de todas as nacionalidades, por vezes levando consigo um par de cuecas lavadas ou um uniforme, para secarem ao ar. O campo tornara-se insuportavelmente sobrelotado quando o Exército Vermelho «empurrara» para o este, através da Polónia, e os transportes de prisioneiros que os alemães evacuavam de campos de concentração como Auschwitz e Majdanek chegavam de hora a hora. Em breve havia prisioneiras de vinte e dois países. As polacas continuavam a ser ainda o maior grupo, mas agora havia também prisioneiras britânicas, chinesas e americanas. Todos sabiam que Himmler conservava muitos dos seus Prominente, prisioneiros especiais, no bunker, incluindo um piloto americano que saltara de paraquedas do avião em queda e fora encontrado perto de Ravensbrück.
Embora a maioria de nós usasse o mesmo uniforme, de riscas azuis e cinzentas, podíamos adivinhar a nacionalidade da prisioneira pela forma como usava o seu. Notava-se logo quando era uma rapariga francesa. Cada uma prendia o lenço de uma forma única e charmosa e todas tinham costurado uns saquinhos chiques, chamados bautli, a partir de retalhos, para transportarem os seus parcos bens. Algumas até cosiam pequenas golas brancas nos uniformes ou faziam laços a partir de trapos. As prisioneiras russas, muitas delas enfermeiras e médicas do Exército Vermelho capturadas no campo de batalha, eram também inconfundíveis: um grupo disciplinado e todas usavamos uniformes exatamente da mesma maneira. Todas tinham conservado as botas de couro do exército e usavam o lenço da cabeça atado com um nó direito perfeito sobre a nuca.
Era fácil reconhecer as prisioneiras recém-chegadas ao campo. Uma vez que havia falta de uniformes, as novas detidas usavam uma estranha variedade de roupas misturadas, aproveitadas das pilhas dos saques. Pareciam pássaros exóticos, nas suas indumentárias de papagaios, como lhes chamávamos, com combinações berrantes de saias de folhos e blusas de cores brilhantes. Algumas tinham a sorte de encontrar casacos de homem quentes, todos eles marcados pelo pessoal do campo com uma grande cruz branca de Santo André nas costas, para o caso de o seu utilizador resolver fugir.
Duas raparigas russas tinham uma «loja» improvisada entre os blocos 29 e 31, onde era possível comprar uma camisola, meias ou um pente, pelo preço de uma ração de pão. Tinham uma vigia ali perto, alerta para o mínimo sinal de Binz.
Corriam rumores de que Gemma La Guardia Gluck, irmã do Presidente da Câmara de Nova Iorque, Fiorello La Guardia, também era ali prisioneira, bem como um grupo de paraquedistas britânicas capturadas em França pelas SS e a sobrinha de Charles de Gaulle, Geneviève. Além disso, todos sabiam que a própria irmã de Himmler tinha sido prisioneira em Ravensbrück, detida por contaminação racial – relações com um homem polaco. As raparigas da receção contavam até que ela não fora poupada às vinte e cinco chicotadas que faziam parte da sentença.
Binz aumentou ainda mais o volume da música que tocava através do campo e bombardeou-nos com canções de guerra e marchas. Olhei para o céu quando vi três aviões passarem – eram alemães. Percebia-se pelo som dos motores e pelo silêncio da sirene que indicava ataque aéreo.
No verão anterior ouvíramos falar da invasão da Normandia, graças a Herr Fenstermacher, mas ninguém precisava de dizer-nos que a Alemanha estava a perder a guerra. Os sinais estavam por todo o lado. Raides aéreos diários. Appells mais curtas. Menos pormenores dos trabalhos a realizar.
Os nazis começavam a desistir. Mas não a desistir de nos matarem. Os camiões sem janelas, para transporte incógnito, chegavam aos blocos com uma nova urgência. O gordo Dr. Winkelmann, com o seu casaco comprido de cabedal e a sua parceira, a velha enfermeira Marschall, perscrutavam o campo, em busca de prisioneiras doentes, que indicavam para seguir nos transportes.
As mulheres doentes escondiam-se por todo o lado, para conseguirem escapar: por baixo dos blocos, por cima dos tetos, atrás dos cestos de carvão. Zuzanna inventara um método para arranhar os braços de mulheres recém-chegadas de Auschwitz – entretanto evacuado –, para que a sua pele tatuada parecesse infetada, de forma a ocultar os números azuis. Quando era feita a chamada, todas no campo continuavam a esconder as Coelhas. Algumas até trocavam de número connosco, colocando-se a si mesmas em perigo.
Os rumores voavam. Uma prisioneira-enfermeira contou a Zuzanna que estavam a enviar mulheres mais velhas, que não podiam trabalhar, para o antigo campo de juventude, o Jugendlager, que ficava a menos de dez minutos de camião do nosso campo. A comida era em maior quantidade e não havia chamada. Seria verdade?
Ao anoitecer, fui autorizada a ir ao edifício da administração para recolher uma encomenda que me era dirigida. Deixei o bloco, feliz por poder andar, finalmente, sem a muleta, mas logo de seguida Karol, uma Jules da Holanda, agarrou-me por um braço e puxou-me para as sombras.
O meu coração apertou-se. Desconfiava de quase todas as Jules, porque eram um novo tipo de personagem que surgira no campo no último ano. Eram, geralmente, prisioneiras alemãs, com um triângulo verde ou preto, que tinham conseguido recolher das pilhas dos saques um casaco desportivo de homem, calças e até mesmo ceroulas, usavam o cabelo com um corte masculino e circulavam, emproadas, pelo campo, com um cigarro na boca e uma atitude desagradável. Algumas usavam uma lâmina para gravar um X – a que chamavam a «cruz da vaca» – na testa de uma rapariga de que gostassem, marcando-a como sua. Mas nem todas eram más. Conhecia algumas que eram pessoas agradáveis, e por vezes andar com uma constituía uma vantagem, pois significava proteção e comida. No entanto, as que eram objeto dos seus afetos eram impotentes para as rechaçar, uma vez que as Jules tinham contactos com gente em lugares importantes. Podiam deixar uma rapariga esfomeada, se ela não cooperasse.
– Estão a fazer nova seleção ali ao lado – avisou Karol. – Vamos dar uma volta.
Afastámo-nos do veículo, seguindo o caminho mais longo até ao edifício da administração. Dei uma olhadela para trás e vi Winkelmann e a enfermeira Marschall a carregar mulheres para uma camioneta preta sem janelas. Um transporte para a morte. Nenhuma de nós precisou dizê-lo: quem quer que fosse apanhada junto àquela tempestade poderia ver-se também levada, sem qualquer razão para tal.
Por muito assustadoras que algumas Jules fossem, Karol pode ter-me salvado a vida nesse dia. Quando o perigo terminou, agradeci-lhe e continuei o meu caminho. Pouco depois, passei por uma enorme tenda branca instalada para um grupo de prisioneiras recentemente chegado, numa área aberta, mesmo à saída da Estrada da Beleza. O campo tornara-se horrivelmente sobrecarregado de gente e os transportes continuavam a chegar, vindos de todos os países. Suhren mandava instalar as tendas mesmo no meio do campo. Esta estava de tal forma a abarrotar de mulheres e crianças que mal podiam sentar-se, onde quer que fosse. Muitas mantinham-se de pé, tentando acalmar os seus bebés.
– Kasia – chamou alguém. Virei-me, surpreendida por ouvir o meu nome.
A princípio não a reconheci, nas sombras por baixo da tenda, porque tinha o rosto abatido e magro e o cabelo loiro curto e cinzento da poeira.
Nadia.
Estava sentada sobre uma mala velha e ao seu lado estava uma mulher deitada com a cabeça no seu colo. Nadia tocou-lhe numa sobrancelha e murmurou-lhe qualquer coisa. Olhei-a durante um segundo, para me certificar de que era ela e depois aproximei-me mais da tenda, longe da vista das Aufseherin.
– Nadia? – perguntei. Seria uma alucinação?
Olhou para cima, como se a cabeça fosse demasiado pesada para o pescoço.
– Kasia – repetiu, expirando uma pequena nuvem de vapor branco. Como o meu nome soava bonito quando ela o pronunciava. Ergueu uma mão para me impedir de aproximar mais.
– Vimos uma rapariga ser arrastada por ter falado connosco. Além disso, mais de metade de nós tem tifo. Tem cuidado.
Dei mais um passo na sua direção. Que dia tão feliz! Como é que havia de conseguir que ela viesse para o meu bloco?
– Há quanto tempo chegaste? – perguntei discretamente, para que as guardas não ouvissem.
– Chegámos a noite passada de Auschwitz. Dizem que vamos para o campo da juventude. Que temos lá alojamento.
– Quando?
– Não sei – respondeu, olhando para a mulher com a cabeça no seu colo. – Temos todas tanta sede e ela precisa de um sítio para morrer em paz.
– Nadia, vem depressa. Eu consigo esconder-te.
– Não posso deixá-la.
– Outra pessoa pode cuidar dela. – Aproximei-me.
– Não a reconheces, pois não? É a minha mãe, Kasia. Nunca a deixaria.
A Sra. Watroba. Como tinham sido apanhadas?
– Vem – insisti. Sabia que conseguiria esconder ambas.
– Sei o que estás a pensar, amiga, mas vou ficar aqui com a minha Matka.
– Posso arranjar-te alguma coisa?
As guardas de Binz começaram a encaminhar as prisioneiras para um camião.
– Nada. Não te preocupes. Estaremos todos de volta a Lublin em menos de nada. Juntamente com Pietrik. Ficaremos felizes por te reencontrarmos. – Disse-o com um verdadeiro sorriso. A minha amiga Nadia.
– É a ti que ele ama – disse-lhe.
– Sabes quantas vezes me perguntou se tu gostavas dele? Ei... Deixei-te um livro antes de vir. No nosso sítio. Vais adorar o capítulo cinco.
– Receio que o sítio possa já ter desaparecido, mas iremos confirmá-lo juntas, quando estivermos de volta.
– Sim.
Nadia pigarreou, com uma mão no peito e o olhar fixo na minha perna má. Uma das meias desemparelhadas que eu trocara por um pouco da nossa pasta de dentes escorregara, revelando as marcas. Ficara curada, mas a pele estava ressequida e definhada, por ter perdido tendões completos e ossos, para além de brilhante e arrepanhada.
– Meu Deus, Kasia, o que aconteceu à tua perna? – os olhos marejaram-se-lhe de água.
Naquela situação e ainda chorava por mim? Era uma boa amiga.
– Conto-te mais tarde, mas agora posso arranjar-te algo para beberes... Tenho guardada alguma água da chuva.
– Sempre cheia de recursos, Kasia. A Matka ia adorar – disse, voltando a sorrir.
– Volto já – respondi, partindo em direção ao meu bloco.
A perna atrasava o meu progresso e quando regressei com a água, as guardas carregavam as últimas prisioneiras para o camião aberto. Fecharam a porta, bateram duas vezes e o camião avançou pela Estrada da Beleza.
Nadia. Vê-la foi com um remédio! Ficaria segura no campo de juventude? Nunca ouvira falar de ninguém que tivesse ido de Ravensbrück para lá. Rezei para que fosse verdade o que tinha ouvido sobre o novo campo. Deus ouviria as nossas preces?
O camião continuou a descer a Estrada da Beleza e os meus olhos encheram-se de lágrimas quando consegui vislumbrar Nadia a segurar a mãe.
– Ver-te-ei em breve, Nadia – gritei, correndo o melhor que conseguia atrás do camião.
Ela esticou o pescoço por cima da multidão, sorriu e levantou a mão. Vi o camião a afastar-se, até as luzes vermelhas da retaguarda irem desaparecendo. Limpei as lágrimas. Iriam mesmo para um local seguro? Era difícil acreditar em qualquer coisa que os alemães nos dissessem, mas, de qualquer maneira, umas raparigas dinamarquesas que estavam na receção contaram que os russos chegariam em breve para libertar o campo. Pelo menos, Nadia e a mãe teriam onde ficar. A minha amiga era a pessoa mais forte que conhecia.
Apressei-me a ir até ao edifício da administração para recolher a minha encomenda, quando a escuridão já descia sobre o campo. Uma família de ratazanas, grandes como gatos, atravessou a rua à minha frente, já sem medo das pessoas. Recolhi a minha encomenda no guiché do correio e dei uma vista de olhos ao remetente: Correios de Lublin, Lublin, Polónia, escrito pelo Papa. Abri-o enquanto seguia pelo corredor, com os tamancos de madeira a ecoar sobre o chão polido, e encontrei outro carrinho de linhas vermelhas.
Nunca me cansava de ver aquilo. Desde o primeiro, já me enviara mais dois. O Papa teria conseguido passar a palavra ao mundo? Se morrêssemos antes de o campo ser libertado, pelo menos todos saberiam o que tinha acontecido e os alemães seriam castigados pelo que fizeram. As suas encomendas tinham ajudado Zuzanna com a disenteria, mas depois apanhara outra coisa qualquer, por andar de bloco em bloco a tratar de outras prisioneiras. Dores de cabeça, arrepios, febre. Bastou vermos a erupção cutânea nos seus braços para ambas sabermos o que tinha: tifo. Nada, a não ser a libertação, poderia ajudá-la.
Passei pela secretária de Brit Christiansen, uma rapariga dinamarquesa que conhecia, e uma das muitas prisioneiras escandinavas que trabalhavam na receção. Era alta, tinha o cabelo louro curto e uma engraçada constelação de sardas beges salpicadas pelo rosto. Nunca conhecera ninguém dinamarquês antes do campo e agora descobrira que estavam entre o meu género de pessoas favorito. Gentis. Agradáveis. De confiança.
– Tenho duas coisas para te dizer e tem de ser depressa – disse-me Brit, com uma voz suave. – Uma delas é sobre um SS, de aspeto importante, que hoje veio fazer perguntas sobre a tua mãe.
– O quê? Quem?
– Não sei, mas era muito alto.
Lennart! Aqui, em Ravensbrück? A Matka estaria também aqui, em algum lado?
– E, além disso, hoje andam atrás das Coelhas – informou-me, puxando-me para mais perto de si.
Aquelas palavras provocaram-me um calafrio por todo o corpo.
– Mas está quase escuro. Uma seleção à noite?
– Binz está em pé de guerra. Suhren também vem. Duplicaram a ração de álcool aos guardas.
– Temos de esconder-nos – exclamei.
Conseguiria esconder Zuzanna debaixo do bloco? Ou talvez Anise pudesse esconder-nos novamente com as judias húngaras. A ala do tifo?
– Sabem que vocês se têm escondido por baixo do bloco, Kasia.
– Subimos para o Anexo.
– Também já o conhecem. E há novas camionetas por aqui.
Camionetas. Uma pontada de medo trespassou-me. Não havia tempo para histerias. Corri de volta ao bloco. A Lua não estava visível e a escuridão instalou-se à minha volta. Os holofotes por cima da minha cabeça ligaram-se, enquanto eu corria o melhor que conseguia, apesar de a minha perna doente, empurrando para o lado as mulheres que surgiam à minha frente, a caminho do meu bloco.
Não sintas nada. Se queres viver, não podes sentir.
Mal entrei no bloco, percebi que a notícia da caçada me precedera, pois as raparigas choravam, abraçadas. Abri caminho por entre mulheres de todos os países que Hitler invadira, uma confusão de diferentes línguas: russo, francês, húngaro, polaco. Encontrei Zuzanna no nosso beliche, de joelhos encostados ao peito, a tremer e com arrepios. Mal conseguia levantar a cabeça.
– Ouviste? – perguntei. Sentei-me ao seu lado e acariciei-lhe a testa. – Vêm buscar as Coelhas. Precisas de te levantar, minha querida.
– Não, Kasia. – Zuzanna abriu os olhos e voltou a fechá-los.
Anise avançou por entre a multidão de mulheres, a chamar por mim.
– Tens de sair daqui, Kasia – disse-me, com os seus modos calmos. – Eles vêm aí. Binz, Suhren e a médica. A Cruz Vermelha já levou as raparigas suecas e as francesas irão a seguir. Da rouparia. Vou deixar a janela das traseiras abertas para ti.
– Em camionetas? – perguntei.
– Sim. Usa o número 9284. É seguro. Só consegui arranjar um.
– Não vás, Anise. – Agarrei-lhe o pulso. – Como é que sabes que não é um transporte de morte?
Quantas vezes os víramos enganar as mulheres com os transportes? Por vezes os veículos pareciam ambulâncias, com cruzes vermelhas pintadas de lado. Ouvíramo-los conduzir até à pequena cabana do pintor e desligar os motores. Depois disso, as roupas das prisioneiras voltavam para a rouparia, com o cheiro doce e inconfundível do gás.
– É a Cruz Vermelha Sueca, Kasia, a verdadeira, e tens de apressar-te.
– Raparigas, vamos ter Appell – chamou Marzenka, batendo com uma colher de pau numa panela.
Anise saiu a correr, olhando para trás uma última vez.
– Temos de... – Puxei Zuzanna pela mão.
– Não, Kasia. Vai tu.
Tentou deitar-se para trás, no beliche.
– Temos de esconder-nos debaixo do bloco – insisti, enquanto a puxava para cima e a segurava pela cintura, guiando-a depois por entre a multidão até à porta, o seu peso suave contra mim, como um ramo seco.
Marzenka estava de pé, em cima de um banco do refeitório, rouca de gritar por cima daquela algazarra.
– Vá, por favor. A Binz deu-me a sua palavra de que não vos aconteceria nada de mal.
Isso só fez aumentar o pânico e muitas correram para a porta, mas Binz e o seu cão apareceram, com as suas Aufseherinnen atrás. Do lado de fora da porta, estava o Comandante Suhren e a Dra. Oberheuser, com a sua prancheta na mão. Eu estava suficientemente perto para conseguir ver a neve suave sobre os ombros da capa cinzenta de Binz. O cão tentou morder a perna de Zuzanna e recuámos.
– Saiam todas para a Appell – ordenou Binz. – Quem desobedecer, será abatida.
A Dra. Oberheuser numa seleção no bloco? Não nos restava alternativa senão obedecer. Não tínhamos hipótese de chegar ao nosso esconderijo. Puxei as meias para cima. A médica reconhecer-me-ia?
Segurava Zuzanna enquanto nos apresentávamos na Estrada da Beleza, frente ao bloco, e ficávamos em sentido sob o ar frio da noite, com as luzes brilhantes por cima da nossa cabeça. E se corrêssemos? Mesmo que tivéssemos boas pernas para o fazer, os cães acabariam connosco. Apesar de estar frio, eu sentia imenso calor. Porque é que não tinha sido mais rápida?
Binz e a Dra. Oberheuser percorriam as fileiras de uma ponta à outra e verificavam os nossos números. A primeira parou à minha frente, de chicote em punho.
– Baixa as meias – mandou.
Então era assim que tudo ia acabar. Puxei uma meia para baixo, revelando a perna boa. Binz aproximou-se da Dra. Oberheuser. A médica fez uma pausa.
– Então, Doutora? – perguntou Binz.
Sustive a respiração. Enquanto me olhava, a médica parecia congelada num sonho. Era um olhar de ódio ou de pena? Aproximou-se da outra perna.
– A outra – ordenou Binz. Puxei a outra meia para baixo, na zona dos sulcos e marcas onde antes tinham estado os meus músculos. A médica deve ter reconhecido o seu trabalho, pois acenou brevemente com a cabeça para Binz e avançaram para Zuzanna. A minha irmã olhou para mim. Sê forte, dizia o seu olhar. A seguir iríamos para o muro. Conseguiria ser corajosa como as outras e descer a Estrada da Beleza de cabeça bem levantada?
Inicialmente, a Dra. Oberheuser pareceu surpreendida com Zuzanna, já que as suas cicatrizes não eram tão óbvias como outras. Deixá-la-ia partir? Manda-me para o muro, rezei. Deixa a minha irmã viver. Deixa uma de nós voltar para casa, para o Papa.
A médica acenou mais uma vez.
Sim.
Zuzanna segurou-me a mão. Iríamos juntas para o muro de fuzilamento, como sempre planeáramos: juntas até ao fim.
Então, aconteceu algo de muito estranho. As luzes apagaram-se. Não apenas os holofotes, mas todas as luzes do campo. Era como se a mão de Deus tivesse descido para nos banhar numa espécie de negro aveludado onde não se consegue divisar coisa alguma. As raparigas chamavam-se umas às outras. Suhren, Oberheuser e Binz ladravam ordens na escuridão. Confusos, os cães rosnavam. Era inacreditável o barulho do campo, com todas a chorar ou a chamar alguém na Estrada da Beleza.
– Adelige, senta – ordenou Binz, com o seu comando de metal para o treino de cães a soar na escuridão.
Agarrei Zuzanna pela cintura e puxei-a para fora do grupo. As luzes deveriam aparecer a qualquer segundo. Avancei, roçando pela Dra. Oberheuser. Sentimos o cheiro do horrível perfume que ela usava. Pisei os pés da Binz e senti-a agitar os braços.
– Verdammtes Arschloch! – berrou.
Encaminhei-me para a rouparia, com o coração a querer saltar-me do peito, a tentar adivinhar a direção no meio daquele negrume, um braço em volta de Zuzanna, o outro esticado para a frente, como a estrutura de metal na dianteira de uma locomotiva, a bater contra as pessoas, no meio da escuridão. O fogo distante do crematório não era brilhante o suficiente para iluminar o campo, mas continuei a andar. Praticamente, tinha de arrastar Zuzanna, com todo o seu peso em cima de mim.
Soube que estávamos no sítio certo quando, em frente ao armazém da roupa, vi uma camioneta com as luzes interiores ligadas: a única luz no campo. À medida que nos aproximávamos, ouvi raparigas a falarem em francês. Tateei em busca da janela das traseiras do edifício, ajudei Zuzanna a trepar e depois subi também, puxando a perna má com um grande esforço. A divisão estava quente e, enquanto avançava, sentia o cheiro bom da multidão, uma mistura de transpiração e perfume.
– Não consigo muito mais. – Zuzanna inclinou-se sobre mim.
– Estamos quase – respondi. – Em breve poderás descansar.
Sob o brilho de uma lanterna vi Claire, uma amiga de Anise.
– Kasia – chamou.
– Estamos na lista de Binz. – Agarrei-lhe o braço. – Assim que a luz voltar, Zuzanna e eu seremos levadas.
– Esta noite a luz não vai voltar – avisou Claire. – As raparigas russas desligaram-nas. Quando ouviram dizer que o Suhren vinha atrás das Coelhas, Szura desligou o interruptor na estação transformadora. Toda a rede elétrica veio abaixo e não a voltarão a ligar a não ser de manhã.
– Como é que sabem que estas camionetas são mesmo da Cruz Vermelha?
– Suhren tem estado a empatá-las, mas eles já ameaçaram arrombar os portões. As raparigas do escritório dizem que o próprio Himmler autorizou o Conde Bernadotte da Suécia a levar-nos.
Já antes tinham inventado mentiras elaboradas para que as raparigas fossem pacificamente, mas esta era a nossa única oportunidade.
– Anise deu-me um número – disse.
– Certifica-te de que vais – pediu Claire. – Esta é a última camioneta. Duas já encheram e estão à espera, junto aos portões, para partirem.
Continuei a segurar Zuzanna e prossegui, por entre a multidão. Com o francês que aprendera, percebi que as raparigas estavam todas excitadas por irem para casa. Quando as últimas entraram, já poucas restavam junto à rouparia.
Quando cheguei à frente da fila, vi dois homens junto à traseira da camioneta, a verificarem os números. Não conhecia um deles. O outro era o gordo Winkelmann, vestido com o seu casaco comprido de cabedal. A porta traseira da camioneta estava aberta, deixando ver o amontoado de raparigas francesas, de pé, à espera. Uma enfermeira loura, vestida com um uniforme branco, ajudava as pessoas a subir. Se isto era um embuste nazi, era bastante elaborado, mas os guardas alemães usavam muitas vezes os uniformes de médicos e enfermeiros para nos enganarem.
Respirei com mais facilidade quando dei a Winkelmann o número que Anise me entregara e ajudei Zuzanna a entrar na camioneta. Quando chegou a minha vez de entrar, a enfermeira inclinou-se sobre mim. Pousei um pé no escadote de madeira. Estaria realmente a acontecer? Iria para casa? Para Lublin? Ter com o Papa... A enfermeira sorriu-me, estendeu-me a mão e eu segurei-a.
Winkelmann colocou o bastão branco à frente do meu peito.
– Stop. Número?
A enfermeira apertou-me a mão com mais força.
– Os números já foram todos controlados. Não temos tempo para discussões. – Falou em alemão, mas com um sotaque sueco. Íamos para casa.
Winkelmann empurrou-me para trás com o bastão e a enfermeira teve de libertar-me a mão.
– As minhas ordens são apenas Häflinge francesas. Se esta rapariga é francesa, então eu sou o Charles de Gaulle.
– Sou francesa – afirmei, em alemão. Aperceber-se-ia das minhas pernas a tremer?
– Ah, sim? – prosseguiu Winkelmann. – Diz alguma coisa na tua língua nativa, rapariga francesa.
Sem hesitar, no tom mais firme que consegui, disse, em francês:
– Este secador está demasiado quente. Pode cortar mais um bocadinho dos lados? Por favor, queria uma permanente com caracóis médios e mais bigudis nas extremidades. E agradeço que use a escova de pelo de javali, que parece ajudar a eliminar a caspa.
Winkelmann olhou para o outro homem.
– Tenho a certeza que é polaca – insistiu.
– Entra na camioneta – disse o outro homem, fazendo-me sinal para avançar.
– Precisamos de ir – interveio a enfermeira, puxando-me, para me juntar a Zuzanna. – Depressa.
Quando a enfermeira começou a fechar as portas, uma prisioneira correu para a camioneta com uma trouxa de roupas.
– Espera, a tua bagagem! – chamou, conseguindo entregar a trouxa.
– É minha – disse, da frente da camioneta, a doce Pienotte Poirot, uma amiga de Anise. As raparigas passaram-lhe a trouxa e as amigas aproximaram-se.
A camioneta começou a andar em direção aos portões abertos. Um caminho curto até à liberdade.
Por favor, que isto seja mesmo uma camioneta do hospital.
A cancela branca junto ao posto da guarda levantou-se, o condutor da camioneta acelerou e deixámos os portões para trás. Porque sentia a alegria da libertação? Seguimos pela estrada ao longo do lago e Pienotte abriu a trouxa.
– Meu Deus, é o Guy – explicou-me Claire. Pienotte abriu o cobertor para mostrar um recém-nascido pequenino, rosado e saudável, com a cabeça coroada de cabelo escuro. Nascera dois dias antes. Graças a Deus que não chorara. Rapaz inteligente.
Fomos roncando pela estrada abaixo, com as luzes da camioneta a revelarem o caminho e a iluminarem as traseiras da nossa escolta, três soldados alemães de motorizada.
Que estranho estar de novo numa camioneta. Que saudades tinha daquele agradável som das mudanças, da breve hesitação, de sentir os solavancos e do empurrão, para ir a algum lugar. A rua passou de paralelepípedos para um pavimento suave, alisado pelo rolo de cimento da equipa das estradas. Que belo trabalho fizeram, minhas senhoras, pensei. Se ao menos pudessem sentir como tinha ficado suave.
Algures ali perto, ouviu-se o que parecia ser o chiar de uma chaleira, com a água a ferver.
Uma bomba.
Aterra estremeceu, fazendo oscilar a camioneta, e o lago iluminou-se como o flash de uma máquina fotográfica.
– É um bombardeamento dos Aliados – disse a enfermeira. – Devem pensar que somos uma caravana alemã.
O condutor apagou as luzes e desligou o motor, enquanto os alemães das motas nos deixavam e regressavam, a zumbir, para o campo, com as luzes traseiras a ficarem cada vez mais pequenas, no meio da escuridão. O som da chaleira fez-se ouvir novamente e gritámos quando a colina à nossa frente se cindiu e os nossos rostos se iluminaram, como se estivéssemos à volta de uma fogueira. Pelo menos o impacto fez-nos sentir alguma coisa, como se estivéssemos vivas, e atirou-nos para o chão de borracha. Eu continuava a agarrar a minha irmã, osso contra osso, e caímos por cima de outras. Ela estaria a respirar? E eu? Apertei-a contra o peito, quente.
Depressa o motor voltou à vida e afastámo-nos em direção à Suécia, os nossos corações a bater como um só.